Capítulo I - Características do período histórico de 1871-1914

O período compreendido entre os anos de 1871 e 1914 é identificado na história mundial por certos traços que lhe conferem um carácter particular, diferenciando-o nitidamente, em muitos aspectos, tanto da época precedente como daquela que se lhe seguiu. Tratemos pois, em poucas palavras, de pôr em relevo esses traços.

1. Jamais durante toda a história do capitalismo moderno a indústria, o comércio, a bolsa, a grande propriedade agrária e os transportes haviam tido à sua disposição capitais disponíveis em quantidades tão consideráveis como no período assinalado. E nunca se assistira, como nos finais do dito período, a uma tão rápida progressão da exportação de capitais dos países economicamente mais fortes para os mais débeis. Como tais capitais se puderam formar na época precedente é questão à parte que não entra nos limites cronológicos do presente trabalho. O que aqui importa anotar é o facto de que, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, em França e, a partir da última década do século XIX, também na Alemanha, esses capitais haviam vindo a crescer com tal rapidez que, inclusive, nem mesmo a paralela expansão da indústria conseguia, em toda a parte, absorvê-los e colocá-los, pelo que o problema da emigração do capital financeiro (1), dos mercados para a inversão dos fundos disponíveis, se transformara, antes da guerra de 1914, numa das questões mais candentes e debatidas da política económica das grandes potências, com as excepções da Rússia e do Japão.

 

(1) Por capital financeiro entendemos (segundo a elucidação para este termo proposta por Hilferding) aquele capital bancário, monetário, vinculado da maneira mais estreita ao comércio e à indústria, que financia e organiza em última instância toda a vida comercial e industrial dos modernos países capitalistas. Os últimos cinquenta anos foram para a Europa ocidental a época do intenso processo de “integração” do capital bancário com a produção e o comércio. E nos últimos vinte e cinco anos o capital bancário colocou-se definitivamente numa posição hegemónica. Sobre a função histórica do capital financeiro, em relação à crítica dos conceitos de Hilferding e às indicações sobre os sintomas de “putrefacção” do sistema inteiro, ver o trabalho de V. I. Lenine, escrito em Zurique na Primavera de 1915, “O imperialismo, etapa superior do capitalismo”. Este livro deu origem a toda uma vasta literatura.

 

Esses capitais “excedentes”, como é natural, procuravam colocação naqueles locais em que os juros e os lucros fossem mais elevados. Esta tendência natural era algo estorvada por forças poderosas, também de origem económica. A qualificação de tais obstáculos como “artificiais” não tem qualquer fundamento, porquanto, num conjunto complexo de fenómenos, só por comodidade verbal podem definir-se como naturais alguns factores e como artificiais outros. Assim, no Niágara, tão naturais são os enormes caudais de água quanto os maciços rochosos que se opõem ao seu curso. A livre saída de capitais dum país para o estrangeiro via-se embaraçada, se bem que apenas em alguns raros casos, a nível interno, sobretudo por políticas condicionadas pelos interesses da indústria “nacional”. Já Napoleão I dizia que a “indústria” era mais “nacional” que o “comércio”. E o capital, quando invertido na indústria, torna-se, a maioria das vezes, mais poderoso e politicamente influente do que o capital todavia “solto”. Fora devido a isto que, por exemplo, os círculos industriais franceses se haviam oposto à participação do capital francês na construção da linha-férrea de Bagdad. E é também por esta razão que a única camada germanófoba que ainda resta entre os actuais capitalistas dos Estados Unidos – a camada industrial – se opõe com todas as suas forças à inversão de capitais norte-americanos na Alemanha (e, em geral, na Europa Central) após a guerra. Não só por isto, ou seja, dado que eles próprios necessitavam de capitais baratos, opunham os industriais (na verdade, apenas em raras ocasiões) obstáculos à livre migração de capitais, mas também porque temiam a intensificação da indústria estrangeira. Contudo havia ainda um outro e mais importante impedimento: a concorrência do capital financeiro de outras potências capitalistas. Este estado de coisas engendrava dois resultados.

Em primeiro lugar, o capital disponível (nos locais em que se encontrava acumulado em grandes quantidades) buscava sempre com maior insistência, de decénio para decénio, uma saída e colocação vantajosa; e a questão da conquista de novos mercados em África e na Ásia, precisamente com vista à inversão dos capitais disponíveis, havia começado a dominar com uma intensidade crescente a mente dos interessados.

