O espaço da História

Capítulo VII - A criação da Entente (1904-1907)

1. PROJECTOS DE JOSEPH CHAMBERLAIN PARA UMA APROXIMAÇÃO À ALEMANHA. A FROTA MERCANTE E A ARMADA ALEMÃS. FRACASSO DA TENTATIVA DE CHAMBERLAIN.

A opinião de Guilherme II, infundada, como de costume, e superficial, sendo ele absolutamente carente do sentido da realidade histórica e sempre inclinado a exagerar, de maneira pueril, a importância dos indivíduos isolados (a dos soberanos, sobretudo) era – como ele soía repetir até ao momento do rebentar da guerra e ainda hoje afirma no seu exílio holandês [Tarlé escreve em 1927] – que só o rei Eduardo VII e mais ninguém fora o culpado por todas as desgraças da Alemanha e da Europa inteira, ou seja, pela criação da Entente. “Se bem que esteja morto, é todavia mais forte que eu!”, exclamou Guilherme em Agosto de 1914, querendo assim dar a entender que o culpado pela guerra não era ele, mas Eduardo VII, que a havia desejado.

Através dos diários oficiais e da direita, e também duma parte considerável da imprensa liberal, esta opinião difundiu-se em larga escala na sociedade germana e, da Alemanha, passou também a outros países. Depois de tudo o que já foi dito nos capítulos precedentes não há necessidade de nos demorarmos muito a demonstrar que Eduardo não foi o artífice da criação da Entente, mas que se limitou a acelerar em certa medida os acontecimentos. Não vamos voltar a referir aqui essas causas gerais. Tocaremos tão só algumas circunstâncias, em parte já presentes antes da sua subida ao trono, que lhe facilitaram a tarefa. Há que recordar, antes do mais, o que já se disse sobre as tentativas inglesas de chegar a um acordo com a Alemanha.

Essas tentativas (1895, 1898, 1899, 1900) foram rejeitadas pela Alemanha; no entanto, dada a constante e intensa rivalidade económica entre os dois países, elas nunca seriam passíveis de produzir resultados efectivos e duradouros. Assim, também em Inglaterra, poucos eram os que as levavam a sério. Quiçá para o próprio Chamberlain esse plano de aproximação à Alemanha nada mais representasse do que um temporário alívio para a situação nos momentos mais difíceis das disputas da Inglaterra com a França e com a Rússia e da guerra contra os boers. É de sublinhar que tais intentos, ainda antes de Eduardo VII ter subido ao trono, foram recebidos com muita reserva nos círculos do grande capital e, em particular, nos círculos industriais, que observavam inevitavelmente, ano após ano com crescente atenção e inquietude, o inaudito desenvolvimento da produção alemã, e para os quais todas as outras ordens de considerações eram remetidas para segundo plano. O correspondente do Times em Berlim já no ano de 1900 dizia abertamente (e isso foi comunicado a Fritz Holstein, a eminência parda da política alemã) que “o governo inglês, ao que parece, há-de ter perdido a razão se pretende travar amizade com a Alemanha e não com a Rússia”. Mas o essencial, claro está, residia na falta de desejos dum entendimento por parte da Alemanha. Nem em 1895, quando Lord Salisbury sugerira a Guilherme II uma aproximação política sobre a base do desmembramento da Turquia, nem na Primavera de 1898 ou no Outono de 1899 (quando a proposta duma aliança partiu de Joseph Chamberlain), nem no Outono de 1900, quando estavam em causa os assuntos chineses e uma política comum na China, nada resultara de todas essas tentativas de conseguir um acordo entre a Inglaterra e a Alemanha. Vamos dizer algumas palavras sobre a última tentativa, que é relativamente pouco conhecida.

Face às tendências agressivas da diplomacia russa na China, que os atemorizavam em grau crescente, os ingleses tinham começado uma vez mais a pensar, imediatamente após ter sido sufocada a sublevação dos boxers, numa aliança com a Alemanha. A Rússia prosseguirá as suas “manigâncias na China conforme lhe der na gana”, escrevia a 23 de Outubro de 1900 o duque de Devonshire ao barão Eckardstein, membro da embaixada alemã em Londres: “Se isto na China continua assim, que sorte pode esperar a nossa indústria algodoeira do Lancashire? E igualmente a vossa indústria (a da Alemanha; nota de E. Tarlé) depressa disso se há-de ressentir” (23). No entanto, também nesta oportunidade reagiram na Alemanha respondendo com o silêncio.

 

(23) Eckardstein, “Lebenserinnerungen”, tomo II, Leipzig, 1920, pág.202 [no texto inglês, págs. 176-177].

 

Quando, com esta que já era a última, definitivamente se interromperam as diligências da Inglaterra para chegar a um acordo político geral com o Império Alemão, a atenção dos círculos industriais, comerciais e operários foi atraída durante uns tempos pela afoita agitação do partido conservador em prol da criação duma sólida e estreita integração económica de todos os domínios britânicos, que deveriam adoptar uma elevada tarifa proteccionista comum de molde a opor uma barreira à concorrência externa. Porém a classe operária manifestou-se de forma resoluta contra o projecto, dado que temia o encarecimento dos produtos de primeira necessidade e não tinha fé nas pretensas consequências benéficas para a indústria desse plano. Também uma boa parte da burguesia (o partido liberal na sua totalidade) ora titubeava, ora se pronunciava abertamente contra o proteccionismo.

Joseph Chamberlain, respaldado pelos seus partidários, tinha desenvolvido durante os últimos anos do século XIX e o primeiro quinquénio do XX a campanha a favor duma muralha aduaneira, que transformaria todo o Império Britânico num mercado monopolista para a indústria nacional; mas essa agitação, não obstante a luta ter sido longa e tenaz, sofreu o mais rotundo fracasso. As eleições de 1905 deram o triunfo completo aos liberais e ao partido operário, que o mesmo é dizer, aos dois partidos que lutavam perseverantemente, com todas as suas forças, contra o proteccionismo.

Nada fora decidido, porém, com tal fracasso. O problema, no essencial, continuava por resolver, mantendo-se em todo o seu funesto e ameaçador significado. Visto que a maioria do povo inglês se opunha à realização do plano de Chamberlain, fatalmente se agudizava a questão da luta contra o seu mais perigoso competidor, tendo-se de seguir nela outra via. Destruí-lo fisicamente, como já em 1897 sugeriam os publicistas da Saturday Review? Desencadear uma guerra contra a Alemanha para expulsá-la pela violência de todos os mercados de além-mar e quebrar à força o seu desafogo económico? Entretanto, no lapso de 1904 a 1907, tal como acontecera anteriormente, a questão ainda não era posta duma forma tão aberta pelos publicistas mais sérios, se bem que já então interviesse uma nova circunstância que veio facilitar enormemente as coisas a todos os que viam numa guerra contra a Alemanha a única saída possível. Repentinamente, as questões estratégico-políticas haviam passado a primeiro plano, e quem involuntariamente acudiu em ajuda aos seus mais encarniçados inimigos ingleses foi o próprio governo alemão.

O reforço da Armada, a uma tal escala que, em apenas oito anos (1898-1906), a Alemanha acabaria por se converter na segunda potência naval do mundo, iniciara-se no ano de 1898; e o que mais surpreende não é o facto em si, mas sim que tanto houvesse tardado a começar. Era uma das inevitáveis consequências de tudo o que já tratámos de explicar nos capítulos anteriores. “O nosso futuro está no mar”, dissera Guilherme II numa das suas primeiras arengas. Esta ideia, tal como a esmagadora maioria das ideias por ele exteriorizadas, não era da sua lavra. Os mesmos círculos que reclamavam colónias, como era natural, exigiam também uma frota, posto que não podiam conceber a aquisição e a protecção de colónias por outro meio que não fosse o duma poderosa armada. A tonelagem da marinha mercante cresceu enormemente. Em 1871, ano da fundação do Império, existiam na Alemanha 7 estaleiros de construção naval, e em 1897 já totalizavam 39; quanto ao número de operários ocupados na construção naval, havia crescido de 2.800 para 37.750. Em 1913 existiam 47 estaleiros. A tonelagem da frota comercial alemã superava, antes da guerra, os 5 milhões de toneladas. Esta cifra era cerca de quatro vezes inferior à da tonelagem britânica, porém ocupava o lugar imediatamente a seguir entre as marinhas mercantes, ao passo que nos primeiros anos do Império Alemão a sua tonelagem fora praticamente insignificante (24).

 

(24) Eis as cifras exactas (a 30 de Junho de 1914): tonelagem mercante alemã: 5.099.120 toneladas; tonelagem britânica: 20.335.289 toneladas.

 

A ideia de que era preciso assegurar a protecção desta enorme frota comercial também se converteu num argumento a favor da criação da armada. E a obtenção, das mãos da Inglaterra, da ilha de Heligoland em 1890, bem como a construção do canal de Kiel, inaugurado em 1895, que unia o Báltico com o Mar do Norte, já deixavam ver que o governo imperial se dispunha a realizar ingentes sacrifícios para a constituição dessa grande força naval. Em 1897 é posto à cabeça do Departamento da Marinha de Guerra o almirante von Tirpitz e, em 1898, são pedidas pela primeira vez ao Reichstag enormes verbas para um ambicioso “programa de construções navais”. A esse programa seguiram-se um segundo em 1900 e um terceiro em 1906. Para além desses colossais créditos, o governo ia solicitando ao Reichstag, quase todos os anos, mais e mais novos aumentos das dotações para o orçamento naval. No decurso dos primeiros vinte anos do reinado de Guilherme II esse orçamento cresceu nove vezes.

Qual era o principal propósito de von Tirpitz? Havia conseguido criar, em poucos anos, uma gigantesca frota; já depois de 1906, quando pela primeira vez foram lançados ao mar os dreadnoughts, lograra alterar a correlação de forças entre as frotas alemã e britânica, dado que estes colossos do mar reduziam quase a zero o valor dos anteriores couraçados, obrigando a refazer praticamente de novo as frotas de guerra; é verdade que a Inglaterra continuava a construir mais navios de guerra que a Alemanha, no entanto já não podia restabelecer a antiga proporção de “dois contra um”. Tudo isto eram êxitos muito consideráveis. Porém, quais eram os objectivos políticos que o almirante Tirpitz tinha em vista?

Hoje [1927], quem censura Tirpitz acerbamente, lançando-lhe em rosto a criação dessa Armada de que tanto se orgulhava, não são apenas os sociais-democratas, mas também os que deles muito distam. Sublinham que a frota nada trouxe à Alemanha afora um dano terrível; que foi precisamente a construção da mesma – afirmam – o que empurrou a Inglaterra para a senda da criação duma coligação antigermânica; acusam-no ainda de não ter pensado na questão a fundo, pois devia saber muito bem que a Inglaterra jamais permitiria que alguém lhe tomasse a dianteira, que jamais a armada alemã viria a ser assaz poderosa para poder destruir a inglesa ou arrancar-lhe o domínio dos mares. Para quê, então, tê-la construído? Tirpitz respondeu a isto em mais de uma oportunidade, tanto nas suas “Memórias” como na imprensa que lhe era adicta. Alegava em sua defesa que nunca tinha pretendido construir uma armada que fosse mais forte que a inglesa; apenas tinha querido dotar a Alemanha duma tal força naval que a Inglaterra fosse obrigada a reflectir antes de lançar um ataque contra ela, em suma, duma frota que, fosse qual fosse o resultado da luta, pudesse ainda assim assestar na armada inglesa golpes muito sensíveis. É claro que esta explicação, bastante confusa, não convenceu ninguém. Mas, por outro lado, o próprio von Tirpitz, um cínico rematado e inteligente, o mais talentoso e um dos mais desfaçados dignitários da era guilhermina, certamente também não esperaria que alguém desse muita fé às suas palavras.

