Introdução

O VIZINHO NORTE-AMERICANO E AS CONTRADIÇÕES TRÁGICAS DA HISTÓRIA DE CUBA.

Nos finais do século XVIII, o cubano Francisco de Arango y Parreño, para promover o desenvolvimento económico da Ilha, obteve de Espanha, juntamente com a outorga de alguns direitos alfandegários de menor importância, a concessão do tráfico de escravos africanos. Em poucos anos, a “Pérola das Antilhas” (a ilha de Cuba) cobriu-se de engenhos de açúcar e cafezais, aumentou a população e viu a sua riqueza crescer enormemente. Porém, pagando por isso um preço, pois converteu-se numa “colónia de plantações”, com uma minoria de habitantes brancos.

Alexandre Humboldt, que poucos anos depois visitou a Ilha, chamou-lhe a «ilha do açúcar e dos escravos».

 

O enorme crescimento da escravatura “infectou” toda a sociedade. A moral pública degradou-se. O trabalho passou a ser visto como “coisa” vil, tanto nas artes manuais e nas indústrias como na agricultura, a ponto de ser considerado desonroso para o homem branco. Crueldade e medo – engendrados pelo perpétuo receio de uma sublevação dos escravos (a do Haiti, mesmo “ali ao lado”, dera-se em 1791) – eram então os sentimentos dominantes. A corrupção da Administração Pública e da Justiça atingiu níveis nunca vistos. Pragas mortíferas – varíola, cólera, disenteria –, que se tornaram endémicas, infestaram o país.

 

O quadro de decomposição moral, tão claro à vista de todos, descrito por Humboldt, pelo presbítero Félix Varela e por José António Saco, na sua célebre Memória “Sobre la vagancia y los medios de combatirla”, levou o poeta Heredia a escrever: «Cuba, Cuba, en tu seno se miran, / en el grado más alto y profundo / las bellezas del físico mundo / los horrores del mundo moral».

 

Arango y Parreño ainda viveu o suficiente para se aperceber do erro que cometera ao haver ajudado a fomentar o tráfico dos escravos negros em grande escala. Nos últimos anos da sua vida converteu-se num inimigo do “trato de escravos”, mas então já era tarde.

A população branca tornara-se uma minoria e a paz social fora comprometida por longos anos. A produção organizara-se quase exclusivamente na base da brutal exploração esclavagista do homem pelo homem e, como consequência inevitável, acumularam-se dificuldades insuperáveis para um normal desenvolvimento social e político da Ilha.

A aspiração à independência, nas primeiras décadas do século XIX, foi contrariada pelo “medo ao escravo”. Para muitos cubanos, a Ilha tinha de permanecer submissa a Espanha, numa época em que toda a América latina se insurreccionava pela independência, para não se expor a uma catástrofe como aquela que atingira os colonos esclavagistas franceses no Haiti.

 

Arango y Parreño foi um dos primeiros a assinalar o dilema nas suas “Reflexiones de un habanero sobre la independencia”. Tratando de cortar esse “nó górdio”, os cubanos liberais defendiam, à época, que se acabasse com o comércio de escravos. Mas a numerosa e influente classe dos “donos de engenho”, os “negreiros” e as autoridades coloniais, a começar pelo Capitão General, que se enriqueciam com o tráfico, tolerando mesmo o que se processava à margem da lei e dos Tratados, impediram a sua proibição.

 

Surgiu então a teoria política colonial do «equilíbrio das duas raças»: enquanto existisse uma maioria de escravos não haveria insurreições independentistas na ilha, por medo a uma sublevação dos negros. A escravatura converteu-se, pois, numa “válvula de segurança” contra o “separatismo” revolucionário.

 

Assim, o “trato dos escravos” e a sua tolerância pelas autoridades revestiram-se de um matiz de aceso espanholismo. E o “negreiro” fechou, para cuidar dos seus interesses privados, as portas à independência.

