10 - As relações anglo-alemãs
Após a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), Bismarck conduziu a diplomacia alemã por forma a manter a França isolada, isto é, incapaz de estabelecer alianças ou, por outra forma, obter os apoios necessários para enfrentar a Alemanha. A França poderia não ter desistido da vingança pela derrota sofrida em 1870-1871 e, principalmente, de recuperar a Alsácia Lorena, mas não poderia fazê-lo sozinha. Os apoios para a França só poderiam vir da Rússia e do Reino Unido. A Áustria-Hungria era aliada da Alemanha nos termos da Aliança Dual (1879) e da Tríplice Aliança (1882). Neste último caso, também era aliada da Itália, mas esta era uma Potência que não tinha um peso significativo em termos militares. No que respeita à Rússia, Bismarck conseguiu manter uma ligação com esta Potência através do Acordo dos Três Imperadores (1873-1878) e da Liga dos Três Imperadores (1881-1887), sistema de que fazia parte a Áustria-Hungria, e pelo Tratado de Resseguro (1887-1890) entre a Alemanha e a Rússia. Bismarck deixou o poder em 1890 e o Tratado de Resseguro não foi renovado. A Rússia já não estava ligada à Alemanha e à Áustria-Hungria e, em 1892, estabeleceu uma aliança com a França. Em termos de dispositivo terrestre, a Alemanha enfrentava então a possibilidade de uma guerra em duas frentes: a Ocidente, contra a França, e a Oriente, contra a Rússia. O Reino Unido manteve-se fora destes sistemas de alianças, numa atitude que ficou conhecida como splendid isolation. A Grã-Bretanha é uma ilha e, por isso, a sua primeira defesa é feita no mar. Não existia marinha com capacidade para enfrentar a Royal Navy.
O esplêndido isolamento do Reino Unido
A estratégia adoptada pelo Reino Unido caracterizava-se por uma participação no sistema europeu reduzida ao mínimo. Os Britânicos referiam-se ao seu país como o fiel da balança da Europa impedindo qualquer coligação de Potências de se tornar dominante. Esta prática podia ser adoptada pelos britânicos porque a sua posição geográfica lhes conferia uma grande vantagem defensiva e a sua marinha era superior a todas as outras então existentes. Entre 1875 e 1914, o exército britânico foi sempre o mais pequeno (mas não o mais barato) entre os exércitos das Grandes Potências europeias. Só em 1905 foi registada uma força ligeiramente superior a 200.000 homens, mas a Alemanha dispunha de um efectivo que era o triplo deste [SCHMITT, 1945, pp. 117-119]. No entanto, quando comparamos o poder naval das Grandes Potências da época, a situação inverte-se claramente conforme podemos ver no mapa seguinte [KENNEDY, 1989, p. 203]:
Tabela 1 - Tonelagem do poder naval
|
1880 |
1890 |
1900 |
1910 |
1914 |
Reino Unido |
650.000 |
679.000 |
1.065.000 |
2.174.000 |
2.714.000 |
França |
271.000 |
319.000 |
499.000 |
725.000 |
900.000 |
Rússia |
200.000 |
180.000 |
383.000 |
401.000 |
679.000 |
Estados Unidos da América |
169.000 |
240.000 |
333.000 |
824.000 |
985.000 |
Itália |
100.000 |
242.000 |
245.000 |
327.000 |
498.000 |
Alemanha |
88.000 |
190.000 |
285.000 |
964.000 |
1.305.000 |
Áustria-Hungria |
60.000 |
66.000 |
87.000 |
210.000 |
372.000 |
Japão |
15.000 |
41.000 |
187.000 |
496.000 |
700.000 |
Os números acima referidos sobre os exércitos não incluíam as tropas coloniais, espalhadas por um vasto império. A dimensão da marinha britânica procurava estar ajustada não apenas à defesa da Grã-Bretanha, mas também à manutenção do Império que cada vez mais se encontrava sob pressão das outras Potências. «Embora a França, a Alemanha e a Rússia estivessem frequentemente em conflito umas com as outras no Continente, elas sempre entraram em confronto com a Grã-Bretanha no ultramar. Apesar de a Grã-Bretanha possuir não só a Índia, Canadá e uma vasta porção de África, ainda insistia em dominar vastos territórios que, por razões estratégicas, desejava impedir que caíssem nas mãos de outra Potência embora não procurasse controlar directamente esses territórios. […] Essas áreas incluíam o Golfo Pérsico, a China, a Turquia e Marrocos. Durante a década de 1890, a Grã-Bretanha viu-se envolvida em confrontos sem fim com a Rússia no Afeganistão, à volta dos Estreitos e no Norte da China, e com a França no Egipto e em Marrocos.» KISSINGER, 1994, p. 178]
