Capítulo XXVI - Periodos e fontes da História do Império

UMA SUBDIVISÃO EM PERÍODOS DA HISTÓRIA DO IMPÉRIO.

 Podemos considerar o principado de Augusto, de 30 ae a 14 da era, como um primeiro momento. É uma época de reacção política e de estruturação da organização imperial.

 Segue-se-lhe um período de regime de terrorismo de Estado, de 14 a 69, com os imperadores da estirpe Júlia-Cláudia. Cresce a oposição republicana, que os novos governantes reprimem lançando mão do terror. Dá-se a guerra civil de 68-69.

O período de apogeu do império, de 69 a 161, com o governo dos Flávios e dos primeiros Antoninos. Alarga-se a base social de apoio à autoridade imperial e consolida-se a sua estrutura de Estado.

 A época da crise do Império, de 161 a 284: governo dos últimos Antoninos; guerra civil de 193; governo dos Severos, que tentam debelar a decadência pela militarização do Império; crise geral do Império do século III.

 O período de Diocleciano e de Constantino, de 284 a 337. Época da monarquia absoluta burocrático-militar e de algum alívio momentâneo na erosão da potência romana.

 Por fim a época da queda do Império, dos finais do século IV a finais do V, com as invasões finais dos bárbaros e uma comoção social geral.

 

FONTES LITERÁRIAS DA HISTÓRIA DO IMPÉRIO.

 A época do primeiro Império (século I da era) é a mais amplamente comentada pelos autores literários. Entre os autores que já conhecemos: Plutarco (biografias dos imperadores Galba e Otão), Dião Cássio (livros LII a LXVII; mas apenas possuímos uma súmula dos livros LXI a LXVII, nos extractos de Xifilino) e Suetónio (biografias de Augusto, Tibério, Caio Calígula, Cláudio, Nero, Galba, Otão, Vitélio, Vespasiano, Tito e Domiciano).

 Também escreveu sobre esta época Públio Cornélio Tácito (ap. 55 – 120). Proveniente de uma família abastada de equites itálicos, Tácito recebeu uma excelente educação. Iniciou a sua carreira política na época dos Flávios. Em 88 foi pretor. Em 97, cônsul, com Nerva. Desempenhou por diversas vezes cargos importantes nas províncias. Ao que parece, terá falecido nos inícios do reinado de Adriano.

A sua primeira obra foi o “Diálogo sobre os oradores”, por volta de 81, onde discorria sobre as causas da decadência da oratória em Roma, atribuindo-a em grande medida à falta de liberdade política sob a férula dos imperadores.

Quinze anos depois escreve a biografia do sogro, “Vida de Agrícola”, em que encontramos muita informação interessante sobre a Britannia. Quase contemporaneamente surge uma das suas obras mais importantes, “Germania”, um breve compêndio de noções geográficas e etnográficas, de descrição do país e dos costumes das tribos germanas (é a nossa fonte principal para o estudo da história antiga desses povos). É pouco provável que Tácito o haja elaborado com base numa sua experiência pessoal naquelas regiões. A narrativa há-de ter resultado de obras literárias e de relatos de terceiros que haviam vivido algum tempo naquele país.

Quando inicia o trabalho das suas obras maiores (“As Histórias” e “Os Anais”) é já um escritor maduro e um experiente homem de Estado. “As Histórias” terão sido escritas entre os anos de 105 e de 109. A obra compunha-se de doze livros, abarcando os sucessos de 68 a 96, ou seja, desde a morte de Nero ao assassinato de Domiciano. Chegaram até nós os primeiros quatro livros e uma parte do quinto.

“Os Anais” redigiu-os provavelmente entre os anos de 115 a 117, num total, ao que parece, de dezoito livros. Conservaram-se os primeiros quatro, fragmentos do V e do VI, cerca de metade do XI, os livros XII a XV e a primeira metade do XVI. Expõem os acontecimentos que vão da morte de Augusto até à de Nero (anos de 14 a 68).

 Tácito foi o maior dos historiadores romanos e um dos mais eminentes entre os antigos, se bem que não alcance o patamar de objectividade e de profundidade na análise dos processos históricos de um Tucídides ou de um Políbio. É um típico representante da historiografia antiga, que, salvo raríssimas excepções, foi mais um género literário que uma ciência.

A personalidade, a sua particular psicologia, é para Tácito o principal motor da História. Por isso, com todo o poder da sua arte literária e conhecimento dos seres humanos, dedica-se à descrição das personalidades da história do primeiro século da era.