 

Querendo preservar a escravatura e, ao mesmo tempo, libertar-se da tutela colonial de Espanha, surge o movimento do anexionismo. Com a anexação aos Estados Unidos, a independência seria posta em causa, mas, pelo menos, a “liberdade esclavagista” (isto é, a “liberdade” de ser proprietário de escravos), a segurança e a paz interna seriam asseguradas. Uma tal solução era “agradável” quer aos “donos de engenho” cubanos, que temiam a abolição da escravatura, por pressão da Inglaterra sobre as autoridades espanholas, quer aos Estados do sul da União norte-americana, que sairiam politicamente reforçados com a inclusão de mais um Estado defensor da escravatura.

 

Para o anexionismo, o dilema colocava-se entre o sacrifício da independência, mas vivendo seguros e livres – e com escravos –, ou continuar a suportar o regime colonial até que surgissem condições favoráveis à independência.

 

Saco, o publicista mais notável da época, profundamente imbuído do sentimento nacional, escolheu sem vacilar o seu caminho: nada de anexionismos; debaixo da bandeira de Espanha, sem revoluções “suicidas”, até que melhores tempos viessem.

Os seus adversários chegaram a acusá-lo de se ter vendido a Inglaterra e de estar ao serviço do governo colonial, mas Saco, até à hora da morte, manteve a sua “tese”, a par da sua fé nas ideias de progresso e de liberdade: oposição total ao anexionismo e às revoluções que, em seu juízo, só levariam à destruição de Cuba.

 

Apesar da enorme influência pública de Saco, anexionistas e separatistas não deixaram de se movimentar. Umas vezes juntos, outras vezes agindo sós, conspiraram e apelaram às armas em diversas ocasiões.

De 1848 a 1855, a iniciativa pertenceu aos anexionistas. Já após o seu fracasso, o desfecho da guerra de Secessão nos Estados Unidos, anti-esclavagista, ditou-lhes a decadência. Os separatistas tomam então a dianteira, alçando-se em armas em 1868. Essa “Guerra dos 10 Anos” (1868/78) reforçou ainda mais os sentimentos nacionais.

A paz do Zanjón trouxe algumas melhorias políticas, mas as suas consequências mais importantes foram de ordem económica. Pouco tempo depois veio a abolição da escravatura. Entretanto, a riqueza agrária cubana fora totalmente destruída nas três maiores províncias e, em grande parte, nas restantes regiões da Ilha. Os cubanos já não eram os primeiros possuidores da riqueza da sua pátria, agora esse lugar era ocupado pelos “peninsulares” (os naturais de Espanha).

 

Nos quinze anos de “relativa” paz que se seguiram, os autonomistas foram arrancando, uma a uma, concessões a Espanha, enquanto procuravam fomentar e consolidar a consciência nacional do povo cubano.

 

A GUERRA DE INDEPENDÊNCIA CUBANA ABRE AOS ESTADOS UNIDOS O CAMINHO PARA O SUL.

José Martí fundou então, nos Estados Unidos, o Partido Revolucionário Cubano. O seu programa reduzia-se, no fundamental, a preparar e levar avante uma nova guerra para a conquista da independência. Mas Martí alentava propósitos mais vastos.

Temia os EUA, cujas ambições sobre a ilha eram de sobejo conhecidas. Receava ainda que os Estados Unidos fizessem de Cuba uma base para a expansão no Caribe. Martí considerava provável que os EUA se lançassem em guerra contra a Espanha, arrebatando-lhe a Ilha para a incorporarem no seu território. Mas considerava que jamais se atreveriam a desencadear a guerra contra uma Cuba já livre e independente, constituída como República regular e democrática, pois que desencadeariam a hostilidade de toda a América latina e o protesto do “mundo civilizado”. No pensamento de Martí, a independência de Cuba era essencial para a segurança de todo o Continente sul-americano.

 

Porém, o conflito cubano de 1895 trará resultados diametralmente opostos aos esperados por Martí. As repúblicas hispano-americanas abstiveram-se de intervir no conflito e os Estados Unidos fizeram a guerra contra a Espanha, expulsando-a das suas últimas possessões coloniais e criando sólidas bases para a dominação norte-americana no Caribe, num passo prévio para se apoderarem do Panamá e abrir o canal interoceânico. A guerra hispano-americana deu-lhes Porto Rico e Guantánamo, o que, juntamente com a Emenda Platt, lhes assegurou o controlo do Caribe.

