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7 - A Entente Cordiale

Entente” é uma expressão diplomática que refere um acordo entre dois ou mais Estados e que é diferente de um tratado estabelecido com as formalidades que é normal cumprir. Enquanto os tratados realizados seguindo as formalidades em uso são, em princípio pormenorizados, isto é, especificam de forma clara como cada uma das partes deve agir, a “Entente” é um acordo pouco detalhado quanto às acções que competem desenvolver por cada uma das partes embora possa, à semelhança dos tratados, ser bastante específico quanto aos objectivos. [EVANS, 1998, p. 149]

O termo “Entente Cordiale”, no âmbito do tema que estamos a tratar, refere-se a um acordo entre a França e o Reino Unido assinado em 1904. No entanto, já em 1843, igualmente a propósito de uma aproximação diplomática entre estas duas Potências, o primeiro ministro francês, François Pierre Guillaume Guizot (1787-1874), utilizou essa mesma expressão para referir essa reaproximação. No caso que estamos a tratar, tratou-se de um acordo cujo objectivo era a resolução de disputas territoriais ultramarinas e acautelar a crescente pressão alemã.  A esta entente juntar-se-ia a Rússia em 1907.

 

As Questões Coloniais

As questões coloniais em França

A França não tinha desenvolvido uma tradição político-colonial. No entanto, construiu o segundo maior império colonial do mundo. Em matéria de política estrangeira, o debate centrava-se nas regiões perdidas em 1870, e este debate dividiu a França. De um lado, grupos e personalidades que defendiam a política de revanche e, desse modo, a recuperação dos territórios da Alsácia-Lorena, projecto impossível para uma França isolada. Para esta facção, o esforço a despender numa expansão ultramarina era um erro porque consumia recursos essenciais ao seu objectivo de repor as fronteiras anteriores a 1870. Tratava-se de defender para a França um papel essencialmente continental. Do outro lado, encontravam-se os que consideravam a revanche irrealista e defendiam que a França devia apostar na expansão ultramarina com a finalidade de recuperar o seu prestígio e a sua posição de Grande Potência na cena internacional. Para estes, a expansão ultramarina poderia funcionar como compensação pelos danos, não só territoriais, mas também morais, na guerra de 1870-1871.

Não foram os meios financeiros ou económicos que exerceram pressão para alargar a expansão ultramarina. Ao contrário do que se passava na Grã-Bretanha, a indústria francesa não estava desenvolvida ao ponto de necessitar dos mercados externos para se manter ou desenvolver. Também não existia uma pressão demográfica. Em 1872, a França contava com pouco mais de trinta e seis milhões de habitantes e, até 1891 cresceu à volta de dois milhões. Este foi um dos crescimentos mais baixos da Europa. Já a Alemanha tinha em 1871 cerca de quarenta e um milhões de habitantes e até 1890 cresceu mais de oito milhões [MITCHELL, 1976, pp. 19-24]. No entanto, vários políticos franceses trabalharam com a finalidade de desenvolverem uma política ultramarina francesa.

Charles Freycinet (1828-1923), primeiro ministro por quatro vezes entre 1879 e 1892, Jules Ferry (1832-1893), primeiro ministro por duas vezes entre 1880 e 1885, Léon Gambetta (1838-1882), primeiro ministro por um curto período entre Novembro de 1881 e Janeiro de 1882, o almirante Jean Jauréguiberry (1815-1887) ministro da Marinha e das Colónias, por duas vezes entre 1879 e 1883, foram os grandes impulsionadores da expansão ultramarina, em especial Jules Ferry, «o arquitecto da expansão colonial francesa, mas também um dos teóricos do imperialismo moderno.» [WESSELING, 2004, 257] Léon Gambetta defendeu que a França podia recuperar a Alsácia-Lorena por troca com algumas colónias. Pierre Paul Leroy-Beaulieu (1843-1916) publicou a sua obra De la colonisation chez les peuples modernes, na qual defendia que era necessário passar da emigração de pessoas - a que os Franceses nunca aderiram em número significativo: 236.000 entre 1871 e 1900, menos de metade da emigração em Portugal em igual período [MITCHELL, 1976, p. 135] - para a emigração de capitais, defendendo o investimento nos territórios ultramarinos.

Em 1885, Jules Ferry enunciou três motivos para justificar a política colonial de França. Um motivo económico, baseado nas teses de Leroy-Beaulieu, defendendo que «a primeira função económica de uma colónia era ser um mercado para os produtos manufacturados da metrópole.» [WESSELING, 1996, p. 41] Foi enunciado também um motivo humanitário, em termos que hoje seriam inaceitáveis, mas próprios da época: «as raças superiores deverão civilizar as raças inferiores.» O motivo político era, para Ferry, o mais importante: a perda da Alsácia-Lorena e a impossibilidade de a recuperar num futuro próximo não significava que a França devesse ficar inactiva à espera de melhores dias. Essa inactividade no campo das relações internacionais só poderia acarretar decadência e, por isso, era preciso agir e a expansão ultramarina oferecia essa oportunidade.

