O espaço da História

I - O rei de Castela não aceita a regência e senhorio da sogra

 1. COMO A RAINHA DONA LIONOR FICOU POR REGEDOR DO REINO, E DAS RAZÕES QUE LHE DISSERAM OS DE LISBOA.
 Morto elRei dom Fernando, ficou a Rainha por Regedor e Governador do reino, como nos tratos era contido, usando de toda a jurisdição e senhorio em quitar menagens e apresentar igrejas, confirmando os seus bons usos e costumes às vilas e cidades que lho enviavam requerer, como tem usança de fazer um rei quando novamente começa de reinar [1], obedecendo-lhe os fidalgos e o comum povo, como a sua Rainha e senhora, em todas as coisas. O seu ditado nas cartas, em vida delRei dom Fernando, era este, Dona Lionor, pela graça de Santa Maria, Rainha de Portugal e do Algarve, e então, por acordo dos senhores e letrados do seu conselho, se começou de chamar, Dona Lionor, pela graça de Deus, Rainha, Governador e Regedor dos reinos de Portugal e do Algarve, e em algumas [2], se acontecia nomear sua filha, chamava-a Rainha de Portugal. E os tabeliães nas escrituras punham, Eu, fuão [3], tabelião de tal lugar, por autoridade da Rainha dona Lionor, Governador e Regedor dos reinos de Portugal e do Algarve, isto aqui escrevi, e meu sinal fiz que tal é.

Ler mais: I - O rei de Castela não aceita a regência e...

II - Como se ordenam as histórias

7. PRÓLOGO À HISTÓRIA DA REGÊNCIA E DO REINADO DE D. JOÃO I.

Grande licença deu a afeição a muitos que tiveram o carrego de ordenar histórias, mormente dos senhores em cuja mercê e terra viviam e onde foram nados seus antigos avós, sendo-lhe muito favoráveis no recontamento de seus feitos, e tal favoreza como esta nasce de mundanal afeição, a qual mais não é salvo a conformidade dalguma coisa ao entendimento do homem. E assim é que a terra em que os homens por longo costume e tempo foram criados gera uma tal conformidade entre o seu entendimento e ela, que havendo de julgar alguma sua coisa, tanto em louvor dela como em seu contrário, nunca por eles é direitamente recontada, porque louvando-a, dizem sempre mais do que aquilo que é, e se doutro modo, não escrevem suas perdas tão minguadamente como aconteceram. Outra coisa gera ainda esta conformidade e natural inclinação, segundo sentença de alguns, dizendo que o pregoeiro da vida, que é a fome, recebendo refeição para o corpo, o sangue e espíritos gerados de tais viandas [1] têm uma tal semelhança entre si que causa esta conformidade. Alguns outros tiveram [2] que isto descia na semente, no tempo da geração, a qual dispõe por tal guisa aquele que dela é gerado que lhe fica esta conformidade tão bem acerca da terra como de seus divedos [3]. E assim parece que o sentiu Túlio, quando veio a dizer, Nós não somos nados a nós mesmos, porque uma parte de nós tem a terra, e outra, os parentes. E por isso o juízo do homem acerca de tal terra ou pessoas, recontando seus feitos, sempre sopega [4].

Ler mais: II - Como se ordenam as histórias

III - Das fintas que a morte fez ao Andeiro

8. COMO O CONDE HOUVERA DE SER MORTO POR DIVERSAS VEZES E NENHUMA TEVE AZO DE SE ACABAR.

Falando alguns da morte do Conde João Fernandes, onde se começam os feitos do Mestre, alegam um dito de que nos não apraz, dizendo que a fortuna muitas vezes escusa por longo tempo a morte a alguns homens para depois lhes azar mais desonrado fim, assim como fez a este Conde João Fernandes, que muitas vezes lhe desviou a morte que alguns tiveram cuidado de lhe dar por maneira a que depois o deixasse nas mãos do Mestre, para o matar mais desonradamente. E nós neste dito não somos contentes, pois que tanto por razão do que o matou como da morte que por ele houve, nenhum dos outros o matar pudera que lhe muito maior desonra não fora. Mas temos que o muito alto Senhor Deus, que em sua providência nenhuma coisa falece, que tinha disposto de o Mestre ser rei, ordenou que o não matasse outro senão ele, e isto em tempo assinalado e com certos azos, posto que poderoso fosse de o doutra guisa fazer.

Ler mais: III - Das fintas que a morte fez ao Andeiro

IV - Revolução em Lisboa

18. DO ALVOROÇO QUE FOI NA CIDADE CUIDANDO QUE MATAVAM O MESTRE, E COMO ALI FOI ÁLVORO PAIS E MUITAS GENTES COM ELE.

O pajem do Mestre, que estava à porta, como lhe disseram que fosse pela vila, segundo já era percebido [1] , começou de ir rijamente a galope em cima do cavalo em que estava, dizendo a altas vozes, bradando pela rua, Matam o Mestre! Matam o Mestre nos Paços da Rainha! Acorrei ao Mestre, que o matam! E assim chegou a casa de Álvoro Pais, que era dali um grande espaço.

Ler mais: IV - Revolução em Lisboa

VI - A revolução alastra

47. COMO O MESTRE FALOU COM OS DO SEU CONSELHO SOBRE A SUA FICADA OU PARTIDA DO REINO.

Tornando a falar dos feitos do Mestre, de que cessámos para levar a Rainha a Santarém e trazer NunÁlvares ao seu serviço, assim foi que nesta sazão em que NunÁlvares veio para ele, era o Mestre posto em grande cuidado e desvairados pensamentos. Porque alguns do seu conselho lhe diziam que não aguardasse elRei de Castela com o seu grão poder no reino, mas que se fosse para Inglaterra, espertando  [1] muitas razões por que o devia de fazer  e assinando [2] certos proveitos e seguranças que disso se seguiam, dizendo, entre as outras coisas, que pelo azo de tal partida ele poderia ali haver tanta ajuda de gentes que, depois, poderia tornar ao reino e o cobrar com muita sua honra, sem perda das gentes e dano da terra. Outros eram de todo contra esta opinião, desfazendo os ditos de tais com outras contrárias razões, assim como NunÁlvares, Rui Pereira, Álvoro Vasques de Góis, o doutor João das Regras, Álvoro Pais e o doutor Martim Afonso, dizendo que a partida do Mestre não era boa, nem em serviço de Deus nem seu, porque indo-se ele para fora da terra ficava o reino desamparado e sem defensor, e então cobraria elRei de Castela a cidade e os outros lugares que se lhe rebelavam, e dá-los-ia a tais pessoas e afortalezaria de tal guisa que não se poderiam depois cobrar senão com grande afã e muito espargimento de sangue, e que por isso lhe pediam, por mercê, que assossegasse no reino e não se partisse dele, que Deus, que para isto o chamara e escolhera, encaminharia seus feitos com grande acrescentamento da sua honra e estado.

O Mestre ouvia as razões de uns e dos outros, e se bem que aqueles que o aconselhavam a que se partisse do reino assinassem certas e notáveis razões por que o devia de fazer, o seu grande coração, desejador de cavaleirosos feitos, o fazia inclinar a todavia ficar nele e pôr-se a qualquer ventura pela defensão da terra. Mas desta tenção o turvavam muito os que lhe aconselhavam o contrário, em guisa que o faziam duvidar. E um dia, depois de comer, o Mestre mandou chamar os do seu conselho, e NunÁlvares com eles, e como todos foram juntos, o Mestre propôs ante eles, dizendo em esta guisa, Amigos, vós vedes bem o grande perigo em que este reino está, e como, partindo-me eu dele, segundo alguns de vós outros dizem, ele seria de todo perdido e sujeito a elRei de Castela, de guisa que tais aí há que dizem que melhor era pela defensão da terra morrer honradamente do que cair em servidão dos seus inimigos. E de mim vos digo que eu tal tenção tenho, e estou disposto a ficar nela e a não me partir por nenhuma maneira, se o vós outros assim acordardes.

Os do conselho que eram deste bando disseram que o Mestre dizia mui bem, e foram mui ledos com as suas razões, pedindo-lhe por mercê que assim o fizesse e não curasse doutro conselho, e que eles e todos os outros o serviriam bem e lealmente, e que esperavam, no poderoso Deus, que ele traria os seus feitos a tão bom fim que seria muito com sua honra e de todo o reino.

E depois de grandes razoados que sobre isto houveram falado, foram todos de acordo que o Mestre ficasse no reino e não se partisse dele, e começaram a falar noutras coisas e na tomada do castelo.

48. COMO O MESTRE QUISERA COMBATER O CASTELO DE LISBOA, E COMO O TOMOU SEM COMBATE.

Acabado isto que haveis ouvido, disse o Mestre que um dos empachos que tinha neste feito era o castelo da cidade, que estava contra ele da parte da Rainha, o qual cumpria muito de ser filhado para a cidade não receber dano por ele [3] dalgumas gentes, se quisessem vir contra ela. NunÁlvares e os outros do conselho disseram que o não tivesse [4] nem se anojasse por isto, que Deus, que lhe dera a cidade, lhe daria o castelo.

Ora assim aveio que pensando a Rainha nas coisas trespassadas [5], era o seu coração amiúde cercado de gastosos pensamentos, e receando o que depois se seguiu, estando então em Alenquer, falou com o Conde dom João Afonso, seu irmão, que era alcaide de Lisboa e tinha nela muitos e bons vassalos, para que lhes enviasse dizer que se lançassem no castelo com os seus escudeiros, por segurança de qualquer coisa que avir pudesse. Outorgado pelo Conde que isto era bem feito, falou com AfonsEanes Nogueira, que ali estava e era um deles, para que se viesse à cidade, falasse com aqueles que eram seus e o fizessem assim.

AfonsEanes chegou a Lisboa e todos aqueles com que havia de falar eram já do Mestre discípulos escondidos, tendo outra crença mui contrária à primeira, sendo já da sua parte contra a Rainha. E quando falou com Estêvão Vasques Filipe, depois com Afonso Furtado, com Antão Vasques e outros bons da cidade, e os achou mudados do que cuidou que tinha neles, não o quis dizer a mais, e foi-se para a sua pousada, corrigiu-se [6] o melhor que pôde e lançou-se no castelo pela porta da traição, com uns dez ou doze escudeiros.

E em se lançando assim, nasceu uma voz pela cidade, dizendo, Traição! Traição! Acorrei ao Mestre que querem matar! As gentes, como isto ouviram, foi grande o alvoroço em elas e começaram de se armar e correr depressa contra o castelo, porquanto o Mestre fora pousar nos Paços do Bispo, que são cerca dele, como ordenou de o tomar [7]. E vendo os que ali iam que não era nada do que lhes disseram, tornavam-se mui sanhudos, razoando muitas palavras de ameaça contra quaisquer que tal coisa se tremeteram de fazer [8].

Martim Afonso Valente, um dos honrados da cidade, que era alcaide do castelo pelo Conde dom João Afonso, irmão da Rainha, foi requerido que o desse ao Mestre e não consentisse que por ele viesse mal à cidade e a todo o reino, pois que português verdadeiro era, dizendo-se-lhe muitas razões por que o devia de fazer. Martim Afonso escusava-se disso, dizendo que não o faria por nenhuma guisa, por dele ter feita menagem e cair em mau caso, com grande doesto seu e de todos os que dele descendessem.