 

De um modo imediato, com a garantia proporcionada pela Emenda Platt, o capital norte-americano penetra rápida e massivamente na Ilha, estendendo-se das esferas comerciais e bancárias, caminhos-de-ferro e empresas de serviço público à aquisição de terras para o cultivo de cítricos e à compra e fomento de centrais açucareiras.

Por outro lado, os governos de Cuba, mal se constituiu a República, vão contrair empréstimos para múltiplos fins na praça financeira de Nova Iorque, criando desse modo novos vínculos de dependência económica com os Estados Unidos.

O Tratado de reciprocidade comercial de 1902 agravou ainda mais essa dependência, estimulando também a monocultura da cana-de-açúcar.

A marinha mercante norte-americana foi extremamente beneficiada. Aumentou a tonelagem com destino à Ilha, passando a competir vantajosamente com as empresas de navegação europeias e a assegurar a maior parte do tráfico. E estendeu de modo fácil, rápido e económico as rotas dos seus barcos às restantes Antilhas, à América Central, à Colômbia e Venezuela, abrindo novos canais para a penetração a sul dos Estados Unidos.

 

Havendo-se apoderado das posições estratégicas do Caribe, os EUA lançam-se, sem olhar a meios, sob o istmo do Panamá. A abertura do Canal vai permitir-lhes concentrar as suas esquadras navais quer no Atlântico, quer no Pacífico, e ocupar um lugar de primeira linha entre as grandes potências navais.

A doutrina Monroe, a partir deste momento, “revela-se” e ganha força efectiva, tratando de fazer das Américas uma “esfera de influência” exclusivamente norte-americana.

Estabelecida a supremacia diplomática política e militar, os Estados Unidos vão aumentado sem cessar os seus influxos de capital financeiro, comercial e industrial no “Sul”, bem como esse outro, bem mais subtil, de ordem psicológica, da “colonização cultural, veiculada pelos filmes, a informação por cabograma, os serviços de imprensa de tipo estandardizado, os livros, as revistas, etc. Também milhares de jovens de idioma castelhano passarão a receber a sua instrução em colégios do “Norte”.

 

Desde essa época até aos dias de hoje, essas influências fazem-se sentir com maior ou menor intensidade, segundo as circunstâncias do momento, mas a sua acção é permanente. De um modo geral, eram maiores no Caribe e na América Central, e menores à medida que se avançava para sul.

 

Hoje, depois dos capitais norte-americanos, em conluio com as burguesias “crioulas”, haverem pilhado (e continuam a fazê-lo) toda a América latina, assistimos ao começo do refluxo, na Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e, de modo mais ténue, noutros países latino-americanos. Entretanto, entre outros acontecimentos, países inteiros foram reduzidos à miséria. O “estouro” das bancarrotas mexicana e argentina ou o “livre-cambismo” chileno e brasileiro mostram bem que, em cerca de 50 anos, as “influências” norte-americanas referidas por Ramiro Guerra se estenderam, “uniformemente”, por toda a América Latina (com a insigne excepção de Cuba, a primeira perda do Império no seu “quintal das traseiras”).

 

A conclusão a que temos de chegar é a de que, nas Américas, se desenvolveu um novo ciclo de dominação colonial. Os países “descobertos” e colonizados pelos espanhóis foram sujeitos, paulatinamente, a um novo processo colonizador.

 

O MOVIMENTO DE EXPANSÃO NORTE-AMERICANO, UNO NA SUA ORIGEM E DESENVOLVIMENTO. AS SUAS CAUSAS PROFUNDAS.

Um conhecimento “pela rama” da história das Américas, desde a época, já remota, em que as colonizações espanholas e norte-americana começaram a disputar-se a posse das terras no Continente, pode fazer-nos duvidar de tal facto. Mas quem conheça esse processo colonizador desde as suas origens, e saiba o que é e como se desenvolve a colonização, não pode abrigar qualquer dúvida.