Em segundo lugar, a acessibilidade e a barateza – ao início – dos créditos tinham dado um poderoso impulso à revolução técnica, que é como se pode justamente definir o colossal progresso técnico dos últimos decénios, e tornado possível a difusão de modo extraordinariamente rápido de um cada vez maior número de novos inventos. Os tempos, por exemplo, do regulador de Watt, em que transcorriam anos e anos entre a invenção e a sua ampla difusão e cabal aproveitamento, eram já coisa do passado. Os ensaios mais atrevidos, as mais caras e repentinas transformações das instalações fabris, tudo se tornou tão acessível quanto jamais o fora. Através do baixo custo e abundância dos créditos não só se estimulava e estendia de modo inusitado o progresso técnico como também se ofereciam, em geral, imensas possibilidades para o incremento do número das empresas industriais.

Não obstante, e ainda que se possam assinalar algumas excepções, o capital tendia com maior frequência a deslocar-se para o estrangeiro logo após que fosse satisfeita, que estivesse saturada, a sua procura pelos industriais no próprio país. Porém, com o passar das décadas, tudo o que se prendia com a exportação e inversão de capitais no estrangeiro ia-se convertendo num problema mais agudo e persistente para as potências capitalistas. E quanto mais se monopolizava a própria organização do capital financeiro exportado às colónias e, falando duma forma mais lata, para os países economicamente mais débeis, tanto mais debilitado ficava o interesse pelo progresso técnico na produção; este fenómeno já começara a assomar de um modo evidente em certos lugares (por exemplo, na Inglaterra) a partir dos últimos anos do século XIX.

 

2. O segundo resultado que a formação e expansão de gigantescas massas de capitais ocasionara leva-nos ao exame do traço característico seguinte no período de 1871 – 1914. Já mencionámos a específica função preponderante e hegemónica do capital financeiro, capital invertido no comércio e na indústria, no respeitante à vida política e económica das potências capitalistas mais avançadas. No decorrer de toda a parte média e final do século XIX, o capital invertido naqueles dois ramos da vida económica foi de triunfo em triunfo. Essas vitórias, não obstante a enorme heterogeneidade das suas formas e manifestações exteriores (às vezes camufladas ao ponto de não serem reconhecíveis, e, por vezes, completamente diversas entre si), levavam a um mesmo resultado, como que predeterminado por toda a evolução económica mundial: ao triunfo político dos representantes do capital investido no comércio e indústria sobre os representantes da economia agrária.

Deste ponto de vista, tudo isso – por exemplo, os dias 27, 28 e 29 de Julho de 1830, quando a monarquia dos Bourbons foi derrubada em França, ou o 7 de Junho de 1832, dia em que a reforma na Inglaterra se converteu em lei, ou o 19 de Fevereiro de 1861 na Rússia, ou o 26 de Abril de 1865 nos Estados Unidos, quando Johnston se rendeu ao general Sherman e o sangrento quinquénio da guerra civil entre o Norte industrial e o Sul dos proprietários agrícolas terminou com a completa derrota dos esclavagistas – não representou senão etapas e formas diversas de um mesmo processo histórico.

As novas camadas sociais vinculadas ao capital comercial e industrial tinham vencido, sem qualquer excepção, ali onde haviam entrado em choque com os representantes da agricultura dos proprietários feudais e da servidão da gleba (ou da escravatura, nos EUA). Entre as agora triunfantes camadas sociais, os expoentes da produção industrial desempenhavam com frequência, pelos finais do século XIX, um papel politicamente dominante em Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos. A enorme importância económica da produção industrial (cujo crescimento era paralelo ao da população) explica-se, entre outras coisas, também pelo facto de que, tal como já foi referido (crescimento do número de empresas), a numerosa e sempre em aumento classe operária se encontrar vinculada por laços sumamente estreitos exactamente ao capital industrial e à sua trajectória. A oposição de interesses entre os operários e empresários, que, de acordo com o conhecido enunciado, transforma a classe proletária no “coveiro” do regime capitalista, pode manifestar-se em luta económica e, sobretudo nos momentos decisivos, numa luta política revolucionária dos operários contra os patrões e o Estado que destes é o defensor. Porém, enquanto que não chegasse o instante decisivo, tal como acontecia nos casos em que os representantes do capital industrial entravam em luta contra outros grupos da classe capitalista, a classe operária, ora na totalidade, ora na sua maior parte, achava-se sempre solidarizada precisamente com os representantes do capital industrial. Assim sucedeu em Inglaterra no período de 1817 – 1832, durante a luta pela reforma eleitoral; assim foi em França durante os dias da revolução de Julho de 1830; assim nas diversas fases da luta parlamentar no Reichstag durante o reinado de Guilherme I e, sobretudo, no de Guilherme II, aquando das discussões relativas à política aduaneira e, em particular, nos debates sobre os pactos comerciais com a Rússia.

Esta espécie de “colaboração” involuntária, espontânea, entre as duas classes irredutivelmente hostis mas ligadas pela indústria, verificava-se nos períodos de luta do capital industrial contra a propriedade latifundiária ou naquelas raras ocasiões em que a classe dos industriais se opunha à liberdade de acção das operações bancárias ou bolsistas; esses movimentos comuns dos empresários e dos operários, no decurso de todo o período de 1871 – 1914, convertiam sempre o capital industrial numa poderosa força motriz social.