O Mestre ordenou então de os combater, e mandou fazer um artifício de madeira que chamam gata, que, como uma baixa cava [9] que então o castelo tinha fosse cheia, pudesse ir por cima juntar com ele, e de sob ela pudessem ir picar o muro [10] e entrar dentro. E diziam os de fora aos do castelo que o dessem ao Mestre, seu Senhor, senão que juravam a Deus que poriam em cima da gata Constança Afonso, mãe de AfonsEanes Nogueira e irmã da mulher de Martim Afonso [11], alcaide do castelo, e isso mesmo as mulheres e filhos de quantos eram dentro, e que então lançassem de cima fogo e pedras em quais deles quisessem. Alguns de dentro, receando isto, diziam ao alcaide que antes se sairiam cá fora, e não ajudariam a defender o castelo, do que terem azo de matar as mulheres e os filhos da guisa que lho diziam.

Em isto, antes que a gata fosse feita nem a cava estivesse cheia para se ir por cima, disse NunÁlvares ao Mestre que ele queria ir falar com Martim Afonso Valente e com AfonsEanes Nogueira sobre o feito do castelo, e que entendia que lho dariam, o Mestre disse que lhe prazia, e foi NunÁlvares ao castelo e disse a Martim Afonso muitas razões por que o devia de dar ao Mestre, dizendo que não cumpria que por seu azo se perdesse a cidade e o reino fosse posto em aventura, a qual coisa, pois verdadeiro português era, não lho devia consentir o coração, e fazendo-o doutro jeito, que todo o mundo lho teria a mal, e merecia de o apedrarem [12] todas as gentes da cidade por isso.

Com estas e outras razões que lhe NunÁlvares disse, depois, vendo Martim Afonso todo o povo da cidade alvoroçado contra si para tomarem o castelo e o combate que lhe queriam dar, e como os que estavam com ele diziam que se os daquela guisa combatessem, eles não haviam de matar as mulheres e os filhos para lho ajudar a defender, entendeu que não havia de poder se ter muito tempo. E então disse Martim Afonso a NunÁlvares que bem lhe prazia de dar o castelo ao Mestre, mas que o faria primeiro saber à Rainha e ao Conde dom João Afonso, a que dele tinha feita menagem.

NunÁlvares disse que logo ficasse determinado até qual dia se sofreriam [13] de o combater, e que lhe desse segurança de arreféns para isto, não sendo acorrido àquela sazão [14]. Então se preitejou Martim Afonso que não lhe vindo acorro até quarenta horas, o castelo fosse entregue ao Mestre sem outra contenda [15], e foi posto em arreféns, em poder de NunÁlvares, AfonsEanes Nogueira, e ele trouxe-o consigo para a sua pousada.

Os da cidade, como souberam que o castelo era preitejado, corriam todos para lá com armas, e toda aquela noite foi posta grande guarda nele, dormindo-se ao redor do monte com muitas candeias acesas, velando-se com grande cuidado para embargar qualquer ajuda, se acontecesse de vir ao alcaide.

Martim Afonso mandou à pressa um escudeiro a Alenquer [16], fazendo saber ao Conde em que ponto era com os da cidade e como o queriam combater e de que guisa, e quando lhe contou como os da cidade diziam que lhes poriam as mulheres e os filhos, a todos, em cima da gata, e que matassem quais deles quisessem, começou o Conde a sorrir e disse, Em verdade bom bioco [17] era esse que eles vos punham para lhes haverdes de dar o castelo. Dizei antes que houvestes vontade de lho dar, e deste-lho. Parece que fostes tais, com esse medo que vos puseram para vos espantar, como a raposa que estava ao pé da árvore e ameaçava com o rabo o corvo que estava em cima com o queijo no bico, para lho haver de deixar. E vós outros tais fostes, tomastes medo vão do que não houvéreis de tomar, e para terdes azo de lho dar mais cedo, foste-lo aprazar a certas horas para não poder ser acorrido. Eu gentes não tenho aqui tantas com que lhe possa acorrer, e ainda que as tivesse, o prazo é tão pequeno que somente para ferrar não haveria aí espaço.

O escudeiro respondeu que Martim Afonso não pudera maior tempo haver, e que ainda aquele lhe deram de mui mamente [18]. Falou então o Conde à Rainha e contou-lhe o jeito que os da cidade queriam ter em no combater [19], e ela disse, pois que assim era, que lhe mandasse dizer que lho entregasse [20], que quem depois houvesse a cidade, haveria o castelo.

Tornou-se o escudeiro com este recado, e passado o prazo, foi entregue o castelo ao Mestre aos trinta dias do mês de Dezembro, e foi pousar nele. E mandou-o devassar e tirar-lhe as portas da parte da cidade, por conselho de todo o povo.

Martim Afonso, como deu o castelo ao Mestre, veio-se para a sua mercê com os que dentro eram, e ele, AfonsEanes e os outros todos o serviram sempre bem e lealmente.

49. COMO FOI TOMADO O CASTELO DE BEJA E MORTO O ALMIRANTE MICER LANÇAROTE.

A Rainha antes disto, como o Conde João Fernandes foi morto e o levanto de Lisboa feito, havia mandado pelo reino as suas cartas, assim aos alcaides dos castelos como aos homens bons das vilas e cidades, fazendo-lhes queixume do que havia acontecido e sobre a maneira que haviam de ter em tomar voz por sua filha. E isso mesmo escreveu a elRei de Castela que se trabalhasse de vir depressa ao reino, o qual nesta sazão já era na Guarda, segundo adiante podereis ver. Assim que por azo da sua vinda, como por todos os mais [21] do reino serem da parte da Rainha, foi alçada voz e pendão por sua filha da guisa que lhes escreveu nas suas cartas, mas este tomar de voz e alçamento de pendão, com tal título como se apregoava, era grave coisa de ouvir à gente pequena dos lugares, e não podendo contradizer as grandes pessoas, gastavam-se em si mesmos [22] consentindo-o com medo e temor a que contradizer não podiam. Assim como aconteceu em Estremoz, que quando Joane Mendes de Vasconcelos, primo da Rainha dona Lionor, que àquele tempo tinha o castelo, mandou levantar voz com pendão por a Rainha dona Beatriz e o trouxeram pela vila Lopo Afonso e Lourenço Dias, com alguns outros do lugar, porque viram que o outro povo era posto em turvação e mal-contente de tal feito, logo disseram que mister havia na praça de cepo e çátor [23] para decepar os que contradissessem o que eles faziam.

E durando esta divisão nos corações de uns e dos outros, foi sabido pelo reino como o Mestre tomara carrego de se chamar regedor e defensor dos reinos, e como tomara o castelo de Lisboa e o tinha em seu poder, e a alguns do reino que disto souberam parte prouve muito [24], especialmente aos povos miúdos, enquanto a outros que eram da parte da Rainha pesava assaz, posto que entendessem que tudo era vaidade [25].  

Ora assim aveio que em Beja estava por alcaide Gonçalo Vasques de Melo, e tinha o castelo e voz pela Rainha. Em isto escreveu outra vez a Rainha cartas suas ao concelho de Beja, dizendo-lhes que tivessem todavia [26] voz por ela, e que se elRei de Castela acontecesse de vir por aí, o acolhessem na vila sem nenhum receio e temor, porque ele os defenderia de quem quer que lhes nojo quisesse fazer, e lhes faria por isso muitas mercês.

As cartas recebidas pelos principais do lugar, mandaram deitar pregão pela vila de que todos ao outro dia fossem ouvir recado de cartas que sua Senhora, a Rainha, mandara. No dia seguinte juntaram-se Estêvão Mafaldo, João Afonso Neto, mestre Joane, Rui Pais Sacoto, MendAfonso e outros honrados do lugar, e apartaram-se todos à porta pequena de Santa Maria da Feira e começaram de ver aquilo que lhes a Rainha escrevera.

Era muito o povo que estava pelo adro, aguardando que lhe dissessem que novas eram aquelas que a Rainha mandava dizer, e trigando-se [27] as vontades de todos, disse um que chamavam Gonçalo Ovelheiro para os outros, Não está ora aqui nenhum que vá saber que cartas são estas? Ou que recado é este que a Rainha manda?

Falou então um bom escudeiro que chamavam Gonçalo Nunes dAlvelos, que não era dos grandes nem dos mais pequenos, e disse para Vasco Rodrigues Carvalhal, Queres-me tu ajudar, e iremos saber que cartas são estas? E ele disse que lhe prazia. Então se juntaram com eles até uns trinta, e chegaram contra onde estavam aqueles mais honrados, e falou Gonçalo Nunes e disse, Que cartas são estas que vós assim ledes de que nós não sabemos parte? Porventura esta vila há-de-se manter e defender por quatro ou cinco que vós aqui sois? Certamente não, mas por nós outros que aqui moramos.

Disse então Estêvão Mafaldo, Que união é essa com que vós assim vindes?

Respondeu Gonçalo Nunes, dizendo, Isto não é união, mas queremos saber que cartas são estas.

Falou então MendAfonso e disse que ele perguntava bem e era de razão que as vissem. Então se meteram todos no Paço do concelho, e parte dos outros com eles, e lidas as cartas, deram-nas a um tabelião que as publicasse aos de fora, e este saiu a eles e disse, Amigos, o feito é este, eu não hei para quê me mais deter em ler o que aqui vem, a conclusão é esta, se quereis ter antes com a Rainha, ou com o Mestre?

E eles responderam todos a uma voz, dizendo, Com o Mestre! Com o Mestre!

Aqueles maiorais, quando isto ouviram, partiram-se logo cada um para as suas pousadas e não ousavam de aparecer [28].

Eles em isto, sem mais tardança, viram aparecer gentes de armas no castelo, então começaram todos a bradar, Alça-se o castelo! Alça-se o castelo!

Gonçalo Nunes cavalgou à pressa e os outros todos se foram armar e começaram logo de o combater [29]. O alcaide, quando isto viu, pôs fogo a duas torres em que estava muito armazém [30], para os da vila se não prestarem dele, acontecendo de ser tomado. E os de dentro defendendo-se rijamente e ferindo alguns de fora, puseram os da vila fogo às portas do castelo, e como foram ardidas, entraram ali dentro a uma quarta-feira às horas de comer, e tomaram o alcaide, e puseram-no a salvo alguns que lhe bem queriam.

Gonçalo Nunes e Vasco Rodrigues tomaram logo o castelo e alçaram voz pelo Mestre, roldando e velando a vila, às portas fechadas, em nome dele. E velando-se assim a dita vila, depois disto alguns dias, chegou ao serão em cima duma égua um homem do Campo dOurique e falou aos da vela [31], dizendo-lhes que dissessem ao que tinha carrego de reger a vila de que aquela tarde chegara micer Lançarote a um lugar que chamam os Colos, que são dali nove léguas, e que se ia a Odemira que é no  reino do Algarve, para se alçar com ele e tomar voz por elRei de Castela.