A diplomacia de Bismarck
Entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885, realizou-se a Conferência de Berlim sobre a ocupação de territórios em África. Rapidamente as Potências europeias que já aí detinham alguns interesses lançaram-se numa corrida para a ocupação de territórios. Até essa data, o Reino Unido tinha sido a principal Potência colonizadora, mas a opinião pública e empresários alemães exigiram a aquisição de territórios ultramarinos que absorvessem parte da população em crescimento e formassem novos mercados para a indústria alemã. Bismarck, que até aí tinha mostrado relutância em enveredar pela aventura colonial, foi forçado a alterar a sua política nesta área. A expansão alemã em África obrigou o Governo alemão a ter um cuidado especial no relacionamento com o Reino Unido. Bismarck procurou manter um relacionamento cordial com os Britânicos e, numa demonstração de vontade de manter esse bom relacionamento, apoiou-os na questão do Egipto. Em troca, contava com a simpatia do Reino Unido na sua política de expansão colonial. A realidade é que os Britânicos não só não mostraram essa simpatia como colocaram alguns obstáculos à expansão alemã.
Não foi só à Alemanha que o Reino Unido causou dificuldades na expansão em África. Os Franceses tinham também iniciado um grande movimento de expansão e acabaram por entrar em rota de colisão com os britânicos na Africa subsaariana. Bismarck aproveitou a oportunidade para apoiar a França na sua expansão colonial. Fizeram-no para levar a França a desviar a sua atenção da situação da Alsácia-Lorena, mas também para que os Britânicos sentissem o isolamento a que estavam a ser votados em matéria de expansão colonial e, dessa forma, se mostrassem mais flexíveis no tratamento destes assuntos. Os Franceses, porém, fizeram saber que não estavam dispostos a renunciar à Alsácia-Lorena e sem a resolução deste problema não seria estabelecida uma relação de amizade permanente entre a França e a Alemanha.
Apesar de a Alemanha e a Rússia terem mantido uma ligação através do Tratado de Resseguro (1887), a verdade era que os contactos franco-russos estavam já em desenvolvimento, nomeadamente na área do comércio de armamento. A Rússia comprou uma grande quantidade de Fusil Lebel, a espingarda Lebel modelo 1886, produzidas pela indústria de armamento francesa. Bismarck sabia que uma aproximação entre a França e a Rússia exigia da parte da Alemanha uma aproximação ao Reino Unido. A sua proposta foi a de uma aliança entre estas duas Potências, dirigida fundamentalmente contra a França. A proposta, no entanto, foi rejeitada pelo primeiro-ministro britânico Lord Salisbury (1830-1903) porque, apesar de ser favorável a essa ideia, sabia que o Parlamento rejeitaria qualquer compromisso formal, seguindo a linha de “esplêndido isolamento” que mantinha desde 1815.
O telegrama Kruger
Bismarck abandonou o poder a 20 de Março de 1890. A Alemanha definiu uma nova política (Weltpolitik/Política mundial), destinada a aumentar a sua influência no cenário internacional. O Tratado de Resseguro (1887) não foi renovado e foi estabelecida uma aliança entre a França e a Rússia (1892), reforçada em 1894 por uma convenção militar. A aliança entre a França e a Rússia colocava a Alemanha numa posição difícil porque tornava muito mais provável uma guerra em duas frentes. Contudo, a partir daquele ano e até 1905, a Rússia foi absorvida pelos acontecimentos no Extremo Oriente, o que tornava difícil a cooperação com a França. No entanto, a Alemanha explorou ao máximo todas as oportunidades para mostrar que o seu apoio era necessário a estas Potências. Foi o que sucedeu com o apoio à França em 1894, em África, na questão da delimitação do Estado Livre do Congo, ou em 1895, quando apoiou a França e a Rússia que exigiam que o japão renunciasse a ganhos territoriais resultantes da guerra com a China. Com o Reino Unido, apesar de algumas tentativas para uma aproximação, a Alemanha, com a sua diplomacia um tanto errante, criou situações de conflito.
