O espaço da História

Capítulo VI - Da unificação do império alemão ao agravamento da rivalidade anglo-germana

1. O CRESCIMENTO DO CAPITALISMO ALEMÃO NOS PRIMEIROS DECÉNIOS DA VIDA DO IMPÉRIO.

Para certos historiadores e publicistas alemães que, nos nossos dias [terceira década do século XX], procuram esboçar o quadro dos quarenta anos do “império bismarckiano”, a história deste surge-lhes, por vezes, como uma série de erros fatais, incorrigíveis, engendrando males que, duma forma constante e secreta, lhe corroíam e minavam o poderoso organismo, males esses que, após havê-lo enfraquecido, no momento decisivo o fizeram sucumbir; outras vezes, bem pelo contrário, essa história é apresentada, por este tipo de autores, como a de um éden florescente que teria perecido, antes do mais, devido à inveja e ao espírito de rivalidade, aos receios e à irredutível avidez dos inimigos do exterior, que apenas esmagaram a Alemanha graças à superioridade numérica e material das suas forças coligadas. Faço aqui menção a estes dois pontos de vista tão-só para sublinhar até que ponto a historiografia é todavia incapaz de descartar-se, eliminando-as, de concepções que mais próprias são da época infantil da ciência histórica que do século XX. Tais opiniões, métodos e formas de ver, ao invés de nos ajudarem a esclarecer as questões realmente difíceis, servem apenas para enredar até o mais simples dos problemas. E contudo, a questão que agora nos ocupa é suficientemente difícil para que, mesmo recorrendo a um método infinitamente mais seguro e real, não nos seja possível vencer-lhe as dificuldades através de umas quantas considerações esquemáticas.

O povo alemão, artífice de uma ilustre cultura, que ocupa um dos lugares primeiros em todos os âmbitos da criação espiritual e constitui, no mais completo sentido da palavra, um grande povo pelos seus excepcionais dotes intelectuais e qualidades de carácter, alcançara, nos meados do segundo decénio do século XX, grandes êxitos na actividade económica e um imenso poderio político, mas acabaria por ser precipitado dessas vertiginosas alturas após uma prolongada e titânica luta contra a mais poderosa aliança de grandes potências a que a história alguma vez assistira.

Não tem para nós aqui particular interesse a questão – tão apaixonadamente discutida na publicística e na historiografia alemã – de saber qual o grau de responsabilidade na catástrofe atribuível aos erros da diplomacia alemã, e se de facto esta deixava tanto a desejar na sua acção, pela incapacidade dos elementos que a compunham, um por um sem excepção, quanto a esse propósito se escreveu (e como, muito antes da derrota, já era insistentemente afirmado na Alemanha). Apenas anotarei, de passagem, que a presença no corpo diplomático de figuras tão destacadas como o príncipe Lichnowsky, Brockdorff-Rantzau, Bernstorff, Kiderlen-Waechter ou Marschall von Bieberstein é argumento mais do que suficiente para excluir a ideia de uma geral incompetência da diplomacia alemã. Bem mais importante será perguntar porque é que estas pessoas inteligentes, estes políticos tão perspicazes, não puderam, não obstante todos os seus esforços, salvar a Alemanha da catástrofe. Porque não prevaleceram eles, mas sim os que empurravam a Alemanha em direcção ao abismo? E, ainda mais importante de entender, surge uma terceira questão: a que concerne à especial complexidade do ambiente histórico que se constituíra e em meio ao qual, no século XX, o capitalismo alemão iniciou a luta pela sua afirmação e predomínio. Só a análise desta questão nos pode pôr em condições de encontrar a chave para a compreensão dos acontecimentos.

Antes do mais, tratemos de fixar alguns pontos. Nas condições de existência do regime capitalista na Alemanha, na Inglaterra e no resto do mundo, o “ensaio de forças” (que já antes mencionámos) entre a Alemanha e a Inglaterra, de uma ou doutra forma, mais tarde ou mais cedo (em 1911, quando esteve a ponto de acontecer, em 1914, como de facto sucedeu, ou até ulteriormente), tornara-se inevitável. Podiam ocorrer delongas e acções de forças transversais ou de factores de segunda ordem, retardando ou tornando mais próximo o desenlace; mas preveni-lo, conjurá-lo de todo, tal só se afigurava possível ou mediante um acordo “amigável” entre as potências que conferisse à Alemanha plenas possibilidades de exportação dos seus capitais “excedentes” e, inclusive, lhe cedesse um vasto império em África ou na Ásia Central, ou então, pela renúncia voluntária, por parte dos círculos capitalistas alemães, a usar o colossal poderio do país na mira de restabelecer, de um só golpe destro, assestado com precisão, tanto o que tinham sido obrigados a perder como o que haviam deixado escapar, assim recolhendo, ainda que com certo atraso, aquilo que lhes fora impossível de obter a devido tempo, por culpa da demasiado tardia aquisição dos necessários meios políticos que a unificação e a criação do imperio viriam a constituir. E haveria ainda a requerer, tanto da Inglaterra como da França e da Rússia, que também elas renunciassem à política de rapina.

Tanto a primeira como a segunda hipótese carecem, manifestamente, de natureza histórica; não apresentam a mínima verosimilitude histórica; este género de assuntos, pelo menos até agora [ano de 1927], não se resolvem por “via da boa vontade”; a história não o conhece. Mais ainda, não vemos como se poderia resolver – e em meio a que circunstâncias – essa “prova de forças” se a catástrofe de 1914 não tivesse sobrevindo.

É também possível conjecturar que esse “ensaio de forças” poderia ter terminado com um desfecho político-militar que não fosse tão peremptório. Uma só coisa é impossível de conceber: que, dada a correlação das forças económicas de ambos os antagonistas, um deles fosse a tal ponto “vencido” que o outro, o vencedor, dali em diante mais não o tivesse de tomar em linha de conta como rival económico. Neste sentido, o máximo que o vencedor podia esperar era um certo ofego na concorrência. Com um triunfo político-militar, a Alemanha teria podido obter um império colonial centro-africano, de um oceano ao outro, e uma esfera de influência desde Scutari até ao Golfo Pérsico; após um similar triunfo, a Inglaterra nada do enumerado teria permitido à Alemanha e, além disso, expulsá-la-ia de todas as suas colónias, metendo-lhe a frota inteira a pique. Mas, também no primeiro caso (imaginário), a potência industrial inglesa ter-se-ia mantido em campo, continuando a luta pelo predomínio económico; e na segunda hipótese (a que efectivamente teve lugar), a Alemanha, poucos anos após a guerra e a sua derrota, já de novo começava a inspirar os mais vivos receios aos industriais metalúrgicos de Birmingham, têxteis do Lancashire, mineiros da Escócia e de Gales, armadores navais e produtores de substâncias químicas. Destruir o todo da conjuntura económica mundial, para lhe substituir uma outra, é algo que não pode ser alcançado por nenhuma política, nem mesmo que se lhe proporcione todos os meios de destruição e uma ampla margem de acção de algo mais de quatro anos, como foi o caso no lapso de 1914-1918. O máximo com que se podia contar, no caso de vitória, era com um melhor posicionamento ou situação, no futuro, na pugna contra o competidor.

É curioso de assinalar que ainda muito antes da guerra, e em ambos os campos, se reconhecia com uma razoável franqueza que arengar a propósito da “destruição” do rival (como já em 1897 a Saturday Review, sonhando com a “destruição” da Alemanha) só tinha interesse com o fito de atiçar as imprescindíveis paixões bélicas nas massas pequeno-burguesas, incapazes de raciocinar. E não obstante, o inesperado aconteceu. Se considerarmos que, para nós, dizer que “o ser determina o pensamento” não é tão-só uma frase, então não temos o direito de estranhar [Tarlé desenvolve aqui uma charge bem humorada contra Kautsky e congéneres] que a catástrofe tivesse sobrevindo com uma total independência e a despeito do facto de que a “consciência” de todos os seus participantes, de começo, se expressasse contra a ausência de racionalidade dum tal “ensaio de forças”, a reclamar tantos gastos e esforços que, como eles o bem sabiam, não eram justificados nem o poderiam ser pelos resultados imediatos. Quando a realidade económica veio exacerbar, brusca e acentuadamente, as contradições de interesses, a consciência das classes interessadas rapidamente se começou a nublar, a perder a sua ainda tão recente agudeza, e o cepticismo, que sabe fazer as contas com clareza, começou a ceder apressadamente lugar à voz da paixão, a posição crítica quanto à realidade dos cálculos viu-se substituída por um optimismo ligeiro e pouco assisado, e a chegada da catástrofe passou a ser, em função directa duma qualquer cómoda oportunidade, uma questão de tempo. E este fenómeno, que era inevitável, podia ser observado não só na Alemanha como também nos países que lhe eram rivais.

Trataremos agora de assinalar os traços fundamentais do desenvolvimento interno na Alemanha até ás vésperas da formação da Entente.

Nos primeiros anos que se seguiram à formação do Império Alemão (1871-1873), a conjuntura económica favorável, artificialmente gerada por uma repentina e avassaladora afluência de capitais, foi caracterizada pela criação duma multitude de novas empresas industriais e bancárias. Esta época (Gründerzeit, como lhe chamam os alemães) terminou em 1873 por uma crise súbita e severa, com bancarrota ou fortes perdas na maioria das empresas recentemente fundadas e prolongados e repetidos ataques de pânico nas Bolsas. Esses mesmos anos de breve e artificial crescimento foram ainda marcados por um movimento grevista de dimensões consideráveis, como pelo geral sucede aquando dum repentino ascenso no ritmo da actividade industrial e duma, também repentina, insuficiência de braços. A partir de 1873, após a breve depressão que se seguiu à crise, no mercado, que desde o início do nono decénio adquirira inusitada intensidade, de novo se assistiu a um gradual crescimento da actividade industrial. Uma série de descobertas e de aperfeiçoamentos técnicos, iniciada com as invenções de Gilchrist (1878), converteram os imensos e até então pouco úteis jazigos ferruginosos da Lorena numa excelente matéria-prima que, daí em diante, pôde servir de base ao desenvolvimento duma enorme indústria da fundição do aço. A produção de máquinas, em particular, durante a nona e décima décadas do século XIX, começou a ganhar dimensões verdadeiramente gigantescas, o que repercutiu, como era natural, de forma imediata sobre os restantes ramos da produção industrial. O amplo e excelentemente organizado serviço comercial ligado à indústria e o esplêndido aparelho (como não havia outro em mais nenhum lugar do mundo) que foi propositadamente montado para a promoção das mercadorias alemãs favoreceram, em muito grande medida, a rápida penetração da indústria alemã nos mercados de todo o planeta; antes do mais, na Inglaterra e Rússia, e logo depois, em Itália, Áustria, Espanha e nos Balcãs; na última década do século XIX e na primeira do século XX, na América do Sul, no Extremo Oriente e em África. O poderio do Império Alemão, sempre em crescendo de ano para ano, também exercia uma influência benéfica sobre a indústria alemã, prestando-lhe uma ajuda activa e eficaz através dum movimento conquistador que marchava de triunfo em triunfo. Logo a partir do último decénio do século XIX, começou a fazer-se sentir a falta de braços. Cessara a grande vaga de emigração alemã para as Américas; para os trabalhos da lavoura (de Primavera, Verão e começos do Outono) chegavam à Alemanha, vindos das províncias ocidentais da Rússia, dezenas de milhares de trabalhadores especializados e simples peões agrícolas. O movimento grevista dos operários industriais, bem como o dos mineiros do carvão, era muito mais intenso na última década do século XIX e primeira do século XX de que o havia sido nos anos a elas anteriores, em consonância com o geral desenvolvimento da produção, que desta vez se apresentou muito constante e ascendente (9).

 

(9) Em 1899 verificaram-se na Alemanha 1.336 greves (com 99.000 participantes), e em 1905 passou-se para as 2.448 greves (com 408.145 participantes).

 

O crescimento da indústria alemã nos primeiros catorze anos do século XX (até à guerra mundial) não apenas não cessou como se tornava mais e mais poderoso a cada ano. Sobre tal base económica, operou-se na composição social do povo alemão uma tremenda mudança, tendo a industrialização do país como seu traço principal.

Em 1871 o Império Alemão tinha 41 milhões de habitantes e, em 1913, já contava com 67.000.000. O crescimento da população era paralelo ao contínuo e sempre acelerado processo de transformação da Alemanha num país industrial. Vejamos os principais dados estatísticos que ilustram este facto. Tomámos aqui os anos em que foi prestada uma informação estatística mais completa.

 

NÚMERO DE PESSOAS OCUPADAS E RESPECTIVAS FAMÍLIAS

Ano

Agropecuária

Indústria

Comércio

1882

19.225.455

16.088.080

4.531.080

1895

18.501.307

20.253.141

5.966.846

1907

17.681.176

26.386.537

8.278.239

 

 

Jornaleiros e serviço doméstico

Empregados públicos e profissões liberais

1882

938.294

2.222.982

1895

886.807

2.835.014

1907

792.748

3.407.149

 

Sem ocupação definida (ohne Beruf und Berufsbenennung) havia os seguintes números: 2,25 milhões em 1882; em 1895, 3,3 milhões; e 5.174.703 pessoas em 1907. Assim, em 1882, o campo alimentava directamente 42,5% de toda a população e, em 1907, apenas 28,6% (10).

 

(10) M. Mendelson, “Die Entwicklungsrichtungen der deutschen Volkswirtschaft...”, Leipzig, 1913.

 

Da parte da população que vivia graças à indústria, em 1907, os operários propriamente ditos, e com trabalho efectivo, eram mais de 8,5 milhões (11).

 

(11) E com os restantes empregados das empresas industriais: 9.279.000 de pessoas.

 

Quanto ao número absoluto de operários a trabalhar na indústria e nas minas, bem como no referente a todas as pessoas que recebiam salários ou jornas no comércio e nos transportes, a Alemanha ocupava, antes da guerra, o primeiro lugar entre todos os países do mundo.

O quadro seguinte foi composto, para a Alemanha, com base nos dados de 1907; para os restantes países, de acordo com os respectivos censos anteriores a esse ano.

 

País

Número de operários e empregados no comércio, transportes e indústria

Percentagem em relação ao total de pessoas ocupadas

Alemanha

Grã-Bretanha

Estados Unidos

França

Rússia

Itália

Áustria

Bélgica

Hungria

Suíça

Holanda

Suécia

Dinamarca

Noruega

11.744.560

08.363.857

07.039.177

06.880.830

05.596.889

03.989.816

03.138.800

01.372.251

00.943.468

00.699.402

00.650.574

00.413.023

00.277.270

00.242.642

40,0%

45,8%

24,1%

35,5%

17,9%

24,5%

23,3%

41,6%

13,6%

44,9%

33,7%

20,9%

25,2%

27,7%

 

As extraordinárias dimensões atingidas pela indústria e comércio da Alemanha nos derradeiros quinze anos que precederam o conflito foram tais, que, por exemplo, a nona década do século XIX aparecia, aos olhos das novas gerações alemãs de antes do princípio da guerra, como uma época já longínqua, impossível de se entender à primeira vista e tampouco de todo compreensível. O conhecido estatístico M. Mendelson (director do gabinete de estatísticas da cidade de Aachen) observou com todo o acerto que, inclusivamente, para os habitantes de 1830, a situação económica dos séculos XIV ou XV poder-lhes-ia ter parecido mais próxima do que a da nona década do XIX aos habitantes de 1913. A isto pode-se acrescentar que, em alguns aspectos, a vida económica alemã de 1900 [o “ponto de partida” do período de desenvolvimento considerado por Tarlé] até se assemelhava mais à que existira em 1870 do que à que se vivia em 1913 [o “ponto de chegada” daquele desenvolvimento], tão gigantesco foi o ritmo do crescimento comercial e industrial nesses últimos anos que precederam a guerra.

Para os círculos dirigentes da indústria alemã já se tornara claro, desde os meados da nona década do XIX, que o capital inglês constituía o mais poderoso rival para o capitalismo comercial e industrial da sua nação; não o norte-americano nem o belga e, por menos razão ainda, o francês, mas sim, precisamente, o inglês. Todas as etapas da marcha triunfal de penetração do capital alemão nessas ou noutras partes do mundo obrigavam, de modo indeclinável, inexorável, a fazer o respectivo balanço provisório, comparando as cifras alemãs com as inglesas; e neste processo, a cada etapa passada, mais e mais se evidenciavam os gigantescos êxitos da Alemanha.

Tanto nos últimos anos da oitava década do século XIX como trinta anos mais tarde, a Inglaterra quase não se movera do mesmo ponto: extraía anualmente das suas entranhas cerca de 15 milhões de toneladas de ferro; e é claro que tal quantidade lhe era insuficiente, vendo-se obrigada a importar, em parte, este produto do estrangeiro e, em parte, das suas colónias. Ao invés a Alemanha extraía a maior parte do ferro de que necessitava das suas minas e, mais importante ainda, tinha a possibilidade, já cabalmente demonstrada, de ampliar essa extracção na escala que lhe fosse requerida; sem dúvida que também a Alemanha adquiria uma parte desse metal no estrangeiro (em 1911 comprou 9,75 milhões de toneladas), porém dependia dessa importação em grau incomparavelmente menor que a Inglaterra. E há que ter presente que a extracção nas jazidas alemãs aumentava de forma intensa. Antes do descobrimento de Gilchrist, em 1878, na Alemanha extraíam-se cerca de 5 milhões de toneladas (isto é, três vezes menos do que em Inglaterra); porém, já em 1887, a extracção atingiu nove milhões de toneladas; em 1897, 15 milhões (tanto como em Inglaterra); em 1907, 27 milhões (quase o dobro da Inglaterra); e em 1911 chegou a 29,75 milhões de toneladas.

No que respeita ao carvão, a Inglaterra mantinha-se no primeiro lugar, mas a extracção alemã crescera de 39 milhões de toneladas em 1878 para 143 milhões em 1907 e 230 milhões nas vésperas da guerra mundial. A Inglaterra extraía, antes da guerra, 267 milhões de toneladas por ano, contudo uma parte desse carvão era vendida ao estrangeiro, com a própria Alemanha a adquirir largas quantidades do mesmo para as necessidades da sua frota e indústria.

A população inglesa aumentava, anualmente, em cerca de 400.000 habitantes; a alemã, em 900.000. Além disso, a emigração privava a Inglaterra, a cada ano, de 139.000 pessoas, enquanto que a Alemanha, no anteguerra, apenas perdia, para o estrangeiro, de 28 a 30 mil. Assim, um factor tão importante para o desenvolvimento da indústria como o era o crescimento da população favorecia em maior grau a Alemanha que a Inglaterra. No decurso de 35 anos, desde 1870 até 1905, inclusive, a população da Inglaterra ascendera de 31 para 43 milhões, enquanto que a da Alemanha, de 39 milhões, passara aos 60 milhões (em 1914 estimava-se para a Alemanha uma população de 67,75 milhões de habitantes).

Nessa competição que, como foi referido antes, já se fizera notar de forma bastante pronunciada nos derradeiros anos do século XIX, a Alemanha contava, ademais, com uma escola técnica para todos os graus, melhor e mais amplamente organizada, dum modo incomparável, que em Inglaterra. Ainda antes da guerra, os ingleses não deixavam de apreciar tal facto, nem lhe reduziam na importância, afirmando francamente que lhes era necessário, e com muita urgência, efectuar neste âmbito uma reforma radical, uma transformação completa, de acordo com a experiência alemã.

Mais ainda, a Alemanha dispunha de um muito nutrido exército de vendedores itinerantes que, com assinalável êxito, levavam as mercadorias alemãs aos mais afastados rincões da América do Sul e Central, de África e, em menor grau, da Ásia, isto para já não falar da Europa.

A todas essas condições acrescentavam-se ainda outras, todavia mais importantes: 1) a relativa barateza das mercadorias alemãs (devida em grande parte ao custo consideravelmente mais baixo dos braços alemães); 2) os créditos a longos prazos que os comerciantes e industriais alemães concediam aos seus clientes, em especial na Rússia, península balcânica, América do Sul e Central e China; 3) e o saber adaptar-se ao comprador, o estudo atento e minucioso de todas as particularidades do mercado, o talento de conquistar o cliente. Amimado pelo secular monopólio que exercera, o capital comercial e industrial inglês já se havia desacostumado de tais práticas, tendo nisso de suportar penosamente a superioridade do capital germânico; no entanto, se o capital inglês não pôde imitá-las antes da guerra de 1914, tampouco o soube fazer depois, como os próprios britânicos o confessariam por várias vezes.

Um terrível perigo estava a incubar e a crescer face à Inglaterra. À primeira vista, a julgar pelo volume total do comércio exterior, a Inglaterra ainda mantinha o primeiro lugar no derradeiro período que precedeu a guerra, todavia, neste campo, já tão-só superava a Alemanha em 22%. A Alemanha, ultrapassando os Estados Unidos, e nem que falar há dos demais países, acabara por posicionar-se logo a seguir à Inglaterra. E a esta era-lhe necessário ter em conta que, nos dez ou quinze anos seguintes, a Alemanha a havia de alcançar e superar, porque, ano após ano, as cifras relativas à exportação e importação de produtos alemães se iam aproximando das inglesas.

Nesse momento tal cálculo não significava que, por elas só, sem que outros fenómenos ulteriores (de que já em seguida falaremos) viessem a acorrer em sua ajuda, as classes governantes inglesas, com a grande burguesia à cabeça, sem mais esperar, se dispusessem a iniciar uma guerra contra a Alemanha com o objectivo directo e manifestamente proclamado de destruir o principal competidor. Contudo, pelos finais do século XIX e inícios do XX, tal situação já se havia gerado que todo o passo que a Alemanha desse logo era interpretado na Inglaterra de forma malévola; qualquer aumento do poderio marítimo-militar do Império Alemão era visto como um repto, uma provocação directa, como uma ameaça à própria existência da Grã-Bretanha. Assim, quando Eduardo VII ascendeu ao trono, a situação diplomática era tal que, em numerosos sectores da população, as pessoas já se haviam começado a habituar à ideia de que a Alemanha era um inimigo mais temível do que a Rússia e a França.