Há que recordar, no entanto, que o capital bancário estava a expandir-se nas potências capitalistas avançadas a um ritmo de progressão tão elevado que não havia obstáculo que o pudesse impedir de constantemente emigrar para os países economicamente mais débeis. Os obstáculos existentes revelavam-se completamente ineficazes em face do gigantesco desenvolvimento do capital. Foi precisamente essa difusão universal dos capitais europeus e norte-americanos o que favoreceu, mais do que qualquer outra força económica, a internacionalização de toda a vida económica do globo terrestre, a criação duma economia mundial, a vinculação estreitíssima, a dependência e o influxo recíproco entre os mais variados fenómenos que têm lugar nos mais distantes pontos da Terra. As oscilações dos títulos nas bolsas mundiais, a tendência ao equilíbrio dos preços das mercadorias nos mais afastados e diversos mercados de venda, foram tão-só dois dos sintomas mais eloquentes e duas das consequências do surgir da “economia mundial”.

Porém a aparição desta “economia mundial” não veio criar, muito longe disso, o quadro idílico de “emulação pacífica” sonhado já nos meados do século XIX por estudiosos e utopistas políticos como Buckle ou Cobden. Era todo o oposto: se, como particulares, os industriais impeliam por toda a parte os respectivos Estados a acções bélicas, no fito de se apoderarem de novas fontes de matérias-primas e mercados de venda, por sua vez os financeiros, directores dos bancos e das bolsas de valores, mancomunados numa frente geral, exigiam (mais que tudo, nos últimos anos que precederam o estalar da guerra de 1914) um activo apoio político-militar em todos os lugares em que se propunham investir os seus capitais disponíveis. Krupp, a firma “Vulkan”, os irmãos Mannesmann, exerciam influência sobre o governo da Alemanha no mesmo sentido em que o faziam os cabecilhas da bolsa parisiense sobre o governo de França. E nos últimos dez ou quinze anos que antecederam a guerra, os exportadores de capitais “excedentes” começaram a empurrar a Europa para a catástrofe de um modo ainda mais enérgico que os exportadores de mercadorias.

Agreguemos a isto que na Rússia não foi o capital industrial, mas sim o comercial a impelir o aparelho governativo à expansão, a acicatar os propósitos de conquista, dado que a indústria russa era todavia débil. Os industriais apenas haviam começado a exercer pressões nessa direcção (a da agressão) nos últimos dez anos antes da guerra; ao invés, o capital comercial era já uma antiga força política na velha Rússia, se bem que até hoje ele não haja sido suficientemente estudado sob este prisma. A questão não se fundava apenas na relação entre os interesses da exportação de cereais e o problema de Constantinopla e dos Estreitos de acesso ao Mediterrâneo. Quando for definitivamente desfeito o mito do imutável “atraso” económico da Rússia, quiçá toda a história da política exterior do período imperial tenha de ser radicalmente revista. (2) No presente livro não nos debruçamos sobre a história da Rússia, nem a antiga nem a moderna; ser-nos-á suficiente fazer notar que, tanto na questão dos Estreitos como na dos tratados russo-germanos, na da Pérsia como na da China, o capital comercial russo e os propósitos duma política de conquistas territoriais já propiciavam, com precedência e de maneira mais activa que o capital industrial, o fortalecimento das tendências imperialistas na política exterior russa dos últimos decénios anteriores à guerra mundial. Ao deixar a história da Rússia completamente de fora das balizas do presente livro somos obrigados a fazer uma advertência: a política exterior russa de antes da guerra também veio a ser um factor essencial nesta época da história europeia.

 

(2) Ver a este propósito, de E. V. Tarlé, “Era a Rússia de Catarina um país economicamente atrasado?” (Edição russa de obras completas de Tarlé, t. IV, págs. 441-468).

 

3. Um terceiro traço da época em análise, que por outra parte se identifica com os dois traços anteriores, é caracterizado por fenómenos que vinham amadurecendo desde há muito antes, mas que só durante este período – no último terço do século XIX e começos do XX – atingiram um particular grau de nitidez e evidência. Pode-se definir o conjunto desses fenómenos da seguinte maneira: acentuada vontade (típica de todas as grandes potências capitalistas) de resolver os problemas essenciais da competição económica internacional mediante uma directa “prova de forças” ou, por outras palavras, através duma luta imediata, diplomática de início e depois militar.

Tal traço – função dirigente e agressiva do capital financeiro – é típico do período imediatamente anterior à guerra.