Gonçalo Nunes, como isto soube, levou consigo cinquenta a cavalo e um cento entre besteiros e homens de pé, e andaram toda a noite, em guisa que chegaram lá antemanhã. O Almirante tinha já selado para cavalgar, ele e os seus, e assim armados como estavam foram todos presos, e mouros, mouras e azémolas com quanto haver levavam. E aos seus tomaram as armas e bestas e deixaram-nos ir, e o Almirante veio para a vila em cima duma mula.

Ele já no lugar, puseram-no na torre da menagem, dizendo ele afincadamente a todos, Amigos, mandai-me a meu Senhor, o Mestre, bem preso e arrecadado, e não me queirais matar sem por quê, e eles diziam que não houvesse medo.

E enquanto Gonçalo Nunes foi levar ao Mestre tudo quanto lhe haviam tomado, receando os da vila que se levantasse o Almirante com o castelo, foram-se um dia todos lá e disseram a Vasco Rodrigues que o lançasse cá fora, e ele, receando-se deles, foi-se para sua casa e deixou-o na torre. O Almirante, quando isto viu, começou de se defender o melhor que pôde, mas eles bradando que descesse afundo e não houvesse medo, houve de o fazer, e cuidando de achar neles piedade e compaixão, mataram-no de má e desonrada morte, e assim acabou seus postumeiros dias.

50. COMO O CASTELO DE PORTALEGRE E O DE ESTREMOZ FORAM TOMADOS.

Desta guisa que haveis ouvido se levantaram os povos em outros lugares, sendo grande cisma e divisão entre os grandes e os pequenos, ao qual ajuntamento dos pequenos povos que se então assim juntava chamavam naquele tempo arraia-miúda. Os grandes, à primeira, escarnecendo dos pequenos, chamavam-lhes povo do Mexias [32] de Lisboa, que cuidavam que os havia de remir da sujeição delRei de Castela, e os pequenos aos grandes, depois que cobraram coração e se juntavam todos em um [33], chamavam-lhes traidores cismáticos que tinham a parte dos castelhanos, por darem o reino a cujo não era [34], e nenhum, por grande que fosse, era ousado de contradizer a isto nem falar por si nenhuma coisa, porque sabia que como falasse morte má tinha logo prestes, sem nenhum lhe poder ser bom [35].

Era maravilha de ver que tanto esforço dava [36] Deus neles e tanta cobardice nos outros, que os castelos que os antigos reis, por longos tempos jazendo sobre eles, com a força das armas não podiam tomar, os povos miúdos, mal armados e sem capitão, com os ventres ao Sol, antes do meio-dia os filhavam por força. Entre os quais um foi o castelo de Portalegre – de que era alcaide dom Pedro Álvares, Prior do Hospital, e de sua mão [37] tinha voz pela Rainha, assim como os outros – que se juntaram os da vila uma quinta-feira pela manhã e começaram de o combater, e antes do meio-dia, com a ajuda de Deus, foi filhado.

Semelhavelmente os da vila de Estremoz, postos em grande alvoroço, cometeram [38] ao alcaide que deixasse o castelo e se viesse para a vila, que doutra guisa não seriam dele seguros. Joane Mendes disse que o não faria por coisa que fosse [39], porque de o fazer lhe vinha grande desonra e prasmo. Vendo eles a sua resposta, determinaram de o combater, e tomaram um carro, puseram-no na praça e ordenaram de pôr nele as mulheres e os filhos dos que estavam lá dentro com o alcaide, que eram todos naturais do lugar. E os de dentro, quando isto viram, disseram a Joane Mendes que deixasse o castelo aos da vila, que doutra guisa não o entendiam de ajudar.

Vendo-se ele em tal apertada [40], mandou dizer aos de fora que lhe enviassem pessoa segura com que falasse, e acordar-se-ia com eles. Mandaram então frei Lourenço, guardião de São Francisco, e outros com ele que fossem ao castelo. E Joane Mendes propôs [41] muitas razões a se escusar de não ter com Castela, mas ser verdadeiro português como eles, porém as suas falas não prestando nada [42], foi determinado que todavia deixasse o castelo e que fosse entregue a um dos da vila que o tivesse [43]. Outorgou o alcaide que lhe prazia, porque não pôde mais fazer, e foi entregue a um escudeiro que chamavam Martim Peres, e o alcaide foi logo fora do castelo, e depois se foi a Moura, que tinha Álvoro Gonçalves por elRei de Castela. E os do concelho mandaram tirar as portas da torre e as do castelo contra a vila e derribar o peitoril [44] e as ameias daquela parte, e daí em diante foi o castelo velado e roldado por o Mestre e posto em poder do povo miúdo.

E não somente os homens, como dito é, mas ainda as mulheres entre si tinham bando pelo Mestre contra qualquer que da sua parte não era, em guisa que um dia se levantaram Mor Lourenço e Margarida Anes, adela, e outras mulheres em razões contra Maria Estevens, mãe de Nuno Rodrigues de Vasconcelos, dizendo que o seu filho dissera mal do Mestre e que era castelhano, e elas por si [45] o mataram e foram-no lançar do muro afundo.

51. COMO O ALCAIDE DE ÉVORA QUISERA TER VOZ POR A RAINHA E FOI ENTÃO TOMADO O CASTELO PELOS DA CIDADE.

Ouvindo isto que acontecia em alguns lugares, Álvoro Mendes dOliveira, alcaide-mor da cidade de Évora, que então tinha o castelo pela Rainha, vendo que semelhável caso, como acontecia aos outros, podia acontecer a ele, e que não tinha outras gentes consigo com que o pudesse defender salvo alguns seus criados, assim como GonçalEanes Melão, Martim Bravo, Rui Gil e outros, até sete ou oito por todos, mandou um dia chamar Martim Afonso Arnalho, mercador, que era então juiz e estava casado com uma donzela da Rainha dona Lionor, Gonçalo Lourenço, alcaide pequeno, Vasco Martins Porrado, escrivão da câmara do concelho, Rui Gonçalves, medideiro, Martim Velho e Álvoro Vasques, mercador, e outros honrados do lugar. E indo todos ao seu chamado, ele lhes propôs tantas e tais razões por parte [46] da Rainha, que ele queria ter, que todos outorgaram de se virem para ele e lho ajudarem a defender.

E como todos se lançaram lá dentro e foi sabido pela cidade, logo em esse dia Diogo Lopes Lobo, Fernão Gonçalves dArca e João Fernandes, seu filho, que eram uns dos grandes que aí havia, com todo o povo da cidade se levantaram contra eles e foram combater o castelo, subindo ao cimo da e isso mesmo do açougue, que são lugares altos donde lhes podiam empecer com as bestas, e dali tiravam [47] muitos virotões aos que estavam no castelo, o qual era mui forte de torres, muro e cercado de cava, e mui mau de tomar sem grande trabalho. E para os fazerem render mais asinha, tomaram as mulheres e os filhos dos que dentro eram para o defender, e puseram-nos em cima cada uns de seus carros, todos amarrados em eles, que era um jogo que os povos miúdos, em semelhante caso, muito costumavam então de fazer, e chegaram assim à porta do castelo, bradando aos de cima que saíssem fora e o desamparassem logo, senão que as mulheres e os filhos lhes queimariam todos, à vista e na presença deles. E em dizendo isto começaram de pôr fogo às portas, com grande alvoroço e arruído de muita gente.

O alcaide, quando isto viu, falou com aqueles que eram lá dentro com ele, e receando-se de cair na destemperada sanha daquele povo, acordaram de lhe dar o castelo antes que mais se fizesse. E foi a preitesia que os deixassem sair fora do castelo e da cidade, a salvo e com sua honra, e que lho deixariam desembargadamente. E depois que os seguraram com esta condição, foram lançados fora pela porta da traição, sendo cerradas todas as portas da cidade, receando-se que os não fossem roubar o povo miúdo, depois que saíssem.

O castelo era bem forte, e certo é que não fora tomado tão depressa, da guisa que o foi, senão fora aquele modo que tiveram de pôr as mulheres e os filhos dos que lá dentro eram em cima daqueles carros. E como foi tomado, logo foi roubado de quanto aí acharam, derribado por muitas partes e posto fogo dentro dele, em guisa que queimadas as casas e quanto nele havia, ficou devasso como pardieiro, sem parte defensável que nele houvesse.

A porta da traição foi logo quebrantada, pelo que nenhum podia entrar nem sair de dentro do castelo, e o alcaide se foi para Fernão Gonçalves de Sousa, que estava em Portel e tinha voz por Castela, e dos outros, alguns se foram para Pêro Rodrigues da Fonseca, que era alcaide de Olivença, e parte deles para Paio Rodrigues, alcaide de Campo Maior, que também ambos tinham voz por elRei de Castela. E foi a tomada deste castelo aos dois dias do mês de Janeiro da sobredita era de quatrocentos e vinte e dois anos [48].

E como esta coisa assim foi feita, logo escreveram depressa ao Mestre toda a maneira que em isto tiveram, e ele trigosamente [49] mandou suas cartas aos principais que em tal feito foram, e a Martim Gil Pestana, que era alferes da cidade, dizendo que vira a carta do concelho da obra muito de louvar que todos haviam feita pelo serviço de Deus, a honra do reino e da sua pessoa, por a qual razão era teúdo de acrescentar em eles, fazendo-lhes muitas mercês como a bons e leais servidores, e que esperava em Deus, que fora começo de tais feitos, que seria bom meio e fim deles, e que por isso lhes rogava, como verdadeiros naturais do reino, que em tudo trabalhassem e tivessem tão boa maneira que nem a ele nem a eles pudesse vir nenhum dano.

52. COMO OS DA CIDADE SE LEVANTARAM CONTRA A ABADESSA E DO JEITO QUE TIVERAM EM NA MATAR.

Tomado o castelo da guisa que dissemos, ficou o povo da cidade cheio de grande alvoroço, fora de todo o bom costume. Começaram de se mover por brava sanha, multiplicando novos queixumes contra quem lhes não havia feito erro, usavam de seu livre poder, desdenhando de quem à primeira tomavam por capitães, assim como Diogo Lopes Lobo, Fernão Gonçalves e outros grandes do lugar, e pondo suspeita sobre eles, disseram que se amavam o serviço do Mestre e eram da sua parte, se fossem a Lisboa para o servir e ajudar a defender o reino. Eles, vendo que lhes não cumpria contender sobre isto, fizeram-no assim e vieram-se para o Mestre.

Os maiorais daqueste [50] alvoroço eram GonçalEanes, cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate, e seguindo [51] os seus feitos como lhes dava a vontade, traziam por apelido [52], Abite! Abite! Aqui dos de abite! Como alguns deles diziam, Vamos a fuão [53], matá-lo, e roubemo-lo, logo assim era feito, sem lhe valer nenhum dos grandes da cidade, posto que por ele se quisesse pôr.