Foi então que, entre os industriais alemães, com destaque para os proprietários de minas, metalúrgicos, fabricantes de armas e todo o género de fornecedores de materiais bélicos, surgiu um movimento que levou à inclusão do (futuro) almirante von Tirpitz no ministério imperial germânico e à consequente formação, no transcurso de escassos oito anos, da segunda maior marinha de guerra do mundo. Exactamente quando os representantes do capitalismo inglês estavam à espreita de que aparecessem condições que lhes fossem favoráveis e que o adversário viesse a dar os passos adequados, de modo a conferir-lhes o pretexto adequado que permitisse ganhar as mais vastas camadas do seu povo para os sentimentos antigermânicos, habituando-as à ideia duma inevitável “prova de forças”, foi precisamente nesse momento que, entre os dirigentes da indústria alemã e, por imediata influência destes, nas esferas políticas dirigentes, se decidiu, de forma determinada, virar todos os esforços contra a Inglaterra, avançando-se com uma série de actos que, infalivelmente, teriam que ser interpretados como de preparação directa para um grande choque armado no mar.

Vamos assinalar o essencial desta brusca reviravolta na política alemã.

Procuraremos captar, primeiramente, a ideia fundamental que guiou essa viragem, para logo depois passarmos ao ambiente em que se desenvolvia a política alemã, tanto a interior como a exterior, e, por fim, mencionaremos as formas e manifestações exteriores que, apesar de possuírem um significado histórico secundário em comparação com os dois primeiros temas, desempenharam, não obstante, um papel no recrudescimento da crise e provocaram uma certa antecipação da data do desenlace fatal.

Começaremos por recordar o fenómeno de que se falou nas primeiras páginas do presente livro: o ritmo geral do gigantesco desenvolvimento capitalista acelerara-se dum modo tão inusitado, nos derradeiros tempos que precederam a guerra, que todas as contradições a ele indissoluvelmente vinculadas tinham inevitavelmente de recrudescer, literalmente, de ano para ano. Era este o pano de fundo económico geral dos acontecimentos.

Tenhamos presente que a soma total anual do comércio exterior da Alemanha (importação mais exportação) era, ainda no começo [1881] da nona década do século XIX, em cifras redondas, aproximadamente de 5.000 milhões de marcos; em 1891, de 7.000 milhões; em 1902, de 11.000 milhões; em 1907, de 17.000 milhões; e em 1912 atingia já os 21,25 mil milhões. Se reduzirmos tudo a marcos, o valor do comércio exterior da Inglaterra equivalia, em 1912, a 27,5 mil milhões de marcos, e o dos Estados Unidos, nesse mesmo ano, a 16.000 milhões. Mas nem a Inglaterra nem os Estados Unidos se podiam comparar com a Alemanha quanto à velocidade do ritmo de crescimento, caminhando esta última, de forma manifesta e acelerada, do seu segundo lugar em direcção ao primeiro. E é de ter em conta que o ritmo geral do desenvolvimento comercial e industrial no mundo experimentava também uma aceleração, porquanto, e em essência, desde que o capitalismo havia feito a sua aparição sob o globo terrestre, só pouco tempo antes, em 1903, é que a soma de todo o comércio exterior (isto é, o total de todas as importações e exportações de todos os países do globo) havia alcançado, pela primeira vez, a cifra de 100.000 milhões de marcos anuais, e no entanto, no ano de 1912, essa cifra ia já nos 160.000 mil milhões de marcos (12).

 

(12) Arthur Dix, “Politische Geographie”, Munique, 1922, pág. 199.

 

Assim, constatamos que dessa soma (dos 160.000 milhões), 64.750 milhões correspondiam aos três rivais principais, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, e os cerca de 95.000 milhões restantes ao conjunto de todos os demais países do mundo.

Na Alemanha, o problema não se formulava da mesma maneira que em alguns círculos da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Para esses círculos, a questão punha-se assim: estava-se em presença de três rivais, só sendo possível, pelo recurso à força militar, que um deles fosse derrotado até ao ponto de se lhe quebrar o crescimento económico [ou seja, nenhum dos três, por si só, estava em condições de, pela guerra, poder quebrar a concorrência económica dos outros dois]; ergo, os outros dois haviam de lutar precisamente contra esse rival. E foi assim – de acordo com as próprias palavras dos pacifistas norte-americanos – que se formularam as ideias dos partidários da intervenção dos Estados Unidos na guerra, no lapso de tempo de 1915-1917: à Inglaterra é impossível esmagá-la, mas pode-se subjugar a Alemanha, e, por isso, há que unir forças com a Inglaterra contra a Alemanha e não o inverso. Quanto à Alemanha, nos finais do século XIX e, inclusive, nos princípios do XX, nem mesmo os mais desenfreados imperialistas consideravam ser possível a total e demolidora vitória sobre a Inglaterra, que livrasse o mercado mundial de um competidor e deixasse a palestra apenas à Alemanha e aos Estados Unidos.

Na Alemanha o assunto em debate era outro: tratava-se da criação de um império colonial alemão que desse ao capitalismo deste país, em primeiro lugar, um amplo campo de acção mundial para o seu capital financeiro e, em particular, um mercado próprio, totalmente independente das outras nações capitalistas, de matérias-primas, e que, em segundo lugar, ampliasse o mercado de vendas. O primeiro problema afigurava-se mais importante e antepôs-se ao segundo.

A Alemanha exportava produtos manufacturados, com as suas exportações de matéria-prima a reduzirem-se praticamente ao carvão de pedra, e importava sobretudo (cerca de 4/5 do valor total das importações) precisamente matérias-primas e produtos alimentícios. Em teoria, a América, as colónias inglesas e a Rússia poderiam ter destruído ramos inteiros da indústria alemã muito facilmente e de um só golpe, ao proibirem totalmente a exportação das matérias-primas de que a Alemanha necessitava. É claro que, à medida que crescia a competição comercial entre a Alemanha e a Inglaterra, a ameaça potencial duma privação artificial da Alemanha em matérias-primas tinha que ir ganhando, em grau crescente, um carácter mais e mais inquietante e concreto.

Além disso, como vimos, as colónias podiam e deviam consumir produtos alemães, que o mesmo é dizer, aumentar os mercados de venda para a Alemanha; porém, não certamente com o género de colónias que a Alemanha entretanto havia adquirido, mas sim com outras que, pela sua população e capacidade de compra, se pudessem comparar ao império colonial inglês ou ao francês. Esta função das colónias não era, por certo, tão importante e essencial para a Alemanha quanto a primeira: as matérias-primas coloniais eram-lhe mais necessárias do que os compradores de produtos manufacturados; no entanto, a posse de novos mercados de venda (para mais, em regime de monopólio) também haver-lhe-ia de ser muito útil.

Por último, a política colonial deveria proporcionar à Alemanha pontos de apoio militares, bases para operações bélicas, permitindo-lhe apoderar-se no futuro deste ou daquele novo mercado.

Para os círculos industriais alemães, já desde a nona década do século XIX, eram estas as tarefas a cumprir e as questões a resolver. Como é sabido, a Alemanha lograra apoderar-se das suas colónias mais importantes, as africanas, precisamente durante aquele decénio, enquanto a Inglaterra se achava ocupada com outros problemas: os assuntos irlandeses, o avanço da Rússia em direcção ao Afeganistão, a luta contra os madistas no Sudão e os progressos franceses na África Central; e, como já o dissemos, estava então muito longe de envidar um conflito com a Alemanha.

Quando Lüderitz, o empreendedor empresário de Bremen, após ter fundado uma feitoria (Angra Pequena) no sudoeste de África, propôs a Bismarck que fosse implantado o protectorado alemão sobre as terras do hinterland nas cercanias da baía por ele ocupada, Bismarck, a 24 de Abril de 1884, informou oficialmente as outras potências do estabelecimento do protectorado sobre o amplo território que ia desde aquele porto até ao rio Orange.

Nesse mesmo ano (1884), a Alemanha apoderara-se do Togo e de uma parte dos Camarões [Tarlé diz “de uma parte” porque, posteriormente, ainda foi incorporada a esta colónia alemã a região de Neukamerun], e, pouco tempo depois, repartiu amigavelmente com a Inglaterra a Nova Guiné, obtendo a parte nordeste desta ilha.

Em 1885 iniciou-se a ocupação na África Oriental das possessões do sultão de Zanzibar e territórios adjacentes. Mas a maior parte das pretensões alemãs sobre essas terras na África Oriental foi cedida depois aos ingleses (pelo tratado anglo-germano de 1 de Julho de 1890) em troca das ilhas Heligoland e da Faixa de Caprivi. Todavia, os territórios na África Oriental que permaneceram em poder da Alemanha expandiram-se posteriormente, graças a novas anexações, e essa colónia – a África Oriental Alemã – era considerada, ainda no ano de 1914, como uma das mais importantes possessões ultramarinas germanas.

Resta por último dizer que a Alemanha também lograra estabelecer-se solidamente em algumas ilhas do Pacifico, e que obteve, em 1911, uma parte do Congo Francês, por um acordo com a França concernente ao Marrocos.

As diversas possessões do império alemão alcançavam, no seu conjunto, perto de três milhões de quilómetros quadrados, com uma população de cerca de 12 milhões de indígenas e 28 mil imigrantes brancos. É claro que, se comparadas com as do império britânico em data ainda anterior à guerra – de 28 milhões de quilómetros quadrados e cerca de 375 milhões de habitantes, “fora da Europa” – aquelas cifras revelam-se por demais modestas. Mas também no que se referia ao seu próprio valor as colónias alemãs não podiam comparar-se, nem de longe, com as inglesas, que incluíam das regiões mais ricas do globo, como, por exemplo, a Índia, Canadá, Austrália, África Meridional, numerosíssimas possessões insulares, etc. As colónias alemãs não se podiam comparar, tanto quantitativa como qualitativamente, nem sequer com as possessões francesas. A Alemanha só tinha obtido restos e fragmentos. Bismarck iniciara aquela era de conquistas coloniais muito contrariado, e apenas se apoderava de colónias onde e quando tal não acarretasse qualquer risco. A isso o empurravam e impeliam os financeiros, os industriais e os armadores de navios, aqueles que haviam criado aSociedade Colonial Alemã”; porém ele seguia esse caminho de muito má vontade, pois que de modo nenhum queria fazer da Inglaterra um inimigo da Alemanha: “o pesadelo das coligações” perseguia-o durante os últimos anos em que teve a seu cargo a chancelaria. Os colonialistas alemães alimentavam um surdo rancor e ira contra o ancião chanceler, acusando-o, entre dentes, de estar ancilosado, acobardado e de não ser capaz de enfrentar os novos problemas. Foi esta circunstância que ajudou Guilherme II a realizar, em Março de 1890, um seu já velho desejo, quando por fim se decidiu a forçar a demissão do “chanceler de ferro”.

E, de facto, uma nova era se iniciaria no campo dos projectos coloniais.

Porém, antes de passar a considerá-la, iremos tocar num outro aspecto, sem o qual a caracterização do ambiente político-social que envolveu as empresas coloniais da última década do século XIX e primeira do século XX ficaria incompleta.

 

2. OS PARTIDOS POLÍTICOS NA ALEMANHA. A EVOLUÇÃO DA SOCIAL-DEMOCRACIA.

 

Quando falamos, por exemplo, da França ou de Itália, ou até dos Estados Unidos, no que se refere ao lapso de 1890 a 1914, devemos ter presentes os ânimos da classe operária, à época, nesses países. Não obstante, rapidamente nos apercebemos de que é possível entender, sem dificuldades de maior, as importantíssimas medidas que os seus governos tomaram em marcada divergência com os anseios e interesses das respectivas classes trabalhadoras. Mas quanto à Inglaterra e Alemanha, onde eram outros os regimes políticos no período atrás assinalado, já é completamente impossível de conceber que nas questões de vital importância, susceptíveis de colocar o país frente a uma ameaça de guerra, o governo inglês ou o alemão houvessem podido levar a cabo, durante anos e anos, uma política que fosse decididamente rejeitada pela maioria da classe operária.

O peso político específico do operário alemão era de tal ordem que, escolhendo um momento propício num período de absoluta calma social, se podia ofender os trabalhadores com palavras, provocá-los através de discursos, porém, de modo nenhum, mediante acções repressivas. Poder-se-ia perorar (sem que para isso houvesse o menor motivo, numa época da mais completa paz e sossego) perante conscritos, recentemente recrutados, convidando-os a no futuro dispararem as suas armas contra os próprios pais – tal como fez Guilherme II –, e fazê-los prestar juramento nesse sentido. No entanto na Alemanha não era possível, de maneira nenhuma, disparar realmente as armas sem qualquer pretexto sobre operários que efectuavam uma greve numa empresa privada, por reivindicações de carácter puramente económico, como o fez Clemenceau em França no ano de 1907, tendo de imediato ratificado tal procedimento ao dizer que, no futuro, continuaria a agir da mesma maneira, e, apesar disso, se manteve no ministério como chefe de gabinete. Era possível representar o papel de monarca que governa pela graça de Deus e que só perante o céu tem que responder, mas, na realidade, não era possível tentar sequer violar a Constituição, mesmo no mínimo detalhe que fosse.

Tomando em consideração tudo isto, então, ainda sem conhecer os acontecimentos de que se irá falar de seguida, podemos fazer uma dedução que quase se retira por si só, automaticamente: se a questão das colónias, e a da construção duma marinha de guerra, àquela estreitamente vinculada, puderam ganhar tamanha importância na vida política alemã; se a política seguida pelo Império, de igual forma que a da Inglaterra, França e Rússia, havia levado por quatro vezes, no decurso duns dez anos, até aos umbrais duma guerra, provocando-a, por fim, à quinta vez; isso quer dizer que a classe operária não era unanimemente contra, nem coisa que se parecesse, no que respeita às colónias e à frota de guerra; isso quer dizer que o governo imperial podia sentir-se seguro de que não eclodiria nenhuma grande acção revolucionária de protesto no caso dele vir a provocar uma guerra. E, na verdade, aquele que se detenha a observar quais eram os ânimos reinantes no seio do único partido que representava, nos anos do Império, o proletariado alemão, verá de imediato que a nossa suposição é inteiramente justa, que ela coincide com a real configuração dos factos no terreno.

Este não é o lugar indicado para se expor a história da social-democracia alemã durante os anos que precederam a guerra, nem tampouco a história do revisionismo e da luta que contra ele se travou nos congressos, na imprensa e nos comícios partidários. Neste tema, o leitor pode recorrer ao livro de Franz Mehring ou ao de Lukin, ou, por exemplo, ainda à obra de Dorzbacher, “Die deutsche Sozialdemokratie und die nationale Machtpolitik(13).

 

(13) Mas o livro não é suficientemente detalhado. Este tema continua todavia à espera de novos investigadores.

 

Aqui procuraremos tão só inteirar-nos das causas históricas que engendraram o revisionismo. E como assunto que é de importância maior, devido à sua relação com o que há pouco acabámos de referir, analisaremos, da forma mais sucinta e geral, o modo como foram evoluindo as opiniões de uma parte da classe operária no que diz respeito à questão colonial e aos problemas, com ela profundamente vinculados, da política internacional.

Não temos de nos deter em todos os fenómenos laterais que acompanhavam o processo principal e que contribuíam para o crescimento do revisionismo. Mas há a referir, desde logo, serem justas as repetidas e frequentes observações, tanto na literatura alemã como na russa, quanto ao papel do vasto e influente (pela sua situação e funções) aparelho burocrático do partido e à penetração, por um lado, da ideologia pequeno-burguesa e, por outro, da mentalidade especificamente burocrática nesse mundo particular, da base até ao topo (com as “altas esferas”, dada a disciplina e a centralização existentes no partido, a deterem nisso uma enorme responsabilidade). Tampouco se pode deixar de lado as censuras (certamente escassas) aos “académicos”, isto é, àquelas pessoas da camada intelectual que tinham seguido cursos superiores, censuras que se fizeram ouvir durante largos anos e provinham das fileiras da ala esquerda do partido. À esquerda, acusava-se estas pessoas de introduzirem o oportunismo, o temor pequeno-burguês face à revolução, etc. Por último, é indubitável que nas eleições parlamentares, dado a votação ser secreta, parte da pequena e da média burguesia e, inclusive, uma parte dos empregados públicos, que eram mal remunerados, davam muito frequentemente os seus votos aos sociais-democratas. E como estes elementos contribuíam de forma decisiva para os triunfos eleitorais do partido, ganhavam grande importância e havia que os ter em consideração. É óbvio que tal circunstância também veio apoiar e consolidar a táctica revisionista e as intervenções e declarações revisionistas. Mas todos estes fenómenos – e outros similares –, se bem que não se lhes possa negar um certo valor, não bastam, por certo, para explicar, por si só e duma forma exaustiva, como pôde acontecer que o grande partido de massas do proletariado alemão, que ainda em 1875 marchava de forma assumida sob a bandeira do marxismo revolucionário (I), já em 1891, no seu congresso ordinário de Erfurt, como que se desdobrando em vontades e convicções, tivesse começado a prestar ouvidos aos discursos de Vollmar e dos seus apoiantes, para logo, de 1891 até 1898, inclusive, passar por um processo de divisão cada vez mais acentuada em orientações e tendências, e como foi possível que, a partir de 1899, uma parte muito considerável do partido se viesse a posicionar por detrás das consignas de Bernstein, trocando os princípios revolucionários pelo “reformismo”, enquanto a táctica da luta parlamentar e da oposição legal acabava por assumir o papel predominante num partido que se reivindicava como revolucionário não apenas pela sua origem mas ainda pelos fundamentos e bases doutrinárias que, publicamente, continuava a aceitar e a reiterar.

 

(I) Tarlé descreve aqui, de forma muito sucinta, o crescendo do revisionismo e do divisionismo entre os sociais democratas alemães, mas deve-se assinalar que o “transtorno de personalidade”, para utilizar a metáfora do próprio Tarlé, já estava presente, de facto, desde o início, em 1875, na pessoa de Lassalle e dos seus seguidores.

 

Antes do mais, há que procurar a explicação essencial para tais fenómenos nas particulares características do período que então atravessava a economia da Alemanha. A orientação revolucionária da social-democracia alemã, por finais do século XIX e inícios do XX, começara a decrescer em energia e grau de influência por causas análogas às que, em Inglaterra, haviam levado ao desaparecimento do cartismo pelos meados do século XIX. Paralelamente, o desenvolvimento das associações profissionais alemãs, nos finais do século XIX e princípio do XX, era análogo ao que se verificara no trade unionismo inglês durante a sétima, oitava e nona décadas do século XIX e primeira do século XX. O sindicalismo reformista, o economismo, a luta pelo melhoria da situação económica, o crescer do “apoliticismo”, a indiferença perante as consignas revolucionárias, eis os fenómenos por que a Inglaterra havia passado antes e a Alemanha veio a passar depois, mais concretamente, na época em que a sua indústria progredia de êxito em êxito, quando novos mercados eram conquistados, quase que se poderia dizer, diariamente; quando o capital considerava que o mais vantajoso era investir na indústria, quando, com muita frequência, não era o operário (em especial, o qualificado) quem andava à procura de empresário, mas sim o oposto. Precisamente quando para a Inglaterra esses tempos estavam a chegar ao fim, assistiu-se ao seu início na Alemanha; e, como já vimos, não se tratava de mera coincidência, porque era, em parte, devido justamente a esse florescimento económico estar a fenecer em Inglaterra que o mesmo despontava na Alemanha, com esta a arrebatar àquela mercado atrás de mercado.

O cerne da questão não residia apenas na melhoria do bem-estar para amplos sectores da classe operária, mas também no facto de, a cada década, crescer com inusitada rapidez a massa dos operários qualificados, com altos salários, massa essa que sentia, de maneira muito viva e imediata, o estreito vínculo que fazia depender a sua situação e o futuro das suas carreiras do ulterior ascenso e intensificação da actividade industrial. As associações profissionais, as reivindicações de carácter puramente económico e as greves com o mesmo objectivo, que eram apoiadas e suportadas organizativa e materialmente por aquelas associações, eis o que começava manifestamente a primar na vida social e na ideologia de numerosas e influentes camadas da classe operária. O partido social-democrata fazia lembrar a sua existência uma vez a cada cinco anos, nas vésperas das eleições para o Reichstag e – mas não concorrendo em todos os estados do Império – o Landtag (parlamento local); também o fazia, de quando em quando, através dos comícios, dos discursos dos seus representantes parlamentares e dos congressos ordinários anuais. Já ao invés, a associação profissional, o sindicato operário, eram uma necessidade quotidiana, algo de permanente importância, pois que se deviam ocupar com frequência dos interesses vitais do operário e da sua família. Depois que prescreveu, em 1890, a lei contra os socialistas, a imprensa partidária propagara-se amplamente na Alemanha. Além disso, o grau de liberdade política e de segurança pessoal não eram o assaz baixo para poder vir a suscitar, por si só, a ira revolucionária da classe operária. E no que respeita a projectos para uma sublevação imediata, a esperanças numa revolta social, dadas as condições existentes e, sobretudo, dada a conjuntura económica assinalada, isso não era considerado possível nem sequer pela ala esquerda do partido, que prosseguia na luta contra o revisionismo.

Na abordagem deste tema podemos limitar-nos a uns poucos factos concretos. Desde o referido congresso partidário de Erfurt, em 1891, o movimento revisionista não mais parou de crescer e consolidar-se. Em 1899 veio à luz o livro de Eduard Bernstein, “Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie” (“As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia”). Neste livro, em essência, Bernstein renunciava por completo ao marxismo revolucionário, e não apenas o fazia nas “premissas” como também nos seus resultados lógicos. O reformismo, o sindicalismo oportunista, a colaboração com os partidos burgueses era o que ali se promovia a primeiro plano. O primeiro congresso ordinário do partido que se seguiu ao aparecimento do livro de Bernstein (o congresso de Hannover, em 1899) não aderiu de forma oficial a esse “manifesto revisionista”, porém, na prática, a actividade dos altos dirigentes do partido já começara a fixar-se e a buscar a sua orientação, em grau crescente, na ideologia revisionista e não na revolucionária. A teoria do inevitável fim do capitalismo, a doutrina da ditadura do proletariado, a questão mais particular, mas de capital importância, da greve geral de massas de carácter político como primeira etapa qualitativa da revolução proletária, eram tudo questões que Bernstein e os seus apoiantes consideravam arquivadas; e também os dirigentes do partido a elas se referiam cada vez com menos frequência e maior cepticismo. Bebel, o velho combatente parlamentar e líder do partido, aquando da votação das resoluções nos congressos sociais-democratas, procurava, mediante hábeis propostas de reformulação, encobrir o abandono das consignas teóricas de outrora, porém tais estratagemas poucos ou mesmo ninguém podiam enganar.