Fosse aquele ou outro o objectivo, a construção da armada tinha-se iniciado e, já no lapso de 1902-1904, era evidente que a Alemanha se estava a converter na segunda potência naval, logo atrás da Inglaterra. Semelhante frota podia estar a ser construída contra a Inglaterra. O almirantado britânico alarmou-se de forma muito clara. E foi precisamente então que o novo rei passou a exercer uma considerável influência na condução da política britânica.

 

2. UMA REVIRAVOLTA NA POLÍTICA INGLESA. O PLANO DE EDUARDO VII.

 

Eduardo VII subiu ao trono a 22 de Janeiro de 1901, quando já havia atingido os 59 anos de idade. Antes disso era pouco conhecido e, para o dizer assim, visto duma forma unilateral: como um aficionado das corridas de cavalos e das diversões mundanas que era também, ao que constava, muito dado a jogar forte às cartas; e recordavam-se na alta vida social e nos clubes londrinos dois ou três ruidosos escândalos com os quais estivera vagamente relacionado o nome do herdeiro da coroa. De início foram pouco notados os seus dotes de carácter e inteligência, dotes esses que iriam revelar-se no decurso dum reinado de dez anos. Sua mãe, a rainha Vitória, mantivera-o totalmente afastado dos assuntos de governo e, precisamente por isso, já desde há algum tempo as relações entre mãe e filho mantinham-se frias.

Eduardo VII revelou-se um homem de grande e dúctil inteligência, de largo horizonte de pensamento, de carácter perseverante e extremamente hábil na simulação, dotado de um imenso talento diplomático e com uma compreensão clara da conjuntura mundial então existente, muito em particular, da europeia. A publicística e a historiografia alemãs do seu tempo, bem como a do após guerra, fazem de Eduardo VII um juízo quase unânime (exceptuando Bernstein e, em parte, Harden), vendo nele, como já foi dito, o génio mau que levou a Alemanha à ruína. Na Alemanha atribui-se ao rei de Inglaterra tanto a autoria como a realização do programa que visava rodeá-la com um férreo anel de países hostis e, por último, a criação da Entente, que devia destruir o império dos Hohenzollern.

É óbvio que no presente caso as paixões patrióticas exageram em elevadíssimo grau o papel de Eduardo. Por maiores que fossem as qualidades que lhe calharam em dote, por mais satânico que fosse o ódio que alimentava contra a Alemanha, a não ter encontrado um terreno completamente preparado para esse efeito jamais o monarca inglês teria logrado mudar com uma brusca viragem do leme a direcção da política externa da Grã-Bretanha. A sua força radicava em que, ao subir ao trono, já se lhe fizera absolutamente claro para onde o gabinete e o parlamento se iam voltar e qual o sentido que mais tarde ou mais cedo seguiriam. E temos a prova irrefutável da verdade deste nosso asserto. Quando Eduardo ascendeu ao trono era então primeiro-ministro do governo conservador o marquês de Salisbury. A 11 de Julho de 1902 Salisbury apresentou a sua demissão, sendo substituído por Balfour. Este retirou-se a 5 de Dezembro de 1905, e à cabeça do novo governo (liberal) foi colocado Campbell-Bannerman, o qual, gravemente doente, resignou a 5 de Abril de 1908, tendo-lhe sucedido Asquith, que continuava a exercer este cargo em Maio de 1910, quando Eduardo VII faleceu. E todos estes governos, tão heterogéneos pela sua natureza, compostos por homens tão dissemelhantes entre si, achavam-se numa coisa absolutamente de acordo: todos eles deixaram ao rei, com a melhor boa-vontade e disposição, e desde o seu primeiro dia de reinado até àquele em que veio a falecer, a direcção da política externa britânica; todos eles tomaram para si, de modo incondicional e com a maior das boas vontades, o papel de ajudantes e executores, sem que jamais tivesse havido sequer o menor atrito, sequer o mais ínfimo mal-entendido entre o monarca e os ministros responsáveis neste campo. A Europa assistiu a isto ao princípio com surpresa, mas logo, e bem depressa por sinal, se acostumou ao novo estado de coisas, a algo que em Inglaterra parecia ser completamente inimaginável desde o tempo dos Stuart: o rei, que fora completamente privado, segundo a Constituição e de acordo com todos os costumes, tanto do direito como de qualquer possibilidade prática de agir independentemente e por sua própria conta, percorria as capitais das grandes potências, contraía alianças e celebrava acordos que ligavam e obrigavam a Inglaterra, levava a que se alterasse todo o quadro da actividade diplomática britânica, pronunciava frequentes discursos a que se seguiam negociações secretas – mas que apesar do sigilo provocavam agitação em todo o continente – entre ele e os ministros das potências europeias. E toda essa intensa actividade de Eduardo, produtora de enormes consequências, era vista, por todos os ministros dos quatro gabinetes que se revezaram no decurso do seu reinado, precisamente do mesmo modo: como uma acção que era desejada, absolutamente benéfica e, inclusive, necessária. Desde o magnata e conservador marquês de Salisbury até Keir Hardie, dirigente do partido operário – que disse em certa oportunidade: “Eu sou republicano, mas, quando tivermos uma república, farei uma campanha de agitação e propaganda a favor de Eduardo como presidente” –, um imenso número de políticos ingleses das mais diversas tendências que, dum ou doutro modo, serviam o regime capitalista ou eram animadas por propósitos oportunistas e de conciliação, consideravam que a política externa que o rei conduzia era de suma importância para o futuro do país.

E é precisamente isto que mostra que Eduardo fez a sua aparição no exacto momento em que a configuração das circunstâncias se apresentava favorável à realização do seu projecto.

Como se pode caracterizar esse projecto? Aqui há a distinguir aquilo que se manifestava, com a habitual hipocrisia diplomática, nos discursos, votos protocolares e artigos dos periódicos, daquilo que se subentendia e só posteriormente se revelava.

E o que então se exteriorizava, manifestava, era o seguinte:

A Inglaterra estava ameaçada. A Alemanha não só a incomodava e diminuía em todos os mercados, com êxito crescente e dum modo mais hábil de ano para ano, como havia começado a construir, de forma sistemática, uma enorme frota, no propósito directo e claramente expresso de se bater, mais tarde ou mais cedo, com os ingleses; e mesmo que não lhes pretendesse retirar o domínio dos mares, pelo menos quereria repartir esse domínio e arrancar-lhes uma parte das suas colónias. Simultaneamente, com o traçado da ferrovia de Bagdad, ameaçava o Egipto e a Índia, assim como o Suez, e essa ameaça surgia sobre terra firme, onde a Alemanha era indiscutivelmente mais forte que a Inglaterra.

A ameaça tornava-se ainda mais séria em virtude da estreita amizade da Alemanha com a Turquia. Além disso, e sobre o continente europeu, a Alemanha era tão poderosa que, no caso duma guerra contra a Alemanha, Áustria e Itália, a aliança franco-russa obviamente não poderia esperar vencer. A eventualidade da Itália se encontrar ao lado da Alemanha e Áustria, com as quais estava formalmente aliada, ainda parecia ser a mais provável no momento em que Eduardo ascendeu ao trono. Face a todas estas circunstâncias, e dado que a França e a Rússia estavam de más relações diplomáticas com ela – tendo-se em França, na imprensa, chegado a fazer inclusivamente a seguinte pergunta: “quem é o nosso maior inimigo, a Alemanha ou a Inglaterra?” –, a Inglaterra via-se completamente isolada.

A Inglaterra achava-se, pois, numa situação perigosa. A única coisa que a podia pôr a salvo seria a criação duma aliança tão poderosa que fosse capaz de pôr freio a todas as intenções belicosas das classes governantes alemãs. Uma aliança com a França e a Rússia: eis a única saída para a situação; uma aliança que dificultasse sobremaneira a liberdade de movimentos da Alemanha e lhe reduzisse as hipóteses de vitória. Tratava-se duma iniciativa de carácter puramente defensivo, animada pelo espírito da protecção da paz na Europa.

 

Era exactamente assim que se falava deste assunto. Como se a Inglaterra apenas e exclusivamente se preocupasse com a paz e a tranquilidade comuns, e o rei inglês houvesse sido enviado à Terra sobretudo com vistas a promover o bem-estar e o avanço do género humano. Mas subentendia-se em certos sectores dos círculos governantes da Inglaterra que quiçá (e um que outro não só isto subentendiam como, por vezes – muito poucas, é certo –, até o escreveram), criado que fosse esse poderoso bloco contra a Alemanha, o melhor seria não se esperar por um seu ataque, empreendendo-se uma campanha que destruísse, por modo ainda a definir, mas todavia de um só golpe certeiro, todo o conjunto da ameaça económica e política por ela posta (25).

 

(25) O almirante Fisher, primeiro lorde do mar na época de Campbell-Bannerman e durante os primeiros anos de Asquith, em 1908 propôs ao governo atacar de surpresa, sem declaração de guerra, a frota germânica quando esta se concentrasse no Mar do Norte para manobras e metê-la a pique em poucos minutos. De acordo com Lord Fisher, isso teria tornado por muito tempo impossível à Alemanha lançar uma guerra contra a Inglaterra. Todavia não lhe permitiram realizar esta “experiência” um tanto audaz, e Lord Fischer não se afligiu com isso grandemente. Nas suas memórias, aparecidas em 1919, ele confessa com orgulho aquele seu propósito, e censura amargamente Asquith, acusando-o de não ter sido à época suficientemente decidido e patriota (Lord Fisher, “Memories”, London, 1919). As ideias de Lord Fischer estavam muito difundidas na frota inglesa; Fisher negava-se em absoluto a compreender o que é que, no seu projecto, podiam ver de impraticável Asquith e os outros civis.

 

Mas estas ideias foram surgindo com mais frequência durante os últimos anos do reinado de Eduardo e nos que se seguiram à sua morte, quando o sistema por ele criado – a Entente – já se tinha consolidado e fortalecido, quando em Inglaterra já predominava a tendência para exagerar o real valor do ressurgimento e da reforma do exército russo. De todo modo, o rei, com toda a cautela que lhe era própria, e sendo extremamente maturo e reflectido nos seus comentários, nunca deixara escapar qualquer palavra que pudesse ser entendida, ainda que dum modo vago, como uma ameaça à “paz europeia”. Porém, pela sua essência, é claro que a Entente constituía um poderoso meio não apenas de política defensiva, mas também de agressão. O mero facto de se haver criado esse gigantesco instrumento do belicismo imperialista, por si só, já constituía uma nova ameaça para a paz.