Um primeiro fenómeno – facilidade de expansão e elasticidade da máquina estatal – também se explica pelas consequências objectivas e subjectivas do desenvolvimento do capital: os enormes êxitos técnicos, a organização dos transportes, a possibilidade duma quase instantânea mobilização militar, o surgir duma gigantesca indústria especializada ao serviço do exército e da marinha de guerra, o aperfeiçoamento do serviço de comunicações, no sentido mais lato do termo, etc; e ainda, e em primeiro lugar, pelo facto de que o próprio Estado, tal como estava organizado na Europa dos finais do século XIX, vinculado por estreitíssimos laços à classe economicamente dominante, aos representantes do capital financeiro, se reconhecia como instrumento dela e, inclusive, nisso via a principal razão da sua existência. Até ali onde se vinculava tradicionalmente aos representantes da agricultura (como na Alemanha), o Estado, em todos os momentos decisivos, colocava-se sem titubear do lado dos bancos e da indústria.

Quanto à constante tendência para o “ensaio de forças” nos círculos dirigentes do conjunto da vida económica de cada país, entravam em jogo diversos factores que, em substância, podem reduzir-se ao que se segue.

Na Alemanha, o impetuoso e rapidíssimo processo de crescimento da indústria (e pelos finais deste processo, o crescimento dos capitais “em sobejo”), suscitara uma obstinada tendência à conquista de colónias, não só na qualidade de mercados para venda como também de fontes de matérias-primas e, logo, como áreas para inversão dos capitais disponíveis. A ideia dos pacifistas que, invocando a liberdade de comércio nas colónias inglesas, sustentava a possibilidade de se ganhar economicamente as colónias alheias por via pacífica, sem necessidade de as conquistar pelas armas, não era ideia que gozasse de merecimento naqueles mencionados círculos. A maioria (refiro-me à maioria dos dirigentes da indústria alemã) objectava que, de um dia para o outro, sobre o cenário político, não tardaria a reaparecer a ideia de Joseph Chamberlain. A Inglaterra encerraria as fronteiras da quarta parte do globo terrestre que se achava sob o ceptro do seu rei; que a espada e só a espada, argumentava essa maioria, haveria de dar à Alemanha o seu “lugar ao sol” e que já não era possível esperar mais. E nos últimos anos que precederam a guerra surgira ademais a tendência para a exportação dos capitais disponíveis. Não era possível obter o que quer que fosse tão-só com os meios da luta económica. Na Alemanha era esta a opinião prevalecente.

Em Inglaterra, num grande número de industriais e financeiros imperava, em primeiro lugar, a convicção de que o tempo trabalhava a favor da Alemanha e contra os ingleses, e que, a não se tomar a decisão de destruir a poderosa “máquina” criada por Bismarck, a competição puramente económica com aquela nação se tornaria impossível para o Império Britânico; e, em segundo, que a afirmação de Guilherme II – “O futuro da Alemanha está no mar” – significava concretamente a resolução de arrancar à Inglaterra pela força as suas colónias, vontade essa que se desmascarava, além disso, pelo gigantesco crescimento da marinha de guerra alemã. Entre os representantes do capital inglês os sentimentos germanófobos nutriam-se tanto das tendências agressivas quanto das de índole defensiva. Tais sentimentos eram algo moderados, nestes círculos sociais, pela consideração de que a Alemanha constituía um importante mercado para a venda das mercadorias inglesas, o segundo, depois dos Estados Unidos da América. Porém, particularmente no campo da concorrência respeitante à exportação e inversão dos capitais “excedentes”, já então a luta contra a Alemanha se agudizava de forma assustadora.

Em França, neste período, as tendências defensivas eram mais fortes, predominando o medo dum debilitamento económico e político, e, quiçá, da perda da posição de grande potência; mas tampouco faltavam os outros motivos. Os financeiros e industriais que apoiavam activamente a política marroquina de Delcassé e, logo, a de Clemenceau, que sonhavam com as colossais jazidas de ferro da Lorena, mantinham igualmente propósitos agressivos. Farei notar que, também em França, a perspectiva de lucrativas inversões de capitais no estrangeiro espicaçava dum modo extraordinário o entusiasmo dos diplomatas que propugnavam uma política imperialista.

Na Rússia a agressividade dos ânimos políticos era ainda pouco notória entre os círculos dos grandes industriais nos primeiros anos do século XX, e só com posterioridade a 1905 se veio a tornar mais manifesta. Em particular quando, após o acordo anglo-russo de 1907 e no seguimento da cessão à influência russa da parte setentrional da Pérsia, se tornou possível pensar numa próxima conquista de novos e vastos mercados, a “de todas as costas do Mar Negro”, fórmula com que então era costume enunciar tal objectivo. A penetração do capital estrangeiro, com todas as suas consequências, veio consolidar poderosamente o imperialismo russo e, sobretudo nas vésperas da guerra, agudizou de modo notável os intentos agressivos.