Na expressão de Schmoller, o congresso partidário de Colónia, que se reuniu em 1893, representara “o último triunfo do marxismo” sobre as correntes revisionistas. Como guias do revisionismo nas altas esferas do partido, alçam-se, de modo decidido, Vollmar, Schippel, Bernstein, Heine. A social-democracia meridional (a da Baviera, de Württemberg, de Baden) assumiu uma posição revisionista particularmente combativa. Os sindicatos onde a guinada à direita se fizera sentir com especial intensidade exerciam uma influência muito grande sobre o partido. O número de membros dessas associações profissionais era de 260 mil em 1895, contudo, em 1912, já havia crescido para os 2,25 milhões. Antes da guerra, o capital de que dispunham os sindicatos operários alemães elevava-se a 81 milhões de marcos ouro, enquanto que o capital permanente do partido social-democrata se cifrava então em menos de 1 milhão de marcos.

Assim, nos anos anteriores à guerra, os líderes sociais-democratas eram obrigados a ter sempre presente o poderio de tais sindicatos. E estes (sendo, de resto, os mais fortes e influentes) iam-se deixando ganhar, com crescente amplitude e profundidade, pelo revisionismo. É certo que a ala esquerda lutava de forma muito activa e enérgica contra o revisionismo, mantendo-se firme nas suas posições, e que os seus dirigentes mostravam um elevado grau de talento e abnegação, porém o seu “exército” era pouco numeroso.

Um ano antes da guerra, no último congresso ordinário do partido social-democrata que a precedeu, reunido em Iena em Setembro de 1913, Fischer exclamou: “Onde está o camarada que, ainda hoje, continua a acreditar no naufrágio da sociedade capitalista?...Do revolucionarismo nada quedou excepto umas quantas frases revolucionárias, que soam de modo bastante forçado (gezwungen klingende Fräsen).É claro que se tratava de um exagero enfático da polémica: para os militantes da ala esquerda, os princípios revolucionários não eram meras frases, mas sim uma convicção que mais de um deles teve de pagar posteriormente com a própria vida. Porém, não deixa de ser característico que o revisionista Fischer haja então experimentado e exteriorizado, claramente, a embriaguez da vitória. Se assim não fosse, jamais se teria atrevido a proferir no congresso do partido, correndo o risco de desencadear uma vaga de protestos, palavras duma tal jactância.

Sobre esta base económica e ideológica, a posição no que concernia à aquisição de colónias tinha inevitavelmente que ser revista e reconsiderada. Por meados da nona década ainda predominava no partido a opinião de que a política colonial mais não era do que banditismo, subjugação, usurpação e opressão das raças de cor. Já na última década do século, surge a discussão em torno do aproveitamento económico das colónias.

Porém, a partir dos finais dos anos noventa, a ala revisionista da social-democracia começaria a assumir de modo mais ostensivo e resoluto a tese da necessidade duma conquista política, e não meramente económica, de novas colónias. Vollmar, de maneira menos arrebatada, e Heine, mais desabridamente, diziam que, com certas condições, se devia apoiar e manter a marinha alemã à altura das circunstâncias e procurar ampliar o império colonial. É claro que, à época, defender tudo isto duma forma categórica era ainda considerado como uma espécie de heresia; os dirigentes do partido entraram em polémica (se bem que de modo muito frouxo) com Heine, todavia esses pontos de vista iam-se espalhando e consolidando de forma crescente. A crise marroquina, despoletada em 1905, veio dar um sério impulso à ulterior penetração no seio do SPD da corrente colonialista. E foi então que entrou em cena Richard Calwer, já nesse tempo reconhecido como um dos mais destacados publicistas da ala revisionista do partido social-democrata.

Há ainda a referir que a questão do Marrocos havia posto a social-democracia em geral numa situação muito difícil. Por um lado, Jaurès dizia, todos os dias, que os capitalistas franceses praticavam no Marrocos uma política de bandidos, rapace e anexionista, e que o governo alemão reclamava com toda a justiça a aplicação do princípio de “portas abertas” no Marrocos, tendo este a seu favor, na luta diplomática que se entabulara, todos os argumentos e razões da lógica. Mas, por outro lado, a social-democracia alemã vituperava a política seguida pelo seu governo na questão marroquina. Quem é que tinha então razão?

Richard Calwer e os seus partidários haviam aderido à tese de que a razão estava do lado da Alemanha e que, sobretudo, e independentemente do resto, era do interesse essencial da classe operária alemã que o Marrocos não passasse ao domínio monopolista do capital francês. Não obstante, Calwer e os seus correligionários também acreditavam que, num plano mais geral, e com o correr do tempo, uma colaboração franco-alemã havia de ser possível. No respeitante à Inglaterra, eram de opinião que, em primeiro lugar, o seu invariável interesse estratégico, económico e politicamente condicionado, nunca lhe permitiria manter uma aliança prolongada com qualquer outra das grandes potências europeias; e que, em segundo lugar, uma parte da classe operária inglesa estava directa e fundamentalmente interessada em que se mantivesse no ultramar, no todo das colónias britânicas, a usual exploração por parte do capital inglês, não podendo nem desejando as massas operárias inglesas alterar a política seguida pelo seu país. A conclusão que disto retirava Richard Calwer, colaborador permanente da revista mensal Sozialistische Monatshefte em 1905-1907 e anos posteriores, era a de que se exigia a formação de uma aliança continental de potências... (há a terminar a frase:...contra a Inglaterra). Como se vê, se fizermos caso omisso da ressalva quanto à incompletude da frase e às reticências, quer para Richard Calwer, quer para os dirigentes responsáveis pela política oficial alemã, o ideário da política exterior a seguir naqueles anos era praticamente o mesmo. Como consequência prática imediata, exigia-se dos membros do partido social-democrata que apoiassem o crescimento e fortalecimento da marinha de guerra alemã: “As grandes frotas de guerra, é certo, constituem um facto que pouco conforta o desenvolvimento cultural da humanidade; todavia elas existem” e, por consequência, também a Alemanha havia de possuir uma marinha poderosa. Richard Calwer subscrevia ainda a política de von Tirpitz, que privilegiava a construção de grandes e poderosos navios de guerra: não é por isso, de maneira alguma – dizia ele – que a Inglaterra se mostra hostil à Alemanha, não é porque esta a procure amedrontar mediante o desenvolvimento da sua marinha de guerra; ainda que a Alemanha não possuísse uma tal frota, de todo o modo a Inglaterra nunca lhe perdoaria os seus êxitos industriais e comerciais; a Inglaterra é o inimigo principal, e é absolutamente inútil tentar ocultar este facto.

Após Calwer, entrou em cena Karl Leuthner, redactor de política estrangeira do diário vienense Arbeiter Zeitung e colaborador muito assíduo, em 1909 e nos anos subsequentes, da já mencionada revista mensal Sozialistische Monatshefte. Leuthner foi muito mais longe que Calwer. Afirmava que um combate demasiadamente enérgico, por parte dos sociais-democratas, à política externa do governo representava uma traição aos interesses do proletariado, porquanto “os pan-eslavistas e os jingos ingleses” aproveitavam esses ataques para atingir os seus próprios fins. De facto, Leuthner estava a inventar uma falácia, dado que naqueles anos o partido social-democrata nunca chegou a travar aquele pretenso combate. À medida que corria o tempo, foi assimilando em maior medida não apenas as ideias, mas também a estafada fraseologia dos patrioteiros publicistas baratos alemães: nós, os germanos, temos de lutar contra as tentativas dos russos para impor a sua hegemonia; não queremos debilitar o nosso governo na luta contra os inimigos, etc; todos, mesmo os italianos (por exemplo, na Tripolitânia), fazem guerras e levam a cabo conquistas, somente a nós, germanos, nada nos há tocado até agora, e, apesar disso, ainda se nos acusa de belicosidade, etc. Leuthner rejeitava categoricamente todas as tentativas do governo inglês para a limitação dos armamentos navais, por acordo mútuo, entre a Inglaterra e a Alemanha. Em suma, também nisto, ou seja, na recusa da Alemanha a celebrar um tratado que considerava ser perigoso e prenhe de consequências, Leuthner não se afastava nem um passo dos pontos de vista seguidos por Bülow, Tirpitz, Bethmann-Hollweg e Guilherme II.

Não ficando a dever nada a Leuthner em energia, e quase contemporaneamente a ele, debruçaram-se sobre os problemas mais espinhosos e complexos da política internacional, a nível partidário, Ludwig Kwessel e Gerhard Hildebrand. Ambos eram partidários acérrimos de uma acção colonialista organizada em vasta escala; ambos protestavam contra a acusação de imperialismo que era feita à Alemanha, porque, a seu critério, o aproveitamento económico das terras ultramarinas não chegava a ser imperialismo.

Quanto à questão da partilha colonial, Kwessel era optimista ou, quiçá por considerações de ordem táctica, queria parecê-lo. Acreditava ser possível, fora da Europa, uma divisão amigável das esferas de influência entre a Inglaterra e a Alemanha. Kwessel sublinhava que não se devia desprezar nem sequer descuidar a possessão apenas política, dado que dela nasciam consequências económicas bem concretas, e que um Estado que entrasse na posse duma colónia, fosse já de facto ou de jure, sempre poderia organizar nesse território uma situação de monopólio para as suas exportações.

Hildebrand era mais audacioso que Kwessel: manifestamente, ele não acreditava que as agudas contradições do mundo capitalista fossem possíveis de resolver ou atenuar por via pacífica, e parecia não ser contrário a uma guerra. Declarava sem rodeios que a forma como haviam sido distribuídos os territórios fora da Europa era extremamente injusta; que a Alemanha fora a agravada e ultrajada nessa distribuição; que a Rússia e a França abusavam do seu poder em terra firme, fazendo a Inglaterra o mesmo nos mares; e que “nós, os germanos, estamos no dever, perante os nossos filhos, de nos assegurarmos um futuro colonial”.

Hildebrand escrevia já em vésperas da guerra e ao lembrar, por exemplo, o incidente de Agadir, exprobrava azedamente os seus camaradas de partido, sustentando que a França e a Inglaterra não se teriam atrevido, nesse momento, a opor tanta resistência caso não se tivessem podido fiar na posição hostil do partido social-democrata alemão face às empresas coloniais do seu próprio governo. Hildebrand previa que se avizinhava rapidamente uma época de árdua luta pelos mercados, pois os países “camponeses”, entre eles a Rússia, de que os países industriais estavam muito dependentes, acabariam por instalar as suas próprias indústrias, deixando de servir de mercados de venda para a indústria “ocidental” e, o que era ainda mais importante, como fontes de matérias-primas. Hildebrand acalentava o sonho duma aliança político-económica da Europa continental contra o Império Britânico, por um lado, e o “colosso russo”, por outro.

Tal era o conjunto de ideias compartilhado, antes da guerra, por vários elementos muito influentes do partido social-democrata (14).

 

(14) Ver também o interessante artigo de E. Rivlin, “A luta das tendências na social-democracia alemã”, na revista “Pod znamenem marksizma” (Sob a bandeira do marxismo), 1926, nº 11, págs. 142-171.

 

E que fazia entretanto a esquerda? Continuava a sua luta contra o revisionismo, contra a cobiça colonialista, contra a agressividade patrioteira que começara a assomar à superfície de forma bem vincada. Não obstante impõe-se aqui fazer uma observação.

Não é de estranhar, após tudo o que mais acima foi dito, que o revisionismo não mais tivesse cessado de se reforçar no seio do partido, que, tanto antes como durante o primeiro ano e meio da guerra, fosse essa a orientação incondicionalmente seguida nas altas esferas partidárias, e que a sua influência se revelasse muito forte em diversas camadas das massas operárias. Todavia, por trás dessa realidade que nos salta à vista, e que na verdade era a prevalecente, costuma-se geralmente esquecer um outro fenómeno que é extremamente significativo e que passo a abordar agora.

Subitamente, por volta de meados da primeira década do século XX, quer no seio da social-democracia austríaca quer no da alemã, passara a fazer-se ouvir, de modo intenso, a voz da minoria revolucionária: e fazia-se ouvir como jamais o fizera desde que o revisionismo havia iniciado a sua marcha triunfal. Julgar-se-ia estarmos perante um fenómeno paradoxal. Se o ânimo revolucionário de uma parte das massas operárias da Alemanha já estava a diminuir na última década do século XIX, em paralelo com o acentuado ascenso da indústria, então, por maioria de razão, esse espírito dever-se-ia ter extinto quase de todo no lapso de 1905-1914, dado que, como já foi referido, e ajuizando-se pelo passado, o florescimento industrial à época foi muito além de tudo quanto se poderia imaginar.

E contudo deparamos com uma situação na realidade bem diferente. Antes de nos ocuparmos da explicação deste facto, fixemos a nossa atenção em algumas das suas particularidades. O grupo de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebknecht (ou seja, o grupo dos social-democratas de inspiração revolucionária) situava-se teoricamente no campo do marxismo revolucionário, doutrina que já formava a base teórica da anterior ala revolucionária do partido. Mas na sua prática, os revolucionários da época que precedeu a guerra mundial apenas se preocupavam com um único problema, um só motivo de propaganda, uma só plataforma imediata; eles diziam nos comícios, nos congressos do partido e escreviam nos poucos jornais diários ao seu dispor sempre a mesma coisa: destacavam a necessidade, caso houvesse guerra, dum protesto revolucionário de massas.

Nem sempre e nem todos eles afirmavam que tal protesto teria como corolário a instauração do regime socialista, e, dum modo geral, evitavam insistir nos temas respeitantes à revolução social. Eles sentiam que naqueles anos o terreno não lhes era, para isso, favorável. Porém, afirmavam sem cessar a necessidade de se ligarem dum modo firme e o mais quanto antes possível aos companheiros franceses e ingleses da Internacional, assumindo com eles um compromisso revolucionário comum caso viesse a ser proclamada a mobilização geral. E para fazer isto, tinham debaixo dos pés um terreno muito sólido; esta consigna era também escutada por aqueles estratos da massa operária que, em todos os outros terrenos, se mostravam inteiramente dominados pelas tendências revisionistas.

A explicação para isto iremo-la encontrar, mais desenvolvidamente, nas páginas que vêm a seguir. Só muito tardiamente, uns poucos anos antes da guerra (e sobretudo a partir dos finais de 1906, desde a famosa entrevista de Guilherme II com o correspondente do Daily Telegraph e da tremenda borrasca que ela provocou na Alemanha), é que as massas operárias e as altas esferas do partido se começaram a aperceber, com uma viva inquietude, de que um homem desequilibrado e limitado lhes estava a jogar com a vida e a morte; e de que os chamados dirigentes “responsáveis” da política alemã o eram muito pouco. Em suma, mesmo aqueles que sonhavam com colónias, e que fechavam deliberadamente os olhos perante o facto mais que evidente da iminência de uma guerra, começaram a dar-se conta cabal de que conseguir atear uma guerra não significava que logo se alcançassem colónias; que era pouco querer ter colónias, pois que havia que saber e poder tomá-las; e que dada essa situação, essa configuração de circunstâncias que se formara no interior e exterior do país, o melhor para a Alemanha seria postergar qualquer acção decisiva. Por outras palavras, começara-se a prestar mais ouvidos a Rosa Luxemburgo, a Carlos Liebknecht, a Leo Jogisches e aos seus companheiros, e isto acontecia não porque se persuadissem da contradição existente entre os princípios do socialismo e a política de conquista de colónias e da guerra, mas porque alguns deles já haviam percebido, e experimentavam o consequente receio, de que com dirigentes da política imperial alemã semelhantes a Guilherme o Império poderia vir a sofrer a mais rotunda das derrotas.

É óbvio, e não há, pois, necessidade de entrar em detalhes a tal respeito, que a corrente de esquerda tinha ainda outras raízes, e de que nem toda a classe operária alemã, nem muito menos, fazia parte da chamada, pela sua situação e posição social, “aristocracia operária”. Os baixos salários em alguns dos ramos da indústria, a opressão da miséria, a falta de segurança para o dia de amanhã, o peso da carga fiscal, as constantes e odiosas notícias sobre a brutalidade com que eram tratados os que estavam a cumprir o serviço militar eram tudo factos que constituíam, por si só, uma base, um solo propício a alimentar o espírito revolucionário em amplas camadas da classe trabalhadora. Contudo, quero assinalar aqui que foi precisamente a política exterior a que começou, antes da guerra de 1914, a gerar a inquietação e a ira, de forma crescente, também na “aristocracia operária”.

Estamos a abordar um tema que ter-nos-ia sido muito difícil de tratar sem estes esclarecimentos preliminares. No primeiro item deste capítulo vimos quais eram, nos finais do século XIX, as exigências imediatas do capital financeiro alemão, e assinalámos que a criação de um império colonial constituía o fundamental dessas reivindicações. No segundo item recordámos que a única classe, numerosa e politicamente importante, que no momento em que Guilherme II subiu ao trono, no ano de 1888, ainda assumia com firmeza uma posição revolucionária, passou a partir de então por uma evolução muito rápida, alterando-se bruscamente os estados de ânimo duma parte considerável dela. Vimos que essa mudança teve como particular consequência que alguns viessem a assimilar uma perspectiva “positiva” ou “mitigada” a propósito do alargamento da esfera de acção do capital financeiro através duma expansão colonial conduzida com os diversos meios político-estatais apropriados, a propósito da necessidade da exploração económica de novos territórios e, se tal se revelasse necessário, da sua conquista político-militar. Teremos agora de examinar como é que o governo alemão aproveitou na prática essas vastas possibilidades e aquele contexto social interno em que as camadas mais poderosas da burguesia o empurravam directamente para uma política exterior activa, enquanto que, ao mesmo tempo, as camadas mais numerosas e influentes da classe operária não se lhe opunham com grande resistência.

“O caminho está livre!”, parecia dizer a história a Guilherme. Mas isso era apenas impressão sua. Na realidade, o caminho encontrava-se recheado de perigos manifestos e, em muito maior quantidade ainda, de perigos velados, cada um mais terrível que o outro.

Começaremos por assinalar quais os traços característicos do mecanismo de governo criado por Bismarck e o seu funcionamento, tanto na época do “chanceler de ferro”como durante os primeiros quinze anos – os chamados “anos felizes” – do reinado de Guilherme II, até à formação da Entente.

 

3. A MÁQUINA GOVERNAMENTAL ALEMÃ. OS DIRIGENTES. O PRÍNCIPE BISMARCK. A LEI CONTRA OS SOCIALISTAS. A “LEGISLAÇÃO SOCIAL”. A CRISE DA LEGISLAÇÃO ADUANEIRA.

 

I) A máquina governamental alemã. Os dirigentes.

 

O poderio do Império Alemão nasceu a 18 de Janeiro de 1871, no Salão dos Espelhos do palácio de Versalhes, e sucumbiu no mesmo salão a 28 de Junho de 1919. Surgira como resultado de uma guerra e afundou-se em meio a circunstâncias idênticas. Em geral, ao longo de toda a sua existência de um milénio e meio, o povo germano sofreu, em maior grau e com mais frequência que os demais povos da Europa ocidental, a influência directa e inelutável dos seus vizinhos. Nenhum país europeu tinha (ou tem) tantos e tão poderosos vizinhos, e nenhum desses países, no decurso da luta pela sua existência económica e política, experimentava um risco tão sério de perder, em caso de derrota na guerra, a sua independência. As condições históricas e geográficas haviam comprimido a Alemanha na superfície de um território relativamente pequeno, tendo o seu percurso histórico resultado particularmente penoso (15). Quando em 1871, no apogeu da sua luta vitoriosa contra a França, poucos dias antes da capitulação de Paris, Guilherme I, o rei da Prússia, cingiu em Versalhes, por ele ocupada, a coroa de imperador, parecia que, com esse acto, o anterior desmembramento multissecular tinha por fim cedido o passo à plena unidade nacional do povo alemão, e que o poderio e a glória se substituíam à debilidade de antanho. Por mais cauteloso e pouco propenso ao optimismo que haja sido o primeiro chanceler do novo império, o príncipe Bismarck, se alguém lhe tivesse profetizado que a sua obra favorita apenas iria durar uns 47 anos, muito se resistiria a crê-lo, ainda que os receios nunca o hajam abandonado.

 

(15) E. V. Tarlé, “Três catástrofes, a paz de Vestfália, a paz de Tilsit, a paz de Versalhes”, em Annaly (Anais), 1922, t. II, págs. 59-94.

 

A verdade é que somente a unidade política do povo alemão era incólume, e não a sua forma monárquica; assim, em 1918, após o desastre bélico, apenas a monarquia sucumbiu, mantendo-se íntegra a unidade política, que mudou unicamente a sua forma exterior. A Constituição alemã de Hugo Preuss – a “Constituição de Weimar” – actualmente em vigência [em 1927], unifica até de forma mais estreita os “territórios” (Länder) germanos num todo íntegro do que a anterior Constituição imperial de Bismarck o fazia aos “Estados” (Staaten) alemães. A Alemanha bismarckiana era poderosa, enquanto que a de hoje se vê impotente, desarmada, pobre, territorialmente mutilada, oprimida pelos seus vencedores. Tudo mudou, mas a unidade mantém-se.

Como se explica isso? A explicação está no facto de que, tanto para a média e grande burguesia comercial e industrial como também para o conjunto da classe operária, a unidade política viera abrir novas e amplas perspectivas. E não era por acaso que Lassalle, o dirigente da classe operária, se tinha mostrado um decidido partidário dessa unificação. Defender as exportações, proteger os interesses do negociante e do industrial, só o podia fazer um Estado forte, unificado; a classe operária só no seio de um Estado vasto e unificado se poderia unir estreitamente, consolidar-se, e constituir desse modo uma poderosa força política. Por fim, a pronta e efectiva defesa militar do território alemão face aos seus poderosos vizinhos somente era possível com base na unidade. Todas estas razões, elementares mas assaz ponderosas, assim como as consequentes ilações por elas impostas, foram as que criaram e sustiveram essa unidade na época de brilho, riqueza e glória, de 1871 a 1914, e que continuam a sustê-la em tempos de derrota, empobrecimento e humilhação, no período que vai de 1919 a 1926. E se já muitos antes da guerra as debilidades do princípio da centralização do poder na Constituição imperial alemã saltavam à vista de todos, quer dos alemães quer, em especial, dos estrangeiros (16), estes últimos, contudo, raras vezes prestaram tributo ao facto, duma importância capital, de que os vitais interesses económicos e políticos tornavam todas as particularidades jurídico-estatais do regime alemão completamente inócuas para a unidade nacional, devido a que, na base de tais interesses, não podia haver nem uma só classe para a qual fosse vantajoso o aproveitamento, com finalidades separatistas, das ditas falhas da máquina estadual.

 

(16) Georges Blondel, “Les embarras de l'Allemagne”, Paris, 1922.