Na Alemanha muitos foram os que se deixaram tomar pela inquietação e a ira. Quanto mais nítidos se revelavam os contornos com que se desenhava a Entente, tanto mais clara se tornava a ideia que esta obra diplomática insuflava: sobre o cerco (Einkreisung) que se erguia à volta da Alemanha começara-se a falar e a escrever, logo a partir de 1907, como de um perigo muito próximo e real que pendia sobre o país. Já ao invés, nos anos que se seguiram, na Alemanha passou-se a descrever esse cerco como uma irrealizável ilusão da Inglaterra, país que numa eventual luta contra um poderoso adversário experimentaria quão decadentes eram as suas próprias forças.

Assim, paralelamente à animosidade contra a Inglaterra, foi crescendo em vastos círculos da burguesia alemã, da nobreza, da burocracia e da oficialidade do exército a convicção de que a Inglaterra já havia pisado os umbrais da decadência. A Inglaterra está a asfixiar-se na sua própria gordura, afirmara logo em 1899 Herbert Bismarck. A luta contra as minúsculas repúblicas boers, arrastada durante três anos, era apresentada na Alemanha como um “escândalo” que denegria o grande império britânico e lhe minava decididamente o prestígio. O príncipe herdeiro da Alemanha, com uma sensatez e um esclarecido critério de que jamais deu mostras anteriormente à guerra, mas a que tão gostosamente e com tanta frequência dá expressão nas suas “Memórias” (escritas no exílio, na Holanda), afirma que, no decorrer duma viagem (antes da guerra), ficara surpreendido com a vastidão e o poderio do Império Britânico, lamentando que na Alemanha ele tivesse sido subestimado. Mas, de qualquer modo, a observação do príncipe herdeiro é justa: de facto, na Alemanha, as pessoas tinham-se realmente persuadido, antes da guerra, de que a Inglaterra apenas vivia de glórias passadas, de que ela era Cartago, ao passo de que à Alemanha estaria destinado ser Roma. No decurso da guerra, o dito paralelo entre a Inglaterra e Cartago seria desenvolvido com todo o apreço pelo famoso historiador, orgulho da historiografia alemã e, quiçá, do mundo, Eduard Meyer.

Este perigosíssimo sentimento – o de menosprezo pelo adversário – foi-se apoderando sempre em maior grau dos mais vastos círculos alemães. Os gigantescos progressos do comércio e da indústria germânicos desalojavam, ano após ano, a Inglaterra em todos os mercados e, claro está, reforçavam mais e mais a arrogante confiança da Alemanha nas próprias forças.

Desde o início do reinado de Eduardo VII, na imprensa alemã mais lida, àqueles sentimentos somavam-se a inquietação e a ira causados pelas complexas negociações diplomáticas que, tal como facilmente se entendia, em primeiro lugar, haviam sido calculadas para um período de alguns anos e com várias etapas que se sucediam e complementavam, que, em segundo lugar, se desenrolavam com perfeita coerência e sem qualquer revés para quem as conduzia, e que, em terceiro lugar, visavam única e exclusivamente conseguir o total isolamento político do Império Alemão. Todos os desmentidos que a propósito dessas negociações eram feitos por parte da imprensa inglesa só serviam para aumentar e tornar mais intenso na Alemanha o receio e a inquietação; e é preciso dizer que os ingleses - como por vezes o continuam a fazer ainda hoje - abusavam, de facto, da ingenuidade daqueles a quem se dirigiam. Assim, podemos ler no vasto e interessante livro de Kennedy que se publicou em 1922, “Velha e nova diplomacia”, algumas linhas completamente inverosímeis, como que escritas para crianças de tenra idade: “...os invejosos alemães viam na política inglesa por toda a parte hipocrisia. Viam-na em especial na diplomacia de Eduardo VII. Não conseguiam compreender que ele efectivamente gostava de viajar. Todas as vezes que fazia uma viagem a esta ou àquela capital europeia, era, segundo eles, com o fim de dar um novo nó na rede de coligações que tecia contra a Alemanha.” (26)

 

(26) A. Kennedy, “Old Diplomacy and New”, Londres, 1922, pág. 192.

 

Mas a verdade é que neste caso os alemães tinham razão, e qualquer viagem de Eduardo a Paris, Roma, Reval, inclusive algumas das suas viagens anuais a Marienbad, era destinada a intensificar os preparativos da coligação, hoje com a França, amanhã com a Rússia; ou, então, o que estava em causa era separar a Alemanha dos seus amigos políticos ou, pelo menos, tornar mais frias as suas relações: hoje a Itália, amanhã a Áustria, logo depois a Roménia. Explicar todas essas movimentações (que tiveram as mais sérias consequências) meramente pelo apego de Eduardo VII ao turismo significa que se está a exagerar até ao cúmulo o grau de ingenuidade do leitor.

Eduardo VII estava no centro das mais complexas intrigas diplomáticas e negociações secretas, dirigidas todas elas a um fim principal: rodear a Alemanha com um cerco de grandes e pequenas potências que lhe fossem hostis ou semi-hostis. Os métodos de trabalho da diplomacia inglesa nesta época foram os seguintes:

O rei Eduardo dá os passos preliminares e também leva a cabo as subsequentes negociações de importância com quem encabeça a potência que se quer atrair à coligação antigermânica. O ministério inglês ou, mais exactamente, o Primeiro-Ministro e o Secretário de Estado das Relações Exteriores, é mantido ao corrente pelo próprio rei de tudo o que se vai realizando. Quando as bases principais para um acordo são atingidas, é o Secretário de Estado quem toma em mão as negociações, após o que esse acordo é aprovado pelo governo e entra em vigor.

A autoridade do rei entre os seus ministros era imensa. A ajuizar pelas memórias de Grey e de outros, jamais houve quaisquer discussões ou desentendidos entre o monarca e os membros do gabinete (27). A finalidade política básica nunca foi mudada ou sofreu alterações; e, no que respeita às intrigas diplomáticas e a táctica, Eduardo VII não tinha rivais, tendo-se os ministros acostumado, ao longo do seu reinado, a ver o soberano tomar o encargo dos trabalhos preparatórios mais delicados e difíceis. Quanto ao parlamento inglês, este, dum modo geral, por iniciativa própria, muito raramente se imiscuía na política externa do governo (no parlamento inglês nem sequer existe [em 1927] uma comissão de política externa), e o governo não achava útil submeter à consideração da opinião pública nem as suas acções explícitas nem, claro está, os seus propósitos ocultos.

 

(27) Viscount Edward Grey of Fallodon, “Twenty five years, 1892-1916”, Londres, 1925.

 

Resultava, assim, que o rei tinha diante de si o caminho livre. Ninguém o incomodava, a flexível máquina constitucional punha-lhe de facto à disposição, no âmbito da política externa, uma completa autonomia, autonomia essa de que não gozara nenhum rei na Inglaterra desde a época dos Stuart, no século XVII.

Ocupemo-nos agora do principal resultado da sua política.

 

3. O PACTO DE 8 DE ABRIL DE 1904 ENTRE A FRANÇA E A INGLATERRA. POLÍTICA DE DELCASSÉ. INÍCIO DA CONQUISTA FRANCESA DO MARROCOS.

 

A Entente foi criada em duas etapas: em 1904, ao concluir-se o acordo anglo-francês, e em 1907, quando a esse acordo aderiu a Rússia.

Mais propriamente, esse termo – Entente – fora adoptado pelos inícios da quinta década do século XIX, por ocasião duma muito efémera aproximação anglo-francesa: baptizaram-na então de Acordo cordial (l’Entente cordiale). Em 1904, o acordo anglo-francês, recordando o nome de outrora, foi também denominado l’Entente cordial, e logo, simplesmente, l’Entente. A partir de 1907, quando às duas potências ocidentais se juntou a Rússia, começou-se a chamar a esse agrupamento Triplo Acordo, Triple Entente, ou de novo, para abreviar, Entente.

A empresa de Eduardo VII via-se complicada pela situação em que se encontravam as relações entre a Inglaterra e a França, e a Inglaterra e a Rússia. Em ambos os casos, não se tratava meramente de fazer duma potência estranha uma amiga e aliada, mas sim de que era necessário transformar em aliados a antigos e tenazes inimigos. É certo que as desavenças das referidas potências continentais com a Alemanha podiam funcionar como uma potente alavanca natural, porém, como único meio de superar rapidamente o exaspero e a inimizade de ambas frente à Inglaterra e de acelerar uma aproximação entre as três, era preciso que o governo inglês se dispusesse a fazer certas e nada fáceis concessões. Eduardo VII e o governo em funções que lhe dava apoio (de começo, em 1904, o conservador; e mais tarde, em 1907, o liberal), sem titubear, conformaram-se a fazer os sacrifícios requeridos.

Começou-se pela França. Ao longo de toda a existência da Terceira República, o capital francês, buscando a colocação mais lucrativa, sempre havia apoiado os empreendimentos coloniais do seu governo e, amiúde, até o tinha para isso empurrado. A Terceira República, na sua política colonial, avançava de êxito em êxito; em toda a sua história anterior, a França não adquirira nem sequer uma nona parte daquilo que conquistou, começando pela ocupação de Túnis, durante os últimos trinta e três anos anteriores à guerra. E de todas as vezes, mal era acabada uma conquista colonial, logo o governo se lançava na preparação da seguinte. Assim, após em 1895 se ter conquistado a ilha de Madagáscar, passou para primeiro plano nas considerações do Ministério das Colónias a questão da anexação, duma ou doutra forma, do vasto sultanato marroquino, que ocupa o extremo noroeste de África, entre o Oceano Atlântico e a Argélia e, a norte, o Mar Mediterrâneo.

O “partido colonial”, isto é, o dos círculos financeiros, que empurrava o governo para novas conquistas, já em 11 de Abril de 1892 tinha declarado pela boca do anterior sub-secretário das colónias Étienne (ele próprio um grande capitalista e empresário) o seguinte: “ A França percebe agora que lhe são necessários novos mercados nos países do ultramar”. Em 1894 foi criado o Ministério das Colónias. À cabeça do mesmo colocaram Théophile Delcassé, um homem enérgico e ambicioso, partidário de uma política, tanto a nível colonial como em geral, rapace e activa, que era grandemente influenciado pelo grupo mais irrequieto e empreendedor dos financeiros e colonialistas.

A partir de 1898, Delcassé assumiu o posto de Ministro dos Negócios Estrangeiros, no qual se manteve durante cerca de sete anos, até Junho de 1905. Rendera o seu antecessor no cargo, Gabriel Hanotaux, num momento em que as relações entre a França e a Inglaterra estavam extremamente tensas, e quando, pela primeira vez, nos círculos governantes da república se começava a encarar a ideia duma aproximação à Alemanha. Ao assumir o cargo, Delcassé encontrou sobre a mesa de trabalho, para despacho ministerial, a resenha das conversações de Hanotaux com o embaixador alemão, o príncipe Münster, nas quais este último formulava algumas propostas de amizade. Mas Delcassé deixou essas propostas sem resposta. A sua orientação já estava claramente definida: a França tinha um só inimigo, a Alemanha, e, para além da Rússia, o único aliado possível com que se podia contar era a Inglaterra. A aliança com a Inglaterra apresentava tais vantagens, que, para a concretizar, valia bem a pena sacrificar não só Fashoda e o Egipto como ainda outros objectivos de maior peso.