A estrutura de base da vida política russa durante a época em análise certamente que não se esgota no que é dito. Mas em relação com tudo isto é importante observar, tanto na Rússia como na Alemanha, França ou Inglaterra, que as camadas sociais influentes – senão na íntegra, pelo menos na sua boa maior parte – iam-se acostumando a ver a “prova de forças” como um meio inevitável e, em todo o caso, cómodo, sempre à mão, de resolver os seus já velhos problemas. Os erros de cálculo dos escritores especializados em questões militares, as ligeiras e imprudentes afirmações repetidas por certos peritos, supostas autoridades infalíveis que com toda a convicção discorriam sobre a inquestionável impraticabilidade, “nos nossos tempos”, das guerras prolongadas, e segundo os quais à guerra futura havia que calculá-la em semanas ou poucos meses, tudo isso iria contribuir para popularizar ainda mais a cómoda ilusão acerca do “ensaio de forças”. Porquê não aguentar durante umas oito semanas se o general Schlieffen prometera a vitória total neste curto espaço de tempo? E há a ter sempre presente que cada país, e não tão-só a Alemanha, possuía o seu “Schlieffen”, que, no fim de contas, apenas se distinguia dos outros pelo número de semanas calculadas; quanto à vitória (cada um a profetizando para o respectivo país), eles garantiam-na em absoluto, tal qual o havia feito o falecido chefe de estado-maior do exército alemão.

Estas tendências da política exterior das grandes potências influíam poderosamente, desde logo, também sobre aqueles países onde não existiam ou não se destacavam as premissas que induziam o capital financeiro à “prova de forças”, mas que, antes do mais, acalentavam o desejo de conquistar novas possessões coloniais ou de estender os limites do seu próprio território. Assim, se a conquista da Tripolitânia estava na ordem do dia em Itália, isso vinha a ser consequência directa da política da França no Marrocos, mas, por outra parte, a acção italiana punha sobre a mesa a questão do desmembramento da Turquia, arrastando consigo o levantamento das potências balcânicas contra o Império otomano. O medo de chegar tarde à partilha dos despojos desempenhou, com frequência, o papel principal. Em casos similares os interesses económicos, não tão-só imediatos, como, por vezes, os do amanhã, ditaram amiúde, a esta ou àquela potência, a política a desenvolver e a levar por diante.

 

4. Finalmente daremos ainda nota de um quarto traço característico, não para a totalidade da história do capitalismo europeu no período de 1871 – 1914, mas nos seus finais. A partir da última década do século XIX o capital norte-americano (atravessando a sua fase de rápido e gigantesco desenvolvimento), começou a influir num grau crescente sobre a política mundial e a tornar-se incómodo para as potências capitalistas europeias. Em primeiro lugar, a proibitiva tarifa McKinley, com os ulteriores Actos no mesmo sentido (o de 1897 e, em especial, o de 1909, com a tarifa Payne-Aldrich), excluiu as mercadorias europeias do seu então mais rico mercado de consumo: o mercado interno norte-americano. Depois, aproveitando a enorme preponderância política dos Estados Unidos em todo o continente americano, o capital estado-unidense empreendeu com êxito a luta contra as vendas europeias na América central e meridional. Mais ainda: em 1899-1900, os Estados Unidos impediram a celebração de acordos, já previamente estabelecidos entre as potências europeias, que pretendiam repartir a China em zonas de hegemonia política e económica, e, a partir de então, não mais cessaram de velar zelosamente pelo mercado chinês (a seu devido tempo examinaremos o princípio de “portas abertas” na China, enunciado em 1900 pelo Secretário de Estado norte-americano Hay).

Tudo isto vinha pôr novas dificuldades ao capital financeiro europeu, limitava-lhe o seu campo de acção, piorava as condições em que se encontrava desde há já algum tempo. A consequência disso havia de ser um ainda maior recrudescimento da competição económica e, por conseguinte, da emulação e hostilidade politica entre as potências capitalistas europeias. Após a entrada do capital norte-americano na arena mundial, o globo terrestre começara a tornar-se demasiado pequeno para o capital europeu. A corrida pelos mercados de venda e as fontes de matérias-primas, bem como por vantajosas oportunidades de exportação de capitais, devia ganhar, a partir desse momento, um carácter ainda mais agudo. A propensão a resolver as questões económicas mediante uma directa e imediata “prova de forças” só podia exacerbar-se.

 

Eram estas as condições genéricas em meio às quais se movia e podia desenvolver o capitalismo da Europa ocidental nas décadas que precederam a guerra.