 

Essa união assumiu em 1871 uma forma monárquica bem manifesta e deliberadamente acentuada, com um aspecto exterior e um espírito tão peculiares que vale a pena deter-nos neles para os examinar com mais atenção.

Bismarck não queria e, em parte, não podia unificar a Alemanha à volta da Prússia da mesma maneira que, por exemplo, a Itália se unificara em torno do Piemonte. Ou seja, Bismarck não queria nem podia acabar completamente com o poder dos monarcas reinantes nos diferentes Estados da Alemanha. A Constituição do Império Alemão fora concebida da tal modo que, mesmo ainda nos finais do Império, os jurisconsultos e os estadistas continuavam a discutir o seguinte tema: como deve ser vista a Alemanha, como um “Estado federal” ou como uma “federação de Estados” (Bundesstaat ou Statenbund)? Havia reis, arquiduques, parlamentos locais, uma cabal autonomia administrativa interna em cada um dos Estados que entrara a fazer parte do Império Alemão, mas já todos os assuntos da política exterior, o exército, a marinha de guerra, as finanças imperiais, a cunhagem da moeda e a emissão de papel-moeda, o correio e os telégrafos, a política aduaneira e a administração pública, tudo isso passara para a jurisdição do governo imperial: do chanceler e dos secretários de Estado nomeados pelo imperador e que só perante ele respondiam. Bismarck não queria suprimir as antigas dinastias locais, evitando assim assestar um golpe nas tradições monárquicas e com isso minar o sentimento monárquico na Alemanha. Além de que, ainda que o desejasse, teria tropeçado numa resistência encarniçada, em especial da parte dos Estados meridionais como, por exemplo, a Baviera, Württemberg, Baden, onde, dum modo geral, a ideia da unificação suscitava menos entusiasmo que nas partes central, média e ocidental da Alemanha, em que eram muito fortes a burguesia industrial e a classe operária. Em contrapartida, como já se disse, a orientação da política exterior permanecia integralmente nas mãos do imperador e todos os assuntos gerais do Império eram dirigidos e resolvidos por ele, desde que os mesmos não requeressem a aplicação de novas leis. Mas o imperador também podia exercer uma grande influência sobre a legislação e fazia-o de forma muito considerável.

Segundo a Constituição Imperial, o poder legislativo era exercido por duas instituições: o Reichstag eleito a cada cinco anos [desde 1893; antes, a cada três anos] por sufrágio universal, directo e igual, em escrutínio secreto, que era composto de 397 deputados; e o Conselho Federal (Bundesrat), formado por altos dignitários nomeados pelos governos locais dos Estados que constituíam o Império germânico. No Conselho Federal, a quantidade de representantes da Prússia (ergo, nomeados pelo rei da Prússia) era tal que, na prática, nenhuma lei podia passar no dito Conselho sem a sua conformidade. E dado que todas as leis deviam contar com a aprovação do Reichstag e do Bundesrat, qualquer lei que não fosse do agrado do rei da Prússia seria rejeitada no Conselho Federal pelos votos dos representantes prussianos, que, como já se disse, eram por ele nomeados. Assim, o rei prussiano podia opor-se à vontade do Reichstag, fazendo fracassar no Conselho Federal os projectos de lei aprovados pelo primeiro. Acontecia ainda que o rei da Prússia, segundo a Constituição, era sempre, ao mesmo tempo, o imperador da Alemanha. Mais, não só o governo do Império, que o chanceler encabeçava, era nomeado e destituído pelo imperador, sendo apenas perante ele responsável, como também na Prússia, o maior dos Estados alemães, era o rei a nomear e a destituir os ministros, sem a nada nem a ninguém, salvo à sua própria vontade e critério, ter de tomar em linha de conta ou mostrar consideração. Vemos, pois, que a Constituição imperial entregava um enorme poder a um só homem que reunia na sua pessoa duas dignidades: a de imperador da Alemanha e a de rei da Prússia. “Firmei em excesso o ginete na montada”, costumava dizer Bismarck já nos finais da sua vida, aludindo ao excessivo poder que fora deixado nas mãos do imperador da Alemanha.

Vistas pelo ângulo jurídico da legalidade estatal, eram estas as circunstâncias do exercício do poder político. Mas há também a ter presentes, em todo o decurso da existência do Império, outras circunstâncias que assemelhavam haver-se confabulado para “firmar mais ainda o ginete na sua montada”.

Vamos procurar delinear, de forma breve, as relações que existiam entre as classes sociais do povo alemão e o poder do seu soberano; e veremos porque é que neste campo, durante os 47 anos de existência do Império, nem uma única vez se deu qualquer movimento decisivo, tão-só que fosse no plano parlamentar, no sentido de limitar os excessivos plenos poderes do imperador.

1) Em contraste com o que aconteceu na Inglaterra, na Alemanha a agricultura não só não fora economicamente dominada pela indústria como, bem pelo contrário, os cultivos e toda a actividade agrícola em geral haviam atingido um extraordinário florescimento no decurso dos últimos decénios do século XIX e dos primeiros anos do XX. O capital era investido não apenas na indústria mas também na agricultura, com consequências que imediatamente se evidenciaram.

A atenção dos proprietários rurais estava sobretudo voltada para a política aduaneira. E quem eram os que vieram a fazer parte da União de Proprietários rurais, que abarcava todo o Império e exercia uma poderosíssima influência sobre o sector da direita do Reichstag? Esta Associação juntava principalmente os grandes proprietários de terras e, em parte, os arrendatários que usufruíam de contratos a longos prazos. Incluía descendentes das antigas casas da nobreza que ainda conservavam terras por herança; diversos membros da grande e média classe comercial e industrial que tinham liquidado por uma ou outra razão os seus negócios urbanos e transferido os seus capitais para as terras recém adquiridas, bem como alguns proprietários camponeses. Para todos eles, a União de Proprietários Rurais constituía algo que se assemelhava a uma espécie de enorme organização gremial chamada a defender os seus interesses em oposição aos dos consumidores de produtos agro-pecuários, que o mesmo é dizer, aos interesses de todas as classes urbanas, e, antes do mais, contra os dos operários e da burguesia comercial e industrial. Os partidos a que os “proprietários rurais” davam o seu suporte e ajuda, apoiando-nos nas eleições, eram os partidos de tendência preferencialmente reaccionária: os conservadores e os conservadores “livres”, bem como o chamado Christlichsoziale Partei (Partido Social Cristão); além disso, em algumas zonas, o “centro” católico gozava com frequência do apoio da Associação. É claro que isto não acontecia por acaso: através dos seus elementos pertencentes à nobreza, a Associação sempre se achara em contacto com as esferas da corte, os dinastas, as pessoas que compunham a camada superior da burocracia, ou seja, com os elementos mais conservadores e reaccionários do país, acostumados a identificar os seus interesses com a arbitrariedade – o menos possível limitada – e com o critério pessoal do monarca. Aproveitando esses laços directos e imediatos, podia-se influenciar vigorosamente a política aduaneira em prol dos interesses da economia rural. Além de que, no Reichstag, os partidos conservadores, nos quais o papel dirigente eram precisamente os grandes proprietários de terras a desempenhá-lo, não cessavam de insistir na necessidade de proteger o mercado interno contra a introdução de produtos agro-pecuários vindo do estrangeiro.

2) Prossigamos na nossa exposição. A grande e média indústria, o grande e médio capital comercial, eram principalmente representados pelos nacionais-liberais, que ainda na oitava década defendiam a plataforma de reformas “liberais”, a ampliação dos poderes do Reichstag, etc. Mas à medida que se ia fazendo notar o aumento da força e de importância da social-democracia, o liberalismo destes nacionais-liberais foi-se turvando e tornando mais e mais opaco, até que, em 1878, após o segundo atentado contra a vida de Guilherme I, acabaram por ceder completamente perante o campo do governo. Nesse ano votaram a favor da lei de excepção, a lei contra os socialistas, cuja aplicação privou os sociais-democratas, até 1890, duma considerável parte dos seus direitos políticos e garantias constitucionais.

Durante os últimos anos do século XIX e nos primeiros do XX, os nacionais-liberais foram os mais fiéis intérpretes das aspirações e tendências do grande capital industrial. Apoiavam de modo decidido a enérgica política colonialista; saudavam todo e qualquer passo governamental dirigido contra a Inglaterra; regra geral, o tom belicoso e ameaçador da Alemanha nos assuntos da política internacional suscitava, da sua parte, a mais completa simpatia e aprovação. Nas questões da política interna eram, antes do mais, a favor de um poder forte, capaz de pôr em marcha e utilizar todas as forças policiais e militares do país na defesa do regime contra os intentos revolucionários da classe operária. E, claro está, não podiam lutar contra o governo com o objectivo de alargar os poderes do Reichstag, posto que qualquer reforço de poder do parlamento – onde, já para os finais do Império, havia 110 sociais-democratas num total de 397 deputados – traria consigo o aumento da influência da social-democracia.

3) O partido do Centro aglutinava-se, tanto na sua organização como pela imagem que dava de si para o exterior, em torno da defesa dos interesses dos católicos no país, notando-se em especial a sua influência no sul e oeste da Alemanha, onde a maioria da população professava esse credo. A sua composição de classe era muito heterogénea. A pequena e média burguesia e o campesinato sobretudo, na Baviera, Württemberg e Baden, a pequena e média burguesia e, em parte, alguns operários e artesãos com uma mentalidade afim à da corrente pequeno-burguesa, em particular na região renana, eram as classes que apoiavam e sustinham o partido do Centro, sempre com uma poderosa presença no Reichstag. O seu programa, em correspondência com a sua composição social extremamente matizada, não era consequente e íntegro nas suas diversas partes, e nunca se podia prever com segurança como se comportaria o Centro numa situação difícil. Por vezes apoiava medidas liberais; outras vezes defendia leis reaccionárias; em algumas oportunidades inclinava-se para a suavização da política aduaneira, e noutras, para o aumento das tarifas. Havia no entanto um ponto em que o Centro se mantinha inabalavelmente firme: defendia com todos os meios ao seu alcance a autonomia interna dos Estados alemães – garantida pela Constituição do Império – contra qualquer tentativa de violação da parte do governo imperial. A este partido interessava que os Estados católicos meridionais da Alemanha ficassem protegidos contra a influência da Prússia protestante, cujo rei era, ao mesmo tempo, imperador alemão. Quanto à sua posição frente aos sociais-democratas, ela era-lhes quase sempre contrária, salvo naquelas ocasiões em que o partido do Centro não se achava em boas relações por uma qualquer razão com o governo ou em que queria afrontá-lo, ou quando procurava cobrar um hipotético preço mais alto pelo seu apoio ulterior. De todo o modo, a ninguém podiam ficar dúvidas de que, nos conflitos sociais algo mais sérios, o Centro sempre alinharia ao lado do governo e contra os sociais-democratas.

4) Resta-nos ainda dizer algumas palavras acerca dos chamados livres-pensadores (o Freisinnige Volkspartei seria, a partir de 1893, a sua facção mais importante). Esta corrente, que reflectia os pontos de vista de sectores da pequena burguesia, da camada intelectual e dos técnicos, dos comerciantes e banqueiros da capital e das grandes cidades, nunca foi muito poderosa no Reichstag, e no entanto na nona e décima décadas do século XIX Eugénio Richter, o seu talentoso dirigente e grande orador, gozava ali de grande crédito, sendo considerado o principal representante da oposição burguesa. Porém a influência desta corrente fora já seriamente ofuscada por inícios do século XX. O problema era que, face às questões sociais, os livres-pensadores se mantinham no ponto de vista do antigo liberalismo (“manchesterismo”), pregavam que era necessário prescindir por completo do Estado nas relações entre o trabalho e o capital e viam nos sociais-democratas inimigos muito piores do que aqueles que estavam à direita dos seus antigos confrades, os nacionais-liberais. Na política colonialista e na questão do aumento dos armamentos do Império não iam tão longe quanto os nacionais-liberais, mas também foram incapazes de se bater de forma consequente pelo reforço dos poderes do Reichstag. O medo de que a social-democracia viesse a aumentar as suas forças subjugava-os e paralisava-os face a qualquer passo mais ou menos decisivo que houvesse a dar.

Tais eram os partidos que no Reichstag se situavam à direita dos sociais-democratas. Nenhum deles desejava uma ulterior redução dos poderes do imperador. No que toca à social-democracia e aos seus anseios, já sobre isso falámos anteriormente. Aqui estamos apenas a ocupar-nos dos partidos burgueses. Como se referiu, o imperador era-lhes também necessário na qualidade de guia na luta pelo reforço da posição internacional da Alemanha e pela conquista de colónias e novos mercados. E se, em toda a existência do Império, houve de facto uma corrente de oposição nos círculos conservadores e, em parte, nos nacionais-liberais, isso ocorreu antes mesmo do estalar da guerra mundial, quando das colunas da imprensa direitista se lançavam impacientes alusões a respeito de Guilherme II, censurando-lhe o excessivo pacifismo, a condescendência e a indecisão. Como mais adiante veremos, esses remoques também desempenharam o seu papel no mês de Julho de 1914, quando já se tiravam sortes sobre a guerra ou a paz.

Eis aqui, pois, as condições em meio às quais coube ao supremo poder alemão actuar desde o início do Império até a que a guerra mundial estalasse:

1) Uma Constituição que conferia ao monarca prerrogativas e poderes decisivos, absolutamente ilimitados no âmbito da política exterior e muito pouco limitados no campo da actividade legislativa central do Império.

2) O florescimento económico e, a ele ligada, uma certa decadência do ânimo revolucionário no único partido que se apoiava nas massas operárias.

3) A ausência de todo o traço duma verdadeira oposição em qualquer dos partidos burgueses.

4) A tendência para a aquisição de colónias, que se ia acentuando em grau crescente e se difundia mais e mais entre as diversas camadas do povo sob o ditame de toda uma série de considerações económicas, e, duma forma mais geral, a tendência expansionista nos campos comercial, industrial e político.

Acrescentemos ainda outros factores que são secundários mas importantes: o enraizado e muito sólido regime burocrático na Prússia e demais Estados alemães; um exército excelentemente organizado (no sentido técnico) e muito bem preparado para a acção; uma nobreza numerosa e ligada em bloco pelo espírito de casta que ocupava todos os postos de mando no exército e na burocracia; uma tradição monárquica extremamente influente tanto no campesinato como nas várias camadas da burguesia, esplendidamente aureolada com as vitórias sobre a Dinamarca em 1864, a Áustria em 1866 e a França em 1870-1871, e coroada com o halo de glória da unificação alemã que acabara de se efectuar.

O “ginete” de que falava Bismarck achava-se, de facto, “muito firme na sua montada. Vejamos agora como é que exibia as suas forças e em que é que as empregava.

 

II) O príncipe Bismarck.

 

Desde 1871 até à sua renúncia em 17 de Março de 1890, o governante que efectivamente regia, tanto nos assuntos exteriores como nos interiores do Império Alemão, era o seu chanceler, o príncipe Bismarck. A partir de 17 de Março de 1890 e até ao naufrágio do Império, a 9 de Novembro de 1918, todas as resoluções definitivas passaram a ser formalmente adoptadas por Guilherme II, que, de quando em quando, também exercia de forma substantiva o poder efectivo.

É difícil imaginar dois homens menos semelhantes entre si do que esses que, em sucessão cronológica, dirigiram o Império Alemão durante os seus quarenta e sete anos de existência.

Acima de tudo, Bismarck compreendia que a Alemanha, não obstante todo o seu poderio, se encontrava rodeada de temíveis perigos externos; que sofrer a derrota numa grande guerra, dadas as suas condições geográficas e económicas, seria para ela sempre mais perigosa do que para qualquer outra potência, e que uma tal derrota podia equivaler à aniquilação do seu estatuto de grande potência. Toda a sua política a partir de 1871 esteve orientada no sentido de conservar o que já fora adquirido, e não para fazer novas aquisições.

Mesmo quando, em 1875, pensava agredir novamente a França, fazia-o em função da enorme escalada do rearmamento francês e porque temia uma inevitável guerra futura. De modo completamente intencional, punha de lado tudo aquilo que pudesse contribuir para aumentar as probabilidades duma guerra da Alemanha contra uma grande potência ou uma coligação de potências. O “pesadelo das coligações”: eis como se definia o estado de espírito de Bismarck no decurso dos seus derradeiros 19 anos de governo. Ele não esquecia a grande coligação austro-franco-russa que o chanceler austríaco Kaunitz criara em 1756, por causa da qual pouco faltou para que a monarquia de Frederico o Grande perecesse, e parecia prever uma coligação ainda maior, a de 1914, que efectivamente fez perecer a monarquia de Guilherme II. Não era debalde que repetia incansavelmente que “toda a questão oriental não valia os ossos de um só granadeiro da Pomerânia”, e que ele, Bismarck, “jamais lia o correio de Istambul”; afastava assim a questão oriental e os mal-entendidos que ela poderia gerar com a Rússia, o único país ao qual, independentemente de qualquer coligação, realmente temia. Fizera uma aliança com a Áustria em 1879 e outra com a Itália em 1882 (criando assim a Tripla Aliança) para se assegurar de apoios em caso duma guerra contra a Rússia ou a França; mas em 1887 celebrou o já mencionado acordo com a Rússia (o “tratado de segurança mútua”), pelo qual ambos os países se comprometiam a não se atacar entre si no caso de qualquer dos dois entrar em guerra com um terceiro. Estimulou por todos os meios a França a uma política de conquistas na África e na Ásia, para, em primeiro lugar, afastar os franceses de toda e qualquer ideia revanchista que os inclinasse a tentar a reconquista da Alsácia e Lorena, e, em segundo lugar, para incentivar as más relações da França com a Inglaterra e a Itália. Por último, só muito parca e contrariadamente se conformara a criar novas colónias alemãs, para não arriscar, por sua vez, perigosas disputas com a grande potência marítima.

Esta política de abstenção e cautela exigia muitos sacrifícios aos círculos do grande capital, irritando-os, mas Bismarck, não obstante, ao ceder perante esses círculos, sempre tratou de lhes fazer as menores concessões possíveis. A sua atenção concentrava-se na Europa, mais precisamente, na França, Rússia e Inglaterra, como prováveis inimigos, e na Áustria e Itália, como aliados necessários. Nos Balcãs começava já aquele mundo afastado que quiçá podia interessar-lhe mas que não o entusiasmava.

No que respeita à política interna, as tendências do príncipe Bismarck revelavam-se tão conservadoras quanto o eram na externa, isto é, tendiam a manter a situação existente. De início, e até 1878, lutou tenazmente contra aquelas forças políticas em que identificava um perigo para o Império por si criado: contra as correntes separatistas nos estados meridionais da Alemanha, de credo católico, bem como contra as que actuavam a oeste da Prússia, na Renânia; e ainda nas províncias polacas da Prússia, contra o clero católico, que via como um secreto instigador da desintegração do Império. Essa luta não foi, na sua essência, como o pretendiam os seus partidários e, por vezes, até o próprio chanceler, uma Kulturkampf, (quer dizer, um combate a favor da cultura laica e contra a ignorância e o fanatismo clerical), mas sim uma luta contra as correntes separatistas. No entanto, por um lado, esse “separatismo” não representava qualquer perigo sério, porquanto na Alemanha não havia nem uma só classe social que desejasse a desagregação do Império, coisa de que Bismarck se foi cada vez mais convencendo com o passar dos anos, e, por outro lado, o chanceler havia empreendido pela primeira vez, em 1878, uma furibunda campanha contra a social-democracia. Sustentar simultaneamente uma luta em duas frentes, contra os católicos e contra os sociais-democratas, não se afigurava possível. Havia que escolher e Bismarck fê-lo sem hesitação.

 

III) A lei contra os socialistas. A legislação social.

 

Apressaram essa escolha os dois atentados contra a vida do imperador Guilherme I que se deram, um logo a seguir ao outro, em 1878. Em nenhum deles teve o partido social-democrata qualquer participação ou a mais pequena culpa. E Bismarck, é claro, sabia-o perfeitamente.

Após o atentado de Hödel, Bismarck não conseguiu fazer aprovar a sua proposta de lei contra os socialistas, que foi rejeitada no Reichstag por uma maioria de 251 votos contra 54. Isto teve lugar a 24 de Maio de 1878 e, a 2 de Junho, dá-se um novo atentado contra a vida de Guilherme I, sendo este ferido com gravidade pelo doutor Nobiling. Ainda que nem Hödel nem Nobiling pertencessem ao partido social-democrata, Bismarck tratou de aproveitar a ocasião. O Reichstag foi dissolvido uma semana depois do segundo atentado e o novo parlamento apressou-se a aprovar uma “lei de emergência” ou de “excepção” contra os socialistas, por uma maioria de 221 votos contra 149. O fito e as consequências directas desta legislação traduziam-se em que, dali em diante, a actividade de agitação e propaganda do partido social-democrata – tanto na imprensa legal como nos comícios – se tornava extremamente difícil ou mesmo impossível. O partido viu-se reduzido a uma situação de semi-ilegalidade. É certo que nos doze anos de vigência desta lei o número de deputados social-democratas no Reichstag não deixou de crescer, mas a vida do comum operário militante do partido era muito difícil: em toda a parte se via forçado a esconder da polícia e dos patrões a sua filiação partidária, sendo sujeito a vexames e perseguições.

Porém Bismarck decidira empreender a luta contra a social-democracia não só através das perseguições policiescas mas também fazendo uso de métodos mais complexos e refinados. No Outono de 1881 deu-se início à “era da legislação operária”, ou seja, à realização, através do Reichstag e a iniciativa do governo imperial, de uma série de leis orientadas, em maior ou menor grau, à defesa dos interesses do trabalho. Em Novembro de 1881 inaugurou-se a primeira das sessões legislativas do Reichstag recentemente eleito, sendo a 17 desse mês ali apresentada solenemente a mensagem imperial que Bismarck redigira e na qual se dizia que “o remédio dos males sociais há-de ser procurado não exclusivamente nas represálias contra os excessos social-democratas mas também por forma equitativa, na promoção do bem-estar dos trabalhadores”.

Para começar, o governo apresentou uma proposta de lei relativa ao seguro contra acidentes de trabalho. A lei já existente, que datava de 7 de Junho de 1871, não tinha grande alcance prático: o operário era obrigado a provar que havia sofrido o acidente exactamente por culpa do empresário ou de um seu representante ou capataz, e só assim podia depois contar com a respectiva indemnização.