Quando terminaram as Guerras Napoleónicas (1815) pouco restava do antigo império colonial francês, para além de algumas ilhas e feitorias ao longo das costas africana e indiana. Em 1830, a França apoderou-se da Argélia, um vasto território que, pelo menos nominalmente, pertencia ao Império otomano. Durante as Guerras Napoleónicas a França importou grandes quantidades de bens alimentares da Argélia, em grande parte obtidos a crédito. Em 1827, o governante argelino, Hussein Dey (1765-1838), exigiu que a França liquidasse uma dívida contraída em 1799 com a compra de abastecimentos para a Campanha do Egipto. O cônsul francês recusou responder de forma satisfatória a Hussein e este, no calor da discussão, tocou na face do cônsul com o seu “afasta-moscas”. Este gesto foi considerado um insulto e após um bloqueio de três anos ao porto de Argel, as tropas francesas desembarcaram a 14 de Junho de 1830. Como pano de fundo destes acontecimentos estava a instabilidade que então se vivia em França e a necessidade de desviar a atenção dos Franceses dos problemas internos.

Após estes acontecimentos, foi no interior do Senegal que a França reiniciou a actividade colonial, no Segundo Império (Napoleão III, 1852-1870), mas foi depois de 1870 que verdadeiramente tiveram início as novas empresas coloniais [WESSELING, 1996, pp. 293-796; 2009, pp. 507-510]:

  • 10 de Setembro de 1880 – Tratado Brazza-Makoko. Este tratado, foi ratificado pelo parlamento francês a 22 de Novembro de 1882. A França obteve a soberania sobre uma parte da região do Congo.
  • 12 de Maio de 1881 – Tratado do Bardo. Foi instaurado o protectorado francês sobre a Tunísia. Este assunto volta a ser objecto de acção diplomática em 8 de Junho de 1883 com a Convenção de La Marsa, complementar do tratado anterior.
  • 1882 – Os Franceses desembarcam em Madagáscar; os Britânicos ocupam o Egipto.
  • 26 de Fevereiro de 1885 – Assinada a acta da Conferência de Berlim (1884-1885).
  • 5 de Agosto de 1890 – Reconhecimento mútuo dos protectorados de Zanzibar (Reino Unido) e Madagáscar (França). Delimitação de fronteira entre o Níger (França) e a Nigéria (Reino Unido).
  • 1894 – Anexação do Reino do Daomé, actual Benim, pela França.
  • 20 de Março de 1894 – Lei que institui o Ministério das Colónias, com a missão de centralizar a gestão das colónias.
  • 14 de Agosto de 1894 – Convenção franco-congolesa. Leopoldo II da Bélgica (1835-1909), proprietário do Estado Livre do Congo (1885-1908) renunciou a uma parte do território e a França obteve acesso ao Nilo.
  • 16 de Junho de 1895 – Criação da África Ocidental Francesa, que englobava o Senegal, o Sudão Francês, a Guiné e a Costa do Marfim.
  • 14 de Junho de 1898 – Convenção franco-britânica respeitante ao Níger. A França obtém Nikki e o Reino Unido obtém Sokoto.
  • 19 de Janeiro de 1899 – Convenção anglo-egípcia – Estabelecimento do condomínio anglo-egípcio no Sudão.
  • 12 de Março de 1899 – Declaração franco-britânica – A França retira-se do vale do Nilo ficando regulada a questão de Fachoda.
  • 14 de Dezembro de 1900 – Acordo franco-italiano – A França obtém “liberdade” de intervenção em Marrocos e a Itália na Líbia.
  • 1904 – A África Ocidental Francesa passa a ser constituída por seis elementos: Senegal, Alto Senegal e Níger, Mauritânia, Guiné, Costa do Marfim e Daomé.
  • 8 de Abril de 1904 - Convenção franco-britânica, “Entente Cordiale” – Reconhecimento mútuo de zonas de influência em Marrocos e Egipto.

Esta breve cronologia mostra-nos o curto espaço de tempo em que a França formou o seu império colonial africano. Tratou-se de uma expansão com motivações sobretudo políticas. Ao longo deste tempo, foram definidas regras na Conferência de Berlim que decorreu entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885 (Ver o artigo “Primeira Guerra Mundial em África”), foram feitos numerosos acordos para delimitação de zonas de influência ou de fronteiras conforme o conhecimento que as Potências iam tendo sobre o terreno e, em geral, os conflitos de interesses entre as Potências europeias foram resolvidos pacificamente. No entanto, surgiu uma situação delicada que poderia ter originado um conflito entre a França e o Reino Unido: o caso de Fachoda, no Sudão, que à frente será tratado com mais detalhe.

 

As questões coloniais no Reino Unido

A expansão colonial britânica foi uma expansão de toda a sociedade. «O facto mais notável da história britânica no século dezanove, como Seeley assinalou, é que se trata da história de uma sociedade em expansão. As exportações de capital e manufacturas, a migração de cidadãos, a disseminação da língua inglesa, ideias e modelos constitucionais, foram todos eles irradiações das energias sociais dos povos britânicos.» [GALLAGHER & ROBINSON, 1953, p. 5 / John Robert Seeley, «The Expantion of England», 1883]. Tratou-se de um “imperialismo de livre comércio” (Imperialism of Free Trade), solitário, que evoluiu para se adaptar à corrida pelos territórios africanos, à concorrência das outras Potências europeias, às regras impostas na Conferência de Berlim (1885), à ameaça que a nova conjectura representava para os interesses britânicos privados já instalados. É nesta última fase que se assiste a uma intervenção oficial por forma a garantir as condições de segurança necessárias à expansão económica.