 

5. No que à classe operária concerne, esta sem dúvida que ampliou e aprofundou, no período que estamos a considerar, a sua consciência de classe: a social-democracia organizava à época massas de milhões de trabalhadores, a imprensa operária contava com dezenas de órgãos de ampla difusão; porém, na medida em que se iam tornando mais diversas, no ambiente operário, as opiniões acerca dos problemas da política internacional (a título de exemplo e em particular, a questão das colónias), tanto menos real era ou parecia ser o receio dos governos de que a classe operária respondesse à mobilização geral com uma acção de massas revolucionária. Precisamente quanto a este aspecto específico, que mais que nenhum outro aqui nos interessa, quiçá haja tido razão, à sua maneira, o falecido Leo Jogisches quando antes da guerra declarou um dia, pleno de amargura, que uma só manifestação de massas em protesto contra a mobilização geral e a guerra teria tido mais valor, para travar a rapacidade dos colonialistas, do que todas as mais brilhantes vitórias eleitorais juntas do partido social-democrata.

As camadas mais influentes da massa proletária, tal como os operários das especialidades mais estreitamente ligadas à produção de armas, à construção de navios, etc, foram os primeiros a mostrar tendência para o abandono das consignas da luta revolucionária contra o militarismo, e os seus adversários censuravam-nos constantemente e de um modo acerbo, acusando-os de trair os princípios revolucionários em nome de vantagens económicas imediatas e pessoais, tais como a manutenção do emprego e o aumento dos salários. Mas nem só na atitude destas camadas residia o problema: também nalgumas outras categorias de operários se manifestava uma tendência, mais ou menos difundida, de renúncia à luta activa contra os decididos preparativos bélicos a que se haviam abertamente lançado os círculos governantes da Europa inteira.

A questão não assentava tão-só no facto de tanto nos Estados Unidos da América do Norte como na Inglaterra a poderosa classe operária não influir absolutamente em nada (e nem sequer tentava fazê-lo) sobre o seu respectivo governo no âmbito destes problemas da política exterior, dos armamentos, dos conflitos bélicos, etc. Ali, em ambas as potências anglo-saxónicas, a organização propriamente política da classe operária constituía ainda uma “novidade”; porém, já na Alemanha, era também muito débil e limitadamente que, no seu núcleo principal, a social-democracia protestava contra a política exterior do seu governo, e isto ainda muito antes do revisionismo bernsteiniano. Nos últimos anos que precederam a guerra de 1914, até se destacaram alguns publicistas “operários” que, no essencial, fizeram todos os possíveis por pôr as suas plumas ao serviço da propaganda política da agressão. Na França, o chefe do partido socialista, Jean Jaurès, que mais do que ninguém se empenhou na luta contra as conquistas coloniais e contra as demais iniciativas belicistas da Terceira República, encontrava, porém, neste terreno, meramente um apoio frouxo e pouco sincero, vendo-se assim impotente para opor um obstáculo, minimamente eficaz que fosse, a Delcassé, a Clemenceau ou a qualquer dos seus sequazes.

Terei de sublinhar aqui, para evitar todo o mal-entendido, que, ao lado da “aristocracia operária”, havia também massas proletárias no verdadeiro sentido da palavra, homens que viviam na condição permitida pela escassíssima jorna que obtinham em troca dum labor acima das suas forças. Defronte à ala direita, havia nos partidos socialistas também uma ala esquerda; face ao revisionismo, que ganhava terreno, ia-se desenvolvendo a actividade publicística e agitadora de Carlos Liebknecht, Rosa Luxemburg, Clara Zetkin, do já referido Jogisches, dos revolucionários que propugnavam pela acção directa em França, Inglaterra, Itália e Bélgica. Estas correntes de esquerda haviam ganho um forte suporte ideológico com o estalar da Revolução Russa de 1905 e quando, de súbito, a questão do papel revolucionário da greve geral foi posta na ordem do dia. No lapso de tempo compreendido entre 1905 e o rebentar da guerra em 1914, fizeram-se presentes sucessos tais como a série de vibrantes episódios da luta económica da classe operária inglesa, a série de grandes greves em França, entre as quais se contaram as greves de empregados públicos sindicalizados (empregados dos correios e telégrafos), e, na Alemanha, elevavam-se, de modo cada vez mais intenso e sonoro, as vozes dos representantes da ala esquerda do partido social-democrata. E no entanto, a política exterior levada a cabo por todas as grandes potências não encontrou, em vésperas da guerra, nem a mais pequena sombra duma qualquer oposição activa, apesar da dita política conduzir directamente, à vista de todos e a ritmo acelerado, a uma guerra, o que fez Friedrich Adler exclamar, com desespero, em Janeiro de 1915, que: “Não é o facto de que os proletários estejam nas trincheiras, uns contra os outros, mas o deles próprios, em cada um dos seus países, se unirem com as classes dominantes, o que dá a sensação do fracasso da ideologia social-democrata, da derrota do socialismo”. (3) Por agora, basta-nos deixar assinalada esta carência de acção de oposição, duma parte da classe operária, à política imperialista dos seus governos na época anterior à guerra.