A nova lei acabaria por ser aprovada em Julho de 1884. Estabeleceu o seguro obrigatório contra acidentes de trabalho para praticamente todos os operários dos estabelecimentos industriais. Todos os encargos no que respeita ao pagamento das compensações aos operários acidentados eram suportados pelas associações de empresários.

Paralelamente, tendo sido submetida à apreciação do Reichstag em Maio de 1883 e havendo entrado em vigor em Dezembro de 1984, fora já aprovada uma outra lei de segurança social, esta referente ao seguro dos operários para o caso de enfermidade. A lei foi redigida numa perspectiva diferente, porquanto dispunha que os gastos do seguro corriam por conta das caixas formadas com as contribuições não apenas dos empresários (1/3 das contribuições) mas também dos operários (2/3).

Anteriormente à guerra, havia na Alemanha cerca de 24.500.000 de operários e empregados com seguro social.

Bismarck não escondia as razões que o levavam a fazer aprovar essas leis: “A social-democracia é o que é; mas, de qualquer modo, ela representa um sintoma importante, um “mane, thecel, phares” (palavras escritas a letras de fogo num muro do palácio durante o banquete de Baltasar) para as classes poderosas, a recordar-lhes que nem tudo está como devia estar e que algo pode ser feito para melhorá-lo”. Assim falou Bismarck no Reichstag a 26 de Novembro de 1884, acrescentando ainda, para ser mais claro: “a não ter havido nenhuma social-democracia, e se os homens no seu conjunto não a temessem, nem sequer os moderados êxitos (die mässigen Fortschritte) por nós alcançados existiriam ainda; e porque assim é, o medo à social-democracia experimentado pelos que carecem de compaixão para com os seus concidadãos pobres revela-se um elemento particularmente útil”.

Bismarck teve de levar em conta a oposição de uma parte dos conservadores e dos livres-pensadores, que ofereceram uma resistência muito tenaz à aprovação destas leis. Os sociais-democratas viam como uma hipocrisia essa legislação que era prosseguida em plena época de sistemática perseguição ao único partido operário do país e, consequentemente, haviam assumido uma posição negativa a seu respeito.

A terceira lei – a do seguro social para os casos de invalidez e de velhice – só foi aprovada depois duma muito longa discussão na imprensa quotidiana e especializada e após a greve dos mineiros de Maio de 1889, por escassa maioria (185 votos contra 165); nessa ocasião, os sociais-democratas, os livres-pensadores e o partido do centro, à excepção de treze dos seus membros, votaram contra, tendo-a os conservadores e os nacionais-liberais votado favoravelmente.

Tanto esta última lei como as duas anteriores enfermavam de muitas falhas. Os sociais-democratas sublinhavam que a reforma por velhice só era concedida aos 70 anos de idade, quando a maioria dos operários já havia falecido; que as percentagens correspondente às contribuições operárias eram demasiado elevadas; que os empresários contribuíam com uma parte (relativa) extremamente exígua, tendo em conta os lucros que obtinham, etc.

De todo modo, estas leis da segurança social constituíam uma grande novidade para a Europa dessa época; e mais tarde os historiadores sociais-democratas, se bem que continuassem a destacar a hipocrisia e as segundas intenções do criador das ditas – Bismarck –, não se negavam a reconhecer que, no essencial, as três leis tinham representado, indiscutivelmente, um grande passo avante em comparação com a legislação então existente nos demais países capitalistas. No entanto, ao mesmo tempo que impunha aos empresários alguns sacrifícios materiais, Bismarck nunca deixou de colaborar activamente com eles, ajudando-os a aumentar os seus lucros com uma série de medidas legais que converteram a Alemanha num país de sistema aduaneiro proteccionista.

 

IV) A crise da legislação aduaneira.

 

Até 1877 reinou na Alemanha, em larga medida, o princípio da liberdade de comércio. A terrível crise comercial, industrial e financeira de 1873 no entanto provocara uma tremenda impressão nos industriais, na burguesia comercial e no governo. Denunciaram-se então como causas da crise não só a precipitada criação de empresas hipertrofiadas, não apenas as dimensões gigantescas e o carácter descontrolado, literalmente “anárquico”, que a produção assumia, mas ainda a inexistência “de um mercado nacional garantido pela indústria nacional”. Quando, em Junho de 1876, Rudolf Delbrück, braço direito de Bismarck na administração das finanças do Império e em tudo o que concernia à sua vida económica, deixou o ministério, tornou-se evidente que o chanceler ia lançar-se pela senda do proteccionismo (Delbrück defendia uma relativa liberdade do comércio exterior que já vinha sendo praticada desde a sétima década desse século).

Bismarck visava com isso objectivos de natureza puramente financeira. Mediante as taxas aduaneiras, pretendia incrementar consideravelmente as receitas do Império. Em 1879 o Reichstag aprovou a nova pauta tarifária, que elevava bruscamente as taxas alfandegárias sobre os produtos importados, fechando quase por completo o mercado alemão à concorrência estrangeira nos ramos mais importantes da produção industrial.

Porém os “agrários” (os proprietários rurais) exigiam, também eles, uma produção aduaneira mais eficaz, o que levou à aprovação, nos anos 1985-1987, de fortes aumentos (que chegariam por vezes até ao quíntuplo) das tarifas sobre os principais produtos agrícolas importados. É certo que isto provocou, de imediato, os protestos tanto da classe industrial como da operária, dado que os novos aumentos encareciam os produtos de primeira necessidade; contudo, nesta época, a indústria alemã ia de êxito em êxito e, por fim, as pessoas acabaram por se resignar, até certo ponto, a fazer esses sacrifícios.

 

Bismarck, até ao termo do seu longo mandato, ateve-se invariavelmente ao princípio da conservação, no interior do Império, de um equilíbrio económico tal que: por um lado, viesse a atrair, em apoio do governo, todos os círculos de proprietários, mesmo que os interesses desses sectores fossem entre si contraditórios; e, por outro, permitisse minguar as possibilidades de um influxo revolucionário da social-democracia nas massas operárias. Mas tanto uma coisa como a outra nunca foram completamente alcançadas, nem muito menos atingidas em idêntico grau. Conseguiu por vezes lograr, ainda que parcialmente, o primeiro objectivo. Contudo, mesmo assim teve de lutar, de forma muito tenaz, contra as tendências separatistas na Alsácia-Lorena, onde uma parte dos industriais e dos pequenos agricultores tendiam para a França; e também em Poznan e, dum modo geral, nas províncias orientais, onde o elemento polaco se revelava muito vivo e duradouro. Porém todas as tentativas depurificação” destes dois extremos do Império nunca chegaram a ser coroadas de êxito. Tanto a Alsácia-Lorena como a Polónia interessavam sobretudo a Bismarck como postos avançados numa guerra futura, como pomos da discórdia no campo da política exterior, e não do ponto de vista político interno.

Por regra geral, era a política exterior, não a interior, a que lhe atraía o olhar inquieto. O renascimento do chauvinismo em França, bem como do seu espírito belicoso no lapso de 1886 a 1888, com motivo na brilhante e impetuosa carreira do general Boulanger; os primeiros sintomas da aproximação franco-russa; a hostilidade, silenciosa mas inequívoca, do imperador Alexandre III; os preocupantes incidentes fronteiriços no Oeste – tudo isso perturbava e inquietava o velho príncipe em grau muito maior do que aquilo que ele pretendia fazer crer, e os que lhe eram mais chegados não se deixavam enganar por essa sua aparente tranquilidade.

Tal era a situação quando em Março de 1888 faleceu, aos 91 anos de idade, o imperador Guilherme I e, três meses mais tarde, o mesmo aconteceu a seu filho Frederico III, que lhe sucedera; após o falecimento de Frederico III (o qual, ao tomar a coroa, já se encontrava ferido de morte por um cancro na garganta), subiu ao trono do Império Alemão, a 15 de Junho de 1888, o seu filho e herdeiro Guilherme II, então com vinte e nove anos de idade.

Vamos de seguida ver muito sucintamente quem era este homem.

 

4. O INÍCIO DO REINADO DE GUILHERME II. A DEMISSÃO DE BISMARCK. LUTA DE GUILHERME II CONTRA A SOCIAL-DEMOCRACIA. OS TRATADOS COMERCIAIS. O CÓDIGO CIVIL. TRAÇOS GERAIS DOS PRIMEIROS QUINZE DO REINADO.

 

I) Primórdios do seu reinado. Breve retrato de Guilherme II.

 

Após tudo o que mais acima foi dito, limitar-nos-emos agora a uma breve exposição sobre o estado de coisas encontrado por Guilherme II ao ocupar o trono imperial: um país industrial que rapidamente se ia enriquecendo e que, ao mesmo tempo, possuía uma florescente economia agro-pecuária; um poderosíssimo exército terrestre, quiçá o mais poderoso do mundo, e um aparelho burocrático solidamente estabelecido e organizado, actuando de forma perfeitamente eficaz; uma numerosa classe operária que ainda não renunciara à doutrina revolucionária, mas que se mostrava submissa, desde há mais de dez anos, à lei de excepção ou de emergência de 1878; na política exterior, a aliança da Alemanha com a Áustria e a Itália, a atitude benévola para com essa aliança por parte do gabinete conservador inglês (em virtude da inimizade da Inglaterra com a França e a Rússia), os primeiros passos já dados no sentido da criação de um império colonial, uma manifesta repulsa por parte de todos os partidos burgueses em travar uma luta pela ampliação dos direitos do Reichstag e a impossibilidade para os sociais-democratas de levar a cabo com êxito essa luta sem poderem contar a seu lado com quaisquer aliados, as grandes prerrogativas do poder pessoal do imperador no âmbito da política exterior e a sua enorme influência no campo da política interna, a plena e manifesta disposição duma parte considerável dos círculos capitalistas em apoiar e sustentar uma activa política colonial expansionista, sempre que a quisesse desenvolver o novo mandatário. Eis quais eram as condições gerais que encontrava o novo imperador Guilherme II nos umbrais do seu reinado. Esplendor, força, crescente riqueza, um presente brilhante para o monarca, tal como um futuro luminoso, eis as cores com que aparece pintada essa época nas reminiscências dos coetâneos.

Como, então, pôde ter lugar o que na realidade aconteceu? O que foi que se meteu de permeio entre essa jornada de Junho de 1888 em que o jovem imperador, o mais poderoso monarca da Europa, se mostrou pela primeira vez às varandas do palácio berlinense, no meio das delirantes aclamações do povo, e aquela chuvosa manhã outonal de 10 de Novembro de 1918, quando, junto à estação fronteiriça holandesa de Eijsden, se deteve um automóvel coberto de salpicos de lama e dele saiu um homem encanecido, pálido como um morto, que, indo ao encontro de um surpreendido funcionário aduaneiro, lhe entregou a sua espada imperial, solicitando asilo? Porque é que, após um início tão brilhante, tudo havia findado com uma derrota esmagadora e inusitada, numa completa aniquilação, irreparável opróbrio e precipitada fuga? A explicação principal não se acoitava nem no carácter nem na mentalidade de Guilherme, porquanto não são os indivíduos que, por si só, fazem a história. Porém, se é preciso ter em conta que os ulteriores resultados históricos finais não estavam dependentes nem das suas qualidades individuais nem das de qualquer outra personalidade, também não nos é possível compreender cabalmente os acontecimentos quer no seu aspecto exterior, quer no seu encadeamento, se pusermos de lado ou desconhecermos o homem que, durante trinta anos consecutivos, ininterruptamente falou e agiu em nome do Império Alemão.

Muitas tentativas já se fizeram de caracterizar Guilherme II. Sobre ele escreveram: os inimigos pessoais, Bismarck, por exemplo, no tomo III dos seus “Gedanken und Erinnerungen” (“Pensamentos e Recordações”); observadores vulgares e ingénuos como o marechal da corte Zedlitz-Trützschler; admiradores manifestos, e quiçá autoconvencidos da sua própria imparcialidade, como o conhecido historiador Karl Lamprecht na sua obra “Der Kaiser”, publicada em 1913; chauvinistas que o consideravam um indeciso na sua política externa, como, por exemplo, Paul Liman no seu livro igualmente intitulado “Der Kaiser”; os sociais-democratas, que o designavam por “o imbecil coroado” (der gekrönte Narr); Leão Tolstoi, se bem que em poucas linhas, chamando-lhe “o mais ridículo, senão o mais repelente representante de toda a cáfila dos imperadores”; autores talentosos e hipercríticos como Emil Ludwig, etc. Na breve resenha geral, que se segue, seria completamente descabido tentar uma caracterização algo exaustiva. Assinalaremos tão-só aqueles dos seus traços sem os quais muitas das suas acções nos seriam incompreensíveis, entre elas, desde logo, as que acarretaram as mais pesadas consequências.

O seu traço fundamental era o instinto da autoconservação, que nele vencia tudo o resto. Irreprimível, sempre em estado de alerta, impunha-se a todas as suas outras inclinações, sendo este instinto, e somente ele, afinal de contas, o que lhe determinava a conduta. Manifestava-se tanto na sua vida pessoal como na social. Desde logo, Guilherme II estava perfeitamente ciente de que era desacertado e torpe não se arriscar sequer a uma viagem em submarino ou mesmo a um curtíssimo trajecto aéreo; mas, ainda que não deixasse de saudar com discursos bélicos os voos dos zepelins ou o lançamento ao mar dos submarinos, era incapaz de se forçar a qualquer risco, ao extremo de, em toda uma tão prolongada guerra, nem uma única vez se ter aproximado, de longe que fosse, de um qualquer lugar minimamente perigoso; não era capaz de se aproximar da linha de fogo mesmo que por uns pouquíssimos minutos, mesmo que uma única vez, quando o rei da Inglaterra e o septuagenário Clemenceau o souberam fazer, crendo que lhes era necessário passar por um perigo pessoal directo e manifesto. É claro que Guilherme sabia que isso era impróprio e compreendia que a sua atitude o desacreditava. Sabia-o, mas era de uma firmeza inamovível no que concernia a proteger a sua pessoa face à mais leve sombra de perigo. Que ele infalivelmente fugiria mal se lhe apresentasse a menor hipótese de perigo, era coisa que todos sabiam de ciência certa, tanto os amigos como os inimigos, e a sua fuga na noite de 9 para 10 de Novembro de 1918 a ninguém causou estranheza.

Ainda com anterioridade à guerra, Guilherme sempre cedia mal se deparava com uma resistência firme ou uma reacção decidida. Assim procedeu ao atraiçoar os boers – que ele próprio incitara a responder pelas armas aos ingleses –, mal se deu conta de que os ingleses estavam irritados e que, de qualquer modo, acabariam por vencer os boers. Da mesma maneira agiu em 1908, quando a sua entrevista a um correspondente do Daily Telegraph foi publicada por esse jornal e provocou uma vaga de indignação na Alemanha: retratou-se, formulando perante o Reichstag a humilhante promessa de que dali em diante se comportaria com mais cautela (17).

 

(17) Este traço da sua personalidade foi realçado em palavras desapiedadas pelo marechal de campo Waldersee – um monárquico e conservador que havia sido cumulado de favores pelo próprio imperador –, o qual afirmou, quando Guilherme ainda gozava da plenitude do seu poder e prestígio: “No imperador nada há de autêntico. O imperador é um cobarde da cabeça aos pés” (Nichts am Kaiser ist echt. Der Kaiser ist ein Feigling durch und durch).

 

Um segundo rasgo característico (mas, de todo modo, menos essencial que o primeiro) residia no hábito de se enaltecer a si mesmo, numa desequilibrada tendência para se ver e, em especial, apresentar como sendo mais poderoso do que na realidade era, e mais sábio, mais perspicaz do que todos aqueles que com ele se relacionavam. Muito vinculada com este aspecto do seu carácter estava a sua religiosidade, que consistia em que tudo quanto ele dissesse e fizesse o atribuía à vontade e inspiração divina, àquele Deus ante o qual ele respondia “pelo seu povo”. É até provável que não o simulasse inteiramente, e que haja procurado auto-sugestionar-se com essa tão assaz cómoda teoria. O seu “deus” jamais o estorvava no que quer que fosse: tudo o que Guilherme quisesse, sempre “deus” também o queria. Esta forma de superstição, de todas a mais nefasta e repulsiva, proporcionava a Guilherme pleno confort espiritual e a convicção de que, no final, tudo haveria de correr às mil maravilhas. “Eu levo-vos ao encontro de dias magníficos” (den herrlichen Tagen führe ich euch entgegen), costumava ele exclamar nos seus inumeráveis e intermináveis discursos, acrescentando sisudos aforismos e considerações da sua própria lavra em torno do tema de que o Divino Senhor, se não os houvesse destinado a algo de magno, “não se ocuparia tanto” dos prussianos. A sua jactância, a sua vaidade e a mendacidade que estreitamente as acompanhava foram logo notadas por sua mãe e, mais tarde, eram evidentes para todos os que com ele entravam em relações. Todas as suas provocadoras arengas, com as quais agitou e irritou a Europa ao longo do seu reinado, todas as suas declarações de que havia que conservar a pólvora seca, todo esse brandir e soar das armas era por ele agitado exactamente nos momentos em que nenhum perigo ameaçava a Alemanha. O seu discurso mais descabelado, em que exigia dos seus soldados que se comportassem como os hunos ao mando de Átila, pronunciou-o à partida de um destacamento expedicionário, em 1900, a caminho da China, numa missão isenta de riscos, quando os alemães actuavam em conjunto com os demais destacamentos europeus (I) contra as débeis e mal armadas tropas dos boxers. Porém, nos casos em que havia a probabilidade de deparar com resistência, Guilherme, mal-grado a sua verbosidade, sempre guardava o silêncio. A sua jactância, as fanfarronadas, acabavam ali onde começava esse medo cerval pela salvaguarda da sua própria pessoa, um medo sem fim que o acompanhava para toda a parte.

 

(I) E também norte-americanos e japoneses.

 

A sua permanente ânsia de ocupar o primeiro lugar, tanto oportuna como inoportunamente, fizera dizer aos que o observavam que “o imperador Guilherme desejaria ser em cada casamento a noiva, em cada baptismo o recém-nascido, em cada enterro o defunto”. O garbo exterior, os desfiles de grande gala, o esplendor dos uniformes, os brindes grandiloquentes, o alvoroto jornalístico, os festivais nas corridas de iates, os aniversários militares, as visitas a cortes estrangeiras, a inauguração de novos institutos, o benzer de novas fortalezas e velhas bandeiras, o lançamento à agua de couraçados, a recepção de delegações, os telegramas de envio de felicitações, os votos de pêsames, os conselhos de amigo, eis o que lhe preenchia a existência, o que constituía as principais formas da sua actividade. Hoje é sobejamente conhecido que se ocupava muito pouco com os assuntos de Estado, e que quando o tentava fazer o fazia pessimamente: confundia sempre tudo e era de grande estorvo quer nas manobras das tropas, quer, em geral, em todos os assuntos militares. De mente estreita e débil, não obstante as suas rápidas reacções, de capacidades muito medíocres, possuindo uma instrução muito superficial e ligeira, não podia, como é óbvio, dar provimento aos inumeráveis assuntos e interesses com os quais se pretendia prender e preocupar. E substituía todas as qualidades de que carecia pela postura do dilettante, com aquela enorme autoconfiança que empregava ao falar tanto de pintura como de ciências orientais, da Bíblia, arquitectura, música, de história (dos “heróis” eleitos por Deus para que guiassem a Humanidade) e, em geral, do que quer que fosse.

Era absolutamente incapaz de levar a cabo um autêntico trabalho mental, um qualquer esforço sério mais ou menos prolongado do pensamento. Aparentava cheio de vaidade ter muitos afãs, mas não era nada diligente; bem pelo contrário: a sua constante e manifesta indolência preocupava seriamente os que lhe estavam mais próximos, tal como os inquietava a sua verbosidade e a falta de contenção para ouvir até ao fim um relatório, sem interromper quem o estava a informar, e, por fim, a sua absoluta incapacidade para realizar qualquer labor assíduo, consequente. Uma afanosa vaidade, uma fácil excitação, uma energia puramente exterior nos discursos, uma inaudita segurança de si mesmo numa pessoa de vontade débil, desequilibrada e claramente falha de inteligência e sentido comum, tal é o retrato de Guilherme II. E era este o homem que, pela vontade do destino e por direito de herança, se convertera no governante da Alemanha e de todo o Império Alemão.

 

II) A demissão de Bismarck. O começo da “era Guilhermina”.

 

Guilherme não pôde suportar Bismarck por muito tempo, tendo a sua colaboração durado apenas um ano e nove meses. E foi precisamente no decorrer desse período que Bismarck, numa conversa mantida com Schurtz, ao deter-se sobre o carácter do novo imperador, expressou a ideia de que a Constituição norte-americana era boa porque, se a pessoa que ocupava o lugar de chefe do Estado – no caso dos EUA, o presidente – fosse incompetente para o seu alto cargo, sempre se podia destitui-la ao fim de quatro anos, enquanto que nas monarquias isso não era possível. Para que um velho monárquico como Bismarck se tivesse convertido num tão curto prazo em “republicano” era preciso muito esforço.

Bismarck afastou-se do imperador, primeiramente, por este pretender visitar em demasia a corte russa, não vendo nisso o chanceler qualquer benefício, além de que lhe infundiam temor a excessiva loquacidade e a falta de tacto de Guilherme; e, pouco depois, quando ele teve a ideia de convocar, para Berlim, uma conferência de potências com o objectivo de regularizar a questão social. Bismarck asseverava que dessa conferência absolutamente nada havia de resultar, e assim foi. Mas esta querela acabou por ser tão-só um pretexto, tal como o foram outras disputas (por exemplo, a que eclodiu por Bismarck não querer que nenhum dos ministros informasse o imperador sem o seu conhecimento prévio e sem a sua autorização). O problema principal estribava na pretensão de Guilherme de ser ele a administrar, de forma independente, todos os assuntos de Estado, coisa que era completamente impossível estando Bismarck presente na qualidade de chanceler do Império.

Guilherme, desde logo, nunca se atreveria a agir contra Bismarck caso as circunstâncias do momento o não houvessem favorecido. Devido à sua posição moderada, que já assinalámos, em matéria de conquista de novas colónias, o chanceler tinha perdido uma parte da sua popularidade entre os círculos dos grandes capitalistas; no campo social-democrata e na classe operária era odiado por causa das suas leis contra os socialistas; o partido do Centro, muito poderoso no Reichstag, guardava-lhe rancor pelas perseguições de outrora contra o clero católico. Em suma, contra Bismarck actuavam então forças tão fortes que Guilherme pôde, por fim, ganhar ânimo e levar a desavença até à ruptura. A 17 de Março de 1890 Bismarck resolveu demitir-se. Os últimos oito anos da sua vida passou-os o velho chanceler nos seus domínios, sem nunca deixar de seguir de perto a vida política e criticando frequentemente, sem piedade alguma, Guilherme pelos seus actos.