A estabilidade obtida na Europa permitiu às principais Potências desenvolverem políticas de expansão, especialmente em África e no Extremo Oriente. Apesar das rivalidades existentes, a Alemanha e o Reino Unido assinaram, a 1 de Julho de 1890, o Tratado de Zanzibar-Heligolândia, favorável aos Britânicos na África Oriental e aos Alemães no Mar do Norte. Contudo, a 3 de Janeiro de 1896 um acontecimento mostrou a fragilidade e a tensão das relações entre as duas Potências: o chamado “telegrama Kruger”. Na África do Sul, os Bóeres e os Britânicos enfrentaram-se em guerras declaradas por duas vezes. A Primeira Guerra dos Boers decorreu entre 20 de Dezembro de 1880 e 23 de Março de 1881 e terminou com a derrota das forças britânicas. A Segunda Guerra dos Bóeres decorreu entre 11 de Outubro de 1899 e 31 de Maio de 1902 e, ao contrário da primeira, terminou com uma vitória britânica. Entre estas duas guerras, registaram-se confrontos entre Bóeres e Britânicos.
Em 1857, os Bóeres – descendentes dos colonos oriundos dos Países Baixos, da Alemanha e da Dinamarca - tinham proclamado a República do Transval, com capital em Pretória. Entre 1883 e 1902, foi seu presidente Stephanus Johannes Paul Kruger (1825-1904). O Transval é hoje uma região da África do Sul conhecida pelas sua riqueza em diamantes e ouro descobertos em1868 e 1898 respectivamente. Além da república do Transval, existia outro Estado Bóer, o estado Livre de Orange. Ainda existiam outros Estados Bóeres que foram sendo anexados pela Colónia do Cabo. A ambição do Governo britânico, sob a liderança de Benjamin Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro britânico entre 20 de Fevereiro de 1874 e 21 de Abril de 1880, o Governo britânico ambicionou criar uma federação na África Austral na qual estariam incluídas todas as repúblicas bóeres. A quase totalidade das repúblicas foi anexada sem grande resistência. A República do Transval enfrentou os Britânicos na sua expansão na África do Sul.
A revolta dos Bóeres do Transval, sob a liderança de Paul Kruger, deu origem à chamada Primeira Guerra dos Bóeres (1880-1881). Esta guerra nunca absorveu grandes efectivos. Das batalhas que foram travadas entre as forças bóeres e britânicas, só na Batalha de Laing's Nek (28 Janeiro 1881) cada uma das forças empenhou mais de mil homens. Numa guerra deste tipo, em que a força militar bóer, constituída por uma milícia que formava grupos chamados “comandos”, era conhecedora do terreno e muito móvel, os Britânicos necessitavam de uma força muito superior àquela de que dispunham na região para dominarem os insurrectos. Após quatro batalhas perdidas, William Ewart Gladstone (1809-1898), o primeiro-ministro britânico desde 23 de Abril de 1880, compreendeu que para continuar o conflito seria necessário enviar avultados reforços de tropas e equipamentos. Sendo assim, optou por um gesto conciliatório e foi estabelecido um armistício a 6 de Março de 1881. No dia 23 de Março foi assinado um Tratado de Paz provisório que tomaria a forma definitiva com a Convenção de Pretória, assinada a 3 de Agosto [Texto da Convenção de Pretória em https://en.wikisource.org/wiki/Pretoria_Convention, visto em 2020-01-22]. Esta Convenção sofreu algumas alterações e foi substituída em 1884 pela Convenção de Londres [Texto da Convenção de Londres em https://en.wikisource.org/wiki/London_Convention, visto em 2020-01-22]. Estava garantida a independência do Transval.