Ora aveio que nesta sazão estavam as freiras e a Abadessa de São Bento, dum mosteiro não longe desse lugar, dentro da cidade, numas suas casas que são no Muro Quebrado, com receio e temor da guerra que já então se começava descobertamente, e andando o povo neste alvoroço, sem outra ocupação em que despendessem o tempo, nasceu uma voz, segundo alguns recontam, dizendo que GonçalEanes cabreiro, um dos capitães daquela união, falou para aquele povo e disse, Vamos matar a aleivosa da Abadessa, que é parenta da Rainha e sua criada. Outros dizem doutra maneira, e esta parece mais de razão, convém a saber, que a Abadessa, ouvindo como eles andavam daquela guisa e as coisas que faziam, disse de jeito que o souberam eles, Eis os bêbados! Andam com sua bebedice, deixai-os vós, que ainda eles mal se hão-de achar por estas coisas que andam fazendo.

Ora, por qualquer guisa que fosse, o levanto [54] contra ela não foi em vão e foram-na logo buscar às casas onde então pousava, e não a acharam nelas, porque ela fora ouvir missa com as suas freiras à igreja catedral da cidade, segundo havia em costume. Uma servidora da sua casa, quando viu que assim a buscavam, correu à pressa e foi à dizer-lhe como a buscavam daquela maneira. Ela, com o grande medo que houve deles, de que defensão não esperava de haver, deixou de ouvir missa, meteu-se no Tesouro e tomou a copa [55] em que vão comungar, onde dizem que estava então o Corpo de Deus consagrado, e tendo-a assim nas mãos, abraçando-se com ela, os que a não acharam em casa foram-na trigosamente [56] buscar à Sé, entrando todos com grandes brados do apelido que traziam, Abite! Abite! E como todos chegaram, perguntaram por ela, mostrando grande desejo de a achar.

Saíram então a eles Gonçalo Gonçalves, que era daí deão, Mem Peres, chantre, e outros beneficiados, para os desviarem da tenção que traziam, e nunca tanto puderam fazer, nem pregar da parte de Deus e de Santa Maria – dizendo-lhes que a deixassem por então e não tirassem da igreja, que eles a teriam presa e bem guardada para se fazer nela direito, se algum mal fizera ou dissera – que nunca o fazer quisessem. Nem isso mesmo as doridas preces dela puderam amansar a braveza daquele sanhoso povo, mas sem nenhuma reverência pelo Senhor que nas mãos tinha – que por então os deixou usar do seu livre poder, por juízo a nós não conhecido – lhe tomaram a copa das mãos e a tiraram fora do Tesouro. E levando-a assim pela Sé, antes que chegassem à porta da escada, lançou-se um deles a ela rijamente, levou-lhe o manto e as toucas da cabeça e deixou-a em cabelo sem outra cobertura. E indo mais adiante, antes que chegassem à porta principal, lançou-se outro homem a ela e cortou-lhe as fraldas de todos os vestidos, em tanto que [57] lhe apareceram as pernas todas e parte dos seus vergonhosos membros. E assim a tiraram fora da Sé desonradamente e a levaram pela Rua da Selaria até à Praça, e naquele lugar lhe deu um deles uma cutilada pela cabeça de que logo caiu morta em terra, e depois os outros começaram de acutilar por ela, cada uma [58] como lhes prazia.

Então a deixaram assim jazer na Praça e foram comer e buscar outros desenfadamentos. E cerca da noite vieram aqueles que a mataram, lançaram-lhe um baraço nos pés e levaram-na, arrastando-a até ao Rossio, cerca do curral das vacas. E deixando ali aquele desonrado corpo, alguns que disto houveram sentido o tomaram de noite e soterraram na Sé escondidamente, que doutra guisa não eram ousados de o fazer de praça [59].

53. COMO FOI ALÇADA VOZ E PENDÃO PELO MESTRE NA CIDADE DO PORTO, E DA MANEIRA QUE O POVO EM ISTO TEVE.

Deveis de saber que tanto que o Mestre tomou carrego de regedor e defensor dos reinos e soube que elRei de Castela vinha com todo o seu poder para entrar neles, logo escreveu as suas cartas a algumas vilas e cidades, e isso mesmo a certas pessoas, notificando-lhes nelas que bem sabiam da guisa como estes reinos estavam em ponto para se perder, e como elRei de Castela vinha para os tomar e meter os povos deles em sua sujeição, contra a ordenação dos tratos que prometidos tinha, a qual coisa deviam de ter por tão grave e tão estranha, que antes todos se deviam aventurar a morrer em tal demanda do que cair em servidão tão odiosa, e que ele, por honra e defensão do reino e dos naturais dele, se dispusera a tomar carrego de os reger e defender, o que, com a graça de Deus, entendia de levar adiante com a boa ajuda deles, e que por tanto lhes rogava que todos de bom coração, como verdadeiros portugueses, tivessem voz por Portugal e não curassem de nenhumas cartas que a Rainha e elRei de Castela em contrário disto lhes mandassem.

E dentre os lugares a que o seu recado chegou, um foi a cidade do Porto, onde as suas cartas não foram ouvidas em vão, mas como foram vistas, com coração muito prestes, logo se juntaram todos, especialmente o povo miúdo, que alguns outros dessa comunal gente, duvidando, receavam de pôr em tal feito a mão. Então aqueles que chamavam arraia-miúda disseram a um, por nome chamado Álvoro da Veiga, que levasse a bandeira pela vila em voz e nome do Mestre de Avis [60], e ele recusou de a levar, mostrando que o não devia de fazer, o qual logo foi chamado traidor e que era da parte da Rainha, dando-se-lhe tantas cutiladas, e tão de vontade, que era sobeja coisa de ver.

Este morto, não se fez mais naquele dia, mas juntaram-se todos ao outro seguinte com a sua bandeira tendida [61] na praça, tendo ordenado [62] que a levasse um bom homem do lugar que chamavam Afonso Eanes Pateiro, e se a levar não quisesse, que o matassem logo como ao outro. AfonsEanes soube disto parte por alguns deles que eram seus amigos, e bem cedo pela manhã, primeiro que o convidassem para tal obra, foi-se à praça da cidade, onde já todos eram juntos para a trazer pelo lugar, e antes que nenhum lhe dissesse que a levasse, deitou ele mão da bandeira, dizendo em altas vozes, que o ouviam todos, Portugal! Portugal! Pelo Mestre de Avis!

Então cavalgou AfonsEanes em cima dum grande e formoso cavalo que para isto já ali estava prestes, trazendo-a mui honradamente por toda a cidade, acompanhado de muita gente, assim clérigos como leigos, bradando todos a uma voz, Arraial! Arraial! Por o Mestre dAvis, Regedor e Defensor dos reinos de Portugal! E andando assim pela cidade, foram-se à – onde grandes tempos havia [63] que era posto interdito e não soterravam nenhum, e começaram de tanger os sinos e fazer dizer missas, e a dessoterrar os mortos, onde jaziam enterrados, e trazê-los para dentro da igreja, e nenhuma pessoa ousava isto contradizer –, pregou então um frade, muito a propósito da sua intenção, concluindo que todos deviam de ser duma vontade e desejo, e não andar entre eles desvairo nenhum, mas servir o Mestre lealmente e de bom coração como verdadeiros portugueses, pois que se punha a defender o reino para o livrar da sujeição delRei de Castela. Muito foram todos contentes das razões que o frade pregou, e daí em diante nenhum desacordo houve entre eles, mas todos de um talante se dispuseram a ter e a seguir a tenção do Mestre.

E desta guisa que tendes ouvido tomaram os povos miúdos muitos castelos aos alcaides deles, que para não alongar deixamos de dizer, alçando voz com pendões pela vila, bradando todos e dizendo, Portugal! Portugal! Pelo Mestre dAvis!

E não guardavam divedo [64] nem amizade a nenhum que a sua tenção não tivesse, mas quantos eram da parte de Rainha todos andavam à espada [65]. Quanta discordância pensais que era de pais com filhos, de irmãos com irmãos e de mulheres com maridos? A nenhum era ouvida razão nem escusa que por sua parte dar quisesse, mas como um falava, E fuão [66] deles é, não havia coisa que lhe desse a vida [67] nem justiça que o livrasse de suas mãos. E isto era especialmente contra os melhores e mais honrados que havia nos lugares, dos quais muitos foram postos em grande cajão [68] de morte e roubados de quanto haviam, e alguns deles, com medo, fugiam para as vilas que tinham voz por elRei de Castela, outros iam-se para fora do reino, deixando os seus bens e tudo quanto haviam, os quais o Mestre logo dava a quem lhos pedia, e os miúdos corriam a pós eles [69], buscavam-nos e prendiam-nos tão de vontade que parecia que lidavam pela fé.

 



[1] Aduzindo, expondo.

[2] Assinalando, apontando.

[3] A partir dele, a partir do castelo.

[4] O empacho.

[5] Anteriormente ocorridas.

[6] Preparou-se.

[7] Dado que o tencionava tomar.

[8] Se atreveram de fazer.

[9] Fosso.

[10] Pudesse ir por cima do fosso encostar-se ao castelo, e debaixo dela pudessem minar o muro.

[11] A mãe de Afonso Eanes Nogueira não era irmã, mas sim a mãe ou a madrasta da mulher de Martim Afonso Valente, que aliás também se chamava Constança Afonso. Ver ao Serviço da coroa no Século XV, de M. S. S. Farelo.

[12] Que o apedrejassem.

[13] Absteriam.

[14] Àquela data.

[15] Mais contenda.

[16] Portanto, de acordo com o penúltimo parágrafo deste capítulo, a 28 de Dezembro de 1383 Leonor Teles ainda estava em Alenquer.

[17] Manto de mulheres.

[18] De muito má vontade.

[19] Em combatê-lo.

[20] Que mandasse dizer a Martim Afonso Valente que entregasse o castelo ao Mestre.

[21] Maiores.

[22] Consumiam-se a si próprios.

[23] Cepo e carrasco  (do latim, sector, sectoris, «cortador», «aquele que corta»). – Nota de J.G.M.

[24] Agradou-lhes muito.

[25] Embora pensassem que tudo aquilo não passava de vaidade.

[26] Mantivessem sempre.

[27] Agitando-se, impacientando-se.

[28] E não se atreviam a aparecer.

[29] Começaram logo a assaltar o castelo.

[30] Material de guerra para a defesa.

[31] Vigia.

[32] Messias.

[33] Cobraram coragem e se juntavam todos em união.

[34] A de quem o reino não era.

[35] Sem ninguém lhe poder valer.

[36] Punha.

[37] E por sua ordem.

[38] Propuseram.

[39] Por nenhuma razão, de maneira nenhuma.

[40] Aperto.

[41] Expôs.

[42] Não servindo de nada.

[43] Que o guardasse.

[44] Parapeito.

[45] E elas próprias.

[46] Pelo partido.

[47] Atiravam.

[48] Aos dois dias do mês de Janeiro de 1384.

[49] Celeremente, rapidamente.

[50] Deste.

[51] Prosseguindo, continuando.

[52] Grito de chamamento, de mobilização.

[53] Fulano.

[54] Motim.

[55] Vaso.

[56] Apressadamente.

[57] De modo que.

[58] Cada cutilada.

[59] Abertamente, em público.

[60] Como representante ou mandatário do Mestre de Avis.

[61] Desfraldada.

[62] Decidido.

[63] Onde há muito tempo.

[64] Laço de parentesco.

[65] Mas passavam a fio de espada todos quantos eram do partido da rainha.

[66] Fulano.