É de referir que alguns sectores da pequena e, em menor grau, da média burguesia francesa olhavam Delcassé com certa inquietação, tal como se inquietavam com os grupos de colonialistas e do grande capital que estavam por trás dele. Uma posição declaradamente negativa a respeito de Delcassé, que amiúde entrava em contradição com a orientação geral do diário em que trabalhava, foi assumida, por exemplo, pelo jornalista do Le Matin Arduin, a quem Jaurès crismou com o qualificativo de “representante típico do senso comum burguês”. Arduin temia Delcassé, temia a futura guerra (que não chegaria a ver), temia a revolução, que via como muito provável consequência dessa guerra (28).

 

(28) “O mujique apresentou as suas contas ao czar – repetia ele quando, após a guerra com o Japão, estalou na Rússia a revolução de 1905 –: tende cuidado com o vosso mujique, que também vos apresentará as suas contas se projectardes a guerra.”

 

Delcassé era, indiscutivelmente, um típico político imperialista, e como tal já se tinha revelado quando estivera à frente do Ministério das Colónias.

Sem prestar atenção aos reparos da oposição de que as possessões coloniais custavam demasiado caro ao país, de que a França, em cujas colónias se contavam cerca de 32 milhões de habitantes por meados da última década do século XIX, gastava nelas anualmente 74 milhões de francos, ao passo que a Inglaterra gastava com as suas, quando estas tinham 375 milhões de habitantes [já nos inícios do século XX], um total de 62 milhões de francos por ano, sem dar ouvidos a tais reparos, dizíamos nós, o Ministério das Colónias prosseguiu nos seus esforços de ampliar aquelas possessões. Mas no ano de 1898 esses afãs tropeçaram com um terrível escolho: como já se disse, os franceses, cedendo às ameaças inglesas, tiveram de abandonar Fashoda, que haviam ocupado no Nilo Superior. Em consequência disso, a hostilidade para com a Inglaterra ganhou grandes proporções, começando a manifestar-se de formas bastante violentas. Tornou-se claro para o partido colonialista francês que, dali em diante, seriam muito improváveis novas conquistas na África Oriental. E, por consequência, passou-se falar e a escrever muito mais amiúde sobre o Marrocos. Mas tampouco lhes era dado pensar numa conquista deste país no imediato, já que, devido à aguda inimizade com a Inglaterra, qualquer tentativa nesse sentido teria levado a novos choques com a diplomacia britânica e a uma nova humilhação ao estilo de Fashoda. Acontece que a Inglaterra ocupava o primeiro lugar entre as nações que comerciavam com o Marrocos; e, além disso, tinha interesse, do ponto de vista estratégico, em que as muito extensas costas marroquinas ao longo do Mediterrâneo e do Atlântico, nas cercanias de Gibraltar, não viessem a cair nas mãos de nenhuma outra grande potência. A isto há ainda a acrescentar que a Inglaterra se opunha de forma decidida a todas as iniciativas francesas, por mais vagas que elas fossem, contra o Marrocos. Tal se configurou a situação no período de 1890-1901.

Mas de repente a Europa inteira-se, no maior assombro, de que o rei Eduardo se iria deslocar a Paris, numa visita de demonstração de amizade. A visita teve de ser adiada devido a uma enfermidade do monarca, vindo-se a efectuar em 1903.

Imediatamente depois dessa visita, começaram a circular rumores sobre certas concessões de vulto, em África, que a Inglaterra estaria disposta a fazer aos franceses. Por último, após um trabalho preparatório ao longo de quase um ano, que se manteve no mais profundo dos segredos, foi firmado e anunciado aos quatro ventos, a 8 de Abril de 1904, o acordo anglo-francês, o qual, no seu todo, constituiu a maior das surpresas para o governo alemão.

Este acordo, cujos autores foram o rei Eduardo, pela Inglaterra, e o ministro dos Negócios Estrangeiros Delcassé, pela França, regulava, para ambas as potências assinantes, todas as questões em litígio em todas as partes do globo, todos os mal entendidos e antigas contas pendentes que nalgum lugar entre elas houvesse.

O benefício imediato e directo para a França era colossal: conforme ao documento principal do acordo, a França renunciava a qualquer pretensão sobre o Egipto, ocupado pelos ingleses; em troca, a Inglaterra reconhecia aos franceses o direito de intervir nos assuntos internos do Marrocos, prometendo não opor quaisquer reclamações nem criar nenhum impedimento às “reformas” que a França aí viesse a introduzir; quanto ao Marrocos, a França tão-só assumia o compromisso de não levantar nenhum obstáculo a que a Inglaterra continuasse a gozar dos direitos que já ali possuía, bem como a não erigir novas fortificações entre Melilla e o rio Sebou, nas cercanias do Estreito de Gibraltar. Por outras palavras, o Marrocos era deixado por completo em poder da França. Os franceses adquiriam assim um novo e enorme território colonial; bem pelo invés, os ingleses não obtinham, em concreto, qualquer nova vantagem territorial ou económica, dado que a renúncia francesa ao Egipto carecia de qualquer significado real, porquanto os franceses, rechaçados em 1899 de Fashoda, já consideravam, de qualquer modo, as suas pretensões e posições no Egipto como irrevogável e definitivamente perdidas. Pode-se dizer que esse tremendo desequilíbrio nas vantagens obtidas, em resultado do acordo, por uma e outra potência, essa “magnânima” condescendência, absolutamente insólita, da parte da Inglaterra, foi o que levantou maiores suspeitas.

Não obstante, as outras cláusulas do acordo ainda suscitaram na Alemanha uma maior impressão. Já ali se sabia, desde 1903, do que se preparava em relação ao Marrocos e ao Egipto, pois em Março desse ano o embaixador alemão, Radolin, recebera do próprio Delcassé informações sobre o assunto. Porém na Alemanha não eram conhecidos os demais pontos do tratado, que regulavam todas as questões litigiosas, todas as divergências entre a Inglaterra e a França.

Ignorava-se, por exemplo, que, em troca da renúncia a alguns privilégios de pesca nas costas da Terra Nova, a França recebia da Inglaterra dois pequenos mas muito vantajosos territórios na África Ocidental (as ilhas de Loos, ao largo de Conakry; e Yarbutenda, que, a partir do Senegal, lhe dava acesso ao troço navegável do rio Gâmbia), e consideráveis extensões territoriais na fronteira com o norte da Nigéria, alterando assim, nessa região, a partilha que aquelas duas potências tinham efectuado alguns anos antes. Estas últimas concessões de territórios coloniais ingleses, com as quais os franceses não podiam anteriormente sequer sonhar, garantiam uma mais fácil ligação entre as possessões francesas da África Ocidental e Equatorial, ajudando a integrá-las numa unidade vastíssima e compacta.

Seguidamente, para grande gáudio do “partido colonialista” francês, um outro ponto do acordo estabelecia a repartição do Siam em esferas de influência por ambos os signatários. E por último, os ingleses, que desde 1894, ano em que a França declarara a guerra a Madagáscar, nunca tinham cessado de reclamar pelos seus direitos de livre comércio na ilha, e que, logo que os franceses aí introduziram uma tarifa alfandegária danosa para os comerciantes estrangeiros, tinham passado a apresentar protestos furiosos e encarniçados, acabavam agora de declarar, bem ao invés, que renunciavam a todos os seus direitos.

Tais eram os pontos principais, os que se apresentavam como decisivos, no acordo do 8 de Abril de 1904. A França obtinha enormes benefícios e aquisições de territórios, e recebia-os das mãos do seu temível inimigo secular, célebre pela sua obstinação, avidez e irredutível tenacidade na defesa das posições por si já adquiridas. Duma só vez, todos os mal-entendidos e litígios se resolviam em favor da França (28); todos os desejos, e inclusive as mais remotas fantasias da França, se tornaram realidade; a Inglaterra substituía, da noite para o dia, a sua posição hostil e desconfiada face à França pela mais amigável e solícita, para com ela, das políticas. Tudo isto era duma tal raridade que não faltaram diplomatas europeus a estimar que se levantassem protestos no parlamento britânico; mas nada disso aconteceu. O acordo foi aceite pelos partidos ingleses sem a menor oposição, quase como se a isso se tivessem resignado.

 

(29) Todas as tentativas ulteriores de apresentar o acordo como desvantajoso para a França nunca tiveram o menor êxito, e, actualmente [1927], não há na historiografia francesa nenhuma dissensão a este respeito.

 

Uma natural inquietação começou a apoderar-se dalguns círculos governantes na Alemanha. E a única interpretação que podiam fazer de todo o acontecido era a seguinte: a Inglaterra dispunha-se a todos os sacrifícios, por mais ingentes que fossem, para extirpar de vez as más relações com a França e a assegurar como aliada no caso de conflito contra a Alemanha. Esta conjectura era, desde logo, perfeitamente acertada, e depressa se transformou em certeza absoluta. Para além deste aspecto da questão, o mais sério e inquietante, nas esferas comerciais, industriais e colonialistas da Alemanha crescia a ira perante a ideia de que o vasto sultanato marroquino, bem próximo da Europa, com grandes riquezas minerais e diversas regiões muito férteis, havia de cair quase por inteiro nas mãos dos franceses (pouco mais do que uma estreita faixa no norte do Marrocos, através dum acordo especial, passou para o domínio de Espanha), e de que a Alemanha perdia assim a possibilidade – por sinal a última, dado que no globo terrestre já não havia livre nenhum outro território de valor económico assinalável – de poder adquirir ao menos uma colónia que pudesse comparar-se às ricas possessões da França e Inglaterra. Acresce, por fim, que a Alemanha detinha grandes interesses comerciais e industriais no Marrocos, interesses esses que, uma vez ali instalado o poder francês, passariam a estar em perigo.

 

4. INTERVENÇÃO DA DIPLOMACIA ALEMÃ. A VIAGEM DE GUILHERME II A TÂNGER. DEMISSÃO DE DELCASSÉ.

 

Todas estas considerações impeliam a diplomacia alemã para a luta. Eram a favor duma reacção enérgica o director-geral do ministério das Relações Exteriores, Fritz von Holstein, o chanceler von Bülow, que era inspirado pelo primeiro, e ainda Guilherme, a quem sem grande esforço puderam persuadir de que, mediante um único golpe bem assestado, seria possível arrancar a França dos braços de Inglaterra e, ao mesmo tempo, impedir que os franceses se consolidassem no Marrocos.

Contudo era-lhes necessário esperar mais um pouco: a guerra russo-japonesa ainda não acabara e, por isso, havia que aguardar pela derrota final da Rússia para que a França ficasse completamente isolada. Em Fevereiro e princípios de Março de 1905 o exército russo foi definitivamente batido em Mukden, e, nesse mesmo mês de Março, Guilherme partiu em viagem de cruzeiro no seu iate, tendo feito escala em Tânger (no Marrocos), onde, no dia 31, num banquete dado em sua honra pela colónia germânica, ao pronunciar o seu discurso, tratou de sublinhar que via o Marrocos como um país independente e o sultão como a sua autoridade suprema, não dependendo esta de ninguém. Esta declaração visava directamente o acordo complementar (que não fora publicado mas era de todos conhecido) entre a França e a Inglaterra, o qual previa, em termos concretos, a possibilidade de ser estabelecido o protectorado francês no Marrocos, abolindo assim por completo a autoridade do sultão.