Apesar das disposições das convenções assinadas em 1881 e 1884, existiam conflitos de interesses entre a Colónia do Cabo e o Transval, conflitos que poderiam pôr em causa a paz estabelecida. O rico território do Transval era alvo da cobiça do homem que presidia aos destinos políticos da Colónia do Cabo, Cecil John Rhodes (1853-1902). Rhodes tinha criado uma sociedade diamantífera, a De Beers Company, em 1874. Mais tarde, em 1889, criou uma companhia destinada a obter a exploração das jazidas de diamantes no Noroeste do Transval (região que se tornou mais tarde na Rodésia do Sul, hoje Zimbabwe. Também dirigiu no Transval uma sociedade mineira dedicada à exploração do ouro, a Gold Fields of South Africa. Foi este homem de negócios que o Governo britânico nomeou primeiro-ministro da Colónia do Cabo, cargo que assumiu a 17 de Julho de 1890. Nestas novas funções, criando uma profunda promiscuidade entre política e negócios, ainda podia contar com a protecção do Governo britânico.
Domínios britânicos na África Austral
O projecto de anexação das colónias bóeres continuava de pé. Cecil Rhodes estava convencido que tinha o apoio dos numerosos estrangeiros residentes no Transval (Uitlanders) e não teve escrúpulos em organizar uma revolta que deveria proporcionar a anexação do Transval pela Colónia do Cabo. Entre 29 de Dezembro de 1895 e 2 de Janeiro de 1896, Leander Starr Jameson (1853-1917), da British South Africa Company (BSAC), com uma força formada por elementos da BSAC e da polícia do Protectorado da Bechuanalândia, invadiram a República do Transval com a intenção de provocar a esperada insurreição dos Uitlanders. Esta acção fracassou, não se verificou nenhuma insurreição e Jameson e os seus homens foram aprisionados e conduzidos para Pretória.
A Alemanha teve mostrou sempre uma grande simpatia pela República do Transval onde exercia uma forte influência e encorajava as aspirações Bóeres. Cerca de quinze mil alemães tinham-se instalado no Transval após a descoberta de ouro em 1886. Empresas alemãs estabeleceram filiais em Pretória. Uma linha de caminho de ferro que ligava Pretória ao Oceano Índico, em Moçambique, estava a ser construída com maioria de capital alemão. Quando o resultado do Jameson raid foi conhecido em Berlim, o kaiser Guilherme II enviou um telegrama a Paul Kruger, com o seguinte texto [Tradução livre a partir de MASSIE, 1991, p. 223]:
«Expresso os meus sinceros parabéns porque, apoiado pelo seu povo e sem solicitar a ajuda de Potências amigas, obteve sucesso pela sua enérgica acção contra os bandos armados que invadiram o vosso país e perturbaram a paz e por ter sido capaz de restaurar a paz e defender a independência do país contra os ataques lançados do exterior.»
Pau Kruger respondeu a este telegrama da seguinte forma [MASSIE, 1991, p. 224]:
«Expresso a Vossa Majestade a minha mais profunda gratidão pelas felicitações de Vossa Majestade. Com a ajuda de Deus esperamos continuar a fazer tudo o que for possível pela existência da República.»
Na Alemanha, a opinião pública apoiou o telegrama do Kaiser, mas alguns órgãos de comunicação social deixaram claro que se tratava de uma derrota para o Reino Unido. Foi o caso do Allgemeine Zeitung de Munique que falava do «prazer universal sobre a derrota dos Ingleses». Friedrich von Holstein, que serviu no Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão e defendia um entendimento com o Reino Unido, escreveu em 1907, já afastado do serviço: «A Inglaterra, aquela rica e plácida nação, foi empurrada para a sua actual atitude defensiva relativamente à Alemanha por contínuas ameaças e insultos por parte dos Alemães. O telegrama Kruger foi o primeiro deles.» [MESSIE, 1991, p. 224] De facto, para os britânicos, o telegrama significava que a Alemanha aprovava a independência do Transval. Além disso, a expressão “Potências amigas” utilizada no telegrama do Kaiser foi interpretada como uma indicação de que a Alemanha estaria disposta a apoiar militarmente o Transval.