Com a demissão de Bismarck, inicia-se na história da Alemanha a “era Guilhermina” – die wilhelminische Ära –, como é chamada pelos historiadores e publicistas alemães.

É de sublinhar que no âmbito da política interior os traços particulares de Guilherme enunciados mais acima não ocasionaram, nem podiam ocasionar, consequências tão perniciosas como no campo da política internacional. Desde logo, no âmbito político interno, ele não provocou qualquer querela de vulto ao longo de todo o seu reinado: dizia muitas vezes que não era responsável perante ninguém, salvo Deus, que só ele mandava na Alemanha e que a ninguém admitia ao seu lado, repetia a expressão latina “sic volo, sic jubeo, sic pro ratione voluntas” (assim quero, assim ordeno, assim a minha vontade se sobrepõe à razão), etc; mas apenas por palavras se arrogava o autocrata, pois, na realidade, jamais ousou violar a Constituição durante os trinta anos do seu reinado. Decidir-se a agir, por exemplo, como o fizera Luís Bonaparte em França a 2 de Dezembro de 1851, ou seja, a dar um golpe de Estado para impor a autocracia, foi algo que Guilherme jamais se atreveu sequer seriamente a pensar. Além das palavras do Kaiser, muito de quando em quando, também se deixaram ouvir, vindas das bancadas da direita no Reichstag, algumas afirmações isoladas no sentido de que um só destacamento de granadeiros poderia facilmente dar conta de toda a oposição; o que não se deve estranhar, pois não era até o próprio governo, já no século XX, a afirmar perante o Reichstag que “a Robespierre segue-se sempre a espada de Bonaparte “ (palavras pronunciadas em 1906, aludindo aos sociais-democratas)?

No entanto esses discursos de Guilherme, com a sua ostensiva mostra de apego para com a autocracia, não podiam deixar de irritar uma parte da classe burguesa. Tal como produzia irritação o indecoroso e grosseiro culto à memória de Guilherme I, que Guilherme II transformara de repente, dum modo absolutamente despropositado, em “Guilherme o Grande”; culto cujo principal e mais que manifesto objectivo era o de, pela mesma via, promover as tendências monárquicas e dinásticas. Era esse homem medíocre, modesto, a seu modo honrado que fora o seu avô que Guilherme II apontava como o verdadeiro fundador do Império, enquanto Bismarck passava a ser tão-só o mero executor da augusta vontade de “Guilherme o Grande”.

Durante o reinado de Guilherme II converteu-se em doutrina oficial a tese exposta em Novembro de 1910, no Reichstag, pelo então chanceler do Império, Bethmann-Hollweg, ao responder a uma interpelação do social-democrata Ledebour a propósito dum dos discursos do Kaiser: “ O rei da Prússia não responde de forma nenhuma perante o povo, porque não foi o povo mas sim os Hohenzollern quem pelas suas obras e talento criou a Prússia”.

Diga-se, de passagem, que estas palavras provocaram um enorme regozijo ao então embaixador russo em Berlim, o conde Osten-Sacken (18).

 

(18) ARQUIVO DE POLÍTICA EXTERIOR DA RÚSSIA, Berlim, 16 (29) de Novembro de 1910. De Osten-Sacken para Sazonov: “O profundo sentimento monárquico de que está imbuído o discurso do chanceler, como Vossa Excelência poderá constatar lendo o texto apenso, confere-lhe um matiz particularmente simpático”.

 

Esses discursos provocatórios procuravam manifestamente louvar e magnificar o mais puro absolutismo. O que suscitava irritação nos sectores liberais da burguesia. E assim, a partir do início da última década do século XIX, começou-se a levantar a voz, nos jornais, denunciando o triunfo dos princípios reaccionários na Alemanha. Porém, depois de tudo o que até aqui já foi dito, não é preciso entrar em detalhes para tornar a referir que a massa principal da burguesia “afinava”, naquela época, pelo tom monárquico, tom esse que em nada se opunha aos seus mais importantes interesses económico-sociais. Por esta razão, a ligeira ironia com que eram recebidos os discursos de Guilherme não ganhou maior vulto durante os primeiros anos do reinado. E se em alguma parte esses discursos conseguiram deixar uma marca negativa algo mais profunda, foi entre a massa operária.

 

III) A luta de Guilherme contra a social-democracia.

 

É claro que Guilherme afrontou de início a questão social com a mesma impetuosidade, desembaraço e ligeireza de espírito com que abordava todas as demais questões à face da Terra. Tinha insistido em convocar, como já se mencionou, uma intempestiva e desnecessária conferência de representantes das potências para apreciar a situação dos operários, conferência que acabou em nada. Quanto à lei contra os socialistas, deixaram-na prescrever em 1890, já após a demissão de Bismarck, voltando a social-democracia, como partido, a ter a possibilidade de manifestar-se não só no Reichstag mas também na imprensa e nas reuniões públicas.

E é então que Guilherme II decide assumir contra a social-democracia uma posição agressiva, ferina. Era coisa sabida por todos, assunto do qual comummente se escrevia e falava (e de que Guilherme também estava perfeitamente a par, não crendo, por isso, que fosse possível uma revolução) que os sociais-democratas estavam muito longe, naquele momento, de perspectivar qualquer saída revolucionária, e que toda a conjuntura económica favorecia o sindicalismo vulgar, o economismo e o reformismo, com estes a adquirir uma influência crescente e a desalojar o espírito revolucionário de outrora. Mas, precisamente por isso, o imperador, dando largas à sua natureza, passara a falar dos sociais-democratas em termos desabridamente grosseiros e provocatórios. Durante os últimos dez anos do século XIX e os primeiros do XX, Guilherme sempre descobria oportunidade e pretexto para se lançar em públicas invectivas contra a social-democracia. Tachava os seus partidários de serem “sujeitos sem pátria”, ameaçando-os e insultando-os soezmente. Estas injúrias, a que não se podia responder na mesma moeda, dada a existência da lei sobre o crime de “lesa-majestade”, produziam na classe operária, como é fácil de entender, uma impressão radicalmente contrária àquela com que contava, ou tinha a pretensão de contar, o incansável orador. Numa certa ocasião, corria o ano de 1903, em plena sessão do Reichstag, Bebel disse, em meio à hilaridade geral: “eu avalio cada discurso do imperador em, aproximadamente, uns cem mil votos a mais a nosso favor”. E se bem que isto fosse um exagero, não se podia dizer da conduta de Guilherme que passasse sem deixar marcas: por causa dessas diatribes provocatórias, iam-se arreigando no espírito das massas operárias a irredutível desconfiança e a hostilidade para com a pessoa do imperador e, duma forma mais geral, a monarquia. E é exactamente isto que explica o curioso facto de que a assunção duma postura decididamente negativa face ao princípio monárquico era o único ponto em que os trabalhadores imbuídos do espírito revisionista estavam de completo acordo com aqueles dos seus camaradas que se achavam mais à esquerda.

Foi debalde que alguns dos dirigentes revisionistas tentaram, também nisto, abrir uma brecha na doutrina revolucionária: muito poucos os seguiram neste intento, de modo que esses dirigentes decidiram que o mais prudente era deixar o assunto de lado. E quando chegaram os dias aziagos de Novembro de 1918, mais uma vez, o único ponto em que Scheidemann e Ebert se puseram de acordo com Carlos Liebknecht e Rosa Luxemburgo foi na categórica exigência de que Guilherme abdicasse do trono. E a rapidez e facilidade com que os mesmos Scheidemann e Ebert aceitaram a plataforma republicana explica-se igualmente pelo facto deles terem perfeita consciência de que toda a massa da classe operária em bloco, sem excepção de qualquer corrente, lhes voltaria bruscamente as costas caso procedessem doutro maneira.

Porém, para Guilherme, o pior não era que os trabalhadores sentissem por ele tão-só aversão, mas sim que nem sequer o respeitavam nem temiam em absoluto, e isto apesar de todo o alvoroto dos seus discursos tremebundos. Ao rápido ou até acelerado ritmo a que crescia e se ampliava a indústria alemã, a classe operária transformava-se na Alemanha numa força enorme. Em 1878 conseguira-se, contudo, fazer passar as leis de exclusão contra a social-democracia; então ainda se podia acreditar que era possível através da lei fazer algo contra ela, dominá-la pelo meio das ameaças, ou seja, amedrontá-la. Todavia, pelos finais da nona década ia-se tornando mais e mais difícil aplicar na prática tais métodos e, em 1890, teve-se que deixar caducar essas leis discriminatórias. A partir de então de modo nenhum, porquanto era coisa completamente impossível, se pôde voltar a restabelecê-las. A razão para tal não estribava em que nas eleições de 1893 tivessem sido eleitos como deputados ao Reichstag 44 social-democratas (num total de 397 membros dessa câmara), mas sim meramente no facto de que a existência da imensa e sempre crescente mole da classe operária tornava absolutamente impossível, inconcebível, que a reacção pudesse triunfar por completo.

Em Dezembro de 1894 deu entrada no Reichstag um projecto-lei do governo que visava estabelecer medidas punitivas mais rigorosas contra aquilo a que chamavam as tendências para o derrube do regime social existente. O projecto em questão fora redigido de tal maneira que, no essencial, quase todas as manifestações e actividades sociais-democratas passariam a estar abrangidas por essas penas mais severas. Em Maio de 1895 esse projecto-lei foi rejeitado na câmara de representantes. Todavia o mais curioso deste episódio não estava na rejeição do diploma, mas sim no facto de que ninguém, nem na imprensa nem no próprio Reichstag, chegara a considerar seriamente, por um breve instante que fosse, que tal projecto pudesse vir a ser aprovado. Apenas Guilherme, que intentara o conato, e quiçá o obediente executor das suas vontades, o então chanceler príncipe Hohenlohe, acreditavam que o dito projecto (die Umsturzvorlage) se podia converter em lei.

Assistiu-se a uma segunda tentativa do mesmo género, igualmente dirigida única e exclusivamente contra os sociais-democratas, no ano de 1900, quando já um outro chanceler, Bülow, apresentou perante o Reichstag o projecto-lei que punia com trabalhos forçados todo aquele que atentasse, por ameaças ou pela força, contra a “liberdade de trabalho”. Ou seja, à luta contra os fura-greves pretendiam opor a ameaça dos trabalhos forçados. Mas também este projecto-lei foi rejeitado.

Estas duas tentativas frustradas mostravam que os métodos de luta contra a classe operária através de novas leis de excepção se haviam tornado impossíveis. E, por isso, já não se verificou nenhum terceiro intento de as pôr em prática.

No entanto, tal como já foi dito, também outras causas profundas de ordem económica estavam a actuar, promovendo no interior de sectores muito importantes da classe operária as tendências reformistas e revisionistas. E, neste sentido, Guilherme teve sorte: o seu reinado coincidiu com a acção dessas forças económicas gerais. Os seus insultos provocatórios dirigidos contra os sociais-democratas, por si só, não eram o bastante para despertar o espírito revolucionário, apesar de que suscitavam a repulsa dos operários. Foi “afortunado” também no que respeita a outras classes sociais e pela mesma razão: o vertiginoso desenvolvimento económico do país amaciava todas as arestas agudas e tornava mais fácil, mais aceitável (se bem que, por certo, apenas temporariamente) a solução dos conflitos de classe mais graves.

 

IV) Os tratados comerciais.

 

Um dos principais conflitos que se registaram nos começos do reinado de Guilherme, travado não entre operários e empresários, mas pelos diferentes sectores de proprietários capitalistas, foi, nos anos de 1892-1894, o choque dos agrários com os industriais no campo da revisão das leis aduaneiras. Essa luta, posteriormente, reacendeu-se por diversas vezes, mas sem nunca voltar a alcançar a intensidade verificada nos referidos anos.

O cargo de chanceler era então ocupado pelo general Caprivi, que o assumira em 1890, após o afastamento de Bismarck, e o reteve até 1894, quando foi substituído pelo príncipe Hohenlohe. Este ancião oportunista e cortesão, convocado por Guilherme exactamente a fim de que servisse como executante obediente e incondicional da vontade imperial, estava muito longe de possuir uma visão aquilina; contudo também ele sabia, a ciência certa, que o triunfo final iria inexoravelmente pertencer não à agricultura mas à fábrica, isto é, não corresponderia aos agrários mas sim aos representantes do capital industrial. “A Alemanha já não é um país agrário, tornou-se industrial”, anunciara ele em pleno Reichstag, em 1892.

Como em toda a parte durante esse período histórico, também na luta que se entabulava na Alemanha o capital industrial mostrou ser invencível. Tratava-se então de convencionar novos pactos comerciais com uma série de países: Áustria, Bélgica, Itália, Suíça, Espanha, Roménia, Sérvia e Rússia. Não celebrar qualquer tratado e, em consequência, permanecer numa constante guerra aduaneira com os demais países era para a Alemanha coisa impossível: já à época não podia viver sem a venda ao estrangeiro dos seus produtos manufacturados. Mas, por outro lado, estabelecer acordos vantajosos para a indústria alemã com países agrários como a Rússia só se tornava possível renunciando aos elevados, quase proibitivos, impostos aduaneiros que pesavam, em particular a partir de 1897, sobre a importação de produtos agrícolas.

Os agrários vociferavam que os queriam a levar à ruína, aduzindo que se estava em vésperas do completo desaparecimento da agricultura no país, que era o que certamente se produziria caso se admitisse no mercado interno o barato cereal russo. Ao mesmo tempo, os industriais exigiam a brusca rebaixa das taxas de importação sobre os cereais vindos da Rússia, para em contrapartida se assegurarem do mercado consumidor russo, de enorme importância para a colocação dos produtos fabricados na Alemanha. Nessa emergência, também a classe operária se pôs totalmente contra os agrários. A imprensa social-democrata destacava os preços escandalosamente altos dos produtos de primeira necessidade; nos comícios denunciava-se o sistemático esbulho de toda a nação pelos proprietários rurais, exigindo, como necessidade urgente, que se pusesse fim ou pelo menos freio a esse estado de coisas. A demonstração dos desempregados pelas ruas de Berlim, em 1892, também produziu uma grande impressão, e isso devia-se precisamente ao facto de que os altos preços dos bens essenciais tornavam terrível, a ponto de lhe conferir contornos de tragédia, qualquer diminuição ou interrupção no trabalho ou no recebimento dos soldos por parte dos empregados.

Os economistas e publicistas que reflectiam os pontos de vista e as exigências do capital industrial também sublinhavam a absoluta necessidade de introduzir os cereais e, em geral, os produtos da economia rural provenientes do estrangeiro, com o objectivo de conseguir o embaratecimento da força de trabalho e, consequentemente, de toda a produção.

Contra tamanha coligação dos operários e empresários industriais é claro que nenhuma força podia aguentar-se por muito longo tempo. No entanto, mesmo assim, a luta revelou-se temerária e implacavelmente feroz.

Para defender os interesses da exportação agropecuária do seu país, Witte, ministro russo da Fazenda a partir de 1892, tinha desencadeado uma guerra aduaneira contra a Alemanha. Os agrários alemães reagiram de forma extremamente enérgica, desdobrando-se em esforços. Foi então que criaram, nos finais de 1892, a já mencionada União de Proprietários Rurais, que desencadeou uma inaudita campanha de propaganda a favor da manutenção dos impostos proteccionistas sobre os cereais e demais produtos agrícolas. Após uma encarniçada luta ao longo de três anos (1892-1894), o capital industrial alemão venceu em toda a linha. Os tratados comerciais (em particular o mais importante deles, o assinado com a Rússia, que foi ratificado pelo Reichstag em 1894), tinham rebaixado os impostos sobre as importações, a tal ponto que a agricultura russa pôde passar a considerar a Alemanha como o seu mais acessível mercado de vendas; este tratado foi também uma das condições que assentaram as bases para a consolidação da divisa russa. Mas, em troca disso, a indústria germana obteve um amplo acesso ao mercado russo e, como o confessam os próprios economistas alemães, a Rússia tornou-se para a Alemanha e a sua indústria incomparavelmente mais lucrativa do que todas as colónias alemãs tomadas no seu conjunto.

Enquanto estavam em preparação, esses acordos depararam com uma encarniçada e prolongada resistência da parte dos elementos conservadores, nos quais, como já foi dito, se apoiava, exercendo sobre eles uma poderosa pressão, a União de Proprietários Rurais. A disputa chegou a um ponto tal que Guilherme II teve de sair a terreiro em defesa dos tratados, em particular no caso do tratado com a Rússia, apelando ao sentimento patriótico e monárquico dos conservadores e aludindo a um provável agravamento que ameaçaria as relações com a Rússia caso o dito tratado não fosse aprovado. É certo que, no fim, os conservadores cederam. Mas estavam tão-só à espera duma oportunidade para se ressarcir, coisa que, como veremos, foi por eles lograda dez anos depois de ter sido assinado, em 1894, o tratado comercial com a Rússia.

Não sobreveio a tal ruína da economia rural alemã que a União de Proprietários Rural tantas vezes havia prognosticado; o mercado alemão mostrou ter uma tão grande capacidade, ser tão vasto e activo, possuir um tal poder aquisitivo que não podia ocorrer naquele sentido catástrofe alguma. Por esta razão, a encolerizada profecia do Kreuzzeitung, órgão de imprensa dos agrários, feita nos finais de 1894, a anunciar que “ de hoje em diante, o agricultor alemão olha o imperador como o seu inimigo pessoal”, não veio a cumprir-se. A ameaça revelava-se mesmo disparatada: os “agricultores” (isto é, dito com mais rigor, os proprietários rurais) viam no poder monárquico, de espírito reaccionário, um baluarte e uma defesa para as suas terras e os seus privilégios contra uma provável agressão tanto da parte dos sociais-democratas como dos sectores mais ou menos radicais da pequena burguesia urbana. Não lhes era possível nem sequer conceber qualquer tipo de dissidência séria e prolongada com o imperador.

Por outro lado, a burguesia comercial e industrial ficou muito satisfeita com os tratados que foram celebrados com as potências estrangeiras entre os anos de 1892 e 1894, e mostrava o seu agrado pelo papel que o imperador desempenhara durante a luta parlamentar travada contra os agrários pela aprovação dos mesmos. Acresce que, em 1896, um outro acontecimento veio ajudar a consolidar a posição, já de per si firme, da monarquia: chegava a seu termo uma obra na qual tinham trabalhado por mais de vinte anos os melhores jurisconsultos alemães, sendo entregue ao Reichstag o novo Código de Direito Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch).

 

V) O código civil.

 

Este código instaurava a perfeita unidade legislativa do Direito Civil no império e apresentava um sistema orgânico, ponderado e coerente de normas que dava um sólido fundamento jurídico à estrutura das relações económico-sociais dominantes. Eram completamente eliminados alguns restos fragmentários, que ainda persistiam numa que noutra comarca alemã, de anacrónicas leis e formas sociais do tipo semi-feudal, criando-se um novo e vasto terreno, livre de qualquer impedimento, para o ulterior desenvolvimento do capitalismo. Os interesses de classe da burguesia encontraram, pois, plena expressão e satisfação com o novo código. Mas tampouco a social-democracia assumiria face a ele, duma forma geral, uma posição hostil: na sua imprensa afirmava-se que, dentro do regime existente, não obstante todos os seus defeitos, de todo o seu reverso de classe burguês, o novo código atentava menos contra os interesses da classe operária do que, por exemplo, as antiquadas, minuciosas e heterogéneas disposições legais ainda vigentes em diversas partes da Alemanha nesse ano de 1896. O que os sociais-democratas já reclamavam era a introdução, no novo código, do direito para os operários de formar as suas associações em todas as regiões do império e de unificá-las em federações nacionais, derrogando simultaneamente todas as restrições que as leis opunham a tal direito. O príncipe Hohenlohe, chanceler imperial a partir de 1894, após o afastamento de Caprivi, recusou-se a incluir esta matéria no Direito Civil, mas prometeu que faria editar uma nova lei especial no respeitante às associações operárias, o que eventualmente daria satisfação às exigências dos sociais-democratas. E, com efeito, tal lei foi aprovada em 1897 pelo Landtag prussiano, tendo logo passado a vigorar em toda a Prússia; em Dezembro de 1899 essa mesma lei era aprovada no Reichstag, entrando depois em vigência para o conjunto do império alemão.

Esta lei dava um sólido suporte jurídico à totalidade do movimento associativo da classe operária. Dali em diante “a magistratura classista”, de que tão justificadamente se queixava a social-democracia tanto na imprensa como no seio do próprio Reichstag, podia, sem dúvida, condenar à reclusão ou ao pagamento de multas um operário por tal ou tal acção no decorrer duma greve (actos pessoais contra os patrões ou os fura-greves), ou por diversas outras violações das leis; os juízes podiam, neste tipo de processos, dar preferência aos testemunhos da polícia e dos patrões, ainda quando o fizessem com manifesta injustiça, e preterir os depoimentos dos operários; por vezes, como, por exemplo, durante as grandes greves de 1905 ou de 1912 no Ruhr, podiam assanhar-se de forma especial contra os operários acusados pela polícia ou pelos patrões de “actos violentos”; mas o que já não podiam, em momento algum e em nenhuma parte da Alemanha, mesmo nos seus rincões mais reaccionários, era encerrar as organizações sindicais ou limitar e impedir as suas actividades.

A corrente bernsteiniana via esta lei de 1899 como um dos exemplos das condições que, segundo eles, tornavam possível, sobre as próprias bases do capitalismo, lutar por via legal pelos interesses gerais da classe operária. A ala esquerda replicava-lhes assinalando que as concessões deste tipo, mesmo todas juntas, eram demasiado mesquinhas para poder justificar o abandono do marxismo revolucionário.

 

VI) Breve súmula de traços gerais dos primeiros quinze anos do reinado.

 

Assim pisou a Alemanha os umbrais do século XX. Vimos que o primeiro decénio de governação sem travas de Guilherme II (após a demissão de Bismarck), no âmbito da política interna, terminou de forma manifestamente feliz para o poder imperial, e isto apesar das atitudes falhas de tacto, irreflectidas e absurdas de Guilherme. Dum modo geral, era como se ele próprio estivesse empenhado em deitar a perder as suas acções, com, não obstante, as circunstâncias favoráveis a revelarem-se mais fortes do que ele: o colossal desenvolvimento da indústria alemã, com todos os fenómenos que o acompanhavam, continuava a ser o magnífico e grandioso fundo geral sobre o qual se sucediam os acontecimentos políticos.