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O domínio europeu em África. Origem: http://mrwigginshistoryclass.com/home-page/modern-world-history/european-imperialism-in-africa/5-1-scramble-for-africa/

Os sucessivos governos britânicos utilizaram todos os expedientes informais para garantir a segurança nas regiões onde o comércio britânico tinha chegado, em África, antes de procederem à anexação desses territórios. Não se tratou de uma questão de bondade ou de seguir princípios que assim determinassem, mas de evitar os custos que estavam associados ao estabelecimento de colónias e das complicações administrativas que daí advinham. Esses expedientes passavam por obter garantias de acesso e comércio livre em territórios reclamados por outras Potências, negociavam zonas de influência ou estabeleciam protectorados reconhecidos pelas potências estrangeiras. Enquadravam-se nestas práticas, o Tratado Anglo-Português de 1884 sobre a embocadura do rio Congo, as regras do Tratado de Berlim de 1885, o Acordo Anglo-Alemão de 1886 sobre a África Oriental ou o Tratado de Zanzibar-Heligolândia de 1890. Só quando estes meios políticos falhavam e isso significava pôr em causa a segurança das actividades britânicas, económicas ou simplesmente filantrópicas, ou de posições estrategicamente importantes, é que se passava ao patamer da intervenção armada. A “partilha de África” a isso obrigou, nomeadamente a expansão francesa e a mudança de política da Alemanha de Bismarck que acabou por optar pelo colonialismo. «O imperialismo britânico foi em primeiro lugar e acima de tudo defensivo e reactivo, mas mudou progressivamente de carácter.» [WESSELING, 2009, pp. 251-252]

A expansão britânica não podia ser realizada sem o desenvolvimento de uma ideologia imperial, sem a pressão de grupos e pessoas defensoras da expansão colonial. Sir Charles Wentworth Dilke (1843-1911) com a sua obra Greater Britain (1868), Sir John Robert Seeley (1834-1895) com The Expansion of England (1883), James Anthony Froude (1818-1894) com Oceana (1886), e «o maior dos escritores imperialistas», Rudyard Kipling foram figuras de grande relevo na defesa da expansão colonial. Curiosamente, de toda a obra de Kipling, «uma vasta apologia da expansão branca e em particular inglesa», o texto mais conhecido e evocado é o poema The White Man’s Burden (O Fardo do Homem Branco), publicado no The Times (Londres), a 4 de Fevereiro de 1899, destinava-se a encorajar a colonização e anexação americana do arquipélago das Filipinas, conquistado pelos EUA durante a Guerra Hispano-Americana de 1898.

O Império Britânico, ao atingir a sua máxima extensão, englobava cerca de um quarto do planeta e da população mundial. Tratou-se de um império construído num processo longo e em que os elementos político, económico, demográfico e cultural tiveram, todos, o seu peso nessa expansão. «O crescimento demográfico constante, uma economia dinâmica, harmonia social e um regime político estável foram os fundamentos da expansão britânica.» [WESSELING, 1996, p. 69] Entre 1840 e 1880, o Reino Unido anexou a Costa do Ouro (Gana), Lagos (actualmente a maior cidade da Nigéria) e a Serra Leoa (costa ocidental africana), o Natal (actual província de KwaZulu-Natal da África do Sul), a Basutolândia (actual Lesoto), a Griqualândia-Oeste (hoje parte da República da África do Sul) e o Transvaal (norte da República da África do Sul; faz fronteira com Moçambique). Perto de 1880, cerca de dois mil milhões de libras esterlinas tinham sido investidas fora das ilhas britânicas, mas deve-se ter em conta que os investimentos de menor monta foram feitos na Ásia (com excepção da Índia) e em África por oferecerem perspectivas de retorno inferiores.

Em 1914, o Império Britânico em África incluía a Gâmbia, a Costa do Ouro e a Nigéria, na África Ocidental, a União Sul-Africana, Basutolândia, Suazilândia, Bechuanalândia, Rodésia e Niassalândia, na África Austral, a África Oriental Britânica, que englobava o Quénia e o Uganda, e a Somália Britânica na África Oriental, e o Egipto e Sudão no nordeste africano. Nestes territórios existiam formas diferentes de ocupação. Para a nossa narrativa é importante compreender a posição britânica no Egipto e no Sudão.

 

O Egipto e o Sudão

A crescente penetração europeia no Egipto foi consequência, em grande parte, da construção do Canal de Suez. No dia 30 de Novembro de 1854, Ferdinand de Lesseps (1805-1894) obteve a concessão para a construção do canal que começou a ser construído cinco anos mais tarde e foi oficialmente inaugurado a 17 de Novembro de 1869. Para a sua construção e exploração foi criada a Compagnie universelle du canal maritime de Suez, financiada por accionistas. A quediva do Egipto, Ismail Paxá (1831-1895), que assumiu esse cargo em 1863, detinha 44% das acções, o que significava que o Egipto tinha contribuído com uma soma considerável nas despesas da construção. Com o seu plano de modernizar o Egipto, Ismail Paxá mandou construir vias férreas, canais, cabos telegráficos, o novo porto de Alexandria, milhares de escolas, mas todos estes investimentos exigiram avultadas somas de dinheiro.