[67] Não havia nada que lhe conservasse a vida.

[68] Perigo.

[69] Atrás deles.

IX - Os castelhanos entram em Portugal

65. COMO ELREI DE CASTELA ENTROU EM PORTUGAL, E DALGUNS FIDALGOS QUE SE VIERAM PARA ELE.

Foi-se o Bispo da Guarda e chegou ao lugar, e elRei partiu de Prazença e chegou a Perosim, junto com Fonte Guinaldo [1], e ali lhe veio recado do Bispo de que tinha já a cidade por ele e que fosse depressa, de guisa a que amanhecesse no lugar, porque os da vila e do termo sabiam já como ele vinha, e que se àquele tempo aí não fosse, que era dúvida de o haver, porque seriam já todos apercebidos e ele não o poderia padecer bem.

ElRei, como viu o seu recado, partiu de Perosim à tarde e andou toda aquela noite, e a Rainha com ele, e chegou à Guarda em amanhecendo [2], e não iam consigo mais de até trinta homens de armas de seus oficiais, dos que andavam com ele de cote [3]. O Bispo saiu a recebê-lo com a sua clerezia em procissão o mais honradamente que pôde, e assim entrou na cidade, ele, a Rainha e os que consigo iam, e foi elRei pousar aos Paços do Bispo.

Álvoro Gil não saiu a ele, e esteve quedo em seu castelo, sem mostrar por qual parte tinha [4]. Mas veio Vasco Martins de Melo – que fora com a Rainha e pousava em Fonte Guinaldo, a quem elRei mandara dizer, quando partiu de Perosim, que se fosse em pós ele [5] à Guarda – e Martim Afonso, rico homem, seu irmão, que tinha Celorico e Linhares, foi o primeiro que se veio para elRei de Castela e ficou por seu ali na Guarda, da qual coisa desprouve [6] muito a Vasco Martins, porque seu irmão começara de se vir para elRei antes que nenhum outro.

A elRei veio ao outro dia alguma daquela gente por que mandara, que seriam até duzentas lanças, e ao cabo de três dias chegou o Conde de Mayorgas, depois, Pêro Fernandez de Valasco, Pêro Sarmento [7] e outros capitães, com umas quinhentas lanças.

ElRei, vendo que Álvoro Gil não lhe vinha falar nem saía fora do castelo, disse a Martim Afonso de Melo que houvesse com ele para que lhe falasse [8]. Fê-lo assim Martim Afonso e trouxe-o seguro de ida e vinda, e ele falou com elRei, tornou-se para o seu castelo e não lhe falou depois mais. Ao outro dia Vasco Martins mandou falar a Álvoro Gil por Martim Afonso, seu filho, dizendo que fizera grão bem em não se vir para elRei de Castela, nem se lhe desse, que o fazia certo que elRei não jazeria sobre ele [9], senão que [10] passava por aí e ia-se em seu caminho, e se tal coisa [11] aviesse que elRei o quisesse fazer [12], que lhe prometia de se lançar com ele [13], com os seus filhos e com os que tinha, e o ajudaria a defender o castelo.

ElRei houve menencoria de Álvoro Gil por lhe mais não falar nem se vir para ele, mas vieram, dos cavaleiros e escudeiros daquela comarca, enquanto elRei esteve na Guarda, estes aqui nomeados, Martim Afonso de Melo, que foi o primeiro, Vasco Martins da Cunha, Martim Vasques, seu filho, e outros seus filhos, FernandAfonso de Merlo [14], Álvoro Gil de Carvalho e outros.

ElRei recebia-os mui bem, dizendo que lhe fizessem preito e menagem por as fortalezas que tinham, e eles faziam-lhe menagem de receber e haver, por sua rainha e senhora, a Rainha dona Beatriz, sua mulher, e a ele, assim como seu marido, e isto todavia com o entendimento de que os tratos fossem guardados pela guisa em que foram postos entre ele e elRei dom Fernando. A elRei pesava muito desta condição que punham em tais menagens, porém dava lugar a isto [15], porque não podia mais fazer por então.

E como quer que estes cavaleiros e escudeiros se viessem ali para elRei, porém, segundo alguns escrevem, não se contentavam do gasalhado [16] e acolhimento que achavam nele, e assim como vieram para ele cedo, assim começaram de tratar entre si para se partir logo, e isto dizem que foi por duas razões, a primeira, porque elRei era homem de poucas palavras e não muito ledo, e eles haviam usado com elRei dom Fernando, que era de grandes gasalhados, a outra, porque elRei lhes não dava logo dinheiros, e ele não podia isto fazer, pois tão depressa entrara no reino, para cobrar a posse dele, que não tivera sentido de esperar por nenhuns dinheiros.

66. DAS RAZÕES QUE BEATRIZ GONÇALVES DISSE A SEU FILHO PARA NÃO DAR OS CASTELOS QUE TINHA A ELREI.

Um bom fidalgo daquela comarca, chamado por nome Gonçalo Vasques Coutinho, era alcaide de Trancoso, Lamego e outros lugares, e estando ele em Trancoso, quando elRei chegou à Guarda, pensou elRei que se viesse para ele, como fizeram alguns outros, e ele demovido foi, segundo alguns escrevem, mas outros assinam [17] em seus livros algumas razões por que o deixou de fazer.

Uns contam que ele enviou então um escudeiro com cartas de crença [18], uma a Vasco Martins de Melo e outra a Vasco Martins o moço, seu filho, que morreu depois na batalha, como adiante ouvireis, pelo qual lhes rogava que o aconselhassem a que maneira teria nesta entrada que elRei fazia no reino por esta guisa, porque via muitos fidalgos daquela comarca virem-se para elRei de Castela, e ele não faria sobre isto nenhuma coisa sem o seu conselho, e que eles lhe mandaram dizer que se não viesse para ele, que elRei de Castela não vinha senão para passar em seu caminho, e não para o cercar a ele nem a outros, posto que logo para ele não se viessem.

Outros contam que não foi por esta razão, mas que Beatriz Gonçalves, sua mãe, estava com ele naquele lugar, e que falando com ela de que maneira teria em seus feitos, pois elRei de Castela entrava no reino por aquela guisa, sua mãe lhe respondeu e disse:

Filho, com os néscios e com os trigosos [19] ganham os homens, e nas coisas que são para esguardar [20] sempre a trigança é danosa. E os reis e os poderosos, muitas vezes, cuidam de acabar coisas de que hão grão desejo, e às vezes não se lhes segue como eles pensam. ElRei de Castela entra neste reino quebrando os tratos, segundo bem vemos, e posto que alguns se venham para ele e fiquem por seus, não praz a muitos, porém, com sua vinda, antes pesa a todos os povos, tendo que faz o que não deve, como é verdade, quebrando as avenças que entre ele e elRei dom Fernando foram firmadas.

Lisboa tomou o Mestre por seu regedor e defensor como souberam que elRei de Castela queria vir, e são já outras cidades e vilas do reino com eles nesta tenção, assim que já estes feitos levam começo para se não livrarem [21] muito de ligeiro, como quer que [22] alguns digam que a voz que Lisboa e os outros lugares tomam contra elRei é um pouco de vento [23], e por isso me parece que é bem que vos deixeis assim estar até que vejais que termo Deus põe nesta coisa, e assim podeis encaminhar vossos feitos como sentirdes para mais vossa honra e proveito.

A ele pareceu este bom conselho e creu sua mãe no que lhe dizia, e esta foi a razão por que não veio falar a elRei, e não a primeira, como alguns disseram.

67. DO RECADO QUE MANDOU A RAINHA DONA LIONOR A ALGUNS CONCELHOS DEPOIS DA MORTE DO CONDE JOÃO FERNANDES.

No mês passado [24] cerca deste, onde [25] se começava o novo ano em Castela da nascença de nosso Senhor Jhesu Christo de mil trezentos e oitenta e quatro, e da era de César de mil quatrocentos e vinte e dois, depois da morte do Conde João Fernandes, estando a Rainha então em Alenquer, mandara cartas a alguns concelhos em que largamente lhes fez saber quanto ficava lastimada e cheia de quebranto pela morte delRei seu marido, e como, pelo seu finamento, os reinos ficavam à Rainha dona Beatriz, sua filha. 

E que para se não seguir o ajuntamento destes reinos com os de Castela, mas sempre serem coroa sobre si, como até ali foram, segundo nos tratos era divisado e elRei dom Fernando deixara em seu testamento, ela tomara carrego do regimento deles por aquele tempo que o havia de ser, posto que em isto sentisse grão trabalho do corpo e aflição para a sua alma, mas que o fazia para salvação deles todos, e para lhes satisfazer do muito serviço e honra que deles havia recebido.

E que estando ela em Lisboa, em seus Paços, ordenando o que cumpria para serviço de Deus e proveito dos reinos, que tornara o Mestre de Avis, que ela já tinha enviado para pôr recado nas vilas da Ordem e em algumas outras daquela comarca, e matara o Conde João Fernandes, por cujo azo, e do alvoroço da cidade, se partira dali e se fora para Alenquer. E que se enviava querelar a eles de tais coisas [26] para se sentirem disto, às quais a sua tenção não era tornar com vontade de vingança, mas somente para fazer direito e justiça.

E que entendia de enviar recado a elRei de Castela que se sofresse [27] de entrar no reino para todos eles não receberem dano e os reinos ficarem sobre si [28], o que seria em grande dúvida se a Rainha, sua filha, e elRei seu marido cobrassem logo o regimento deles. E que isto lhes enviava notificar como a pessoas de que muito fiava, e para verem a sua intenção qual era em prol e honra deles todos.

68. COMO A RAINHA ESCREVEU A ELREI QUE ENTRASSE NO REINO, E A TENÇÃO PORQUE O FEZ.

Mandadas tais cartas pelo reino, cuja conclusão em breve dissemos, os enfermos corações de todos, postos em grão pensamento, não sabiam que cuidar em tais feitos. Era-lhes muito grave de ouvir que elRei de Castela viesse ao reino, vendo-o posto em grande balança para de todo ficar com Castela, e isto para a maior parte do povo miúdo, que não era do bando da Rainha.

E uns tinham que elRei se sofreria de tal entrada, escrevendo-lhe a sua sogra daquela maneira que dissera, mormente por razão dos tratos que com tais menagens e juramentos eram feitos. Outros de todo perdiam esta esperança, vendo sucessos de desvairadas [29] guisas espargidas pelo reino, e como [30] já diziam que vinha depressa para logo cobrar a posse dele.