Na realidade, a 30 de Dezembro de 1895, o cônsul alemão em Pretória, von Herff, telegrafou para Berlim a pedir o desembarque de forças militares embarcadas em navios alemães fundeados na Baía de Lourenço Marques, hoje Baía de Maputo e na época conhecida por Delagoa-Bucht (em alemão) ou Delagoa Bay (em inglês), para serem transportadas por combóio para Johannesburg a fim de protegerem os súbditos alemães e a sua propriedade. No dia seguinte, 31 de Dezembro, o embaixador alemão em Londres, Conde Paul von Hatzfeldt (1831-1901), questionou oficialmente o Governo britânico sobre se tinha aprovado o Jameson raid. A resposta foi negativa e Salisbury garantiu que estavam a ser tomadas todas as medidas para pôr termo àquela acção. Hatzfeldt tinha instruções para, em caso de resposta afirmativa, solicitar o seu passaporte e cortar relações diplomáticas. Em Berlim, o embaixador britânico, Sir Frank Cavendish Lascelles (1841-1920), declarou que a força sob comando de Leander Jamson era uma força rebelde a quem já tinha sido dado ordem para retirar do Transval.
Na sequência do telegrama Kruger houve uma troca de correspondência entre Guilherme II, Imperador da Alemanha, e a rainha Vitória, sua avó. Numa carta escrita a 8 de Janeiro de 1896, Guilherme II afirmava que «nunca o Telegrama foi concebido como um passo contra a Inglaterra ou o seu Governo.» [MASSIE, 1991, p. 227-228] Em 1897, na Grã-Bretanha, foi formada uma comissão nas Câmara dos Comuns que, durante cinco meses, averiguou o envolvimento de Cecil John Rhodes e Joseph Chamberlain (1836-1914), o Secretário de Estado para as colónias. Esta comissão concluiu que seria impossível Chamberlain ter tido conhecimento antecipado da operação no Transval. No entanto, foram capturados documentos que provavam a cumplicidade de Cecil Rhodes.
A tensão entre a Alemanha e o Reino Unido atingiu um grau de perigosidade de que muitos não se terão apercebido. Lord Salisbury afirmou que o Jameson Raid foi uma acção insensata, mas que o Telegrama Kruger foi ainda mais tolo e que a guerra teria sido inevitável assim que o primeiro soldado alemão tivesse entrado no Transval e, nesse caso, o conflito daria origem a uma guerra europeia generalizada. Em todo este processo, assim como em muitas outras questões, a opinião pública teve sempre um grande peso nas decisões dos governantes. Disse ainda Lord Salisbury que «nenhum governo em Inglaterra poderia ter resistido à pressão da opinião pública.» [MASSIE, 1991, p. 230] Os Ingleses viram o Jameson Raid como uma acção destinada a defender os interesses britânicos e, por isso, ficaram surpreendidos com o teor do Telegrama Kruger. Esta questão revelou uma animosidade anglo-alemã até aí escondida pois era convicção geral que o Império Alemão, governado pelo neto mais velho da Rainha Vitória, era um dos amigos de Inglaterra. Afinal, o Tratado de Helgoland–Zanzibar (1890) tinha sido concluído com facilidade e tinham sido feitas várias tentativas de aproximação entre as duas Potências. Após a questão do Telegrama Kruger, passou a ser a Alemanha e não a França a ser olhada como um potencial antagonista.
As colónias portuguesas
Após o ultimatum britânico de 1890, Portugal e o Reino Unido chegaram a um acordo diplomático. O ultimatum surgiu sob a forma de um memorando enviado pelo Governo britânico a 11 de Janeiro de 1890, apesar de vários acordos celebrados entre os dois países sobre as respectivas colónias. A desproporção das forças entre Portugal e o Reino Unido resolveu o diferendo relativo à questão do “Mapa cor-de-rosa”. Portugal foi obrigado a ceder e a 20 de Agosto de 1890 foi assinado um acordo que nunca chegou a ser ratificado. Realizaram-se novas negociações e concluiu-se um tratado que foi assinado a 11 de Junho de 1891 e ratificado a 27 de Junho. Este tratado definia fronteiras e zonas de influência portuguesas e britânicas assim como estipulava as condições para o tráfego de pessoas e bens nos rios Zambeze e Chire. No entanto, este Tratado não garantia a integridade das colónias portuguesas.