 

(3) F. Adler, “O renascimento da Internacional”, II, pág. 8; ano de 1919, edição russa.

 

É-me metodologicamente inaceitável a interpretação – aquela em que, sempre com mais frequência e afinco, o professor Kautsky vem insistindo nos últimos anos – segundo a qual o desenvolvimento capitalista deste último período da história mundial não teria “necessariamente” que provocar uma política imperialista agressiva. Aderir a esta interpretação significaria ficar inevitavelmente constrangido a proceder a uma ingénua e infrutuosa busca dos tão decantados “responsáveis pela guerra”, e a explicar o cataclismo mundial mediante os vituperáveis traços de carácter de Guilherme, as intrigas de Poincaré e as ambições de Izvolski. Para tal interpretação não há qualquer outra saída lógica, e deixou-me perplexo o argumento que, ao que parece, o velho teórico, em defesa de tal tese, julga irrefutável: a política agressiva do imperialismo constitui “o mais custoso e mais perigoso” de todos os actuais métodos ao dispor da classe capitalista. A constatação, em si, está absolutamente correcta, mas que é possível disso deduzir? Seria como se a história somente fosse feita depois de se travar um encontro para pedir satisfações, entre amigos, sobre as questões da guerra em geral e, depois de bem sopesados e calculados os prós e os contras, as partes decidissem se valia a pena combater ou, quiçá, que seria melhor absterem-se.

Idêntica fábula sobre temas históricos, porém não história, é a teoria segundo a qual seria possível o "ultra-imperialismo", ou seja, a celebração de um acordo amigável ou duma aliança entre todas as potências imperialistas a fim de explorarem o globo terrestre, com a consequente distribuição das esferas de influência. Mas como será tal coisa possível, dada a crescente estreiteza do globo terráqueo para as também crescentes mas agigantadas forças do capital financeiro nos países economicamente mais adiantados? Como pode alguém imaginar-se uma amistosa partilha de esferas de influência e, sobretudo, uma prolongada permanência das condições iniciais, ali onde é tão premente a necessidade de monopolizar os bens económicos em constante diminuição ou, no melhor dos casos, em situação estacionária ou de lento crescimento, enquanto aumentam, de um modo ininterrupto, a força e a capacidade de agressão de cada um dos aparelhos imperialistas? Vimos assistindo, nos nossos dias, a qual é, por exemplo, o resultado das tentativas de repartição “amigável” do petróleo. Se essas tentativas poderem vir a ter, em geral, algum significado concreto, sê-lo-á, quiçá, no sentido de que atraiam a uma nova guerra, e nunca, de maneira alguma, no de afastá-la.

Insisto em afirmar que a concepção de Kautsky não resiste a qualquer juízo sério da crítica histórica, e isto ainda no caso de nos cingirmos às suas próprias considerações negativas a respeito da categoria do “capital financeiro”. Pois que, ao caracterizar este capital como uma colossal e enérgica força motriz no actual processo histórico, ainda mais evidente se torna que não nos assiste o mínimo direito lógico de tomar as fantasias de Kautsky sobre um “ultra-imperialismo” anémico por algo de realidade.

E se a ideia acerca da “não-necessidade” (ergo, casualidade?) da guerra de 1914-1918 nos conduz logicamente à mais ingénua das fés no papel “omnipotente” – por assim dizer – da personalidade, então as fantasias de Kautsky a respeito do “ultra-imperialismo” podem levar-nos a crer, mais logicamente ainda, que de ora avante tornar-se-á possível fazer a história mundial em Genebra, com custos e inconvenientes mínimos, no palácio da Sociedade das Nações.

Nem antes nem depois da guerra era concebível qualquer pacto no espírito deste “ultra-imperialismo”; tampouco o é actualmente. E se bem que a guerra de 1914-1918 fosse muito custosa e “desvantajosa”, há todas as razões para supor que o capital financeiro e todo o conjunto de forças a ele subordinadas tão-pouco no tempo que há-de vir disso se haverão de abster, num qualquer momento que considerem propício, e em tanto quanto deles dependa, sem olhar a qualquer gasto ou “inconveniente”, ainda quando, com toda a nova guerra futura, os “gastos” se tornem mais e mais ingentes.