Neste comenos [31] entrou elRei, como ouvistes, e estando na Guarda em este mês de Janeiro que dissemos, chegaram cartas afincadas [32] da Rainha muito em contrário do que ela antes escrevera aos concelhos, pois ela lhes certificava que entendia de enviar o seu recado a elRei que se sofresse de entrar no reino, para eles todos não receberem dano, e nestas fazia saber a elRei como todas as coisas em Lisboa haviam sido passadas, assim da morte do Conde João Fernandes, que o Mestre matara em sua presença e Paços, como da morte do Bispo e dos outros que aquele dia foram mortos na Sé, e que ela, com receio e muito nojosa, partira de Lisboa e se viera a Santarém, onde por então estava, e que por isso lhe rogava que pusesse aguça [33] no seu caminho e chegasse ali, que ela se tinha por mui desonrada do Mestre dAvis e dos moradores de Lisboa, os quais entendia que não queriam obedecer a ele nem haver a Rainha dona Beatriz, sua mulher, por senhora. E que a discórdia e levantamento dos da cidade, de que o Mestre era capitão e cabeça, pondo-se por eles e defendendo-os, chamando-se Regedor e Defensor do reino em suas cartas, seria azo do seu grande acrescentamento, porém que ela tinha irmãos e grandes fidalgos seus divedos [34] bem poderosos, que haviam assaz de fortalezas com que lhe podiam fazer boa ajuda em muitas guisas, e também a vila de Santarém em que ela estava, que era uma das melhores do reino, e que portanto cumpria muito de dar trigança [35] à sua vinda para onde ela estava.

ElRei de Castela, vendo seu recado, prouve-lhe muito com ele, e como aquele que havia grão desejo de entrar no reino, não lhe foram menos estas cartas da Rainha, quando assim chegaram, senão ajuntar esporas ao que havia vontade de correr, e logo ao outro dia ordenou de partir.

Onde sabei que a razão por que a Rainha escreveu tais cartas, segundo alguns em seus livros assinam [36], foi o grande queixume que ela tinha do Mestre dAvis e doutros do reino de que suspeita havia, e isso mesmo dos povos de Lisboa e dalguns lugares que tinham com eles [37], entendendo ela, depois que elRei de Castela chegasse, que faria que as gentes com o seu grão poder lhe obedecessem, e que a vingaria de todos – especialmente dos homens e mulheres de Lisboa, de quem ela dizia que nunca havia de ser vingada até que tivesse um tonel cheio das línguas delas, e sem dúvida se as coisas se seguiram como ela cuidava, estranhas foram as justiças que ela mandara fazer nos moradores daquela cidade, por o que sabia que diziam dela, assinadamente [38] na morte do Conde – e depois que desta guisa fosse vingada, e o reino todo assossegado, que se tornaria elRei para sua terra e ficaria ela em sua honra e regimento, assim que [39] nenhum daí em diante, por grande que fosse, e muito mais pouco [40] os pequenos povos, seria ousado de lhe contradizer, receando semelhável vingança, e ela vingada e o reino sem alvoroço, se iria elRei para sua terra e ficaria ela como desejava.

69. COMO ELREI DE CASTELA SEGUIU EM SEU CAMINHO E CHEGOU A SANTARÉM.

Partiu logo elRei da Guarda e foi-se em romaria a Santa Maria dAçores, jantou [41] naquele lugar e foi dormir a Celorico, que lhe já Martim Afonso de Melo tinha dado, e esteve aí quatro dias. Dali partiu, andou o seu caminho e chegou por Coimbra, que tinha o Conde dom Gonçalo, irmão da Rainha, e estava aí Gonçalo Mendes de Vasconcelos, tio dela, e estes não se vieram para elRei nem o acolheram na cidade, mostrando que lhes não prazia com ele. Depois chegou a Miranda, onde estava o Conde de Viana, o qual veio recebê-lo e ficou por seu, e esteve elRei ali um dia. Ao outro seguinte dia partiu de madrugada e foi dormir ao Chão do Couce, e no outro dia foi comer a Ceras e dormir a Tomar.

Então pensou elRei que se viesse para ele o Mestre de Christos, sobrinho da Rainha dona Lionor, filho de sua irmã, e quando chegou a Tomar e soube que se partira daí, houve disto grande queixume, porque cuidou que ficasse por seu como os outros, e foi elRei pousar às pousadas do Mestre que estão no Rossio.

E certamente, segundo escreve um autor em sua história, assim foi de facto que o Mestre se ia para elRei ao caminho, para ficar com ele e o servir, e um cavaleiro da sua Ordem, quando assim o viu ir e a tenção que levava, disse ao Mestre em esta guisa, Senhor, a mim parece que vós ides receber elRei de Castela para ficar com ele e serdes seu, e vós, Senhor, se isto bem esguardardes, não o deveis assim de fazer até que vejais a que termo estes feitos querem vir, e depois que virdes como se encaminham, então podeis fazer o que sentirdes para vossa honra e proveito sem ficar com nenhum prasmo. Com estas e outras razões que assim foram falando, foi o Mestre movido a não ir por diante, tornou-se para Pombal e ali esteve.

ElRei dormido em Tomar, houve aquela noite guarda no arrabalde e foi feita uma escaramuça, em tal guisa que mataram um que havia por nome Henrique Alemão e uns cinco até seis com ele. ElRei partiu daí à meia-noite e foi amanhecer à Golegã, aí comeu e depois partiu para Santarém, e a Rainha, sua mulher, com ele. E antes duas léguas que chegasse a Santarém, juntaram-se-lhe esses que eram com a Rainha [42], não porém todos juntos, mas cada um como lhe prazia, e saíram-no a receber, beijando a mão a ele e à Rainha, oferecendo-se por seus, entre os quais estava Gonçalo Vasques dAzevedo, e João Gonçalves Teixeira [43], dizendo a elRei, da parte da Rainha dona Lionor, que a Rainha sua mãe se enviava muito encomendar a ele, e que fosse mui bem-vindo, que havia tempo que o desejava ver em Portugal.

A Rainha dona Beatriz, antes que chegasse às vinhas de Santarém, deteve-se ali um pouco para se corrigir como lhe cumpria, porque trazia os seus corregimentos [44] pelo caminho, e mandou elRei a Pêro Fernandez de Valasco e a Pêro Sarmento que se fossem adiante e o aguardassem junto ao Chão da Feira, que é ante a porta do castelo, e eles fizeram-no assim, e Gonçalo Vasques e João Gonçalves tornaram-se para a Rainha.

70. COMO O MESTRE SE TORNOU DE ALENQUER PARA LISBOA.

O Mestre, que deixámos em Alenquer, trazia enculca [45] com elRei de Castela depois que lhe disseram que era na Guarda, para saber as gentes que com ele vinham e que caminho queria trazer, e antes alguns dias que chegasse a Santarém, chegou ao Mestre recado em como se vinha para ali direitamente [46], que trazia as gentes espalhadas e não estava muito acompanhado.

O Mestre disse a NunÁlvares como elRei de Castela vinha pelo reino, que seria mui cedo em Santarém e que lhe parecia que era bem de se tornarem para a cidade, para pôr guarda e recado nela. NunÁlvares respondeu a isto, dizendo que posto que eles se tornassem para a cidade, tão bem saberia elRei de Castela o caminho para vir sobre ela como eles que a haviam de defender, mas que o seu conselho era que enquanto elRei de Castela vinha com pouca gente, antes que se juntasse com ele maior poder, trouxessem enculca com ele [47], e que quando chegasse ao termo de Santarém, lhe saíssem eles de travessa [48] ao caminho e pelejassem com ele, e assim o poderiam desbaratar ligeiramente, por cujo desbarato adiantariam muito em sua demanda.

O Mestre disse que lhe parecia bom o seu conselho mas que isto não se podia fazer a seu salvo, porquanto eram ali muito poucos. Em isto veio-lhe outro recado, que elRei de Castela havia de ser naquele dia em Santarém, e o Mestre partiu com suas gentes e veio-se para Lisboa.

71. COMO ELREI FALOU À RAINHA E A LEVOU CONSIGO PARA O MOSTEIRO ONDE POUSOU.

Antes alguns dias que elRei de Castela chegasse a Santarém, mandou adiante Pêro Carrilho, seu Apousentador-mor, para requerer à Rainha que lhe mandasse dar pousadas e bairro para os seus, e ela houve conselho, com esses fidalgos e senhores que com ela estavam, e acordaram que elRei e os que com ele vinham não pousassem dentro da vila, mas que elRei pousasse num dos mosteiros, qual lhe mais prouvesse, e os seus de fora, como melhor pudessem. O Apousentador, vendo isto, não se tornou porém para elRei, mas aguardou ali até que viesse.

A vila começou de se velar melhor, que antes nem por isso, como se fosse em guerra.

Ora contam alguns que não embargando que a Rainha dona Lionor mandasse chamar elRei de Castela e lhe prouvesse muito da sua vinda, porém, como era mulher sages e apercebida em tudo, não tinha o coração bem seguro de que elRei teria em seus feitos aquela maneira que ela desejava e queria, e receando muitas coisas e de nenhuma sendo segura, que duvidava muito de sair do castelo e se pôr em poder delRei – receando o que lhe depois aveio – e que não quisera sair lá fora a lhe falar, mas que fosse elRei entretanto pousar a um desses mosteiros e que depois acordariam a maneira que teriam em suas falas, dizendo-lhe então Martim Gonçalves dAtaíde, Gonçalo Rodrigues de Sousa e outros fidalgos que todavia não se pusesse em poder dele, porque poderia ser que a retivesse elRei até que lhe entregasse aquele lugar e os outros todos que por ela estavam, mas Gonçalo Vasques e João Gonçalves disseram à Rainha que o não fizesse por nenhuma guisa, e pois que seus filhos eram e os fizera vir de seu reino chamados por suas cartas, que dela seria grande desmesura, e coisa de que elRei teria má suspeita e grande queixume, não sair logo a os receber e lhe falar, mormente que eles entenderam nele, quando o foram receber, que ele lhe tinha bom desejo e vontade de lhe fazer prazer em toda a coisa que pudesse.

E dizem que em isto chegou elRei a Santarém numa terça-feira depois de véspera, aos doze dias de Janeiro, e a Rainha dona Beatriz, sua mulher, a qual vinha em cima duma mula de sela, coberta de dó, e dona Beatriz de Castro e outras donas e donzelas com ela. Com elRei vinham até cento e oitenta a cavalo, todos armados, de lanças levantadas e trombetas consigo – mas logo à tarde vieram muitos [49] – e descavalgou ele, e sua mulher, num grande chão que se faz ante a porta do castelo, e todos os fidalgos, donas e donzelas que em sua companha vinham.

E dizem que estando assim pé terra [50], o foram dizer à Rainha, e que então saiu ela de mamente [51], coberta de um grande manto preto, que lhe não aparecia o rosto, trazendo-a pelo braço Vasco Peres de Camões e vindo poucos com ela. E elRei, como a viu, foi-a logo receber, abraçando-a ele e sua filha. E ela, choramingando, começou logo de dizer a elRei, Filho, Senhor, faço-vos queixume do Mestre dAvis, que matou o Conde João Fernandes em meus Paços cerca de minhas fraldas e me deitou fora de Lisboa, a mim e a quantos eram meus e tinham da minha parte. E elRei lhe respondeu que a isso era vindo, para lhe fazer todo o prazer e honra e lhe dar vingança do que assim lhe fora feito. E que então se despediu a Rainha delRei e de sua filha, e que se quisera tornar para o castelo, e que elRei a quisera deixar ir se não fora Pêro Fernandez de Valasco, que disse que razoada coisa lhe parecia dele a levar consigo, pois havia tanto tempo que não o via nem a sua filha, e que todavia a levasse. Sem embargo disto, a Rainha quisera tornar-se para o castelo, dizendo a elRei, pois que ainda não estava apousentado, que a deixasse ir por então, e que ao outro dia pela manhã se iria para ele e para sua filha. E elRei disse todavia que se fosse com ele, e tomou-a pelo braço duma parte e a Rainha da outra, e levaram-na consigo para o mosteiro de São Domingos, onde elRei havia de pousar.