No entanto a Alemanha não era nenhuma ilha solitária habitada por um Robinson Crusoe: estava situada em meio às forças em luta do capitalismo mundial. A sua expansão económica era opressora e molesta para outros: ao enriquecer-se, arruinava-os; ao meditar em voz alta sobre um futuro império colonial, inquietava-os. E também esses “outros” estavam pletóricos, em não menor medida do que a Alemanha, de planos e ânimos de conquista. Eram rivais que a olhavam e ouviam com uma atenção muito maior do que ela própria então se dava conta.

Há, por isso, que recordar os actos e as palavras daqueles que, à época, estavam investidos do poder e tinham a possibilidade de exercê-lo.

 

5. A POLÍTICA EXTERIOR DO IMPÉRIO ALEMÃO NO DECURSO DO PERÍODO DESCRITO. A POLÍTICA DA ÉPOCA POSTERIOR A BISMARCK. AS COLÓNIAS. O TELEGRAMA A KRÜGER. INÍCIO DO AGRAVAMENTO DAS RELAÇÕES COM INGLATERRA. A OCUPAÇÃO DE TSINGTAO. OS ASSUNTOS CHINESES. OS PLANOS DE EXPANSÃO ECONÓMICA NA ÁSIA MENOR. A CONCESSÃO PARA A CONSTRUÇÃO DO CAMINHO-DE-FERRO DE BAGDAD. 

 

I) A política exterior do império alemão no decurso do período descrito.

 

A política exterior do Império Alemão, ao longo de toda a sua existência, pode-se dividir em quatro períodos: o primeiro vai da fundação do império até à demissão de Bismarck (1871-1890); o segundo estende-se da demissão do “chanceler de ferro” ao nascimento da Entente (1890-1904); o terceiro prolonga-se da formação da Entente até o início da guerra (1904-1914); o quarto compreende o período da guerra, terminando com a destruição e o fim do império (1914-1918).

Como já se disse, o primeiro período pode ser classificado, no seu essencial e prevalentemente, como conservador. No decurso dos últimos vinte anos de actividade à frente do Estado, o velho chanceler procurara, antes do mais, conservar tudo o que havia logrado adquirir no lapso dos oito primeiros anos da sua carreira. Sabia, melhor do que qualquer outro, quão difícil tudo fora de alcançar e quão fortuito o êxito por vezes se assemelhara; jamais esquecia que, segundo a sua própria confissão, não teria regressado vivo do campo de batalha de Sadowa se os prussianos tivessem sido derrotados. Em tal emergência, o suicídio, ainda que consistisse em oferecer o seu peito às balas austríacas, afigurava-se-lhe ser a única saída. Retinha também na memória a enorme inquietude com que perscrutara as intenções de Petersburgo durante os meses do Inverno de 1870-1871. O “pesadelo das coligações” obcecava-o, e para prova disso basta ler o seu testamento político, Gedanken und Erinnerungen. Mas, quanto à era de Bismarck, já a referimos, e agora é altura de falar do período que se seguiu à demissão do velho chanceler.

 

II) A política da época posterior a Bismarck.

 

“Aquele que narra a estolidez da política alemã a partir da época do afastamento de Bismarck e, até certo ponto, da época da demissão do conde Caprivi, está lamentavelmente a escrever a história da política alemã”: eis como se expressa o barão von Eckardstein (19), eminente diplomata alemão encanecido no serviço.

 

(19) Hermann von Eckardstein, “Die Isolierung Deutschlands”, Leipzig, 1921, pág. 172.

 

Anotemos, em primeiro lugar, que os quatro chanceleres que se sucederam no lapso entre a demissão de Bismarck e o começo da guerra mundial, ou seja, Caprivi (1890-1894), o príncipe Hohenlohe (1894-1900), Bülow (1900-1909) e Bethmann-Hollweg (1909-1917), nada mais foram, no fundamental, do que executores e instrumentos da vontade do imperador ou, para ser mais exacto, dos indivíduos que se achavam por detrás dele, pessoas do estilo do barão Fritz von Holstein, Eulenburg e outros. E era precisamente no campo da política exterior que essa vontade imperial não tinha, no Reichstag, o mais mínimo dos contrapesos. Para a câmara dos deputados, o único pretexto formal para poder falar de política exterior surgia aquando da discussão do orçamento do ministério das Relações Exteriores, matéria esta, a financeira, em que o parlamento nem sequer podia votar uma resolução não vinculativa a aprovar ou vituperar aquela política.

Guilherme carecia por completo de aptidão diplomática, coisa que, tanto na própria Alemanha como no resto da Europa, era de todos conhecida; contudo o imperador, mesmo já no exílio, não se dava conta disso, continuando, a partir do seu retiro holandês, a lançar as culpas dos erros passados sobre qualquer um menos ele próprio. As suas tentativas de enganar aqueles que com ele negociavam, de tão ingénuas, transparentes e toscas que eram, surpreendiam os interlocutores. Imaginava sempre o adversário (ou o “amigo”, da mesma forma), como muito mais néscio do que na realidade era. Ao lerem-se, por exemplo, as cartas e telegramas que dirigiu a Nicolau II, pode-se ficar surpreendido com a ingenuidade de que Guilherme dá provas quando tenta acertar o seu tom pelas características que ele julga mais marcantes no imperador russo: superstição, medo da revolução, aversão pela forma republicana de governo em França, fé na origem divina do poder dos czares, etc; assim, por exemplo, afirma que pode falar de coração aberto com Nicolau porque os dois receberam a sua investidura do próprio Deus, mas que isso não se pode fazer com um presidente como Loubet, que não passa de um homem comum, etc., etc., como se com tais considerações acreditasse ser realmente possível destruir ou enfraquecer a aliança franco-russa.

O segundo traço característico de Guilherme, como diplomata, era o caprichado exagero que punha nos detalhes de aparência e noutras bagatelas que são de uso corrente na diplomacia e que, uma vez por outra, apenas podem sublinhar a importância de um acordo já celebrado ou de algum outro acto para as partes envolvidas, mas que, porém, jamais são capazes de criar, por si só, uma viragem de orientação diplomática. Guilherme, por exemplo, indignava-se sinceramente quando, depois duma série de visitas suas de cortesia, sem-cerimónias imperiais, ao embaixador francês, depois de dois ou três brindes muito amáveis, duma inesperada visita a um navio escola francês, etc., não via produzir-se, em resultado disso, nenhuma mudança a favor da Alemanha na política francesa. Também exagerava sempre o valor das relações pessoais, e pelos mesmos motivos. A recepção mais que cordial, manifestamente desproporcionada, que fora feita a Theodore Roosevelt (já retirado), ao este visitar Berlim, teria servido, no entender de Guilherme, para consolidar as relações entre a Alemanha e os Estados Unidos, porém, ao invés, já em plena guerra mundial, Roosevelt revelou ser um dos mais influentes e decididos agitadores a favor, primeiro, dos Estados Unidos declararem a guerra à Alemanha, e depois, de que ela fosse completamente destruída.

Mas, neste âmbito, o mais fatal dos traços de Guilherme era a sua impaciência, a sua súbita irascibilidade, que tão depressa se convertia em perplexidade, confusão e repentina transigência; o facto de não ser capaz de se dominar para dissimular, mesmo que fosse parcialmente, os seus estados de ânimo.

A tudo isto acrescentava uma grande ignorância e a falta do senso da realidade. Basta-nos recordar que, no mês de Agosto de 1914, Guilherme exigia dos cônsules alemães que estes atiçassem a “guerra santa” contra os ingleses entre os muçulmanos de todo o mundo, e que acreditava muito seriamente em tal possibilidade. Por outro lado, não mostrava qualquer interesse pelos factos que lhe eram ingratos, traço que é anotado por todos os que com ele estabeleceram contacto.

Ao longo de toda esta época o papel dos chanceleres foi o de meros informantes. Mas aqui temos a registar de passagem que, no lapso de 1890-1906, por detrás do imperador se encontrava alguém cujo enorme papel foi desvelado há relativamente pouco tempo. Tratava-se do barão Fritz von Holstein, que, cuidando de manter a sua influência oculta nas sombras, desempenhava o cargo de director-geral do ministério das Relações Exteriores. Este homem, extremamente laborioso e eficiente, era quem compunha em substância os relatórios que depois os chanceleres apresentavam ao imperador, e, havendo estudado a fundo a natureza de Guilherme, soprava-lhe habilmente aos ouvidos as resoluções a tomar, valendo-se para isso do conteúdo dos relatórios por si próprio elaborados. Em 1925 foi posto a claro, de forma documentada, que Holstein havia efectuado vastas especulações na Bolsa e mantido constante contacto com ela.

Os pontos de vista de Holstein reflectiam os interesses dos círculos mais agressivos, mais militaristas, mais imbuídos do espírito de conquista próprio ao grande capital. Este diplomata constituía o recurso mais importante, se bem que oculto, de que se valia o capitalismo para promover a sua política externa imperialista. No entanto este episódio não passa de um detalhe. Como fenómeno de fundo que era, a tendência imperialista agressiva na política externa alemã tornava-se inevitável.

Como poder-se-á definir concisamente a política exterior agressiva do imperialismo contemporâneo? A política exterior agressiva do imperialismo é conduzida pelo capital financeiro que se serve do uniforme militar e se arma para bater numa aberta prova de forças os rivais que lhe estorvam o passo, não tão-só pela competição económica como também, se isso se mostrar conveniente, pela força das armas. E porque algumas das exigências do capital financeiro, desde logo, a conquista de novas colónias, não podiam ver-se satisfeitas num futuro previsível apenas com medidas económicas, a política exterior alemã tinha de assumir inevitavelmente uma face agressiva.

Holstein tendia constantemente para a agressão. Os chanceleres, por vezes, mas nem sempre, atenuavam essa tendência; o imperador preferia prestar ouvidos a Holstein, tenaz defensor do projecto imperialista agressivo; e a imprensa de maior influência, que dependia da grande indústria pesada, ainda mais o empurrava por tal caminho.

Durante este primeiro período post bismarckiano (1890-1904), a política imperialista alemã estava a tentear o terreno, como que se de reconhecimentos prévios se tratasse, em três direcções: 1) em África, 2) na China e 3) no Próximo Oriente, nos países do Império Otomano.

 

III) A política colonial em África. O telegrama a Kruger. Início do agravamento das relações com Inglaterra.

 

1. Em África a Alemanha deparava-se com extraordinárias dificuldades. Em primeiro lugar, em 1890, poucos meses antes da demissão de Bismarck, fora decidido entregar à Inglaterra o protectorado de Vitu e renunciar às pretensões sobre o Uganda, Quénia, Zanzibar e Pemba. Em troca de tais concessões, a Alemanha recebeu da Inglaterra a pequena ilha de Heligoland, situada junto às costas alemãs do Mar do Norte e extremamente importante do ponto de vista estratégico. É certo que esta ilha, nas mãos dos ingleses, podia converter-se numa tremenda ameaça para a Alemanha em caso de guerra anglo-germana, mas naquele ano de 1890 ainda ninguém pensava em tal guerra, e a muitos dos partidários da política colonial alemã activa assemelhou-se-lhes afrontoso ter de ceder essas vastas terras africanas em troca (I) duma simples ilha insignificante (do ponto de vista territorial).

 

(I) O tratado anglo-germano de 1890, de facto, não concedia apenas à Alemanha a ilha de Heligoland, demarcando-lhe também as áreas de influência em África. Todavia, reconhecimento de áreas de influência não é o mesmo que cessão de territórios. Portanto, em rigor, o único território recebido pela Alemanha foi aquele que Tarlé assinala: Heligoland. No que respeita à particular questão da Faixa de Caprivi, a sua demarcação apenas foi, grosso modo, estipulada, e, além disso, apenas como área de influência. As fronteiras só posteriormente foram fixadas por acordos entre a Alemanha, Inglaterra e Portugal (questão que, na nossa história, se liga com a do mapa cor-de-rosa e do ultimato inglês).

 

De todo modo, o fatal dilema que caracterizava a situação vivida pela Alemanha havia-se posto aqui duma forma manifesta: tinha que cuidar constante, incessantemente, da própria segurança na Europa, sacrificando, a favor dela, uma parte muito valiosa das possessões coloniais e, sobretudo, comprometendo o futuro colonial. Bastava deitar um de relance de olhos ao mapa para ver que, após essa transacção de 1890, a África Oriental alemã, isto é, o território que ainda ficava em poder da Alemanha, já não se podia estender nem mais além dos lagos Niassa, Tanganica e Vitória nem para lá do Kilimanjaro, portanto, nem para norte nem na direcção do Congo Belga, para oeste. A única e por certo muito duvidosa possibilidade de expansão estava no sul, no Moçambique português. Para isso era necessário, primeiro, que Portugal se decidisse a vender a sua colónia à Alemanha e, segundo, que os ingleses consentissem a Portugal vender e aos alemães comprar. Mas a esse respeito não era possível, naquele momento, nem sequer iniciar as negociações. Assim se afigurava o exórdio, não muito promissor, da acção governativa com a chancela de Guilherme II no campo da política colonial em África.

No interim, as relações com Inglaterra eram ainda bastante amistosas; a Inglaterra continuava a ver não na Alemanha mas na França e na Rússia os seus principais inimigos. Se em lugar de ter sido celebrado aquele tratado, a Inglaterra houvesse então tomado uma posição hostil, o futuro da Alemanha ter-se-ia tornado bem mais incerto e obscuro.

No entanto, e apesar de tudo isto, a diplomacia alemã não abandonou os seus projectos para África, e a partir de 1893 e, principalmente, de 1894, começou-se a desenrolar um jogo extremamente arriscado, desta feita não no este mas na outra ponta do continente africano, no sudoeste: as autoridades alemãs da colónia sul-ocidental (Südwest-Afrika) iniciaram contactos secretos, se bem que os ingleses rapidamente os hajam descoberto, com o presidente da república do Transvaal, Kruger. Esses eram precisamente os anos em que os boers, tendo-se apercebido de que o punhal inglês os ameaçava pelas costas, procuravam ajuda no exterior. Porém o caso é que os alemães não estavam em condições de prestá-la. Tratava-se tão-só do perigoso manejo, próprio a Guilherme, que consistia em animar por palavras e gestos a outrem, incitando a partir de longe a uma luta na qual ele não tinha a menor intenção nem vontade de intervir. Vemo-lo assim a dirigir palavras de ânimo ao presidente Kruger, instigando-o à resistência, e a proceder do mesmo modo quando escreveu à rainha de Madagáscar, Ranavalo, em 1894, justamente no momento em que os franceses se preparavam para a conquista final dessa ilha. Mas é claro que, depois, nem num caso nem no outro Guilherme lhes prestou qualquer ajuda. Já havíamos referido que Guilherme tinha felicitado Kruger, nos começos de Janeiro de 1896, pela vitória obtida sobre Jameson; também já se referiu como, a partir de então, a oculta má vontade da Inglaterra para com a Alemanha, que era devida à intensificação da concorrência comercial, se tinha transformado em inimizade política, se bem que, todavia, ainda não muito manifesta; e como toda a guerra anglo-boer havia decorrido e terminado sem qualquer intervenção por parte da Alemanha. Temos agora, contudo, a acrescentar que a supressão das repúblicas boers constituiu um gravíssimo golpe para as aspirações colonialistas da Alemanha: também por esse lado a ulterior expansão colonial alemã viera embater contra uma sólida muralha, em parte frontal, em parte lateral, formada por um compacto grupo de possessões britânicas. Era preciso desistir, ainda que se o fizesse apenas temporariamente, da empresa africana.

 

IV) A ocupação de Tsingtao. Os assuntos chineses.

 

2. Ainda antes que eclodisse a guerra anglo-boer, mas quando já se tornara claro que os ingleses iriam apoderar-se muito em breve, duma maneira ou doutra, das duas repúblicas boers e que não permitiriam absolutamente a ninguém imiscuir-se no assunto, a diplomacia alemã começou a seguir com crescente atenção e interesse as questões do Extremo Oriente.

Caso as circunstâncias viessem a mostrar-se favoráveis à Alemanha, a China poderia ressarci-la, desde logo, das suas expectativas frustradas em África. Há a lembrar que a China desempenhava nessa época (e continua a desempenhar actualmente [1927]) um papel sumamente original: o imperialismo europeu não podia esperar apoderar-se do seu território, nomeadamente, através duma partilha. Essa partilha era impedida, em primeiro lugar, pela competição comercial entre todas as grandes potências interessadas na China; depois, pela situação geográfica extremamente vantajosa, relativamente às demais, de duas dessas potências, o Japão e a Rússia, que quiçá pudessem pensar alguma vez partilhar e delimitar amigavelmente entre elas o território chinês (e isto desejava-o mais o Japão que o império dos czares), mas que, de qualquer modo, não queriam permitir a intromissão, em situação de igualdade de direitos, de nenhuma outra potência; finalmente, um estorvo enorme a todos esses projectos, sem excepção, constituíam-no os Estados Unidos, que desejavam conservar a possibilidade de comerciar em todo o território da China e que se opunham, por isso, à concessão de qualquer direito especial, nesse país, a favor das potências europeias e à sua partilha em “esferas de influência”. Existiam ainda mais obstáculos a impedir que se lidasse com a China da mesma forma que, em seu tempo, se procedera com a Índia ou a África, no entanto podemos limitar-nos aos que acabámos de enunciar.

Havia pois que idealizar outras formas de exploração económica; ou, para ser mais exacto, teve-se de seguir a táctica já posta em prática pelos ingleses na quinta década do século XIX: tomar pequeníssimos pontos territoriais junto ao mar, praticamente nulos no que respeitava à sua área, ocupá-los solidamente com unidades militares e a partir destes pontos bem fortificados, sem que para tal se tivesse de avançar as tropas, efectuar expedições comerciais ao interior. Tratava-se duma expansão económica apoiada na concentração de forças armadas numa dada zona, num ponto determinado.

Um sucesso inesperado viria entretanto obrigar os políticos imperialistas europeus a prestar uma mais viva atenção ao que se passava na China: em 1894 estalara uma guerra entre o Japão e a China, sendo esta última (que à época subestimava os interesses europeus pelo mercado chinês) a parte agressora. A China sofreu uma cruel derrota e o Japão ocupou a península de Liaodong. Absolutamente incapaz de resistir aos japoneses, a China foi obrigada a conformar-se às condições impostas, tendo o tratado de paz, assinado na localidade de Shimonoseki, dado plena satisfação às pretensões japonesas. Porém o governo russo apelou à França e Alemanha para que se obrigasse o Japão a renunciar a parte do que conquistara com o seu triunfo na guerra. O que efectivamente veio a acontecer, tendo-se Guilherme então assegurado, com a promessa que lhe fez Nicolau II, de que não haveria oposição caso a Alemanha viesse a ocupar um ponto qualquer da costa chinesa para ali instalar “ uma estação carbonífera”. Em 1897 a Rússia ocupou Port Arthur, e simultaneamente, aproveitando o pretexto de na China haverem sido assassinados dois missionários católicos alemães, Guilherme resolveu, por sua vez, em represália e pretendendo querer cobrar uma indemnização, ocupar o porto de Tsingtao (que, com frequência, é incorrectamente denominado Kiao-Chau), na província de Shantung. Era à época chanceler alemão o velho príncipe Hohenlohe, e von Bülow, que em 1900 o viria a substituir nesse cargo, o então Secretário de Estado das Relações Exteriores. Bülow não escondia que, em seu entender, essa ocupação de território chinês era o primeiro passo para consolidar a posição da Alemanha nas costas do Pacífico.

Exactamente ao contrário dos ingleses, que engoliam impérios inteiros sem sequer dizer uma palavra, jamais disso se jactando, como se porventura fosse algo ocorrido de passagem e sem intenção expressa, os diplomatas alemães da era de Guilherme exaltavam, eles mesmos, qualquer êxito havido, por mais pequeno e insignificante que fosse, alardeando ao mundo inteiro os seus mais vastos projectos e intenções e criando com isso, à sua volta, um clima de desconfiança, inveja e temores. Considerando-se a si próprio (a avaliar pelo seu livro sobre a política alemã, publicado antes da guerra) como diplomata prudente e sagaz, Bülow revelava-se, de forma acabada, um típico representante da era guilhermina. E precisamente por ser assim, não era somente como cortesão astuto e obediente, mas também com autoconvicção que Bülow tratava de enfatizar da forma mais solene possível o episódio chinês. Fosse qual fosse a ideia que a este respeito ocorresse a Guilherme, não havia nunca, por parte de Bülow, qualquer oposição.

Já depois de Tsingtao ter sido ocupada por um destacamento alemão em 1897, o irmão de Guilherme, Henrique, príncipe da Prússia, foi designado como comandante do segundo esquadrão naval que se enviava à China. Como era seu hábito em todas as ocasiões em que não havia a mais pequena sombra de perigo real, Guilherme II apresentou a expedição como uma empresa de grandiosa importância, e no discurso da Coroa ao Reichstag, aquando da abertura outonal da sessão legislativa, declarou solenemente que “não hesitava” sequer em arriscar a vida do seu próprio irmão pelo prestígio da pátria. E por sua vez, também Henrique, antes de zarpar, prometeu a Guilherme levar à China “o evangelho de Sua Majestade”. Mas não houve, como não podia haver, a mínima resistência chinesa. Tsingtao ficou em poder da Alemanha, e foi este o começo da política guilhermina na China.

Em 1900 estalou neste país a sublevação dos boxers, e o representante alemão, barão Ketteler, foi assassinado. No Verão desse mesmo ano, mercê dos esforços de Guilherme, ao conde Waldersee é entregue o mando das tropas coligadas das potências europeias, com, na Alemanha, e apesar dos tumultos terem cessado ainda antes que o nomeado fizesse aparição no teatro de operações chinês, a imprensa afecta ao regime a levantar a propósito de tal facto um grande alvoroto. Guilherme II era muito propenso a exagerar desmesuradamente esse sucesso secundário e absolutamente fortuito do “mando e encabeçamento alemão dos exércitos europeus”. Como de costume, Guilherme fez muito ruído em torno da expedição, e também desta vez, com evidente prejuízo para a Alemanha: “Não se dá quartel!” – exclamou ele a 27 de Julho de 1900 no discurso de despedida que dirigiu às tropas em Bremerhaven – “Não se fazem prisioneiros! Conduzi as vossas armas por tal forma que em mil anos nenhum chinês se atreva a olhar sequer de soslaio para um alemão!” (20).