A impressão que causou a viagem de Guilherme e o seu discurso foi enorme. E os meses de Abril e Maio decorreram na mais tensa expectativa. Em França sentia-se um alarme muito sério. Era impensável entrar em guerra com a Alemanha por causa do Marrocos. Desde logo, era impossível enviar um exército para a matança quando o que estava em jogo era uma nova aquisição colonial de que praticamente ninguém sabia nada e na qual quase ninguém, salvo os financeiros nela interessados, também sequer pensava: isso seria visto como um crime monstruoso e infame, e não seriam só os socialistas a dizê-lo, podendo a situação acabar num movimento revolucionário de protesto. Em segundo lugar, a Rússia estava de tal modo enredada na guerra contra o Japão que era impossível contar com qualquer ajuda da sua parte. Em terceiro lugar, e não obstante o acordo com a Inglaterra, não havia a menor garantia de que esta lhes viesse a acudir de imediato em socorro, nem de que uma eventual ajuda sua nas operações terrestres pudesse ser de alguma eficácia; inclusive o próprio Delcassé, partidário de que se oferecesse resistência às pretensões da Alemanha, apenas pôde prometer, em sessão do Conselho de Ministros, caso se fosse para a guerra, o apoio de 100.000 ingleses que desembarcariam no Schleswig, ajuda esta que, por outro lado, apenas fora aventada em conversações e em nada comprometia o governo inglês. E quanto a combater a Alemanha numa relação de forças de um para um, a França não estava de modo algum em condições de o fazer, porquanto a sua capacidade bélica era, à época, insuficiente. Ao mesmo tempo, vindas da Alemanha, as ameaças faziam-se ouvir umas atrás das outras. A 6 de Junho de 1905 teve lugar uma sessão do Conselho de Ministros para se decidir sobre o problema e Delcassé, completamente isolado, teve de se demitir. Fora decidido ceder.

A cedência por parte do governo francês, então encabeçado por Rouvier, consistiu em anuir, é certo que não de imediato, mas duas semanas e meia depois (I), ao peremptório requerimento da Alemanha de que o destino do Marrocos fosse estabelecido por uma conferência das potências europeias. No decurso dessas duas semanas e meia (I), Rouvier fez uma proposta à Alemanha no sentido de se liquidar o assunto sem a conferência geral: por acordo amigável entre ambas, os franceses cederiam à Alemanha uma parte do Marrocos. Para a Alemanha esta teria sido a solução mais vantajosa, porém Guilherme não a aceitou. Os diplomatas alemães tiveram de se arrepender amargamente disso por muito tempo, reconhecendo o erro fatal que haviam cometido: o governo francês não reiterou a sua proposta e os alemães jamais voltaram a ter outra oportunidade como essa.

 

(I) De facto, a anuência definitiva de Rouvier à celebração da conferência deu-se a 8 de Julho de 1905, portanto, 4 semanas e meia após a demissão de Delcassé, e não duas semanas e meia depois. Mas o que Tarlé deve estar aqui a referir é o momento em que Rouvier desistiu de tentar resolver a questão por acordo directo entre o seu país e a Alemanha, e passou à discussão dos termos concretos de convocação da conferência, anuindo-lhe assim de princípio.

 

É difícil de dizer porque é que Guilherme e, também, Bülow e Holstein, que estavam por trás dele, acreditavam que uma conferência geral de potências seria mais vantajosa para a Alemanha. Esta conferência iniciou os seus trabalhos em meados de Janeiro de 1906 na pequena cidade de Algeciras. Prolongou-se por quase três meses e levou a um acordo que, apesar de não colocar o Marrocos sob protectorado francês, concedia à França e à Espanha o direito de organizarem a polícia marroquina, assegurando ademais à primeira uma posição de preeminência (de facto) sobre as finanças marroquinas. Era garantida aos cidadãos de todas as potências a liberdade de actividade económica no Marrocos. Ainda a favor da França, reconheciam-se alguns direitos especiais nas regiões marroquinas limítrofes com a Argélia, que já estava sob domínio francês.

Na conferência, a França foi apoiada pela Inglaterra, Rússia, Itália e Espanha; a própria Áustria apenas apoiou a Alemanha com o seu voto e dum modo absolutamente formal. É certo que a França não conseguiu tudo aquilo que poderia esperar na base no acordo anglo-francês de 1904. Mas a Alemanha também ficou muito longe de conseguir o que pretendia.

O inteligente e penetrante crítico da diplomacia alemã do anteguerra, o barão Eckardstein, primeiro conselheiro da embaixada em Londres, afirma nas suas memórias que não havia na política germânica qualquer plano ou ideia definida, nenhum objectivo director a respeito do Marrocos; que não se sabe para quê a Alemanha se tinha metido em tal vespeiro, porque é que havia deixado passar a excelente oportunidade de liquidar o litígio com a França por meio dum acordo directo, quando Rouvier o propusera em Junho de 1905, porque é que se tinha convocado a conferência em Algeciras para debater a questão marroquina quando de antemão se sabia que todas as potências, à excepção da Áustria, se iam pôr do lado da França.

No balanço dos seus esforços políticos e intervenções, culminada a conferência de Algeciras, Guilherme II e os seus conselheiros podiam verificar que os franceses, aproveitando a vizinhança da Argélia e os direitos especiais que lhes haviam sido reconhecidos, tinham ganho a possibilidade de, no futuro, minar omnimodamente a independência do Marrocos, ao passo que os alemães apenas estariam em condições de lutar fazendo uso de um instrumento incerto, incómodo e penoso: a convocação de novas conferências internacionais onde receberiam um apoio tão escasso quanto o que fora recolhido em Algeciras.

E no que toca ao essencial: não se conseguira debilitar a Entente, isto é, não se esmorecera, em França, o movimento de opinião a favor duma aliança com a Inglaterra. Bem pelo contrário, o alarme por que tinham passado na Primavera de 1905 obrigou as esferas governantes francesas a procurar não apenas conservar, mas também aprofundar e ampliar os novos laços que ligavam a França e a Inglaterra. A Rússia encontrava-se terrivelmente enfraquecida devido à sua derrota na Manchúria e, vindo logo após, a revolução de 1905 afastara-a temporariamente de uma política externa activa. Face a tais circunstâncias, a Inglaterra representava para os governantes da França o seu único apoio contra a Alemanha. A diplomacia inglesa, por seu lado, aproveitava habilmente o estado de ânimo que se acabava de criar em França em consequência do alarme experimentado com a questão marroquina, e explorou largamente a ideia lançada em descuido por Holstein na imprensa alemã: se a Inglaterra atacasse a Alemanha, esta ressarcir-se-ia à custa da França, em terra firme, de todas as perdas que viesse a sofrer nos mares. Isto significava que, em face do que pudesse acontecer, e para todos e quaisquer efeitos, a França se convertia numa espécie de refém da Alemanha. Iniciou-se então, em França, uma febril preparação do exército (que não mais cessou até ao próprio ano de 1914, se bem que nem nesta data estivesse completamente terminada). O dirigente do partido radical, Clemenceau, lançou-se numa campanha de agitação em prol da transformação do acordo anglo-francês numa aliança formal e exigia dos ingleses a rápida formação de um grande exército terrestre. Na própria Inglaterra estava a crescer o número dos partidários desta aliança.

Assim, após aquele primeiro golpe, a Entente não só não se desagregara como surgia robustecida. Na imprensa nacionalista e nos órgãos periódicos dos grandes industriais falava-se, em especial, da necessidade duma intervenção decisiva, capaz de arrancar a França dos braços da Inglaterra. Todavia, ainda antes disso acontecer, a diplomacia germânica resolveu levar a cabo uma tentativa de quebrar a aliança franco-russa.

 

5. A ENTREVISTA DE GUILHERME II COM NICOLAU II EM BIÖRKÖ. O PACTO DE BIÖRKIÖ. A ANULAÇÃO DESTE PACTO.

 

A ideia de que a Alemanha tinha de ser compensada face à aproximação anglo-francesa não abandonava Guilherme, e foi com base nela que, pelos meados de 1905, ocorreu um acontecimento que suscitou muito ruído e não menos agitação na Europa, mantendo-se por muito tempo um enigma tanto para o grande público como para os dirigentes políticos europeus. O que então se passou foi posto a claro pouco depois da revolução russa, quando se publicaram os documentos atinentes a este assunto (30).

 

(30) Ver: 1) o meu artigo “A correspondência de Guilherme II e Nicolau II” e o texto inglês dos telegramas por eles trocados em 1904-1907, na revista Byloie (“O passado”), 1917, Nº 1 (reproduzido no meu livro “O Ocidente e a Rússia”, 1918, págs. 183-219); 2) “Correspondência de Guilherme II com Nicolau II”, Prólogo de M. N. POKROVSKI (Moscovo-Petrogrado, 1923); 3) Os documentos que se referem ao tratado de Biörkö publicados no Krasny Arkhiv (“Arquivo Vermelho”), 1924, Nº 5, págs. 5-49 (trata-se de testemunhos preciosos).

 

Os sucessos apresentaram-se, nos seus traços gerais, da seguinte maneira:

Aproveitando as graves derrotas sofridas pela Rússia logo a partir do próprio início da guerra contra o Japão, e tendo-se dado conta do real isolamento à época de Nicolau II, bem como da sua irritação face à atitude da França, a qual, precisamente em Abril de 1904, nos primeiros meses da guerra russo-japonesa, estabelecera relações de amizade com a Inglaterra quando esta era uma inimiga declarada da Rússia, Guilherme resolveu tentar destruir a aliança franco-russa.

Logo nos finais de Outubro desse ano de 1904, Guilherme aludiu, em carta a Nicolau II, a “uma coligação das três mais poderosas potências continentais”, ou seja, da Rússia, da França e da Alemanha. Esta ideia foi-lhe sem dúvida sugerida por Fritz von Holstein. “Senti-me sumamente surpreendido quando, faz dois dias, me foi informado extra-oficialmente que o barão Holstein, primeiro conselheiro do Ministério das Relações Externas, me quer ver. Você por certo recordará, prezado conde, que este importante personagem, quiçá o verdadeiro inspirador da política do gabinete berlinense, se mantinha invisível para os embaixadores oficiais...”. Assim informava a 27 de Outubro de 1904 o embaixador russo em Berlim, Osten-Sacken, ao ministro das Relações Externas, Lamsdorf. Holstein tinha expressado na oportunidade essa mesma ideia duma aliança entre a Rússia, a França e a Alemanha.