1891 foi também o ano de uma grave crise económica e financeira em Portugal. Esta situação obrigou o Governo português a suspender o pagamento dos juros da sua dívida externa. O pico do peso da dívida pública, em percentagem do PIB, ocorreu no ano fiscal de 1892-1893 (124,3%). 0 Decreto de 13 de Junho de 1892, ratificado pela Lei de 25 de Maio de 1893, suspendeu parcialmente o pagamento dos encargos da dívida externa. Esta situação de suspensão parcial de pagamentos durou até 1902 [VALÉRIO, 1988, pp. 21-23]. A crise política agravava a crise financeira. As amortizações da dívida estavam atrasadas. «O ministro alemão em Lisboa, Conde de Tattenbach, fazia pressão sobre o governo e tentava levar outras potências a uma demonstração naval no Tejo, idêntica à que a Alemanha, Inglaterra e Itália fizeram para a Venezuela.» [PERES, 1935, pp. 428-429]
As dificuldades económicas e financeiras de Portugal arrastaram-se apesar dos esforços desenvolvidos pelos seus governantes. Quando foi necessário recorrer a um novo empréstimo externo, foram iniciadas negociações com o Governo britânico que decorreram em 1897 e 1898. O empréstimo foi negociado em condições que implicavam «a garantia, por parte da Inglaterra, da defesa de Portugal contra-ataques externos nas suas colónias, com reserva de opção, caso Portugal quisesse alienar qualquer território.» [PINTO, 2015, p. 26] Tais condições poderiam proporcionar grandes benefícios ao Reino Unido e, por isso, a Alemanha mostrou de imediato a sua oposição. As negociações foram canceladas por ordem de D. Carlos, mas Portugal não negociou o empréstimo com a Alemanha.
Atendendo à posição que as colónias portuguesas de Angola e Moçambique ocupavam, fazendo fronteira com colónias britânicas e alemãs, ambas as Potências com intenções expansionistas embora em campos antagónicos e atendendo às graves crises económicas e financeiras de Portugal, onde chegou a ser levantada a hipóteses de alienação das colónias a fim de pagar a dívida, o Reino Unido e a Alemanha concordaram em definir entre si as respectivas zonas de influência nos territórios portugueses. As conversações que se seguiram permitiram ao Reino Unido e à Alemanha chegarem a um acordo. Este foi assinado a 30 de Agosto de 1898, em Londres, pelos representantes britânico e alemão. Este acordo foi mantido secreto no seu conteúdo, mas a sua existência foi dada a conhecer ao embaixador português em Londres.
O Acordo Anglo-Alemão de 30 de Agosto de 1898 estava inscrito em três documentos [CAETANO, 1971, pp. 174-180; PINTO, 2015, p. 27]:
- A primeira Convenção estipulava que um empréstimo feito a Portugal deveria ser comum ao Reino Unido e à Alemanha e teria como garantia os rendimentos das alfândegas de Angola, Moçambique e Timor; também estipulava que ao Reino Unido caberiam as alfândegas da parte de Moçambique a sul do rio Zambeze e a parte norte de Angola; à Alemanha caberiam as alfândegas da parte meridional de Angola, a região de Moçambique a norte do Zambeze e Timor.
- A segunda Convenção, secreta, regulava a atitude a assumir pelo Reino Unido e pela Alemanha nas regiões mencionadas na primeira Convenção, no caso de Portugal não cumprir as obrigações da dívida. Ao verificar-se esta situação, as colónias indicadas passariam para o reino Unido e para a Alemanha e, sendo assim, aquelas eram consideradas desde logo como respectivas zonas de influência.
- Uma nota secreta sobre concessões nas esferas de influência. A nota esclarecia que «qualquer vantagem obtida do Governo português por uma das Potências na sua esfera de influência deveria logo ser acompanhada por vantagem análoga para a outra Potência na esfera que lhe era reservada.
Este acordo, pelos seus termos, dava como adquirida a incapacidade de Portugal honrar as suas obrigações relativamente aos seus empréstimos. Por outro lado, ao colocar a esfera de influência da Alemanha, em Moçambique, a norte do Zambeze, impediu os Alemães de apoiarem os Bóeres no Transval durante a Segunda Guerra dos Bóeres. Para Portugal era importante, perante este acordo, procurar outra fonte de financiamento e relembrar ao Reino Unido as responsabilidades que lhe competiam nos termos dos acordos estabelecidos com Portugal. A Segunda Guerra dos Bóeres proporcionou ao Governo português a oportunidade para uma contra-ofensiva diplomática dado que o Reino Unido necessitava fazer passar tropas e abastecimentos pelos portos portugueses, especialmente por Lourenço Marques (Maputo). Em Portugal, a opinião pública mostrava-se, no entanto, «francamente pró-bóer, conservando os sentimentos anti-britânicos suscitados pelo ultimatum.»