 

Os Estados Unidos nasceram plenos de vigor. A abundância de terras férteis à “disposição” do seu povo permitiu-lhes um rapidíssimo crescimento. Durante a guerra da Independência contra a Grã-Bretanha, os colonos norte-americanos cruzaram os montes Apalaches e fundaram as primeiras comunidades junto às nascentes dos rios que descem das montanhas para o Mississipi. A Paz de Paris, que lhes assegurou a independência em 1783, reservou a esses colonos, já firmemente estabelecidos naqueles locais, um amplo campo de expansão, dos Apalaches até à margem do Mississipi.

 

O conde de Aranda prognosticou a futura grandeza da nova República. A Espanha teve em conta a sua predição e, vendo os “recém-chegados” EUA como uma ameaça potencial para as suas possessões das Floridas e Louisiana, reclamou, no decurso das negociações de paz, que a fronteira ocidental dos Estados Unidos fosse fixada nos montes Apalaches. Assim, entre os territórios espanhóis (com o seu limite a oeste no rio Mississipi) e a União norte-americana, situar-se-ia uma extensa faixa de terra habitada por tribos índias, inimigas dos colonos de fala inglesa. Mas estes intentos fracassaram e a Espanha foi obrigada a ter uma fronteira comum com o temível vizinho, a norte da Florida e sobre todo o curso do Mississipi.

 

O conflito entre as duas civilizações e os dois impérios colonizadores estava lançado, com os norte-americanos dispostos a prosseguir a conquista e colonização de toda a América setentrional, que havia sido iniciada sob a bandeira inglesa. A Espanha foi vencida e expulsa de todas as suas possessões na Florida e Louisiana. Pela mesma época, os seus extensos Vice-reinados e Capitanias gerais insurreccionavam-se e transformavam-se em Repúblicas.

 

Porém a independência das antigas colónias espanholas não alterou a essência do conflito que se vinha desenvolvendo, e quando a sentinela espanhola foi substituída pela mexicana na fronteira do Texas, os norte-americanos não fizeram entre elas qualquer distinção. A Louisiana passou aos Estados Unidos em 1803, a Florida ocidental em 1810, a Florida Oriental em 1821. Seguir-se-lhes-ão o Texas em 1836, “arrancado” ao México, tal como o Novo México e a Califórnia (da época) em 1848.

 

As terras assim adquiridas formavam uma tal extensão que decorreram largos anos até que fossem povoadas e exploradas economicamente. Todavia, ao terminar o século XIX, esse processo já se havia concluído no fundamental.

A expansão estava pronta a dirigir-se-ia agora para sul, numa rota prevista por Jefferson desde o ano de 1805.

Essa nova etapa levou as guerras de conquista, o domínio político e a penetração económica dos Estados Unidos às Antilhas, à América central, ao Panamá e à América do sul.

 

O processo continua a desenrolar-se, amoldando-se às circunstâncias políticas de cada época e usando os meios de acção do capitalismo moderno, que permitem colonizar e explorar “à distância”, sem necessidade de transportar e estabelecer grandes massas de população metropolitana nas novas “províncias” conquistadas. No entanto, para o historiador que vá até ao fundo das coisas, nos campos social, económico e político, o fenómeno permanece o mesmo: colonização.

 

(E, assim, um colombiano dirá em Março de 2007, aquando da visita de Bush ao seu país, que o norte-americano veio visitar «su finca» ou, em português, a «sua quinta», chamando à sua pátria, desgovernada por Uribe, uma “coisa” dos Estados Unidos.)

 

A história deste longo conflito, que decorre há vários séculos, não foi estudada nem escrita, em língua espanhola, como um processo unitário.