A proposta era de que a Rússia e a Alemanha concertassem uma aliança, e logo depois, em conjunto, solicitassem à França a respectiva adesão. Holstein e, após ele, o chanceler, von Bülow, bem como muito em especial Guilherme não duvidavam de que a França se sentiria atemorizada e haveria de aderir. Mas mesmo que tal não acontecesse, a aliança franco-russa, com a sua aguçada ponta virada contra a Alemanha, seria de qualquer modo definitiva e irremediavelmente destruída.

Porém, na Rússia (especialmente a partir de 1904 e inícios de 1905), e ainda que o próprio Nicolau se inclinasse para firmar o tratado com a Alemanha, Lamsdorf, vendo nisso uma armadilha por parte de Guilherme, opôs-se energicamente: era por demais evidente que o objectivo principal consistia em fazer com que a Rússia se malquistasse com a França. Lamsdorf destacava a Nicolau (31), de forma bem vincada, que não se podia de modo nenhum agir em relação à França por meio de “intimidações, que era o que Guilherme mais desejava, porquanto a mera tentativa duma “intimidação” já bastaria para fazer em tiras o tratado de aliança franco-russa.

 

(31) Ver, por exemplo, o informe de Lamsdorf de 15 de Novembro de 1904, no Krasny Arkhiv (“Arquivo Vermelho”), 1924, t. V, pág. 22.

 

Assim continuaram as coisas até ao Verão de 1905, quando Guilherme II, durante um dos seus cruzeiros pelos mares setentrionais, resolveu organizar, de repente e às ocultas do seu próprio séquito, uma entrevista com Nicolau em Biörkö, no Golfo da Finlândia. Teve então ali lugar um golpe de teatro que Guilherme descreveu numa carta dirigida ao chanceler Bülow, descrição essa que só veio a público nos inícios de 1926. No final, ele, Guilherme, havia conseguido levar o czar a apor a sua firma no tratado. Tal como a pinta (é a palavra exacta, pinta) na sua missiva a Bülow, Guilherme teve a sensação de que essa cena da assinatura do tratado estava a ser observada, desde os céus, pelo rei prussiano Frederico Guilherme III, o imperador russo Nicolau I e outros membros das respectivas dinastias que, no passado, haviam mantido entre si relações amistosas (Guilherme, quando o visado era Nicolau II, de todas as vezes que lhe tentava fazer uma picardia nunca deixava de deitar mão dessas evocações sentimentais religiosas e dinásticas).

O tratado foi celebrado em Biörkö a 24 (11 de Julho) de 1905, firmando-o, pela Alemanha, Guilherme e von Tschirschky und Bögendorff e, pela Rússia, Nicolau e o almirante Birilyov, que se achava ali presente por acaso. Os artigos mais importantes eram o primeiro e o quarto. O primeiro dizia: “Caso um dos dois impérios seja atacado por alguma das potências europeias, o aliado acudirá em sua ajuda, na Europa, com todas as suas forças terrestres e navais”. E no artigo quarto podia ler-se: “O imperador de todas as Rússias, imediatamente após a entrada em vigor do presente tratado, encarregar-se-á dos passos necessários para o dar a conhecer à França e lhe propor que a ele adira na qualidade de aliada”.

É difícil de dizer se o imperador Nicolau II entendeu muito bem aquilo que estava a fazer quando assinou o tratado. Mas Lamsdorf e Witte, ao inteirarem-se do sucedido, ficaram espantados. “Que fique entre nós: parece-me que em Biörkö estavam num certo e determinado estado de espírito, e não se deram conta do verdadeiro fito perseguido pelo imperador Guilherme, que é o de destruir por completo a aliança franco-russa e ganhar a possibilidade de nos comprometer definitivamente em Londres e em Paris. A Rússia isolada e numa inevitável dependência da Alemanha – aí está a velha ilusão do imperador Guilherme”. Era o que escrevia o ministro Lamsdorf ao embaixador russo em Paris, Nelidov, a 28 de Setembro de 1905. Nelidov, por sua parte, no decorrer das conversações com Rouvier, presidente do conselho de ministros francês, tinha-se convencido de que a França responderia com uma categórica negativa se lhe viessem a solicitar que aderisse à aliança germano-russa. A situação tornara-se insustentável. Como se haveria de cruzar este Rubicão? Lamsdorf estava tão irritado com Nicolau II, por este o ter colocado numa posição absurda, que já nem sequer se dava à maçada de escondê-lo. “Tenho de lhe comunicar – escrevia de novo a Nelidov a 9 de Outubro de 1905 – que já faz quase um ano que o imperador Guilherme vem insistindo junto do nosso pobrezito, querido, augusto monarca sobre a necessidade de se firmar com ele um tratado de aliança defensiva, e de obrigar a França, na qualidade de nossa aliada, a que adira ao mesmo. Logrei impedir esta tosca tentativa fazendo compreender ao imperador que o objectivo principal de Guilherme, senão mesmo único, consiste em fazer-nos lutar com a França e, à nossa custa, sair ele do isolamento.”

A argumentação de Lamsdorf e de Witte impôs-se e Nicolau fez saber a Guilherme que, caso a França se negasse a aderir ao tratado de Biörkö, este careceria de valor e teria de ser modificado, mais precisamente, nos seus artigos 1º e 4º. Lamsdorf nem sequer quis apresentá-lo oficialmente à França nem coisa que se assemelhasse: “Eu não ocultei a Sua Majestade Imperial que se o tinha obrigado, quase pela força, a fazer algo de absurdo, e que as obrigações que havia tomado sobre si se acham em contradição indecorosa (sublinhado por Lamsdorf; nota de E. Tarlé) com as que em relação à França o seu augusto pai tomara no lapso de 1891-1893”. Lamsdorf estava terrivelmente enfurecido. “Aqui tem, prezadíssimo Alexandre Ivanovich – escrevia o ministro a Nelidov –, o novo atoleiro em que gratuitamente havemos caído depois das tão arriscadas peripécias dos últimos dois anos. Pode você imaginar-se quão confortante tudo isto é! Mas há que procurar sair do atoleiro com o menor prejuízo. É indubitável que o imperador Guilherme se enfurecerá por causa desta defecção. E não procurará ele, com a falta de escrúpulos que o caracteriza, fazer revelações em Paris e em Londres que possam causar dano à Rússia?”

Guilherme, com efeito, ficara sumamente decepcionado com a defecção de Nicolau, e esforçou-se por demonstrar-lhe (telegrama de 29 de Setembro de 1905) que “as obrigações da Rússia em relação à França só podem ter valor na medida em que esta (a França), pela sua conduta, possa merecer o seu cumprimento”; assinalando ainda que “Deus foi testemunha” do que ele e Nicolau tinham firmado em Biörkö: “O que está firmado, firmado está!” Mas isto de nada lhe valeu: a afoita intervenção de Lamsdorf e Witte tivera um efeito decisivo sobre o czar.

O pacto fracassara, pois, sem remissão, e Guilherme sabia-o perfeitamente desde o início de Outubro de 1905, dado que então o governo russo se tinha mesmo recusado a iniciar qualquer tipo de conversações oficiais com os franceses, aos quais nem sequer se atrevia a mostrar o texto do acordo de Biörkö. Nos meses de Outubro e Novembro, todavia, trocou-se ainda alguma correspondência sobre o assunto, mas tal facto já não tinha qualquer valor nem fazia nenhum sentido. A última carta que Guilherme dirigiu a Nicolau II onde se menciona o ocorrido em Biörkö está datada de 28 de Novembro de 1905. Nesta missiva, Guilherme já não nutre qualquer esperança de êxito. Apenas procura esconder a sua irritação, entregando-se a “evocações” fantásticas do czar Alexandre III (o qual, como é sabido, não podia suportar Guilherme II, sentindo por ele uma antipatia mórbida que nem sequer se dava ao trabalho de esconder): “O teu querido pai...achava-se comigo mas mais amigáveis e cordiais relações. Por exemplo, durante as manobras militares nas cercanias de Narva, manifestou-me francamente a sua repugnância pelo regime republicano francês e pronunciou-se a favor do restabelecimento da monarquia em Paris, e pediu-me que o ajudasse nessa empresa.” Esta curiosa e evidente invenção (pueril e demasiado à mostra, como sempre sucedia com Guilherme) visava, desde logo, censurar Nicolau por não querer seguir as pisadas do seu pai e não desejar, “nem sequer”, cooperar com Guilherme para “intimidar” a França.

Todo este sucesso havia chegado ao fim. O incidente de Biörkö fora liquidado. Na Primavera de 1906, na conferência em Algeciras convocada para discutir a questão do Marrocos, a Rússia apoiou inteiramente a França em todas as suas pretensões e aspirações, votando invariavelmente contra a Alemanha. Simultaneamente, em Paris, e sob a supervisão do conde Witte, V. N. Kokovtzev concluía com êxito o célebre “empréstimo da Duma ” (que, sendo assim chamado, proporcionaria um pouco mais tarde, em Julho de 1906, a possibilidade de dissolver a primeira Duma). O comportamento do delegado russo em Algeciras estava estreitamente ligado à negociação do dito empréstimo (32). Tornava-se claro que os alicerces financeiros e políticos da aliança franco-russa permaneciam incólumes. E, para mais, a partir da segunda metade desse ano de 1906, tinham começado a chegar à Alemanha os primeiros rumores de que Eduardo VII também queria incluir a Rússia na Entente.

 

(32) S. Y. Witte, “Memórias”, t. II, Moscovo-Petrogrado, Ed. Giz, págs. 174-198 (O empréstimo).

 

6. O ACORDO ANGLO-RUSSO DE 31 DE AGOSTO DE 1907. A CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DA ENTENTE.

 

A partir dos primeiros meses de 1907, já não restava qualquer dúvida de que entre a Inglaterra e a Rússia se estavam a efectuar negociações muito activas.

Mas o problema, logo à primeira vista, revelava-se ainda mais difícil do que aquele que fora resolvido pelas diplomacias francesa e inglesa em 1904. A inimizade entre os dois países remontava ao século XVIII, e agudizara-se duma forma extrema na primeira metade do século XIX, não obstante o facto das exportações russas de cereais, cânhamo, linho e outros produtos agrícolas, em grau muito considerável, terem então como destino precisamente a Inglaterra e da classe dos latifundiários russos, dado que vendia esses produtos nos mercados externos, estar directamente interessada em manter boas relações políticas com os ingleses.

Contudo a animosidade provinha mais do lado dos ingleses que do governo russo: Nicolau I, em várias e repetidas oportunidades – em 1826-1827, durante a sua visita a Londres em 1844, de novo em 1850-1852 e pouco antes da guerra da Crimeia – tentara chegar a um acordo. Mas nenhuma destas tentativas foi capaz de produzir resultados duradouros, pois soçobravam ao embaterem na desconfiança dos ingleses.