O quadro que nos pinta, pleno de dramatismo, é o da degeneração do principado de Augusto, pelas mãos dos seus sucessores. numa tirania sanguinária. Usando um estilo conciso, mas extraordinariamente expressivo, pleno de exemplos pujantes de vida, Tácito influenciou decisivamente a historiografia posterior sobre o século I do Império. As figuras psicológicas a que deu forma fizeram-se tradicionais tanto na ciência histórica como nas artes mundiais. É pelo traço de Tácito que ainda hoje “olhamos” para os primeiros imperadores e para os seus actos.

 Tácito serviu-se largamente de todo o material literário de finais da República e começos do Império: obras históricas, memórias, libelos, discursos, etc. Pertencendo à alta burocracia imperial, pôde também consultar certamente importantes documentos oficiais.

Em todos os casos em que podemos cotejar-lhe a exposição com outras fontes ou com documentos, Tácito não é passível de qualquer remoque por alteração dos factos. O caso já muda de figura no que respeita ao seu modo de reagrupar e de interpretar os sucessos. Grande partidário da república aristocrática, apesar de reconhecer a inevitabilidade da monarquia, “vinda para ficar”, odiava particularmente a forma despótica que ela assumira sob os sucessores de Augusto. Assim, na narrativa dos seus reinados, se bem que não altere os factos, selecciona-os e agrupa-os no entanto unilateralmente. Lança a luz sobre o seu arbítrio, as violências sanguinárias, a depravação refinada, mas deixa tendenciosamente num relato cheio de sombras o que foi a actividade positiva desses imperadores. A isto há que acrescentar o verbalismo do moralista severo para com o “vício” e o talento do criador em busca de conflitos e contrastes dramáticos.

Há pois que fazer substanciais correcções ao quadro que Tácito nos dá da actividade de Tibério, Caio César (“Calígula”), Cláudio, Nero e Domiciano.

 Na segunda fonte mais importante para a história do século I, as biografias de Suetónio, surge-nos no essencial o mesmo quadro de crimes irracionais e de depravação sanguinária desses imperadores.

Se Tácito, ao descrever o processo de evolução da autocracia de Augusto em despotismo, assumiu as ideias da oposição republicana, já Suetónio se mostra completamente alheio a qualquer crítica política. É um fiel súbdito do Império, de que esperava «um século de prosperidade e de ventura». O que lhe interessa são os “gostos do público”. Daí a tendência para os detalhes sexuais e para as descrições de perversões e excessos sanguinários.

 Dião Cássio, a nossa terceira fonte, toma as suas informações sobretudo em Tácito e Suetónio. O mesmo farão a maioria dos escritores já da última época do Império, Eutrópio, Aurélio Victor e Orósio.

 Caio Veleio Patérculo, oficial dos tempos de Tibério, dá especial atenção na última parte da sua obra à acção governativa desse imperador, porém, num tom de panegírico, no extremo oposto de Tácito.

 Em Valério Máximo a adulação cortesã a Tibério é ainda mais encomiástica.

 Encontramos também muita informação valiosa para a história do primeiro Império nas obras do hebreu Josefo Flávio (ap. 37 – 100). Dele nos chegaram, em língua grega, a “História da guerra judaica” (em sete livros), as “Antiguidades judaicas” (vinte livros), “Contra Apião” (um retórico de Alexandria da época de Tibério) e “Autobiografia”.

A “História da guerra judaica”, que descreve a rebelião de 66-70 na Judeia, é a sua obra mais interessante, não obstante ser pro-romano e procurar apresentar as suas próprias acções à luz mais favorável (ocupou por algum tempo funções de importância na administração romana). Dá-nos também muitos dados relativos a outros aspectos da história romana da época.

 Já fora do género literário histórico, têm interesse para a história dos primeiros tempos do Império as “Cartas” que Caio Plínio Cecílio Segundo o Jovem escreveu aos seus amigos e ao próprio imperador.

Amigo de Tácito e sobrinho e filho adoptivo de Plínio o Velho (morto na erupção do Vesúvio de 24 de Agosto de 79), Plínio o Jovem gozou de grande influência na época de Trajano e ocupou vários cargos de importância no Estado: cônsul no ano 100; governador das províncias da Bitínia e do Ponto de 111 a 113.

Plínio escreveu ainda o “Panegírico de Trajano”, um exemplo típico da literatura cortesã de adulação.

 As obras científicas e técnicas dos primeiros tempos do Império não só nos proporcionam um abundante material para a história da ciência e da técnica romana, como contêm ainda muitos elementos de relevo para a história geral.