 

(20)Pardon wird nicht gegeben. Gefangene werden nicht gemacht. Führt eure Waffen so, dass auf tausend Jahre hinaus kein Chinese mehr es wagt einen Deutschen scheel anzusehen.” Guilherme, nessa mesma oportunidade, exortou as suas tropas a comportarem-se “como os hunos”, e referiu-se com simpatia a Átila.

 

Guilherme pronunciou nada menos do que cinco arengas, todas no mesmo tom e estilo, por ocasião das despedidas a Waldersee. Porém, ironicamente, quando este por fim chegou à China, fazia já algum tempo que tudo havia terminado, tendo a sublevação sido completamente subjugada.

A insurreição fora reprimida, para além dos Estados Unidos, por todas as grandes potências da Europa e o Japão. Estas últimas, estorvando-se umas às outras, não permitiam que quaisquer delas avançassem para a partilha da China, enquanto que Hay, o Secretário de Estado norte-americano, declarava que o seu país era a favor do princípio de portas abertas (isto é, da liberdade do comércio) na China para todas as nações, que gozariam desse direito em condições de absoluta paridade. Houve pois que desistir, por esta vez, de conquistas territoriais.

No entanto um importantíssimo êxito aguardava, de facto, o governo alemão no Extremo Oriente, e foi a Bernhard von Bülow, no cargo de chanceler desde 1900, que tocou em sorte ver realizado o velho sonho de Bismarck: a Rússia a desinteressar-se, por muitos anos, dos assuntos europeus.

Já depois da guerra sino-japonesa, o Extremo Oriente começou a absorver toda a atenção da diplomacia czarista. A ocupação de Porto Artur e as intrigas e maquinações na China colocaram a Rússia cara a cara com o Japão. E a partir do ano de 1902, já após o fracasso das diligências do marquês Ito (o qual tinha viajado até Petersburgo na mira de celebrar um acordo com a Rússia e, não tendo logrado os seus propósitos, dali se dirigira directamente para Londres a fim de concluir uma aliança com a Inglaterra), a guerra entre os dois países – Rússia e Japão – passou à ordem do dia. As manobras de Bezobrazov, a destituição de Witte, que havia tentado deter esta caminhada em direcção ao abismo, a errónea ideia de Pleve duma “pequena guerra” e duma vitória fácil, que também podia ser usada contra a latente revolução, tudo isto empurrava cada vez mais a Rússia, rápida e inexoravelmente, para uma guerra. O que Bismarck apenas havia sonhado estava agora a realizar-se dum modo bem visível e na escala mais ampla.

À semelhança de Bismarck, que pelos finais de 1876, a cada ocasião que lhe parecia adequada, acicatava a Rússia à guerra contra a Turquia (e que, identicamente, se referia à “dignidade nacional russa, etc), também Guilherme procurava, no lapso de 1902-1904, por todas as formas ao seu alcance, apressar o choque bélico entre a Rússia e o Japão. Porém, na realidade, Guilherme estava a forçar uma porta aberta, porquanto a ideia de criar uma “Rússia amarela”, de conquistar a Manchúria e a Coreia, já se havia enraizado firmemente nas esferas palacianas de Petersburgo, onde os apaniguados de Nicolau II, os aventureiros aristocráticos dirigidos por Bezobrazov, não tiveram de fazer grandes esforços para vencer a resistência que lhes opunha Witte. Todavia não estamos aqui a tratar de escrever a história da Rússia, e, por isso, não vamos falar do conjunto de condições que tornaram possível esta empresa verdadeiramente louca e suicida da aristocracia russa, e inevitável a derrota dos exércitos russos. O que nos importa aqui assinalar é quais foram as repercussões desses acontecimentos sobre a Alemanha e, em geral, sobre a luta diplomática das grandes potências.

Guilherme, como de costume, perdeu o sentido das medidas e comportou-se dum modo tão pueril e precipitado, que, caso não se houvesse já decidido em Petersburgo seguir em frente sem olhar a obstáculos, mesmo ao risco de entrar em guerra com o Japão, provavelmente alguma dúvida haveria surgido e levado a que se actuasse com maior cautela.

O busílis da questão não assentava apenas no significado da peculiar consigna que aparecia por baixo da figura de um dragão: “Povos da Europa: defendei os vossos direitos sagrados!” Guilherme, o autor da frase, estava a obedecer na circunstância à sua costumeira paixão pelas frases e poses altissonantes. Mas o que essencialmente se pretendia era que fosse precisamente a Rússia a entrar em guerra contra o “dragão”, dado que com isso se libertaria o próprio “flanco oriental” da Alemanha, assegurando-se, por muito tempo, uma maior liberdade de movimentos na Europa.

Assim, Guilherme procurou empurrar Nicolau II, por todas as maneiras possíveis, para o Extremo Oriente; aprovava plenamente os seus planos e ideias de conquista, justificava com ardor todas as pretensões do governo russo na China e na Coreia, assegurava de modo mendaz que era possível imobilizar a Grã-Bretanha por meio dumas quantas demonstrações militares nas proximidades da fronteira com a Índia e, enfim, reiterava, muito convicto, as suas promessas de que a Rússia podia estar absolutamente certa da amistosa neutralidade da Alemanha enquanto durasse a guerra. Guilherme, em relação a este assunto, nem sequer considerava que houvesse necessidade de simular e de afirmar hipocritamente que também ele queria que a paz fosse conservada no Extremo Oriente.

Mas, como isso não bastasse: passado o primeiro ano de guerra, quando já era manifesto que a causa russa estava perdida, Guilherme procurava ainda, por todos os meios, combater qualquer ideia a favor duma “paz prematura” e, na sua correspondência epistolar com Nicolau, não parava de insistir na prossecução da luta de forma decidida, fingindo-se convencido, de maneira muito inábil, de que a Rússia conseguiria, no final, reunir de novo enormes forças e arrojar ao mar os japoneses. Basta ler a correspondência trocada nos anos de 1904 e 1905 entre os dois imperadores para nos darmos conta de que forma tosca, inábil, ligeira e puerilmente ingénua Guilherme “se fazia de astuto”, e como ele mesmo nisso se traía, a cada passo, da maneira mais evidente.

Contudo também aqui as coisas marchavam, sem ele, de tal maneira que nada de melhor podia desejar: só após as derrotas de Mukden e a batalha naval de Tsushima a guerra chegou por fim ao seu termo. A Rússia parecia ter sido posta fora de combate por muito tempo. No capítulo seguinte analisaremos como é que isso foi aproveitado por Guilherme.

Porém, havia um lado obscuro para o imperialismo alemão nesse desenvolvimento favorável dos acontecimentos no Extremo Oriente. O bloco anglo-japonês que desalojara a Rússia revelava-se tão poderoso, e isto ainda antes da guerra de 1904-1905, que já desde o próprio momento da celebração da aliança anglo-japonesa, em 1902, todas as esperanças alemãs no que toca a uma expansão na China haviam ficado seriamente comprometidas. Tanto mais que a partir de 1900, desde que a sublevação dos boxers fora esmagada, o governo dos Estados Unidos nunca cessou, ano após ano, de sublinhar com crescente insistência a sua doutrina de “portas abertas” na China; dito por outras palavras, os presidentes dos EUA (primeiro McKinley e logo, em 1901, Theodore Roosevelt) faziam de antemão saber que não desejavam nenhuma partilha da China e que se oporiam a isso. Tudo isto a querer dizer que, por um lado, o Japão mais a Inglaterra e, pelo outro, os norte-americanos, constituíam um obstáculo intransponível para a Alemanha, e que também a China, tal como outrora a África, se lhe escapava das mãos. Mas ainda restava uma terceira região, uma terceira chance para garantir em seu próprio favor grandes potencialidades económicas e, se a sorte lhe sorrisse, ampliar as áreas sujeitas à sua influência política imediata. O Próximo Oriente, um enorme conglomerado de terras avassaladas pelo sultão da Turquia: eis o que deveria compensar a Alemanha pelos fracassos e êxitos incompletos noutras zonas.

 

V) Os planos de expansão económica na Ásia Menor. A concessão para a construção do caminho-de-ferro de Bagdad.

 

Nos começos do século XVI o Império Turco era a maior potência do mundo, e embora nos cerca de quatrocentos anos desde então transcorridos até ao início do século XX esse império tivesse perdido muitas terras, tais perdas foram menores do que as que viria a sofrer entre 1911 e 1919. Assim, aquele Império Turco sobre o qual começaram a deter-se os olhares dos representantes do capital financeiro alemão e, de seguida, os do governo do seu Kaiser, mais se parecia, em todo o caso, ao império de Solimão o Magnífico do que ao modesto território na costa meridional do Mar Negro que actualmente leva o nome de Turquia. Na época que estamos a considerar, ou seja, em finais do século XIX e inícios do XX, a superfície da Turquia era de 3.896.000 quilómetros quadrados (I), com uma população de 38.750.000 pessoas.

 

(I) Tarlé estará aqui a incluir o Egipto e alguns pequenos territórios ainda nominalmente considerados, por essa época, como “domínios” turcos. Calcular a área e a população sob potencial influência do império turco de então é tarefa particularmente espinhosa. Veja-se, por exemplo, que só a as actuais Arábia e Líbia, onde havia territórios sob domínio turco, correspondem, hoje, a uma área de cerca de 3.900.000 quilómetros quadrados.

 

Assim calculada, a sua superfície superava em cerca de sete vezes a da Alemanha; a população, ao invés, revelava-se pouco densa relativamente à vastidão do território e, em consequência disso, a colonização encontrava espaço aberto; no entanto, o número total de habitantes do império era o bastante para que a Turquia pudesse vir a converter-se num importante mercado de vendas. Além disso, a Turquia constituía também um valiosíssimo mercado fornecedor de matérias-primas, e só havia que investir capital e trabalho para que se tornassem fecundas essas vastas extensões de terra. Já na quinta década do século XIX, Friedrich List, o célebre economista alemão, pusera em destaque o enorme valor que as terras turcas podiam ter para a vida económica alemã. Todavia, e como era natural, só após a unificação do país e haver-se concluído uma muito estreita aliança com a Áustria se deram as condições necessárias para que o capital alemão se pudesse lançar naquela direcção com fortes expectativas de êxito. Graças à aliança (ulteriormente, quiçá fosse até possível uma fusão) com a Áustria, e dada a debilidade dos países balcânicos, abria-se uma via directa para a Turquia: de Hamburgo e Berlim a Bagdad e ao Golfo Pérsico era bastante praticável um trajecto directo, tornando mais fácil o transporte de mercadorias, sem o risco de topar algures com os ingleses sobre a superfície marítima e, dum modo geral, se descontarmos a “estreita faixa” do Bósforo, sem ter de encontrar pela frente o mar. Por último, caso tal necessidade se pusesse, a corrente da emigração alemã poderia ser dirigida precisamente para esses lugares; os emigrados estabelecer-se-iam na Ásia Menor, Arábia, Mesopotâmia, formando uma sólida vanguarda da Alemanha, dado que não se perderiam os directos e estreitos laços com a pátria.

Guilherme resolveu acelerar o reforço da influência alemã na Turquia visitando pessoalmente o sultão Abdul Hamid. A este propósito há a referir que a base para uma aproximação de carácter puramente político [e não político-militar] com a Turquia se mostrava sumamente sólida e muito adequada: carecendo de fronteiras comuns, a Alemanha não podia, pelo menos num futuro próximo, contar anexar esta ou aquela parte do território turco. Era precisamente o contrário: os interesses imediatos obrigavam a Alemanha a agir em prol de que fosse preservada a integridade do Império Turco, dado que, a produzir-se a sua partilha, as partes de leão haveriam de cair, como é óbvio, nas mãos da Rússia e da Inglaterra. Ao mesmo tempo, como recompensa desse apoio político, a Alemanha poderia exigir do sultão consideráveis benefícios económicos, concessões, tratando de conseguir para si, no âmbito das relações comerciais e industriais, privilégios e direitos exclusivos.

Em Outubro de 1898 Guilherme empreendeu a sua viagem ao Oriente, com toda a solenidade e pronunciando, como sempre, alguns discursos. Tornara público que tencionava visitar Jerusalém e, pelo caminho, entrevistar-se com o sultão. Toda a viagem decorreu numa sucessão de grandes festas, banquetes, recepções, com o manifesto e deliberado propósito de efectuar uma demonstração política. Estava-se a proclamar ao mundo o início da intervenção política da Alemanha nos Balcãs e na Ásia Menor.

A 8 de Novembro de 1898, encontrando-se já em Damasco, quando se referia ao famoso sultão Saladino, que combatera contra os alemães de Frederico Barba-Ruiva na Terceira Cruzada, completamente a despropósito e fora do lugar e do momento, Guilherme declarou, de repente: “O sultão e os trezentos milhões de muçulmanos espalhados pelo mundo podem estar certos de que o imperador da Alemanha permanecerá para sempre seu amigo”. Este voto, dirigido essencialmente aos súbditos islamitas da Inglaterra e da Rússia, soou como uma ameaça. Naquele concreto momento, a Alemanha não tinha qualquer tensão diplomática com nenhum dos dois países. Porém, tal como aqui já várias vezes se disse, a Guilherme II agradava pronunciar discursos ameaçadores e belicosos precisamente quando não se previam perigos em parte alguma.

Imediatamente após esta viagem, retomaram novo fôlego as negociações confidenciais entre algumas grandes firmas (destacando-se as ferroviárias) e o governo otomano. E as autoridades alemãs prestavam uma ajuda muito activa a essas firmas. Estava em causa a concessão para o traçado e construção de uma via-férrea que unisse Constantinopla a Bagdad. Este caminho-de-ferro seria de uma enorme importância económica para toda a Ásia Menor, Mesopotâmia, Síria, Arábia e Pérsia, dado que se projectavam, a partir da via principal, vários ramais secundários em diversas direcções.

Quando a 27 de Novembro de 1899 o chefe de um dos mais poderosos consórcios bancários alemães, Georg Siemens, conseguiu por fim chegar a acordo com o governo turco sobre a concessão para o traçado da linha-férrea de Bagdad, a Inglaterra aparentou que isso pouco lhe importava. Mas tratava-se de um fingimento: o empreendimento de Bagdad, como bem depressa se pôs em evidência, fora considerado pela Inglaterra, logo desde o seu princípio, como uma ameaça directa para a Índia; porém em 1899 e no decurso do ano e meio seguinte, enquanto continuava a guerra na África do Sul, era-lhe preferível não entrar em nenhum litígio ou controvérsia com a Alemanha.

Quanto à Rússia, para que pudesse prosseguir a sua política agressiva no Extremo Oriente, também a amizade da Alemanha lhe era essencialmente necessária, e, em vista disso, não sobreveio da sua parte nenhum protesto contra o acordo turco-alemão.

A importância dessa via-férrea de Bagdad foi caracterizada com absoluta clareza, quando a sua construção já se achava em pleno andamento, pelo diplomata russo Schebeko num relatório confidencial que fez chegar ao ministro das Relações Exteriores, Sazonov. Dizia o relatório:

“Na sua fase actual, a via-férrea em construção já oferece uma excelente saída para os produtos das oficinas e fábricas alemã, posto que todo o material de construção férrea é trazido da Alemanha. Na sua fase futura, uma vez terminada a linha, proporcionará à indústria alemã a possibilidade de inundar com os seus produtos a Ásia Menor, a Síria, a Mesopotâmia e, quando for estendido o ramal Bagdad-Khanaqin-Teerão, também a Pérsia. O valor político desta via-férrea, para a Alemanha, está no fortalecimento e renascimento da Turquia, que é a consequência que inevitavelmente tem de acarrear o traçado de um caminho férreo através de todo o país, desde Constantinopla até ao Golfo Pérsico, com ramais em todas as direcções. O fortalecimento da Turquia e, em especial, o reforço do seu poderio militar, representa uma das orientações principais da política alemã dos últimos anos, dirigida a atrair o Império Otomano à esfera da Tríplice Aliança. Sentindo certa desconfiança quanto ao papel que a Itália pode vir a desempenhar num momento de perigo, a Alemanha está preocupada com a substituição de um aliado por outro cujos interesses coincidam em maior grau com os dela própria: tal aliado é a Turquia, e o Estado-maior alemão trabalha incansavelmente, desde há muito, para a reorganização do exército turco. Segundo o projecto inicial, o caminho-de-ferro de Bagdad teria de atravessar a Ásia Menor num percurso muito mais a norte que a linha actual; em concreto, haveria de passar por Angora, Sivas, Harput, Diyarbekir e Mosul. De acordo com esse projecto, essa via-férrea constituiria uma constante ameaça à nossa fronteira, do mesmo modo que o ramal sírio o seria contra a Inglaterra e o Egipto. Uma vez realizado tal projecto, a Turquia passaria a ter a possibilidade de concentrar os seus exércitos, em caso de mobilização, tanto na fronteira russa como na egípcia...E a ideia dominante e condutora continuou, não obstante, a ser a mesma: por um lado, mediante o traçado duma via internacional de 2.500 quilómetros de comprimento, abrir novos mercados à indústria alemã e, por outro, ao traçar vias-férreas de valor estratégico tanto no norte como no sul, proporcionar ao futuro aliado, assim fortalecido, a possibilidade de prestar à Alemanha a sua colaboração no caso de uma guerra, ameaçando a nossa fronteira e o poderio inglês no Egipto” (21).

 

(21) ARQUIVO DE POLÍTICA EXTERIOR DA RÚSSIA, Berlim, 4 (17) de Março de 1911. Schebeko a S. D. Sazonov.

 

Tratava-se, para o capital alemão, de um êxito brilhante. A comprová-lo, para já não falar de que, tendo nas suas mãos os caminhos-de-ferro, os alemães podiam realmente esperar vir a ser os donos de todas as possessões turcas na Ásia, bastar-nos-á referir que, mesmo no futuro imediato, a própria construção dessa via-férrea prometia trazer-lhes tais lucros, prover as fábricas de tantas encomendas, exigir um trabalho tão intenso e tão largamente remunerado, que, tudo o levava a crer, se abria perante a indústria alemã uma idade dourada. “Somos felizes, somos verdadeiramente felizes” (Wir sind glücklich, freilich, sind wir glücklich), exclamava o Berliner Tageblatt, um dos órgãos mais lidos da imprensa burguesa liberal. Fez-lhe eco um social-democrata que posteriormente, ao falar com Bernstein sobre este período (o de anteguerra), afirmaria com amargura e ira, ao querer explicar a facilidade com que então cresciam as pretensões mundiais da Alemanha: “Tornámo-nos demasiado caprichosos” (Wir sind zu üppig geworden). É que, de facto, tudo se fizera ainda mais complicado, e muito mais perigoso para os milhões de seres humanos que haveriam de perecer caso rebentasse uma catástrofe.

Mas a catástrofe tinha mesmo de estalar dado que o capitalismo germano, por volta da primeira década do século XX, ainda não se mostrava definitivamente satisfeito: ele sentia-se tão-só o suficientemente poderoso e seguro de si mesmo para se abrir um caminho na arena mundial, para procurar obter os domínios que eram indispensáveis à sua ulterior expansão. Os seus representantes haviam começado a pensar, sem um pingo de temor, numa “prova de forças”, crendo que o momento histórico lhes era propício.

E foi aqui onde os cálculos resultaram ser fatalmente errados (22). O desenvolvimento capitalista dos rivais da Alemanha também fizera aparecer entre eles esse “punho de ferro” que o imperador Guilherme tanto gostava de referir quando perorava; e ainda que em grau diverso, de igual forma no seu meio apareceram partidos e correntes que rapidamente se iam acostumando à ideia de que não só era inevitável como também conveniente uma grande guerra.

 

(22)Das deutsche Volk hat einen historischen Fehler begangen” (“o povo alemão cometeu um erro histórico”), disse Erzberger em 1919.

 

A Alemanha era tão poderosa que nem a aliança franco-russa nem a Inglaterra, por separado, podiam atacá-la; ela, em compensação, podia atacar, com grandes probabilidades de êxito, se não a Inglaterra pelo menos a aliança franco-russa. Nem Guilherme II nem o chanceler Hohenlohe, nem o seu sucessor, Bülow, nem quem se achava por trás deles todos, o barão von Holstein, consideravam ser possível acreditar numa coligação da aliança franco-russa com a Inglaterra, e isto até à própria data em que a dita coligação se transformou numa realidade. “Temei ser demasiado fortes”, escrevia profeticamente em 1871 o grande historiador Fustel de Coulanges ao imperador Guilherme I. E a Alemanha de Guilherme II era incomensuravelmente ainda mais poderosa e rica, o que tornava mais fácil a constituição de uma coligação que lhe fosse hostil.

O caminho-de-ferro de Bagdad foi o mais retumbante êxito, pelas perspectivas que abria, da política externa alemã no decurso de todo o reinado de Guilherme II. Porém, quanto mais se desenvolviam os seus resultados, ano após ano, e quanto mais se destacava esse êxito, com tanta maior nitidez se ia desenhando a questão, em processo de amadurecimento, da rivalidade anglo-germana. Em ambos os países, os partidários de empreendimentos imperialistas procuravam transformar essa rivalidade, num futuro mais ou menos próximo, de económica em político-militar; em ambos os países começava a fazer a sua aparição, a irromper nos círculos imperialistas, a frase fatídica: “O tempo está a trabalhar contra nós e é inútil esperar mais”. Contudo nenhuma das partes se achava pronta e, o que era mais importante, os adversários da Alemanha não vislumbravam qualquer oportunidade que lhes permitisse concentrar todas as suas forças exclusivamente para o combate contra a Alemanha, a tal ponto eles próprios consideravam agudas as contradições que os separavam entre si, contradições essas que por vezes os obrigavam a lutar, um contra o outro, de forma ainda mais intensa do que contra a Alemanha.

Dito de modo mais conciso: pelos começos do século XX havia já uma base económica suficiente para o aparecimento duma coligação antialemã, contudo faltavam as necessárias condições ideológicas e políticas para apressar a sua criação. Desde logo, tratava-se não tão-só duma defesa, mas também de francos objectivos de conquista. Necessitavam-se os porfiados esforços duma vontade insistente, de cálculos de muita previsão, duma clara consciência do objectivo a atingir, de autodomínio diplomático, de activas intrigas políticas, a fim de acelerar, na história das relações internacionais europeias, a chegada de tais acontecimentos, a criação dessa combinação política, já de antemão decidida através de todo o jogo das forças capitalistas que reciprocamente se enfrentavam. A 22 de Janeiro de 1901 subiu ao trono de Inglaterra um homem predestinado a ligar o seu nome a esse acontecimento que carreava inúmeras e fatais consequências.