Mas pois que do começo desta obra seguimos por desvairadas [52] opiniões, para cada um reter qual lhe mais prouver, digamos aqui outro razoado que muito em parte desacorda deste, porque um autor que dá testemunho que esteve presente, diz que já ela estava na ponte à porta do castelo quando disseram que elRei vinha. E que elRei e a Rainha ambos chegaram juntos e a abraçaram, beijando-lhe sua filha a mão, e que as razões que eles houveram nenhum as ouviu, e que então a apartou elRei um pouco da Rainha, sua filha, e falou um mui pequeno espaço com ela, sem nenhum ouvir o que diziam, e depois a levou para o mosteiro de São Domingos, e assim foi a sua partida, e doutra guisa não, pondo-se logo guarda essa noite de duzentas lanças com elRei, e assim daí em diante.

72. COMO ELREI ORDENOU DE SE VIR PARA A VILA, E DA MANEIRA COMO ENTROU NO LUGAR.

As falas e razões que elRei aquela noite houve com a Rainha dona Lionor, sua sogra, nenhum claramente as põe em escrito, salvo quanto dizem que elRei lhe disse: que ele não lhe podia dar vingança do Mestre nem dos outros de que ela queria, nem subjugar vila nem cidade das que tinham voz contra ela, se primeiro não renunciasse, em ele e na sua filha, a todo o regimento que ela havia de haver no reino segundo nos tratos era contido. E ela, mudando de seu propósito e vontade, determinou de o fazer – nem valeu, segundo contam certos autores, o conselho que à Rainha deram alguns que disto souberam parte, dizendo que não podia em alhear [53] o regimento e senhorio que lhe ficara por morte delRei dom Fernando, indo contra a sua postumeira [54] vontade que pelo direito era havida como lei, ademais que tal renunciação era contra os tratos, nos quais não podia enader [55] nem minguar sem o consentimento dos prelados e povos do reino, como em eles se fazia menção, e ela disse-lhes [56] que não haviam por que pôr dúvida em tal coisa, que bem sabiam que elRei era senhor do reino de Portugal, e a Rainha, sua filha, e que em tal feito não se podia já mais fazer – e logo ao outro dia, quarta-feira, mandaram chamar um tabelião e foi feita a escritura em que renunciou a todo o direito do regimento que havia de haver no reino e o pôs em ele e em sua filha [57].

E na quinta-feira, pela manhã bem cedo, se veio a Rainha para o castelo e quitou a menagem a Gonçalo Vasques dAzevedo, que era daí alcaide-mor, e mandou chamar João Gomes dAbreu, cavaleiro, um dos honrados moradores do lugar, e disse-lhe que quando fosse a horas de meio-dia, fizesse abrir as portas de Leiria, que estavam fechadas e guardadas por gentes da vila, e viria elRei de Castela com a sua mulher e gentes pousar dentro da vila. João Gomes respondeu que fosse sua mercê de não querer que elRei de Castela nem as suas gentes entrassem no lugar, que melhor pousariam por esses mosteiros e fora, no arrabalde, onde lhes dariam mantimentos pelos seus dinheiros, do que lhes pondo a vila em poder e se emburilharem [58] todos.

A Rainha houve disto queixume e disse a João Gomes como sanhuda [59], E como? Não quereis vós que meus filhos entrem dentro da vila? Eu vos digo, se vós não quiserdes, que eu lhes darei entrada pela porta deste castelo, sairão por esta outra porta dentro da vila, e onde [60] eu tenho ordenado de eles irem pousar nas casas de Gonçalo Vasques dAzevedo, eles irão pousar nas vossas convosco! Respondeu então João Gomes e disse, Senhora, eu dizia isto por bem, entendendo-o para vosso serviço, mas pois que a vós assim não praz, eu farei tudo o que vós mandais.

E logo em esse dia depois de jantar [61] abriram as portas, e elRei, como comeu, veio-se à vila, e vinha em cima de um cavalo, e parte dos seus, de bestas [62], armados e lanças levantadas, todos adiante. E as ruas desde o castelo até a SantEstêvão, onde elRei havia de pousar, e dali até a alcáçova, todas primeiramente foram filhadas e postos muitos homens de armas a pé terra [63] em elas, e mandou a Rainha aos judeus que fossem receber seus filhos com as Touras [64] fora da vila, e eles fizeram-no assim.

E quando elRei chegou à porta do castelo que saía para o Chão da Feira, já ali estava a Rainha de besta [65], e tomou-a elRei pela rédea, e a Rainha sua filha trás ela, a qual levava o Infante de Navarra. E elRei ia armado dumas solhas e com um ramo de cidreira na mão, e entraram pela porta de Leiria e levaram todo o longo da rua até que chegaram às pousadas de Gonçalo Vasques dAzevedo, onde haviam de pousar, que eram junto com a igreja de SantEstêvão desse lugar, e ficou a Rainha dentro das pousadas com elRei.

E logo nesse dia lhe foi entregue o castelo e a alcáçova. E foi tirado aquele que o tinha por Gonçalo Vasques e posto nele Lopo Fernandez de Padilha, e na alcáçova puseram Garcia e Sancho de Vilhodre [66], dois irmãos, com oitenta lanças. E havia elRei sempre em seu Paço, de guarda de dia e de noite, cinquenta homens de armas.

73. DA MANEIRA QUE ELREI TEVE COM OS DESEMBARGADORES DA JUSTIÇA, E COMO MESCLOU AS SUAS ARMAS COM AS DE PORTUGAL.

Estando elRei assim em Santarém, que é uma das grandes e melhores vilas que há no reino de Portugal e a mais abastada de todos os mantimentos, vinham-lhe a cada dia grandes capitães com muitas gentes de seus reinos, e o Apousentador da Rainha, com outro delRei de Castela, repartiam bairro a cada um, segundo o que era [67], dentro da vila e pelo arrabalde de fora. E não escusavam a nenhum de pousarem com ele, salvo a Judiaria, em que não pousaram por azo de dom Davi Negro e dos judeus de grande estado aliados da Rainha. E tinham os castelhanos boa maneira, logo no começo, com quem pousavam e no comprar das viandas [68].

E estavam todos os desembargadores e oficiais da casa – do tempo delRei dom Fernando – com a Rainha em Santarém quando elRei de Castela chegou, que se vieram com ela quando partiu de Lisboa, assim como LourençEanes Fogaça, Chanceler-mor, e Gonçalo Peres, seu escrivão, o doutor Gil do Sem, João Gonçalves, Fernão Gonçalves e Lopo Estevens de Leiria, todos três licenciados em leis, Rodrigo Estevens de Lisboa, Gonçalo Peres, Prior dOurém, e GonçalEanes, ambos bacharéis em direito canónico, e estes e outros livravam [69] todos os feitos [70] de Portugal com grande deliberação e direito. E quando elRei de Castela chegou não quis desfazer o modo como estavam, mas pôs cada um de sua mão no ofício que tinha, e isso mesmo os escrivães e todos os outros, e fez seu procurador Gonçalo Martins, bacharel em degredos, e todos receberam dele mantimento para dois meses e em seu nome livravam os feitos, como aqueles que entendiam que já tinha o reino por seu. E andava Gil Eanes, Corregedor da Corte, e um alguazil delRei pela vila, que a regiam e ouviam alguns feitos entre os castelhanos e os portugueses.

ElRei de Castela, posto que antes se chamasse Rei de Castela, de Leão, de Portugal e do Algarve, ali começou de se nomear muito mais claramente por azo das sentenças e dos outros desembargos do reino, alçando pendões de suas armas com as quinas no cabo delas [71], como já tendes ouvido, e como elRei ali chegou, disse a LourençEanes Fogaça, Chanceler-mor que fora delRei dom Fernando, que lhe levasse os selos que tinha, assim chãos como pendentes, para os mandar desfazer e quebrar e mandar fazer outros, com as armas e sinais de Castela e as de Portugal mescladas com elas, dizendo-lhe que como fossem feitos logo lhos entregaria, porque não era seu desejo de haver outro Chanceler no reino senão ele.

LourençEanes cumpriu o seu mandado e entregou-lhe os selos com pouca vontade de os mais receber, nem ser seu Chanceler, e para ter azo de se partir a salvo, ele e Gonçalo Peres, seu escrivão, disse um dia a elRei de Castela, Senhor, eu e Gonçalo Peres, vosso escrivão da Chancelaria, não temos aqui as nossas mulheres, que eu tenho a minha em Lisboa e ele tem a sua em Évora, seja vossa mercê de nos dar licença para irmos por elas, assim pela sua segurança como para termos azo de vos melhor servir. A elRei prouve de tal requerimento, pensando que fosse como ele dizia, e eles foram-se para o Mestre, oferecendo-lhe o seu serviço, e ele mandou LourençEanes a Inglaterra, como tendes ouvido, e depois Gonçalo Peres à cidade do Porto, como adiante contaremos.

O mesclar das armas fez elRei por esta guisa, a redondeza do selo partiu de todo pelo meio, e na primeira metade estavam as armas direitas de Castela, e na outra metade as direitas de Portugal, convém a saber, a barra de longo com o meio da redondeza [72] era cercada de castelos, e dentro, cinco escudos com as quinas, e as letras que cercavam todo o selo arredor diziam, Johãnis Dei gratia Regis Castelle et Legionis et Portugallie. Seu ditado, nas cartas e em quaisquer outras escrituras, era este, Dom João, pela graça de Deus, Rei de Castela, de Leão e de Portugal, de Toledo, de Galiza e dos outros lugares que se costuma de nomear. E em tais selos e com tal ditado se chamou então, e depois por tempo [73].

E ordenou o concelho de Santarém de darem logo um serviço a elRei de Castela, e foram-lhe outorgadas pelos homens bons desse lugar trinta mil libras, as quais depois houve o Mestre, sendo Rei, daqueles que delas foram recebedores. E teve elRei conselho de fazer moeda em Santarém, e mandou lavrar uns reais de prata de lei de sete dinheiros, coroados e outras moedas de valor pequeno. E dizem que deu a Rainha dona Lionor a elRei de Castela muitas jóias das que ficaram delRei dom Fernando, e ele lhas agradeceu muito, e foram logo à primeira muito de acordo e bem amigos.

74. DOS FIDALGOS E CAVALEIROS QUE ESTAVAM COM ELREI EM SANTARÉM, E DO QUE AVEIO A GONÇALO VASQUES COM O SOLDO QUE MANDOU PAGAR AOS SEUS.