Para pagar estas obras era necessário recorrer a uma de duas soluções: aumentar os impostos ou obter o dinheiro com empréstimos. Desta forma, o Egipto passou a ter uma dívida demasiado pesada para com as instituições bancárias estrangeiras, em especial francesas e britânicas. Foi neste âmbito que o Governo britânico comprou as acções de Ismail Paxá na companhia do Canal de Suez. No entanto, as dificuldades em cumprir com as obrigações da dívida acabaram por colocar o governo egípcio sob tutela francesa e britânica, ou seja, o Governo egípcio passou a funcionar sob supervisão dos representantes franceses e britânicos. Esta situação gerou reacções que se podem agrupar em duas tendências: por um lado, os que pretendiam obter na Europa e Estados Unidos da América os recursos necessários para a recuperação do Egipto; do outro lado, um movimento nacionalista que defendia um renascimento egípcio assente numa tendência pró-islâmica.

Os Egípcios tinham estabelecido o controlo militar até à região do Lago Albert, hoje designado Lago Mobutu Sese Seko e que se situa na actual fronteira entre o Uganda e a República Democrática do Congo. As expedições militares que os levaram tão a Sul destinaram-se a dominar os reinos tribais da região e combater os traficantes árabes de escravos. Os Egípcios também se expandiram para Leste. Entre 1872 e 1875 avançaram para a costa do Reino da Abissínia, mas foram derrotados em Gundet (13 de Novembro de 1875) e em Gura (25 de Março de 1876. Estas campanhas contribuíram também para criar ainda mais dificuldades financeiras.

A incapacidade de Ismail Paxá controlar a situação interna no Egipto levou os governos francês e britânico a forçarem o seu afastamento. Sucedeu-lhe o seu filho Muhammad Tewfik (1852-1892), que assumiu o cargo a 15 de Novembro de 1879. Ainda neste ano, tinha começado a agitação provocada pelo grupo nacionalista liderado pelo coronel Ahmed Urabi (1841-1911), que se opunha à intervenção estrangeira nos assuntos internos do Egipto. No Verão de 1881, os militares egípcios liderados por Urabi apoderaram-se do Poder. A França e o Reino Unido agiram de imediato a fim de protegerem os seus interesses financeiros e protegerem o Canal de Suez. As esquadras francesa e britânica reuniram-se ao largo de Alexandria, em Maio de 1882. No dia 11 de Junho, uma multidão massacrou cerca de 50 europeus. O Governo britânico decidiu exercer represálias, mas o Governo francês não autorizou os seus navios a participar num acto de guerra que não tinha sido declarada.

No dia 11 de Julho, teve início o bombardeamento de Alexandria, efectuado pela Frota do Mediterrâneo, britânica, sob comando do almirante Frederick Beauchamp Paget Seymour (1821-1895). Após o bombardeamento, desembarcaram tropas britânicas em Ismaília e, a 13 de Setembro de 1882, foi travada a Batalha de Tell el-Kibir. As forças egípcias, cerca de 22.000 homens e 60 bocas de fogo de artilharia, entrincheiradas ao longo de um canal de água doce e da linha de caminho de ferro, não resistiram ao ataque lançado ainda de noite, cerca das 05H00, pelas forças britânicas, cerca de 17.000 homens sob o comando do general Garnet Wolseley [EGGENBERGER, 1985, p. 430]. As forças britânicas iniciaram de imediato a perseguição das forças egípcias que retiraram em desordem. O coronel Urabi foi capturado e enviado para o exílio. Foi posto fim ao "condomínio" franco-britânico e apenas os Britânicos permaneceram no Egipto. Nominalmente, o Egipto continuava a ser parte do Império Otomano, mas na realidade tornou-se um protectorado britânico embora só com a Primeira Guerra Mundial tenha sido oficialmente reconhecido este estatuto.

Muhammad Ahmad ibn as Sayyid abd Allah (1844-1885), um líder religioso do Sudão cujos seguidores acreditavam ser o "Mahdi", aquele que as professias diziam ser o redentor que permaneceria na Terra por alguns anos antes do dia final, pretendia controlar o Sudão e aí fundar uma república islâmica que se estenderia a todo o mundo. Iniciou uma revolta, em 1883, que colocou o Sudão em pé de guerra. O Governo egípcio reagiu enviando uma expedição militar para dominar a revolta. No entanto, a força expedicionária do Egipto, sob comando do coronel William Hicks (1830-1883) sofreu uma grande derrota na Batalha de El Obeid, ou Batalha de Shaykan, travada a 3-5 de Novembro de 1883. O coronel Hicks morreu no último dia da batalha. Em seguida, as forças do Mahdi avançaram com sucesso contra os portos egípcios do Mar Vermelho e derrotaram outra força anglo-egípcia na Batalha de El Teb a 4 de Fevereiro de 1884.