O problema era que a rápida expansão territorial do império russo para sudoeste, sul e sudeste, em três flancos, portanto, constituía uma ameaça para a Índia: as ambições em relação a Constantinopla, que as esferas governantes e palacianas russas acalentavam já desde a oitava década do século XVIII, o movimento em direcção à Transcaucásia e, mais além, à Pérsia e, por fim, o avanço na Ásia Central, começado com Nicolau I e prosseguido em larga escala no reinado de Alexandre II, eram três linhas de expansão da Rússia noutras tantas direcções que, aos olhos dos dirigentes da estratégia e da diplomacia inglesas, constituíam uma ameaça directa dirigida contra a Índia a partir de várias frentes. A Inglaterra empunhou as armas em 1854 para proteger a Turquia dos planos de conquista russos; e à medida que a Rússia foi conquistando o Turquestão, Bukhara, Khiva, também ia crescendo a inquietação e a resistência inglesa; em 1878 começara-se de novo a falar duma guerra da Inglaterra contra a Rússia a pretexto de salvar a Turquia; em 1884-1885, após a cidade de Merv ter sido ocupada e dos exércitos russos terem chegado junto às fronteiras do Afeganistão, a tensão nas relações voltou a agudizar-se ao extremo; e quando, a 17 (30) de Março de 1885, o general russo Komarov infligiu uma derrota às tropas afegãs que tinam sido enviadas a combatê-lo e ocupou o riquíssimo oásis de Panjdeh, que, logo  de imediato, podia servir como base de operações para uma ulterior ofensiva sobre Herat, Gladstone, o primeiro-ministro inglês, pronunciou um áspero discurso no parlamento e incentivou a rainha Vitória a dirigir-se directamente, num telegrama assaz ameaçador, ao czar Alexandre III. O avanço russo deteve-se, fez-se a paz com o Afeganistão e, em poucos anos, uma comissão especial ad hoc demarcou as novas fronteiras entre a Rússia e aquele país. A Rússia estendia-se agora até às próprias portas da Índia.

Se pouco faltou para que o conflito degenerasse numa guerra ainda durante o governo de Gladstone, que, em geral, procurava manter relações pacíficas com a Rússia, já por sua vez durante o governo conservador de Salisbury que se lhe seguiu e quando, após um breve intervalo, o poder retornou às mãos desse mesmo gabinete conservador, no lapso de 1886-1992, aquelas relações tornaram-se muito tensas, caracterizando-se por uma inocultável mútua e recíproca malquerença.

A partir de 1896 às antigas causas de dissensão veio acrescentar-se uma nova: a política da Rússia no extremo Oriente ameaçava engolir toda a China Setentrional e, desta ou doutra forma, prejudicar muito seriamente os interesses políticos e económicos da Inglaterra. O tom da imprensa oficial e dos círculos próximos do governo russo tornou-se, em especial a partir de 1899, mais e cada vez mais áspero. As desditas da Inglaterra no primeiro ano da guerra contra os boers nutriram de modo especial as esperanças àqueles para quem a conquista da Índia não parecia ser coisa muito difícil. “Os couraçados ingleses não podem correr para Herat como se fossem lagartos”, “A Inglaterra vai pela riba abaixo e a Rússia em direcção ao cume”, “A Rússia é um país jovem com ambições militares”, escrevia o diário Novoie Vremia. Ideias semelhantes eram repetidas por outros periódicos considerados como vozeiros das opiniões do governo russo. E quando, em 1992, logo após o fracasso do oferecimento dum acordo à Rússia, o diplomata nipónico marquês Ito veio a Londres, o gabinete conservador aceitou sem a mais pequena hesitação todas as suas propostas, concluindo-se assim o acordo anglo-japonês. Este acordo, como é óbvio, foi o prólogo imediato para o Japão entrar em guerra contra a Rússia. Com esta guerra, o Japão sustentava não apenas a sua própria causa mas também a inglesa: a expansão da Rússia para o Pacífico e em direcção ao interior da China seria detida, sem qualquer dúvida, e por longo tempo.

Ora foi precisamente então, não obstante toda a simpatia inglesa revelada face ao triunfo japonês, e não obstante se haver reforçado a aliança anglo-nipónica, que os diplomatas japoneses (já logo nas negociações que levaram à paz de Portsmouth) começaram a advertir – como, com toda a discrição, o anotaria posteriormente a imprensa japonesa – algo que não era completamente claro: parecia-lhes que a Inglaterra já não apoiava o Japão na mesma medida em que o fizera durante o conflito armado. O propósito de Eduardo VII, compartilhado na íntegra pelo gabinete britânico, só foi de todo apercebido meramente dois anos mais tarde, ou seja, não no início do mês de Setembro de 1905, quando se assinou a paz russo-japonesa em Portsmouth, mas em Agosto de 1907, aquando da firma do acordo anglo-russo.

O que de facto sucedeu foi que a guerra russo-japonesa e a derrota russa alteraram por completo a situação no jogo diplomático: era evidente que tanto na China como nas fronteiras da Índia, como em qualquer outro lugar da Ásia, ao menos temporariamente, a Inglaterra não teria de abrigar qualquer receio face à Rússia, de tal modo a esta lhe faltavam as forças para empreender qualquer acção que pudesse ali constituir uma ameaça. Mas, por outro lado, e não obstante tudo o que se referiu, a Rússia podia ser muito, mas mesmo muito útil numa luta contra a Alemanha, e, por isso, fazer com que ela se debilitasse excessivamente em prol do Japão era coisa que não estava nos cálculos imediatos dos ingleses. Nos anos mais próximos a Rússia não estaria, é certo, em condições de atacar a Alemanha; mas, dado que a história já tinha demonstrado que a Rússia era capaz de se refazer com muita rapidez duma derrota, e tendo em consideração que a Rússia não se encontraria só numa guerra contra a Alemanha, mas havia de operar em conjunto com duas potências de primeira linha, era possível de antemão afirmar que, no relativo à política europeia, a Rússia ver-se-ia bem depressa em condições de desempenhar, apesar de tudo, um papel algo mais relevante do que na política asiática. E, no que respeita a esta última frente política, o certo é que a Inglaterra e o Japão já se tinham assegurado, daí em diante e por acordo formal, o mútuo apoio no resguardo da inviolabilidade das suas possessões asiáticas, caso qualquer outra potência viesse a atentar contra elas.

No período histórico que se avizinhava seria, pois, ainda assim possível utilizar a Rússia contra a Alemanha. Contudo também esta questão tinha que ser resolvida com rapidez e, por assim dizer, duma forma talhante, isto é, de modo a que a secular hostilidade entre as duas nações fosse radicalmente substituída por uma estreita “amizade” política e pela mais perfeita colaboração; e tudo isto havia de ser feito logo após a guerra russo-japonesa de 1904-1905, iniciada e levada a cabo pelos japoneses a instigação e com o poderoso apoio financeiro e diplomático dos ingleses. Também aqui, portanto, tal como sucedera com a França, eram precisos sacrifícios, sendo igualmente necessário resolver todas as questões em disputa e encontrar soluções que fossem capazes de satisfazer, naquele momento, de forma real e efectiva as esferas governantes russas.

Na Primavera de 1907 as negociações entre os dois governos já iam de tal maneira adiantadas que em toda a Europa se começou a falar abertamente do que nelas estava em gestação. A intranquilidade na imprensa alemã era bem mais pronunciada do que em 1904, quando se celebrou o acordo anglo-francês. É certo que da Rússia vinham asserções muito explícitas no sentido de que o acordo em elaboração de modo nenhum se dirigia contra a Alemanha; é também verdade que dali não podia vir qualquer perigo imediato, pois que a Rússia se achava por demais enfraquecida e, além disso, consideravam os círculos políticos europeus, dado que a revolução russa não estava ainda totalmente dominada. Contudo, a julgar pela imprensa direitista e, em parte, pela liberal, o que mais inquietava a Alemanha era o programa inglês de cercá-la com um anel de potências hostis, programa que ia-se desenvolvendo duma forma cada vez mais clara e aberta. A Einkreisungspolitik von Edward – a “política de cerco conduzida por Eduardo VII” – transformara-se no assunto predilecto da imprensa política germana. A imprensa social-democrata também prestava muita atenção e experimentava grande inquietude relativamente aos novos acontecimentos que se vinham desenhando. Acusava a diplomacia alemã de inépcia e de cometer erros que, em seu juízo, haviam conduzido a tais resultados. O sector mais à esquerda da social-democracia, anti-revisionista, via no giro que estavam a tomar os acontecimentos uma nova prova de que, a não haver uma reacção extremamente enérgica por parte do proletariado internacional, o nó górdio da política europeia seria cortado pela espada, e de que o enfraquecimento do espírito revolucionário da classe operária havia de trazer consigo, infalivelmente, o recrudescer dos ânimos belicistas nas camadas do grande capital em todas as grandes potências, o que conduziria a Europa directamente para a guerra.

Assim, duma maneira ou doutra, a atenção das mais diversas camadas do povo alemão estava centrada nas conversações anglo-russas; ou melhor, no próprio facto delas estarem-se a processar, porquanto o seu conteúdo real mais se podia adivinhar do que verdadeiramente conhecer. Nos demais países, tocando-lhes esta reviravolta da política inglesa menos directamente, também era menor o interesse. Mas, não obstante, a enorme importância deste acontecimento era reconhecida em todo o mundo.

Entretanto, em Petersburgo e em Londres os trabalhos avançavam a pleno vapor. Pelos materiais actualmente [por volta de 1927] extraídos dos arquivos secretos do ministério russo das Relações Externas, pudemos agora saber que o governo czarista, sem levantar quaisquer dificuldades, foi ao encontro da principal exigência inglesa, ou seja, deu o seu assentimento à criação de garantias especiais que acautelavam a segurança do Afeganistão contra qualquer ingerência russa. Eis como se exprimia Kokovtzev, o ministro das Finanças, que era também, à época, uma das pessoas com mais influência nas questões da política exterior: (33) “As lições do passado persuadem-nos da necessidade de seguir exclusivamente uma política realista, isenta de imprevistos e de desvios de qualquer tipo. Seguindo este ponto de vista, a lonjura a que o Afeganistão está de nós e a sua inacessibilidade à nossa influência hão-de obrigar-nos a reconhecê-lo fora da esfera dos nossos interesses imediatos, do que devemos informar de forma muito explícita a Inglaterra, para a qual a questão afegã é vital. Mediante uma declaração tão aberta, quiçá logremos apaziguar os receios da Inglaterra e evitar atritos indesejáveis e perigosos. Por outro lado, a importância de um acordo com a Inglaterra é tão grande que, para alcançá-lo, quiçá poder-se-ia transigir em parte nas questões estratégicas, forçosamente vinculadas à questão afegã.”

 

(33) I. Reisner, “O convénio anglo-russo de 1907 e a partilha do Afeganistão”, Krasny Arkhiv (Arquivo Vermelho), 1925, t. X, pág. 55.

 

O governo russo assumiu essa linha de conduta. Os ingleses não faziam segredo das suas pretensões e exigiam ver reconhecida a sua plena liberdade de acção naquele país: “A eventualidade de operações militares das tropas britânicas no Afeganistão há-de-se ter sempre presente, não apenas para a defesa do tratado afegano-inglês mas também para assegurar o cumprimento da presente convenção”, foi o que declarou a Inglaterra já no final das próprias negociações (34).

 

(34) I. Reisner, ibidem, pág. 58.