Para o Governo português «só podíamos favorecer a Grã-Bretanha na sua posição na África do Sul desde que fossemos solicitados a fazê-lo em nome da aliança, mas para isso era necessário revigorar esta em termos inequívocos, que vinculassem a nossa aliada ao compromisso tradicional de colaborar connosco na manutenção da integridade territorial não só da Metrópole como do Ultramar.» [CAETANO, 1071, p. 178] Um ano depois de assinado o acordo com a Alemanha, a 14 de Outubro de 1899, foi assinada uma Declaração secreta luso-britânica que ficou conhecida por Tratado de Windsor (tal como o Tratado assinado no século XIV). Esta Declaração garantia, por parte do Reino Unido «a manutenção da integridade dos territórios portugueses, tanto da Metrópole como das possessões ultramarinas.» [PINTO, 2015, p. 28]
As Conferências de Haia
Existiram várias Convenções de Haia. Para o tema que estamos a tratar é importante referir as Convenções de 1899 e de 1907, oficialmente chamadas “Convenção sobre a Resolução Pacífica de Controvérsias Internacionais (1899)” e com o mesmo título a de 1907. Juntamente com as Convenções de Genebra, as Convenções de Haia foram realizadas para clarificar e codificar as regras relativas à limitação de armas, à ocorrência e à conduta da guerra num corpo de leis internacionais. Esteve planeada uma terceira conferência para 1914, mas a situação de guerra que então se iniciou obrigou a reagendá-la para o ano seguinte – o que mostra a ideia errada que ainda existia sobre o que seria um conflito generalizado – não chegando a ser realizada. As Convenções de Haia de 1899 e de 1907 foram os primeiros tratados multilaterais relativos à conduta da guerra. Os textos redigidos em 1899 basearam-se em grande parte no Lieber Code, em vigor nas forças da União por iniciativa do presidente Abraham Lincoln, a 24 de Abril de 1863, durante a Guerra Civil Americana (12 Abr 1861 – 9 Mai 1865). Os textos do Lieber Code tinham já sido adoptados por várias instituições militares na Europa.
A primeira Conferência surgiu por proposta de Nicolau II da Rússia e teve início a 18 de Maio de 1899 e terminou a 29 de Julho. A acta final da Conferência (Convenção respeitante às Leis e Costumes da Guerra) continha cinco artigos e um anexo (Regulamentos respeitantes às Leis e Costumes da Guerra em Terra) constituído por sessenta artigos divididos em quatro Secções (Sobre os Beligerantes, sobre os Doentes e Feridos, sobre a Autoridade Militar em Território Hóstil, sobre o Internamento dos Beligerantes e o Cuidado dos Feridos em Países Neutrais) [
A Segunda Conferência, convocada por sugestão do presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, para 1904, acabou por ser adiada por causa da Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e foi realizada entre 16 de Junho e 18 de Outubro de 1907. Esta Conferência tinha como objectivo expandir as convenções de 1899 e alterando algumas partes e acrescentando novos tópicos. Teve como resultado um conjunto de convenções que continham poucos avanços relativamente à Primeira Conferência [SCHINDLER & TOMAN, 1973, pp. 53-56].
Ambas as conferências incluíram negociações respeitantes a desarmamento, leis de guerra e crimes de guerra. Em ambas foi tentada a criação de um tribunal internacional obrigatório para a mediação das disputas internacionais e em ambas falhou este objectivo por oposição da Alemanha e alguns países que a seguiram. Contudo, no Tribunal Permanente de Arbitragem, criado em 1899, passou a dispor de mais meios para a arbitragem voluntária a que as Potências podiam recorrer. Em 1907, foi dada maior atenção às questões navais. Os Britânicos tentaram garantir a limitação dos armamentos, mas não tiveram sucesso perante a oposição da Alemanha e seus aliados. A Alemanha temia que os britânicos conseguissem fazer aprovar uma convenção que impedisse o crescimento da sua frota.