Quando foi travada esta última batalha, já os britânicos tinham decidido que o Egipto deveria retirar do Sudão. No dia 18 de Janeiro de 1884, o general Charles Gordon (28 Janeiro 1833 - 26 Janeiro 1885) tinha sido enviado para Cartum com a missão de supervisar a evacuação do Sudão. Contudo, a 13 de Março as forças militares do Mahdi atacaram a cidade. O cerco de Cartum durou até 26 de Janeiro de 1885 e terminou com o assalto à cidade, tendo morrido praticamente toda a guarnição anglo-egípcia, incluindo o general Gordon. O Governo britânico hesitou muito em enviar uma força em socorro de Cartum e a opinião pública britânica mostrou o seu desagrado. Por fim, em Outubro de 1884, partiu uma expedição sob comando do general Wolseley, mas só conseguiram chegar à cidade dois dias depois desta ter caído em poder dos "mahdaístas". Wolseley recebeu ordem para retirar. A 21 de Junho de 1885, Muhammad Aamad morreu vitimado pelo tifo e o seu sucessor, o califa Abdullah controlou rapidamente todo o Sudão.

No dia 12 de Junho de 1885 houve uma mudança no Governo britânico. Robert Arthur Talbot Gascoyne-Cecil (1830-1903), terceiro Marquês de Salisbury, assumiu o cargo de primeiro-ministro. Um «relutante imperialista, no entanto, o homem que, a longo prazo, faria mais do que qualquer outro Inglês deste período para expandir o Império britânico em África.» [PAKENHAM, 1991, p. 275] Entretanto, a questão do Sudão manteve-se adormecida até que a Itália, a França e a Etiópia começaram a competir pela supremacia na região.

Não foram apenas o Sudão e os interesses franceses ou italianos que começaram a preocupar o Governo britânico. O fulcro da questão era garantir que o vale do Nilo, ou melhor, o rio Nilo, da nascente até entrar no Egipto não fosse dominado por outra potência. Sem o rio Nilo, o Egipto não seria mais que uma parte do deserto do Sahara. Para os Britânicos, garantir a protecção do Canal de Suez implicava exercer o domínio sobre o Egipto e conservar o Egipto implicava dominar todo o vale do Nilo ou, pelo menos, impedir que outra Potência o fizesse porque, se tal acontecesse, poderia fazer chantagem com a Inglaterra ou, pelo menos, exercer pressão sobre ela. Assim, a África Oriental tinha grande importância para os Britânicos.

Em Março de 1892, Horatio Herbert Kitchener (1850-1916) foi nomeado sirdar do Egipto. A expressão “sirdar” aplicava-se ao Comandante-em-Chefe britânico do Exército Egípcio. O esforço que os britânicos faziam então em várias partes do mundo para defenderem os seus interesses e a falta de recursos financeiros do Egipto levaram a que a reconquista do Sudão só tivesse início em 1896. Esta reconquista foi realizada por uma forma militar anglo-egípcia sob o comando de Kitchener e durou até 1898. A última e decisiva grande batalha desta campanha, a Batalha de Omdurman, só foi travada a 2 de Setembro de 1898. Esta demora teve a ver com a dificuldade em manter uma linha de comunicações porque o Nilo não é navegável em toda a sua extensão e, para obviar a esse inconveniente, foi construída uma linha férrea que ligava Wady Halfa a Kerma (353 Km) e a Atbara (876 Km).  Após a conquista de Omdurman, Kitchener paratiu para Fachoda a 9 de Setembro.

 

O Tratado Heligolândia Zanzibar

Bismarck não viu vantagens na expansão ultramarina porque a considerava uma dispersão de forças e a fonte de prováveis conflitos com as outras Potências colonizadoras. No entanto, acabou por aceitar essa expansão por duas razões [ALBRECHT-CARRIÉ, 1958, pp. 192-193]: no campo interno, pela pressão exercida pelos partidários da expansão colonial, e no campo externo, porque as colónias poderiam ser utilizadas na sua diplomacia europeia. Os Alemães ocuparam algumas posições em África que viriam a dar origem à chamada África Oriental Alemã que hoje corresponde, grosso modo, à actual Tanzânia, a norte de Moçambique. Nesta região surgiram conflitos de interesses entre a Alemanha e o Reino Unido.

A pretensão dos Alemães em avançarem mais para o interior até à fronteira do Estado Independente do Congo colidia com os interesses britânicos que se materializavam na ligação entre o Cabo e o Cairo e no domínio do vale do Nilo. O projecto de Cecil Rhodes colidia com os interesses alemães da mesma forma que colidiu com a pretensão portuguesa de unir os territórios de Angola e Moçambique. No caso português, não havendo acordo entre respectivos governos, os Britânicos resolveram o problema com o ultimato de 11 de Janeiro de 1890, mas negociaram com os Alemães e chegaram a acordo nos termos do já referido Tratado de Heligolândia-Zanzibar de 1 de Julho de 1890 [http://germanhistorydocs.ghi-dc.org/pdf/eng/606_Anglo-German%20Treaty_110.pdf; existe um erro no segundo parágrafo do ponto 3. Do Artigo I porque onde se lê «In Southwest Africa» deve ler-se «In East Africa»].