Os primeiros choques entre a Espanha e os Estados Unidos foram coevos de acontecimentos de muito maior ressonância na Europa. Os norte-americanos apoderaram-se da Florida ocidental quando a guerra napoleónica decorria em Espanha. A Florida oriental foi adquirida quando os espanhóis moviam guerra às revoltadas colónias da América do sul e, na Europa, a atenção se fixava nos problemas políticos em torno da Santa Aliança.

A pugna dos Estados Unidos e de Espanha, por terras quase desconhecidas, despovoadas e selvagens, passou praticamente desapercebida, apenas interessando os poderes directa ou indirectamente nela envolvidos. Posteriormente, após a Espanha haver perdido as suas colónias, à excepção de Cuba e Porto Rico, os estudos sobre a nação “descobridora” caíram em desuso. Nem sequer os historiadores espanhóis quiseram traçar o quadro das derrotas infligidas ao seu país pelo antigo “vizinho” norte-americano.

Assim, vinte e cinco anos depois da conquista da Florida, quando os Estados Unidos, já anexado o Texas, provocaram a guerra com o México para se apoderarem da Califórnia, não se relacionou esta agressão com as que lhe haviam servido de precedente. Erroneamente, foi considerada como algo de novo na história das Américas. E se alguém descobriu e assinalou a semelhança com o que acontecera à velha potência colonial espanhola, o seu reparo não foi advertido. Para as repúblicas hispano-americanas, iludidas pela doutrina Monroe, tornava-se inconcebível que os Estados Unidos não estabelecessem diferença entre elas e a antiga Espanha colonial. Acresce que entre os novos países sul-americanos se sucederam as disputas territoriais e as guerras intestinas, o que também contribuiu para a sua falta de discernimento quanto às reais ambições do grande vizinho do norte. Por isso, o México viu-se sozinho, sofrendo, em carne viva, a ferida que jamais pôde esquecer.

 

Durante cerca de quarenta anos, a população sempre crescente dos EUA satisfez a sua sede de terras com os territórios que arrebatara ao México. A sua colossal energia foi empenhada, depois de uma grande guerra civil, no desenvolvimento do Far West, na construção da gigantesca rede ferroviária do país e no erguer da sua enorme e pujante indústria.

Até à última década do século XIX, os EUA não dispuseram de força ofensiva para continuarem a dilatar as suas fronteiras. A pretexto da revolução cubana desencadeada em 1895, como já se referiu, o expansionismo norte-americano retoma o seu curso. De novo a velha potência colonial espanhola teve de sofrer o seu assalto, em Cuba, Porto Rico e nas Filipinas.

A guerra de espoliação do México fora há já tanto tempo (meio século), e parecia algo tão diverso, que tampouco desta vez se estabelecerá qualquer relação de semelhança entre ambos os conflitos.

 

Foi necessário que se verificassem o desmembramento da Colômbia e as repetidas intervenções em Santo Domingo, Haiti e Nicarágua para que se começasse a falar do “imperialismo yanqui”, porém, caracterizando-o erradamente como um fenómeno desse início do século XX, como algo ainda indefinido e por consolidar, sem ver que o movimento de expansão e conquista de terras a expensas de Espanha e dos países hispano-americanos já contava então mais de um século, sem mudanças de vulto nos métodos e nos fins.

 

Este movimento é actualmente, como sempre foi, um esforço dirigido a explorar e adquirir novas terras. A diferença estriba em que, nos últimos tempos, as novas “províncias” (veja-se, por exemplo, sobre o México) não são incorporadas ao corpo da nação norte-americana, como aconteceu com os territórios da Louisiana, Florida, Texas, Novo México ou Califórnia, contíguos territorialmente ao “originário” território da União norte-americana e habitados sobretudo por populações de peles-vermelhas, incapazes de deter as vagas de milhões de colonos “famintos” de terra.

 

Diz Ramiro Guerra:

«Como em todo o processo típico de colonização, a conquista, apenas iniciada em alguns locais, está terminada noutros. Os territórios que já caíram totalmente dentro do domínio político formam parte de um Império bem definido, os outros, de “uma esfera de influência” na qual a penetração está mais ou menos avançada.»