São de assinalar: “Sobre a arquitectura”, de Vitrúvio Polião (contemporâneo de César e de Augusto); a “História Natural” de Plínio o Velho; e o trabalho sobre os aquedutos de Frontino. As relações agrárias e a técnica agrícola no século I são magnificamente descritas no “De re rustica” de Columela.

 Os numerosos escritos de Séneca sobre temas filosófico-morais são também um óptimo material para o estudo dessa época. O mesmo se pode dizer das outras artes literárias dos tempos de Augusto e dos seus sucessores: nas obras de Horácio, Ovídio, Petrónio, Lucano, Marcial, Juvenal e muitos outros espelham-se a vida, os costumes, as ideias e sentimentos dos diversos estratos da sociedade romana de então.

 Se para o estudo do século I do Império são abundantes as fontes literárias, já assim não acontece no que respeita aos sucessos dos séculos II e III.

A fonte principal para este período é uma grande recompilação de biografias de imperadores que vai do reinado de Adriano até Numeriano (anos de 117 a 284), conhecida pela designação de Scriptores Historiae Augustae (“escritores da história dos Augustos”). São diversos os autores destas biografias. A obra nomeia seis, de que nada se sabe: Élio Esparciano, Júlio Capitolino, Vulcácio Galicano, Élio Lamprídio, Trebélio Polião e Flávio Vopisco. Provavelmente serão personagens fictícias e toda a recompilação não passará de uma enorme falsificação. Terá sido composta por volta dos inícios do século IV, nos tempos de Diocleciano e Constantino, e reelaborada nos finais desse século.

Estas biografias apresentam bem pouco valor histórico (as primeiras, até Caracala, são as mais sofríveis). Além de plenas de absurdos e futilidades, nelas foram intencionalmente introduzidos “factos” falsos. É o caso de quase todos os documentos que referem (por exemplo, as cartas atribuídas a imperadores).

 Felizmente possuímos outras fontes para os séculos II e III. Em primeiro lugar, os “Oito livros de história desde a morte do divino Marco” de Herodiano (ap. 170 – 240), um escritor de origem síria que escreveu em grego. A obra abarca o período que vai da morte de Marco Aurélio até à de Maximino (anos de 180 a 238). Ainda que retórico e superficial, Herodiano proporciona-nos valiosos dados.

 No século IV viveu o último grande historiador romano, Amiano Marcelino (nascido por volta de 330), natural de Antioquia.

Foi funcionário imperial e manteve relações amistosas com o imperador Juliano, em cujas expedições participou.

Dos trinta e um livros da sua “História”, que ia de Nerva até à morte de Valente (de 96 a 378), apenas nos ficaram os livros XIV a XXXI, que relatam os sucessos passados entre 352 e 378.

Amiano é um autor sóbrio e objectivo, que recorre a fontes dignas de crédito. Além do seu grande conhecimento da arte militar, são-nos também valiosos os frequentes comentários de carácter geográfico e etnográfico que compôs sobre os países que conheceu. O seu único óbice é o uso de uma linguagem rebuscada e enfática, que por vezes o torna impossível de entender.

 Entre os historiadores de segundo plano dos finais do Império: Eutrópio, no século IV, com o seu “Bosquejo da História Romana” (ou “Breve compêndio”) em dez livros, obra escrita entre a história popular e o manual clássico, de pobre conteúdo; atribuída a Aurélio Victor, alto funcionário imperial da segunda metade do século IV, uma colecção de breves biografias organizada por volta de 360, intitulada “Os Césares”; em 417, o padre Paulo Osório, de origem espanhola, terá escrito a sua “História em sete livros contra os Pagãos”, que ia de “Adão” até ao ano de 410.

Além destes, que já havíamos referido anteriormente entre as fontes, há ainda a assinalar Zósimo, um escritor dos finais do século V que foi um encarniçado adversário do cristianismo. Os seis livros da sua “Nova história”, escritos em grego, chegaram-nos quase completos. A obra descreve sumariamente os acontecimentos desde Augusto até cerca dos finais do século IV. O período de 395 a 410 (livros V e VI) é exposto de modo mais detalhado.

 Com a decadência da historiografia antiga, começa a difundir-se largamente a partir do século II um género histórico particular, as crónicas universais, breves sumários de história, desde a ”criação do mundo” até à época em que viveram os seus autores.

Estas crónicas contêm indicações sobre acontecimentos que as outras fontes ao nosso dispor não mencionam, referindo ainda autores e obras para nós perdidas.