Nos termos deste tratado, no Artigo I, era feita a demarcação das esferas de influência alemã e da Grã-Bretanha na África Oriental. O Artigo II estabelecia as medidas a serem adoptadas por cada uma destas Potências para a implementação das linhas de demarcação descritas no artigo anterior. Em seguida tratava-se da demarcação das esferas de influência da Alemanha e da Grã-Bretanha no Sudoeste Africano (Artigo III) e na África Ocidental (Artigo IV). Nos artigos seguintes tratavam-se questões relativas à implementação do tratado, ao estabelecimento de um protectorado britânico em Zanzibar (Artigo XI) e da cedência do arquipélago de Heligolândia à Alemanha (Artigo XII).

Este tratado permitiu manter uma situação estabilizada na região das nascentes do Nilo. O Reino Unido obteve pela diplomacia, não sendo necessário o emprego da força militar, Zanzibar e o conjunto de territórios que correspondem ao Quénia e ao Uganda. O facto de para a Alemanha ser muito importante ganhar a amizade da Inglaterra contribuiu para o sucesso das negociações. Este tratado foi o primeiro de uma série de acordos que permitem partilhar África. Sobre muitos dos territórios que foram então repartidos, conhecia-se pouco e os acordos de partilha referiam frequentemente acidentes do terreno ou cursos de água cuja localização não era inteiramente conhecida, por vezes nem havia a certeza da sua existência. Uma das consequências mais graves deste procedimento foi o facto de serem traçadas fronteiras de acordo com os critérios das potências ocidentais e sem olharem aos interesses dos povos africanos.

Map of Africa from Encyclopaedia Britannica 1890 pequeno

Mapa de África em 1890. Para visualizar o mapa com mais detalhe, seguir o link de origem: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/2e/Map_of_Africa_from_Encyclopaedia_Britannica_1890.jpg

 

O incidente de Fachoda

Para os britânicos era agora necessário controlar o vale do Nilo. O Tratado de Heligolândia-Zanzibar tinha definido os limites da expansão alemã naquela região de África, mas outras Potências mantinham-se igualmente interessadas em avançar em direcção ao vale do Nilo. Charles Tilstone Beke (10 de Outubro de 1800 – 31 de Julho de 1884), explorador britânico, autor de An Essay on the Nile and its Tributaries (1847), entre outras obras, enviou a Lord Palmerston (Henry John Temple, 3º Visconde Palmerston), primeiro ministro britânico, em 1851, um memorando intitulado Mémoire sur la possibilite de détourner les eaux du Nil en vue d’empêcher l’irrigation de l’Égypte. O Governo britânico deu suficiente importância a esta obra e assumiu a gravidade da ameaça que pendia sobre o Egipto [WESSELING, 1996, pp. 427-428].

O vale do Nilo tinha, assim, uma importância vital para o Reino Unido. Controlar o Nilo equivalia a controlar o Egipto, o que permitia controlar o Canal de Suez, ponto crítico na rota para a Índia. Nem a Alemanha nem a Itália constituíam uma ameaça nessa região, mas a França nunca tinha aceite a ocupação permanente do Egipto pelos Britânicos, nem aceitava o monopólio britânico sob a bacia do Nilo [WESSELING, 1996, p. 429]. O Reino Unido iria tentar utilizar com os Franceses os mesmos métodos que utilizou com a Alemanha para resolver a questão das esferas de influência na África Oriental. Isto implicava negociar com os Franceses cedendo aos seus interesses noutras zonas.

Os Franceses, desde Napoleão Bonaparte, tinham a ambição de modernizar o Egipto e aí fazerem grandes investimentos. Por esta razão, consideraram a ocupação britânica do Egipto como uma derrota infligida a eles próprios e, durante muito tempo, mantiveram-se afastados do Nilo. A primeira tentativa de penetração nessa região, a partir da África Ocidental, foi feita por iniciativa do rei Leopoldo da Bélgica, mas os Britânicos deixaram claro que consideravam inaceitável o acesso dos Belgas ao vale do Nilo. Para contornar a oposição dos Britânicos, Leopoldo procurou ganhar o apoio da França e levá-la a lançar uma nova iniciativa na região do Nilo.

O objectivo dos Franceses era o de obrigarem os Ingleses a reexaminarem a questão do Egipto e a melhor forma de o conseguirem era discutir o assunto numa conferência internacional. Neste caso, a França apresentaria uma posição reforçada se estabelecesse a sua presença sobre o Nilo. Com este objectivo, foram organizadas várias expedições com origem na África Ocidental, mas também na Etiópia, com a missão de estabelecerem uma presença francesa no Alto Nilo. A primeira dessas expedições, a Expedição Monteil, foi organizada em 1893. A última, a Expedição Marchand, teve início em 1896.

Jean-Baptiste Marchand (1863-1934), capitão da infanterie de marine (fuzileiros navais), apresentou o seu projecto de expedição ao Ministério das Colónias e Negócios Estrangeiros a 11 de Setembro de 1895. Este projecto, denominado Missão Congo-Nilo, tinha como objectivo «a consolidação da influência francesa no hinterland do Congo por forma que, quando as potências partilharem esta região, a França esteja também presente.» [WESSELING, 1996, pp. 471-472] Não se pretendia atingir este objectivo pela utilização da força militar, o que daria às outras potências um argumento para não reconhecerem as posições francesas, mas pela conclusão de tratados e pela criação de laços de amizade com os autóctones do território.