 

A síntese é magnífica mas, nota bene, só para a fase de ascenso de um Império. Na fase do descenso, as tentativas de ampliação do Império têm por réplica secessões de “pedaços” que já pareciam eternamente adquiridos (em “versão muito acelerada”: “género” Reich dos mil anos). A “dura realidade”, e exemplo proverbial para os “construtores de Impérios”, é que já Augusto, princeps de Roma, na época em que Virgílio compôs a Eneida, chorava as legiões por Varo perdidas na Germânia.

No caso do Império norte-americano, o primeiro pedaço a cindir foi a sempre (por ele) almejada Cuba. Mais grave ainda, para além de haver “quebrado os dentes” em povos, à época, de camponeses, como o norte-coreano ou o vietnamita, e de se ver condenado a quebrar a nova prótese dentária (dólar sem padrão ouro, ou seja, dólar "só" papel) no Iraque, no Afeganistão, na Somália e aonde quer que vá, acresce que se depara actualmente com uma sublevação de respeito no velho “quintal das traseiras” da América do sul, apresentando-se-lhe o possível desenlace, no mínimo, dolorosamente incerto.

 

É de sublinhar que Ramiro Guerra acabou de escrever “A expansão territorial dos EUA” na década de trinta do século XX e que, nessa época, a sua percepção do “momento” do Império norte-americano na América latina estava plenamente de acordo com a realidade: ascensão do respectivo domínio.

 

«O possuidor e principal beneficiário, não há que duvidar, é o povo norte-americano (Ramiro Guerra deveria dizer: uma parte dos norte-americanos). Wall Street, o grande centro financeiro, a que se atribui a “obra” imperial, não é mais do que um dos agentes e instrumentos da mesma. A grande mole que a impulsiona está por detrás dele. São os milhões de norte-americanos que investem o seu dinheiro em obrigações e acções das Companhias industriais e mercantis (hoje, diversamente da época em que Ramiro Guerra escreveu, a composição do capital é bem mais parasitária e especulativa; a título de exemplo, veja-se o “link” deste parêntese), tanto no seu país como na América hispânica ou na China; que especulam na bolsa com valores de todas as classes, nacionais ou estrangeiros, como (há dois séculos) especulavam com terras no Kentucky ou no Yazoo, em busca de riqueza fácil, rapidamente adquirida; que importam produtos dos trópicos, obtidos a baixíssimo custo, para os vender a bom preço nas suas aglomerações urbanas; que vão buscar ao Caribe, à América central ou à América do sul, do mesmo modo, matérias-primas para as suas indústrias; que pagam, contentes, os impostos com que se fabricam os couraçados, cruzadores, porta-aviões e demais formidáveis máquinas de guerra dos Estados Unidos (hoje, além do abaixamento dos impostos dos ricos dos EUA, acontece que boa parte da despesa militar e do défice com o exterior é suportada, se bem que precariamente, pelo investimento financeiro estrangeiro)

 

«Wall Street é um símbolo e a expressão material, objectiva e operante, em um dos seus aspectos, do profundo instinto de aquisição do povo norte-americano, o mesmo, sem nenhuma mudança substancial na essência, dos conquistadores do Oeste, dos Apalaches à Califórnia.»

 

Apesar de ser “fã”, há mais de trinta anos, de Ramiro Guerra, é preciso dizer que ele por vezes descamba (aqui e não só) em posições próximas de irracionais positivismos, biologismos e darwinismos sociais. Já Jack London, este, um grande escritor norte-americano, sofria de pecha aparentada.

No caso de Guerra, a “coisa” é tanto mais criticável quanto, na época em que escreveu o último capítulo do seu livro, milhões de operários e camponeses norte-americanos vagueavam sem eira nem beira pelo país, em consequência da Grande Depressão. O seu “profundo instinto” (social, e não “biológico”, diga-se de passagem) era o de buscar um trabalho assalariado, e não o de “invadir a América latina”.