Perfilava-se então no horizonte um embate internacional de enorme magnitude, o conflito de forças mais gigantesco que a humanidade jamais havia presenciado. O capital financeiro, poderosamente organizado tanto em Inglaterra como na França ou na Alemanha, movendo, como a marionetas, a diplomacia, levava a cabo por toda a parte uma política de sistemática provocação. Influentes forças económicas nos países mais atrasados, como a Rússia e a Itália, agiam na mesma direcção e com a mesma orientação. Examinaremos de seguida muito concisamente, nos próximos capítulos, qual era a estrutura social e a situação interior na Europa no período que vai desde as vésperas da agudização desse conflito internacional até aos primeiros anos do século XX. Começaremos nesta breve resenha por nos deter na França.

 

Queria dizer ainda umas quantas palavras mais neste capítulo de introdução. Ainda que muitas vezes sublinhe, no meu livro, terem todas as grandes potências, sem excepção, levado a cabo ao longo de muitos anos uma política que inevitavelmente havia de desembocar num choque sangrento, e embora repetidamente afirme que tão-só a hipocrisia dos publicistas da Entente podia inventar a teoria da completa “inocência” da dita e fazer recair o exclusivo da “culpa” sobre a Alemanha, constato, com a maior estranheza, que em alguns dos meus leitores e dos meus críticos se veio a formar – ao que parece – a impressão de que eu apenas à Alemanha julgo “culpável” pela guerra. Atribuo esta curiosa distorção, em primeiro lugar, à leitura pouco atenta do meu livro (no qual se expõe não uma, mas sim dezenas de vezes a minha opinião sobre a conduta da Entente), e, em segundo lugar, a uma certa aberração que é devida ao facto da Entente ter planeado iniciar a guerra algo após o verão de 1914 (por considerações de ordem puramente técnica, que nada tinham de “humanitárias”), e de, por isto, lhe ser mais fácil e cómodo “defender-se”, dum ponto de vista exclusivamente formal, daquela acusação; e eis como, quando nos pomos a estudar a documentação que vai do 23 de Julho ao 4 de Agosto de 1914, de imediato se ajuíza que o comportamento mais agressivo – tal como nos é dado a ver – não recairá sobre a Entente e, em especial, não recairá sobre a Inglaterra e a França. (4) Mas deduzir daqui um fundamental “pacifismo” da Entente só mesmo o podem fazer os manuais de história adoptados pelas escolas do ensino médio em certos países da Entente. Quando Edward Grey afirmou que “durante dez dias consecutivos”, no mês de Julho de 1914, fizera todos os possíveis para salvar a paz, oportunamente se lhe contestou, no seu tempo: “Sim, você fez durante dez dias todo o possível para salvar a paz, porém, anteriormente, você tinha feito durante dez anos consecutivos todo o possível para provocar a guerra”. E neste sentido, tanto a Entente como a Alemanha se comportaram da mesma maneira.

 

(4) No que toca à agressividade dos diplomatas russos, dela falo difusamente em vários itens do meu livro.

 

Observarei ainda que, inclusive, todas as principais medidas “obreiristas” das classes dirigentes inglesas durante o pré-guerra (já desde o ano de 1903), e toda a sua propensão a fazer concessões, etc, são explicitamente apresentadas no meu livro como uma simples manobra táctica ditada pela constante preocupação de preparar a guerra contra a Alemanha e pela necessidade de atenuar a luta de classes, que se agudizara enormemente na Inglaterra a partir de 1905. Tudo isto, no entanto, não impediu um crítico de me atribuir uma afirmação sumamente singular: eu teria dito, segundo ele, que a Inglaterra estava pronta a passar ao...socialismo de Estado, e que só a agressão da Alemanha o havia impedido. Chegado a este ponto, renuncio decididamente a conjecturar sobre o que é que pôde dar pretexto a semelhante interpretação, de todo em todo fantástica; não há no meu livro nem sequer uma só palavra que possa prestar-se a tal género de interpretação, e todo o capítulo que se refere à política interna da Inglaterra foi construído, precisamente, como quadro de ilustração concreta da táctica do governo inglês tendo em vista a futura guerra contra a Alemanha.

 

A Europa regida, sob as mais diversas formas políticas exteriores, pelo capital financeiro encontrava-se, em vésperas da guerra, repleta de elementos explosivos e incendiários; todas as premissas para o agudizar das manifestações políticas da luta de classes na vida interna de cada um dos países, e para um choque internacional na escala mais ampla, já estavam presentes, em especial a partir do ano de 1905. O período de 1905-1914, na Europa ocidental, ainda não era comparável – no plano das manifestações político-revolucionárias da luta de classes – nem ao posterior período de 1917-1923, nem aos passados decénios de 1830 e 1840, ou aos meses de Março, Abril e Maio de 1871 em Paris. Porém, essa época de 1905-1914 era distinta do período de 1871-1904. Os anos de 1905-1914 foram o umbral da era dos mais formidáveis conflitos entre as nações e entre as classes, uma época que ainda recentemente começou, mas que no pouco tempo desde então decorrido já conseguiu alterar a face da humanidade.