No dia 25 de Junho de 1896, Marchand partiu para África e chegou a Loango (actual República do Congo) a 24 de Julho, dirigindo-se em seguida para Brazzaville. Iniciou a sua viagem para o Alto Nilo em Janeiro de 1897, tendo como objectivo Fachoda (actual Kodok, no nordeste do Sudão do Sul), a capital do antigo Reino dos Shilluk, na margem ocidental do Nilo. A viagem foi feita em embarcações ao longo dos rios e a pé. Partiram de Brazzaville seis oficiais, quatro sargentos europeus, 50 soldados autóctones, um médico e um intérprete e cerca de 3.000 carregadores [WESSELING, 1996, pp. 474-475]. A expedição chegou a Fashoda a 10 de Julho de 1898 e, um pouco acima, num ilhéu do rio Nilo, já tinha sido içada a bandeira francesa por outra expedição que tinha saído da Etiópia. Em Agosto desse ano registaram-se confrontos com os Mahdistas que acabaram por retirar. A 3 de Setembro, Marchand concluiu um tratado pelo qual a França estabelecia um protectorado sobre o território do povo Shilluk.

Após a conquista de Ondurmã, Kitchener dirigiu-se para Fashoda onde chegou no dia 19. Kitchener protestou contra a presença francesa e mandou içar a bandeira egípcia. Marchand não tinha espaço de manobra para se opor já que os Franceses tinham defendido, contra o domínio inglês, que era necessário apoiar os direitos do Egipto, que incluía o Sudão. O Governo francês avaliou mal o interesse das outras Potências em apoiar a França. A Rússia não tinha nenhum interesse em intrometer-se neste assunto. Os Alemães não estavam interessados em contribuir para a solução de um diferendo que impedia uma aproximação entre a França e o Reino Unido, apesar de, na época, a Alemanha e o Reino Unido serem quase aliados. Aliás, foi com base no bom entendimento entre estas duas Potências que elas chegaram a acordo, a 30 de Agosto de 1898, sobre uma eventual partilha das colónias portuguesas.

Marchands Route to Fashoda

Para visualizar o mapa com mais detalhe, seguir o link de origem: https://www.mtholyoke.edu/acad/intrel/pol116/Marchand's%20Route%20to%20Fashoda.jpg

Os governos da França e do Reino Unido iniciaram negociações. Os britânicos ofereceram concessões na África Ocidental em troca dos territórios na região do Nilo, troca a que os Franceses se opunham. Não foi alcançado nenhum acordo e a questão de Fachoda transformou-se no acontecimento que poderia conduzir a uma confrontação mais alargada entre as duas Potências. O Reino Unido era a Potência mais forte. Kitchener dispunha de um exército moralizado pelas recentes vitórias enquanto Marchand não dispunha de mais que meia dúzia de franceses e uma centena de atiradores sudaneses. No vale do Nilo, os Franceses estavam em desvantagem. No contexto global, a França tinha a Rússia como aliada, mas esta não mostrou vontade de intervir; o Reino Unido não dispunha de aliados, mas estava de boas relações com a Tríplice Aliança. No que respeita à marinha de guerra, o Reino Unido dispunha de uma enorme vantagem sobre a França. O Governo britânico era estável enquanto o Governo francês estava dividido. O Reino Unido considerava esta uma questão de interesse nacional enquanto para a França era uma questão de prestígio. A opinião pública francesa considerou um absurdo a possibilidade de uma guerra contra o Reino Unido a propósito de Fashoda quando a Alsácia-Lorena continuava em mãos alemãs. A França cedeu e, no dia 11 de Dezembro de 1898, Marchand retirou de Fashoda.

 

A Entente Cordiale

A aproximação entre a França e o Reino Unido foi possível devido a duas circunstâncias [SCHMITT, 1945, pp. 55-59]. Em primeiro lugar, perante a posição firme do Governo britânico, a França mandou retirar de Fachoda a expedição de Marchand, mas obteve, com as conversações que se seguiram e conduziram à Convenção de 20 de Março de 1899, o reconhecimento da sua esfera de influência no Sahara Oriental, a região de Bahr el-Ghazal, no Chade e Sul do Sudão. Desta forma, a retirada de Marchand não teve um carácter de humilhação para a França. Em segundo lugar, atendendo a que a França contava apenas com o apoio diplomático da Rússia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Théophile Delcassé (1852-1923) assumiu esta pasta com a firme determinação de acabar com as dificuldades que existiam no relacionamento com o Reino Unido e a Itália. Neste último caso, o resultado foi o acordo secreto estabelecido a 1 de Novembro de 1902 [Ver o texto «A aliança franco-russa e a aproximação franco-italiana»].