De facto, houve «uma mudança substancial na essência do movimento colonizador» a partir das décadas finais do século XIX. A colonização, que fora obra de um povo de imigrantes, com predominância “anglo-saxónica”, transforma-se num processo de aquisições completamente controlado pelos grandes capitais. A partir desta época, as vagas de imigrantes têm por destino o trabalho assalariado. Ramiro Guerra apercebe esse fenómeno, mas não lhe desentranha todo o significado.

 

Um elemento bem representativo do imperialismo norte-americano, Theodore Roosevelt, no seu livro The Winning of the West (G. P. Putnam`s sons, New York, 1917, vol. I, 22), expõe com vigor a unidade do movimento de expansão dos Estados Unidos. «A narrativa de como isto se realizou (a conquista de todo o Oeste até ao Pacífico, incluindo a Florida e o Texas) forma um todo contínuo e compacto. Os pais seguiram Boone ou combateram em Kings Mountain, os filhos marcharam ao sul com Jackson...os netos morreram em El Álamo ou carregaram vitoriosamente em San Jacinto. A tomada do Oeste e do Sul é uma etapa na conquista de um continente.»

Teodoro Roosevelt escreveu “isto” em 1888. Se o houvesse feito vinte e cinco anos mais tarde, certamente haveria referido também o assalto à colina de San Juan, em Santiago de Cuba, ou as vitórias do génio construtivo de Goethals no Panamá. Contudo, há que repetir, agora a colonização deixara de ser «a conquista de um continente» por “um povo” (o “anglo-saxónico”, segundo Roosevelt, o que inclui, portanto, a colonização inglesa do Canadá), para passar a uma neo-colonização da América do sul comandada pelas grandes companhias capitalistas norte-americanas.

 

Se Teodoro Roosevelt e, em geral, os estadistas e historiadores norte-americanos conhecem bem a unidade do movimento de expansão do seu país, o mesmo não acontecia em Espanha e nos países hispano-americanos, escreve Ramiro Guerra (bom, hoje já não é bem assim, para “azar” dos actuais estadistas dos EUA, pois que o “terrível” Chavez e “sus muchachos” esgrimem com a espada de Simón Bolívar contra o imperialismo yanqui por “tudo quanto é canto” na América latina).

 

Os anglo-saxões que se estabeleceram nas treze colónias britânicas da América do norte encontraram terras abundantes e férteis à sua disposição, cresceram e prosperaram entre o Atlântico e os Montes Apalaches. Tornaram-se depois independentes, cruzaram essa cordilheira e desceram pelas suas ladeiras para o Oeste, numa guerra implacável e feroz com as tribos índias que, na sua maioria, ocupavam ou possuíam a terra como nómadas (no entanto diversos povos índios já praticavam a agricultura). Encontraram no seu caminho os espanhóis e desalojaram-nos, de nada valendo a estes os alegados direitos de “descobridores” ou de “primeiros ocupantes”. Mais tarde, quando em lugar dos espanhóis encontraram os seus descendentes mestiços, atacaram-nos e expulsaram-nos do mesmo modo.

 

«Já não vivem (os norte-americanos) na selvagem solidão do bosque ou no isolamento da imensa pradaria, mas sim em cidades populosas, com todo o conforto e as vantagens de uma grande civilização. Desde então, não precisam de residir nas terras que dominam, em climas pouco agradáveis, nem cultivá-las ou explorá-las pessoalmente. A riqueza e poder acumulados permitem-lhes dispor de milhões de pessoas de outras “raças” reputadas de “inferiores”, “nativos” dessas terras ou “importados”, que, por um salário mínimo, realizam os rudes labores executados antanho pelos colonizadores do Kentucky ou do Tennessee, sem capital para pagar peões ou comprar negros e escravos (e também existia nos EUA a “escravatura temporária” de brancos). Porém, no fundo, esta é a única diferença», afirma Ramiro Guerra.