 

Outra exigência mais da parte da Inglaterra (também orientada no sentido de defender os acessos à Índia), dizia respeito ao Tibete. A Inglaterra pretendia que a Rússia se abstivesse em absoluto de interferir, por qualquer meio ou forma, nos assuntos tibetanos e, inclusive, que se comprometesse a não enviar para ali qualquer tipo de expedição “científica” ou outra, obrigando-se a não pôr em causa, sob nenhum pretexto, a inviolabilidade do território tibetano. A Inglaterra comprometia-se por sua parte a cumprir idênticas obrigações; anotarei de passagem que, no que toca à penetração no território do Tibete, e dadas todas as condições do convénio, os ingleses, desde que o quisessem, podiam prossegui-la com muito maior facilidade do que os russos.

Tais eram as principais exigências dos ingleses. E que ofereciam eles em troca?

Ofereciam em essência e, aliás, de forma bem pouco disfarçada uma partilha da Pérsia. O ministro russo das Relações Externas, Izvolski, sustentava por completo a opinião de que o acordo com a Inglaterra era um ajuste sumamente apetecível, porquanto só o mesmo podia proporcionar à diplomacia russa a possibilidade de desenvolver, a partir dali, uma política algo enérgica no Médio Oriente, posto que, com a paz de Portsmouth, o Extremo Oriente tinha de ser relegado para o esquecimento. Mas mesmo aqueles que não compartilhavam do ponto de vista de Izvolski se mostraram entusiasmados com a proposta inglesa no que tocava à Pérsia: os ingleses cediam aos russos a parte norte, a mais rica, e ficavam com o sul, uma parte mais pequena e pobre, dando assim a possibilidade à Rússia de ocupar uma posição estratégica extremamente sólida, donde podia lançar um ulterior movimento para sul, para o Golfo Pérsico, se as relações com a Inglaterra viessem a sofrer no futuro qualquer perturbação de maior. A zona “neutra” que dali em diante ia separar as respectivas esferas de influência não constituía um obstáculo de monta e, caso se desse um conflito, não seria seguramente o suficiente para proteger os ingleses.

Todas as questões se tinham resolvido. A 31 de Agosto de 1907 foram firmados os convénios anglo-russos concernentes: 1) à Pérsia; 2) ao Afeganistão; 3) ao Tibete; e 4) ainda um anexo relativo a este último convénio. Efectuou-se também uma troca de notas diplomáticas de idêntico teor, entre o ministro Izvolski e o embaixador Sir Arthur Nicolson, sobre a não admissibilidade de “expedições científicas” ao Tibete.

O ministro das Relações Externas, Izvolski, declarou que era preciso sem qualquer perda de tempo compensar a Alemanha dalguma forma, prometendo-lhe, por exemplo, pôr termo aos protestos quanto ao traçado da ferrovia de Bagdad, porque, caso a Alemanha se pronunciasse contra a partilha da Pérsia proposta pelos ingleses, isso podia retirar todo o valor ao convénio anglo-russo. Mas o ministro Kokovtzev mostrou-se contrário a esta mudança de posição no tocante à linha-férrea de Bagdad, porquanto esta, em especial nos seus ramais em direcção à fronteira persa, criava uma ameaça directa ao ulterior domínio russo sobre o norte da Pérsia. A isto acrescentava o ministro do Comércio e da Indústria de então que os ditos ramais do caminho-de-ferro de Bagdad seriam ainda extremamente nocivos aos interesses económicos da Rússia, pois que a privavam da exploração económica em regime de monopólio dos mercados do norte da Pérsia. E foi este o ponto de vista que prevaleceu.

Imediatamente após a sua assinatura, os textos dos convénios foram tornados públicos.

Apesar da catadupa de análises que se foram fazendo ao longo de meses em torno da negociação do acordo, este causou uma tremenda impressão nas esferas governantes de todas as grandes potências e, em especial, na imprensa. Surpreendia, desde logo, a motivação alegada, segundo a qual o czar russo e o rei inglês, “animados pelo sincero e recíproco desejo de regular diversas questões atinentes aos interesses dos seus respectivos países no continente asiático, decidiram celebrar acordos destinados a prevenir todas as causas de desinteligência entre a Rússia e a Grã-Bretanha”. Surpreendia, ainda, a parte de leão que coubera à Rússia na repartição económica da Pérsia. A sua esfera de influência estendia-se por toda a região encerrada entre a fronteira russo-persa, a norte, e a linha “que começa em Qasr-i Shirin, passa por Ispahan, Yezd, Kakhk e termina num ponto da fronteira persa na intersecção das fronteiras russa e afegã”. A Inglaterra, por sua vez, ficava com a parte da Pérsia situada a sul da linha que, desde a fronteira afegã, atravessava Gazik, Birjand, Kerman e terminava em Bandar Abbas. Para já não falar do valor económico, consideravelmente maior, da zona russa, era claro que devido às simples circunstâncias geográficas toda a região atribuída à Rússia cairia a breve trecho, não tão-só sob o controlo económico, como ainda, debaixo da total dominação política russa, não constituindo sequer uma colónia, mas sim uma mera continuação do território russo, um prolongamento do Cáucaso. Nestas condições, a zona neutra (a parte média da Pérsia) podia cair mais facilmente nas mãos dos russos que nas dos ingleses. Por último, se bem que o Afeganistão, de acordo com o respectivo convénio, se achasse fora da esfera de influência russa, a situação estratégica russa reforçava-se de tal modo que esse país se via de futuro exposto aos golpes russos – que agora também podiam ser-lhe assestados a partir da Pérsia – em muito mais larga medida do que anteriormente.

Tudo isto produziu uma impressão tão profunda que na imprensa política da Alemanha, França, Áustria e Itália se começaram a ouvir vozes a afirmar: que mesmo triunfando duma guerra contra a Inglaterra, a Rússia nunca teria podido reclamar mais do que acabava de receber sem derramar uma só gota de sangue, “em forma de obséquio”; e que com este êxito diplomático se podia considerar ressarcida, com acréscimo, de tudo o que havia perdido no Extremo Oriente após ser batida na guerra contra o Japão.

No que respeita à própria Rússia, o acordo foi acolhido de diversas maneiras.

Para os círculos do capital comercial e industrial, bem como para os partidos políticos que lhes eram próximos, essa nova e gigantesca expansão (em especial naquilo que era razoável esperar do futuro imediato), com as fabulosas potencialidades económicas da Pérsia, representava um enorme e inesperado êxito, sobretudo numa época em que o exército, recentemente derrotado, desorganizado, se revelava impotente, em que as finanças estavam enfraquecidas e em que a efervescência dos ânimos no interior do país parecia bem longe de ter amainado. Além disso, o sector da burguesia liberal, nesse momento de luta em prol duma Constituição, sentia mais simpatias pela Inglaterra do que pela Alemanha, da qual, como era público, e já desde os tempos de Guilherme I e Alexandre II, chegavam exortações para que se defendesse as posições autocráticas do czarismo. Por fim, nas esferas governantes no sentido estrito do termo, quer dizer, entre os altos dignitários e nos ambientes palacianos, assim como entre os funcionários superiores do aparelho governamental, havia uma corrente representada, como já foi dito, pelo ministro das Relações Externas, Izvolski, que era partidária da amizade com a Inglaterra, vendo-a como um precioso factor que havia de dar a oportunidade à Rússia, mediante uma nova e “enérgica” política, de restabelecer o seu prestígio perdido. A esta corrente juntava-se (ainda que por distintos motivos) o ministro Kokovtzev, que via na amizade com a Inglaterra um poderoso suporte para o saneamento das finanças russas, convulsionadas pela guerra de 1904-1905 (porém bem cedo Kokovtzev se daria conta cabal das intenções agressivas de Izvolski, convertendo-se a partir daí em seu adversário).

Não obstante neste último círculo também se fazia sentir uma grande incomodidade, e uma não menor desconfiança, face à Inglaterra, bem como receios no que respeita à sua “magnanimidade”, tão desacostumada, no que concernia à partilha da Pérsia. O representante desta corrente era o ex-ministro do Interior do gabinete de Witte, P. N. Durnovo, o qual considerava a questão sobretudo a partir do ponto de vista dum ulterior desenvolvimento das condições revolucionárias, e entendia que todo e qualquer passo de aproximação política à Inglaterra se afigurava, ao mesmo tempo, hostil para a Alemanha; ora disputar ou sobretudo envolver-se numa guerra contra a Alemanha era algo que a Rússia não estava em condições de fazer com qualquer probabilidade de êxito, nem necessitava, porquanto não tinha com aquela nação nenhum choque de interesses de carácter irreconciliável. No que respeitava ao princípio político monárquico, este, dum tal embate, fosse qual fosse o vencedor, sairia sempre debilitado, dado que tanto na Rússia como na Alemanha, que se defrontariam na guerra, o conceito e princípio político do poder monárquico era então mais sólido do que em qualquer outra parte da Europa [portanto, qualquer que fosse o vencedor, haveria sempre um monarca “de primeira linha”, ou o russo ou o alemão, que ficaria “em maus lençóis”]. Nos sete anos que transcorreram desde a firma do acordo anglo-russo até à guerra, em 1914, aderiram aos pontos de vista de Durnovo quase todas as organizações de direita, mas estas, por si só, eram incapazes de constituir um estorvo real à marcha dos acontecimentos.

Também na Inglaterra se levantavam vozes que faziam notar de forma assaz insistente, e não sem irritação, o preço demasiadamente alto e muito perigoso (no seu critério) que se tinha pago pela “amizade russa”; no entanto os sectores normalmente interessados na política exterior, na sua esmagadora maioria, ou bem que aprovavam categoricamente o acordo feito pelo governo, ou bem que se abstinham de lhe tecer qualquer comentário, porquanto o que realmente lhes importava era o seu real objectivo, e deste, seguramente, não se dizia nem uma só palavra no acordo. Mas tal objectivo era por demais evidente. Acabava de entrar na Entente um novo aliado, o terceiro, que era o que a Inglaterra necessitava.

E precisamente porque esse objectivo fora atingido, também em França reinava a satisfação (sem que se mostrassem sequer quaisquer reticências relativamente à partilha da Pérsia, ou ao que quer que fosse). Estavam satisfeitos, em primeiro lugar, os círculos da banca e da bolsa, ali omnipotentes, porquanto o acordo anglo-russo consolidava extraordinariamente, tornando-a bem mais estável, a situação financeira e política do governo russo, estabilizando do mesmo passo as obrigações financeiras russas. Os possuidores de títulos russos, que em 1905 tanto se tinham alarmado – e sobre os quais houve que exercer uma forte pressão, oferecendo uma alta taxa de juro e subvencionando a imprensa para obter o seu apoio, quando Kokovtzev diligenciou em Paris, na Primavera de 1906, um novo empréstimo – passaram a dar, a partir da segunda metade do ano de 1907, sinais de sossego e confiança. Quanto ao governo francês, então encabeçado por Clemenceau, este mostrava-se particularmente satisfeito com o manifesto reforço da Entente e o consequente acréscimo do prestígio e da posição da França na ordem internacional. Os encontros, ostensivamente “cordiais”, de Clemenceau com o rei Eduardo VII em 1907 e 1908, a par com o tom da imprensa oficial francesa, faziam ver que o que estava em causa não era tão-só a Pérsia, o Afeganistão e o Tibete, mas algo de muito mais importante, bem mais próximo e ameaçador.