Na preparação para a Segunda Conferência de Haia, em Inglaterra, a questão do desarmamento foi discutida no Parlamento que emitiu uma declaração afirmando que «a grande e crescente despesa feita com armamentos condicionava o crédito nacional e comercial, adicionava ao problema do desemprego a diminuição de recursos disponíveis para as reformas sociais e era um fardo particularmente pesado para as classes trabalhadoras.» [WOODWARD, 1964, p. 121] Faltava dar passos concretos a favor do desarmamento e esses passos teriam de ser uma iniciativa do Reino Unido ou seria muito mais difícil caminhar nesse sentido já que, como afirmava Sir Edward Grey, todos estavam à espera uns dos outros. No entanto, as propostas de Grey não tiveram muita aceitação no Governo alemão. Parte da opinião pública conservadora na Alemanha estava disposta a aceitar uma limitação temporária de armamentos por forma a poupar dinheiro para as obras de alargamento do Canal de Kiel e outras obras importantes.
Um artigo publicado no Kölnische Zeitung explicava a relutância da Alemanha em aceitar a limitação de armamentos no que respeitava aos recursos navais. No artigo era afirmado que o armamento da Alemanha não podia ser medido pelos mesmos critérios do Reino Unido ou da França, dado que a frota alemã se encontrava no estádio inicial de desenvolvimento. Sendo assim, a Alemanha defendia que as outras Potências deviam permitir que a Alemanha desenvolvesse os seus armamentos navais até ao mesmo nível que aquelas Potências. A Alemanha receava que o Reino Unido utilizasse a Segunda Conferência de Haia para a obrigar a manter a sua frota no nível alcançado até aí.
O processo para a redução ou limitação de armamentos era complexo e difícil de ser aceite por cada uma das partes quando os pontos de vista eram tão divergentes, mas os Britânicos tinham dado um passo importante. Um ano antes da realização da Conferência, em Julho de 1906, os Britânicos anunciaram que iriam reduzir a construção de quatro para três e que a construção de um destes três seria suspensa e poderia vir a ser cancelada se as Potências participantes na Conferência de Haia aceitassem a redução de armamentos. A proposta britânica não foi bem aceite interna e externamente. Internamente, porque muitos receavam que o Reino Unido perdesse a supremacia naval, garante da sua independência. Externamente, porque outras Potências, como por exemplo a Alemanha e a França, consideravam que deviam primeiro recuperar o atraso em que se encontravam no desenvolvimento das suas frotas. «O ponto de vista da Bélgica era de que a Grã-Bretanha estava simplesmente à procura de uma forma barata de manter a sua supremacia naval.» [WOODWARD, 1964, pp. 123-124]
A frota russa tinha sido destruída na guerra com o Japão (1904-1905) e não houve oposição a que a Rússia reconstruísse a sua marinha. A marinha alemã não sofrera um desastre como o que sucedeu com a da Rússia, mas não tinha atingido ainda a dimensão que os Alemães consideravam adequada para a sua defesa. Nesta situação, o Governo alemão não desejava negociar a limitação de armamentos, tanto mais que o Reino Unido já deixara claro que pretendia manter a supremacia naval e estava preparado para suportar os custos elevados dessa política. Um aumento na construção naval alemã conduziria a um aumento correspondente na construção naval britânica e o caminho seguido por estas duas Potências arrastaria outras no mesmo sentido. Se a Grã-Bretanha pretendia continuar a ter a supremacia naval, qual das outras Grandes Potências tomaria a iniciativa de, voluntariamente, impor restrições no que respeita ao seu próprio programa de desenvolvimento naval?
Tanto o Reino Unido como a Alemanha subscreveram as convenções produzidas na Segunda Conferência de Haia, mas estas não significaram mais que um tímido avanço relativamente à primeira. A discussão sobre a limitação de armamentos morreu. O relacionamento entre as duas Potências era francamente amistoso ao nível das respectivas casas reais, mas não ao nível dos respectivos governos.
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Torres Vedras, 22 de Janeiro de 2020
Manuel Francisco Veiga Gouveia Mourão