 

Mas esta «única diferença» é de vulto e essencial. Quando os latifúndios romanos “deram cabo” do pequeno camponês romano ou itálico, a massa humana que lhes formava as legiões, o seu império (então “republicano”) tornou-se incapaz de vencer até um reizinho como Jugurta. Caio Mário e os generais e princeps que vieram a seguir tiveram de resolver o problema pelo recrutamento dos proletários e dos “estrangeiros”, com entrega de terras no fim do respectivo serviço militar. Ou seja, sem os possuidores independentes ou “candidatos” a essa situação (digamos, a pequenos proprietários), historicamente, os Estados perderam capacidade de expansão territorial. Acresce que os proletários actuais não são nada parecidos com os da Antiguidade esclavagista (Marx dizia que enquanto o proletariado de Roma vivia à custa do mundo de então, o mundo moderno vive à custa do proletariado). E se o proletário contemporâneo, por um lado, só praticamente possui de seu a sua pele, por outro lado, “il se tient à sa peau”, sendo bem mais difícil de recrutar para aventuras de conquista que o proletariado da Antiguidade.

Grosso modo, dir-se-ia que o que os EUA ganharam em tecnologia militar não compensa a perda do imigrante “esfomeado” por terra, que podia metamorfosear-se em pequeno proprietário matando índios. Ao proletarizarem a população (e os imigrantes) no seu país, tal como nos países que exploraram e exploram, perdem a sua principal “ferramenta” para as aventuras de conquista e a defesa do Império: os homens ávidos de terras, de saque, em suma, de “propriedade” e, por isso, capazes de matar.

 

A finalizar esta introdução, “ouçamos” uma lamentação imprecatória de Ramiro Guerra (nos anos trinta do século XX, repita-se):

«Mas o facto básico (no colonialismo ou colonização) – a ocupação e aquisição da terra – que é o transcendental, mantém-se inalterável. Os que vão sendo desalojados e desarreigados do solo, os descendentes dos colonizadores ibéricos, miscegenados com índios e negros, não parecem medir (nos anos trinta...) em todo o seu alcance a dimensão da conquista, apreciável pelas áreas de terra que, duma ou outra maneira, saem das suas mãos e passam às dos invasores, nem a medonha sina que para eles isso representa. Cegos pelo ódio e o espírito de vingança, o fruto maldito da discórdia civil, dividem-se, dessangram-se e destroem-se uns aos outros, em encarniçadas guerras de povo contra povo ou em bárbaras contendas intestinas, facilitando e precipitando, na pugna com o adversário invasor, a própria e vergonhosa derrota (cerca de 35 anos depois de Ramiro escrever estas palavras, assistiu-se ainda a uma "Guerra do Futebol" entre as Honduras e El Salvador).»

«Esta é, em síntese, a história do conflito entre “yanquis” e “latinos”, desde há cerca de século e meio (até à década de 30 do século passado...), na América (sobre “ os yanquis e os latinos”, já se disse mais acima que há que perdoar a Ramiro Guerra, tal como a Jack London, a mania dos “positivismos e biologismos sociais”. De resto apenas há a lembrar, por exemplo, que Uribe, o da “finca” de Bush, é “latino”, e que, também a mero título exemplificativo, Philip Agee é “yanqui”). A luta cruenta apresenta-se com momentos alternados, ora em períodos de enérgica actividade (do imperialismo) e forte repercussão, ora em pausas de duração variável, que desorientam o observador superficial, mas que não rompem com a unidade do processo desde que este se iniciou, em finais do século XVIII, na bacia do Mississipi. O quadro global dessa encarniçada luta é uma história dolorosa e lamentável para os vencidos, os mesmos de sempre. O objecto deste livro é o de esboçar as suas principais etapas, em que as aquisições consolidadas de território conformaram derrotas definitivas, para uma parte e, quiçá, meros pontos de apoio rumo a novas conquistas, para a outra.»

 

O único comentário a fazer é que hoje, se fosse vivo, Ramiro Guerra y Sánchez seria um homem feliz ao ver que, enfim, a tão ansiada unidade latino-americana contra o imperialismo e pelo desenvolvimento democrático e social avança a boa velocidade, com a ALBA como sua “ferramenta”, e que as «derrotas definitivas» e os «pontos de apoio para novas conquistas», de que falava, inverteram a polaridade.