Em 1903, o Rei Eduardo VII (1841-1910), rei do Reino Unido desde 22 de Janeiro de 1901, visitou a França. A sua simpatia pela causa francesa causou excelente impressão e, alguns meses mais tarde, foi a vez do Presidente francês, Émile Loubet (1838-1929), visitar a Grã-Bretanha. Seguiram-se encontros dos ministros dos negócios estrangeiros de ambos os países, Henry Charles Keith Petty-Fitzmaurice, 5º Marquês de Lansdowne (1845-1927), e Delcassé, que iniciaram conversações com o objectivo de estabelecerem uma possível aliança. Foi conseguido um acordo, assinado a 8 de Abril de 1904. Este acordo consistia em três documentos, todos eles respeitantes a territórios ultramarinos, de França e do Reino Unido, com diferentes estatutos. 

[Texto dos acordos que constituem a Entente Cordiale em https://web.archive.org/web/20040812065412/http://www.heritage.nf.ca/exploration/entente_toc.html].

O primeiro documento, o mais importante, intitulava-se “Declaração respeitante ao Egipto e a Marrocos”. Trata-se de um texto dividido em nove artigos e assinado pelos respectivos representantes: Lansdowne por parte do Reino Unido e Paul Cambon (1843-1924) por parte da França. O Artigo I contém uma declaração dos Governos britânico e francês respeitante ao Egipto:

«O Governo de Sua Majestade Britânica declara que não tem intenção de alterar o status político do Egipto.

Por seu lado, o Governo da República Francesa declara que não causará obstrução à acção da Grã-Bretanha naquele país […]»

Este artigo contém ainda algumas salvaguardas respeitantes a interesses do Egipto e da França. O Arttigo II, de forma idêntica, contém duas declarações respeitantes a Marrocos:

«O Governo da República Francesa declara que não tem intenção de alterar o status político de Marrocos.

Por seu lado, o Governo de Sua Majestade Britânica reconhece que pertence à França, com a particularidade de ser uma Potência limítrofe de Marrocos numa vasta distância, garantir a tranquilidade nesse país, e prestar assistência em todas as reformas administrativas, económicas, financeiras e militares que ele tenha necessidade.»

Os restantes artigos contêm disposições quanto à utilização dos portos, comércio, tratamento concedido aos funcionários de cada uma das Potências no Egipto e em Marrocos, livre passagem no Canal de Suez e no Estreito de Gibraltar, e quanto á aplicação do Acordo.

Europa 1904

Também fazia parte deste documento um anexo que foi mantido secreto, que continha cinco artigos e respeitava também ao Egipto e a Marrocos, à possibilidade de uma das Potências ser forçada pelas circunstâncias a alterar a sua política relativamente a algum daqueles territórios, e à possibilidade de atribuir responsabilidades territoriais a Espanha, na costa norte de Marrocos. [Ver texto deste apêndice em “WWI Document Archive > Official Papers > The Entente Cordiale Between The United Kingdom and France (https://wwi.lib.byu.edu/index.php/The_Entente_Cordiale_Between_The_United_Kingdom_and_France)]

O segundo documento era uma Convenção, também assinada a 8 de Abril de 1904, entre a França e o Reino Unido, que respeitava à Terra Nova (Newfoundland) na América do Norte, Canadá, e aos territórios da África Central e Ocidental. O Artigo I estabelecia que «a França renuncia aos privilégios estabelecidos em seu favor pelo artigo XIII do Tratado de Utrecht e confirmados ou modificados por disposições posteriores.» Os artigos seguintes tratavam da demarcação do ajustamento de fronteiras nos territórios da Senegâmbia (região da África Ocidental situada entre o Rio Senegal a norte e o Rio Gâmbia a sul), a costa da actual Guiné-Conacri, a região da actual Nigéria e do Lago Chade. O terceiro documento respeitava a Madagáscar, ao Sião (na Península da Indochina) e ao arquipélago das Novas Hébridas (Oceano Pacífico).

Este acordo ficou conhecido pouco depois como Entente Cordiale. Foi bem aceite na Grã-Bretanha, com pequenas excepções. Já em França, parte importante dos deputados consideraram que o Reino Unido tirava maiores vantagens do acordo que a França. Seja como for, o acordo foi ratificado e constituiu mais um passo fundamental para reforçar os laços que quebravam a situação de isolamento em que a França se encontrou até estabelecer a aliança com a Rússia. No entanto, «em 1904 este acordo era não mais do que pretendia ser – uma liquidação de rivalidades coloniais. Não era per se dirigida contra a Alemanha» [SCHMITT, 1945, p. 61].

Formalmente, tratava-se de um acordo colonial em que o Reino Unido abandonou a sua posição de fiel da “balança do poder” para se colocar mais próximo de um dos blocos de alianças. O acordo, para além da liquidação das questões coloniais, inaugurou um período de bom relacionamento entre o Reino Unido e a França. Esse bom entendimento poderia ser reforçado com a pressão que a França estaria em condições de exercer sobre a Rússia, o que, no caso do Reino Unido, poderia pelo menos atenuar alguns desentendimentos que existiam entre as duas Potências na Ásia Central [KISSINGER, 1994, p. 189].

 

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WESSELING, Henri, Les Empires coloniaux européens 1815-1919, © 2004, Éditions Gallimard, France, 2009, ISBN 978-2-07-036450-3.

 

Torres Vedras, 17 de Junho de 2019

Manuel F. V. G. Mourão