Sexto Juliano Africano, presbítero em Alexandria, que viveu no século III, escreveu, em cinco livros, um sumário cronológico dos sucessos “universais” desde a “criação do mundo” até ao ano de 221. Desta crónica quase nada restou, porém, ela foi o modelo e a fonte principal para a crónica de Eusébio (ap. 260 – 340), bispo de Cesareia, a chamada “Crónica até 325”. O sumário de Sexto serviu ainda de modelo à maioria das crónicas eclesiásticas universais bizantinas.

 Também a literatura cristã vulgar e a literatura anticristã dos finais do Império nos proporcionam materiais de estudo, não só para a história da religião, como também para a história em geral.

Eusébio de Cesareia, além da sua crónica, escreveu uma “História da Igreja” em dez livros. Entre os escritores cristãos são de referir: o reitor Lactâncio (inícios do século IV); os “santos padres” Orígenes (século II), Tertuliano (séculos II – III), Jerónimo (séculos IV- V), etc.

Da numerosa literatura anticristã pouco chegou até nós. Acresce que, em boa parte, essas referências são-nos dadas pelo adversário, nas obras dos apologistas do cristianismo. Destacam-se nessa literatura as obras de Celso (século II), de Porfírio (século III) e do reitor Libânio.

 Da literatura científica do século II chegaram-nos o “Sistema astronómico” (depois denominado “Almagesto”) do alexandrino Cláudio Ptolemeu, já revelando claramente a decadência do pensamento científico à época, e as numerosas obras de medicina de Cláudio, médico da corte do imperador Cómodo.

 Na filosofia (que se vinha degradando em ética e religião), as “Recordações” de Marco António são o exemplo clássico do último estoicismo e das ideias e sentimentos sociais da segunda metade do século II. Também as obras dos neoplatónicos (Plotino, Porfírio, Jâmblico e outros) podem ser usadas, não apenas para a história da religião e da filosofia dos séculos III e IV, mas ainda como fontes históricas gerais.

 Da rica literatura jurídica de então, pouco mais se conservou para além dos numerosos fragmentos dos grandes juristas dos séculos II e III: Gaio (Instituições; manual de direito), Papiniano, Domício Ulpiano, Júlio Paulo, etc.

 Na prosa e na poesia, reflectem bem as relações sociais do seu tempo as sátiras de Luciano (esse «Voltaire da antiguidade clássica», na expressão de Engels) e Apuleio, na sua novela filosófica “ O burro de ouro” (ambos autores do século II).

Ausónio, um poeta, fornece-nos muitos dados interessantes para a história da cultura na Gália do século IV. O mesmo, sobre a Gália do século V, podemos dizer das cartas e versos de Sidónio Apolinário. Também a obra do poeta alexandrino Claudiano, dos finais do século IV, apresenta um vasto material, já não de carácter local, mas para a história geral do seu tempo.

 

FONTES PRINCIPAIS.

 Comparativamente ao período republicano, os documentos da época do Império são em muito maior número.

 Chegaram até nós as recompilações de leis dos imperadores bizantinos Teodósio II (primeira metade do século V) e Justiniano (primeira metade do VI), que são “sumários” ou sínteses do direito da época imperial anterior.

São da época do Império a maioria das inscrições latinas e gregas que se conservaram: proclamações das acções de imperadores, como o famoso monumentum Ancyranum; leis imperiais, éditos, decretos; diplomas militares; decretos senatoriais; inscrições de municípios, de colégios; grande quantidade de inscrições dos particulares (sobre as tumbas, nos edifícios, em objectos, etc.)

 Importante material documental pode ser encontrado nos papiros egípcios do período imperial. A título de exemplo, foi num papiro (ainda que já muito deteriorado) que chegou até nós o famoso édito de Caracala de 212 (constitutio Antoniniana), que concedeu os direitos de cidadania romana a todos os habitantes do Império.

 As moedas são também em muito maior número. Por meio delas podemos conhecer os nomes dos diversos imperadores (e também os nomes dos que usurparam esse poder). O carácter da sua cunhagem e a proporção de metais nobres que contêm permitem-nos fazer suposições sobre o estado geral da economia, da técnica e da cultura nos períodos em que foram emitidas.

 Os numerosos restos arqueológicos permitem-nos cotejar e completar as fontes escritas e, em alguns casos, são mesmo a única fonte de informação de que dispomos para longos períodos da história da civilização romana (sobretudo a nível provincial).

Por vezes fornecem-nos quadros de informação que nenhuma fonte escrita poderia superar. Ainda a título de exemplo: as escavações de Pompeia deram-nos a conhecer a vida de uma pequena cidade itálica na segunda metade do século I; as colunas de Trajano e de Marco Aurélio, que ainda se erguem em Roma, ilustram-nos a arte militar romana no século II.