ElRei em Santarém, como dizemos, estavam aí, dos fidalgos do reino, estes senhores e capitães com ele, convém a saber, dom Henrique Manuel de Vilhena, filho de dom João Manuel, Conde de Seia, que tinha Sintra, dom PedrÁlvares Pereira, Prior do Hospital, o Conde dom João Afonso, irmão da Rainha dona Lionor, o Conde de Viana e Gonçalo Vasques dAzevedo, que tinha Torres Novas, Vasco Peres de Camões, que tinha Alenquer, João Gonçalves Teixeira, que tinha Óbidos, DiogÁlvares e Fernão Pereira, irmãos do dito Prior do Crato, Vasco Martins da Cunha e Martim Vasques, Gil Vasques e Vasco Martins, seus filhos, João Afonso Pimentel, João Rodrigues Porto Carreiro, Martim Gonçalves dAtaíde, Afonso Gomes da Silva e Fernão Gomes da Silva, Martim Afonso de Melo e Vasco Martins, seu irmão, e os filhos destes, Fernão Gonçalves de Sousa e Gonçalo Rodrigues de Sousa, e pelo reino, outros muitos e bons cavaleiros que tinham grandes e boas fortalezas com que obedeciam ao seu mandado.

E destes senhores e fidalgos que ali chegaram a Santarém, mandou elRei a alguns que se tornassem para os seus lugares, e outros ficaram em sua companha. Onde sabei que a todos os senhores e fidalgos que ali ficaram e aos que se tornaram para os castelos que lhe já tinham oferecido, a todos elRei desembargava soldo para certas lanças com que o houvessem de servir, entre os quais desembargou a Gonçalo Vasques dAzevedo soldo para cem lanças.

Gonçalo Vasques trazia grande casa e era acompanhado de muitos e bons escudeiros que com ele viviam, assim como RodriguEanes de Buarcos, Vasco Rodrigues Leitão, João Rodrigues da Mota e outros semelhantes de boa conta. E um dia foi ele ao Paço e deixou recado ao seu vedor de que desse o soldo a todos os seus, segundo já tinha ordenado, e este pôs três montes de dinheiros em cima de uma mesa, um de florins [74], outro de reais de prata e outro de moeda corrente, e quando requereu aos escudeiros que o tomassem [75], nenhum houve que os quisesse receber, mas tomavam os florins na mão, começavam de rir deles e tornavam-nos ao seu lugar. Gonçalo Vasques, a horas da ceia, tornou para a pousada, e quando viu os dinheiros estar daquela guisa não soube o que cuidar, e perguntou ao seu vedor porque os não dera como ele mandara. Sabei, disse ele, que a todos convidei com eles e não houve nenhum que os quisesse receber.

Gonçalo Vasques esteve um pouco quedo, suspeitando porque o faziam, e disse que guardassem dali os dinheiros e que pusessem a mesa, e então chamou-os todos adeparte e disse, Espantado sou de vós serdes todos homens a que eu tal desejo tenho, assim de acrescentar em vossas honras como de encaminhar os vossos feitos com elRei, meu Senhor, por onde quer eu possa, e não quererdes vós tomar o seu soldo para o haverdes de servir em minha companhia. Em verdade eu tinha de vós tal intenção [76], que não digo eu com elRei de Castela, que é um senhor que todos somos teúdos de servir, mas que ainda que me eu tornara mouro e me fora para Granada, para lá viver para sempre, vós vos tornaríeis mouros comigo e me serviríeis em quaisquer coisas que de minha honra fossem, e agora me parece que era enganado convosco, porque disto vejo muito o contrário, e pois que assim é, rogo-vos que me digais porque o fazeis.

E eles todos calando, respondeu Vasco Rodrigues e disse, Digo-vos, pois estes calam e nenhum não fala, que eu quero falar por mim e por eles. Sabei que nem eles nem eu, não temos vontade por nenhuma guisa de tomarmos soldo delRei de Castela, nem vosso para o haver de servir, e antes nos partiremos todos de vós do que havermos de tomar o seu soldo e sermos seus. Mas se vós quiserdes ter a tenção do Mestre e de Lisboa, digo-vos que não haveis mister de ouro nem prata, nem outro dinheiro que nos deis, mas todos de boa vontade despenderemos os corpos e vidas, e quanto temos, para vos servir e morrer convosco onde quer que vós fordes. E esta é a nossa final intenção, da qual já não temos de desviar, e se algum vos disser o contrário, sabei que vos mente e não lhe creiais nem fieis dele, nem de mim tampouco, posto que vo-lo diga.

Gonçalo Vasques quando isto ouviu ficou espantado, e disse pois que assim era, que ele não entendia de os perder nem forçar, mas que encaminharia de jeito a que isto não viesse mais a praça [77]. Então houve com elRei que se fosse para Torres Novas e ali estivesse para guarda do lugar, e assim se foi.

Eles, vendo que o seu desejo era de servir elRei e ter a sua intenção, partiram-se dele aos poucos e poucos, e foram-se a Buarcos para Álvoro Gonçalves, seu filho, que tinha a voz do Mestre, e meteram-se na frota do Porto, quando depois veio a Lisboa, como adiante diremos.

75. DOS LUGARES QUE TOMARAM VOZ POR CASTELA EM TODAS AS COMARCAS DO REINO.

Pois que dissemos parte dos senhores e fidalgos que se vieram para elRei de Castela, convém que digamos dos lugares que tomaram a sua voz e lhe obedeciam, para verdes como teve grande parte do reino ao seu mandar por todas as comarcas dele, não, porém, que os povos moradores dos lugares lhos dessem nem lhe obedecessem de seu grado, mas porque os alcaides e os melhores de cada um dos lugares lhos ofereciam, tomavam a sua voz e a faziam tomar aos pequenos pela força, assim como fez Lopo Gomes de Lira em Braga, que se chamava Meirinho por elRei de Castela, que por prisão que fez aos moradores do lugar e às pessoas eclesiásticas do cabido da , lhes fez que fizessem menagem ao Arcebispo de Santiago [78] em nome delRei de Castela, que tivessem a sua voz e lhe obedecessem como a seu senhor, porque o dito Lopo Gomes entrou na cidade contra a vontade do concelho e do cabido, e fez aí entrar o Arcebispo de Santiago e outras companhas [79] da Galiza com ele, depois, mandou lançar pregão pela cidade de que todos os moradores dela, assim clérigos como leigos, se fossem logo à claustra [80] da Sé para fazer menagem ao dito Rei de Castela e a sua mulher de que os houvessem por senhores e fizessem por eles a paz e a guerra, e àqueles que o não quisessem fazer, que os degradava do senhorio dos reinos de Portugal e que perdessem os bens que haviam. Além disto, eram subjugados pelo castelo que está sobre a dita cidade, de que era alcaide Vasco Lourenço, irmão do dito Lopo Gomes, dizendo-se-lhes que se não fizessem as ditas coisas que Lopo Gomes lhes mandava, seriam destruídos, e eles, todos com temor, lhas fizeram então como ele quis. E por esta guisa e outras semelhantes se davam os povos a elRei de Castela, mas não de vontade.

Onde cuidai que sendo soada a sua partida de Castela para vir a Portugal, uma voz de grande espanto, como dissemos, foi ouvida em todo o reino quando as gentes foram certificadas que elRei de Castela queria entrar nele, vendo que tal entrada não podia ser sem grande escândalo e discórdia, a qual punha os humanais entendimentos em opiniões de muitas guisas, em tanto que, posto que o amor da terra e a natural afeição constrangessem muitos fidalgos e alcaides de castelos a ter com Portugal antes que com Castela, outros porém havia aí tais que usando de cobiça misturada com intenção maliciosa, e uma parte deles com o temor e receio de cada um perder a sua honra, e depois para cobrar outra maior do que a que tinha, isto lhes fez de todo escolher o contrário, por tal modo que foi o reino diviso em si e partido em duas partes, e mui poucos lugares e fidalgos tomaram a voz do Mestre para o ajudar, e todos os outros se deram a elRei de Castela obedecendo ao seu mandado, assim que pelas comarcas do reino estavam por ele estas fortalezas, convém a saber: na Estremadura, Santarém, Torres Novas [81], Ourém [82], Leiria [83], Montemor-o-Velho [84], castelo da Feira [85], Penela [86], Óbidos [87], Torres Vedras [88], Alenquer [89], Sintra [90]; e Entre Tejo e Odiana, Arronches [91], Alegrete [92], Castel da Vide [93], o Crato, a Amieira [94], Monforte [95], Campo Maior [96], Olivença [97], Vila Viçosa [98], Portel [99], Moura [100], Noudal [101], Mértola [102], Almada [103]; e Entre Doiro e Minho, Lanhoso, Braga [104], Guimarães [105], Valença, Melgaço, Ponte de Lima [106], Vila Nova de Cerveira, Caminha, Viana [107], o castelo de Neiva [108]; em Trás-os-Montes, Bragança, Vinhais [109], Chaves [110], Monforte de Rio Livre, Montalegre, o Mogadoiro, Mirandela, Alfândega, Lamas de Orelhão, Vila Real de Panóias [111]; na Beira, Castel Rodrigo, Almeida, o Sabugal, Monsanto, Penamacor [112], a Guarda [113], Covilhã [114], Celorico, Linhares [115]. Estes cinquenta e quatro lugares, e outros mais que dizer não curamos, teve elRei ao seu mandar quando veio e antes que entrasse no reino, e posto que os ricos e poderosos, assim alcaides de castelos como outros fidalgos, tivessem voz por elRei de Castela, os povos, porém, todos em seus corações eram contra ele e contra a Rainha [116], em guisa que, assim como dissemos, se levantavam muitas uniões em alguns lugares e tomavam os castelos aos alcaides deles, alçando voz pelo Mestre dAvis, escrevendo-lhe que queriam ser seus e o ajudar com os corpos e haveres, assim como tomaram Évora a Álvoro Mendes dOliveira, Estremoz a Joane Mendes de Vasconcelos, Beja e outros lugares que ouvistes. E àquelas vilas que tinham voz por Castela mandava elRei gentes de armas quantas via que eram mister, de guisa a que os alcaides, com elas e com os seus criados e amigos, as pudessem defender como cumpria, que dos que moravam nos lugares não eram os alcaides muito seguros, por as coisas que viam acontecer. E das fortalezas que tinham voz por Castela saíam os alcaides portugueses a fazer grandes roubos e cavalgadas nos termos dos que tinham a parte do Mestre, prendendo, roubando e matando neles como se lho devessem por contrários merecimentos, assim que os que deviam ser seus defensores e os livrar das mãos dos inimigos, os matavam e perseguiam, usando contra eles de toda a crueldade. Ó que forte coisa e mortal guerra de ver, uns portugueses quererem destruir os outros! E aqueles que um mesmo ventre gerou e uma mesma terra deu criamento [117], desejarem de se matar de vontade e espargir o sangue de seus divedos e parentes!

 



[1] Fuenteguinaldo.

[2] Ao amanhecer.

[3] Quotidianamente.

[4] De que lado estava.

[5] Que o seguisse.

[6] Desagradou.

[7] Pero Ruiz Sarmiento.

[8] Que tratasse com ele para que lhe viesse falar.

[9] Não o assediaria.

[10] Tão-só, que apenas.

[11] Se acaso.

[12] Assediar o castelo.

[13] Se juntar a ele.

[15] É só então, em finais de Dezembro de 1383, inícios de Janeiro de 1384, quando os fidalgos da Beira se recusam a prestar-lhe homenagem como soberano pleno, que o Rei castelhano de modo implícito, de má vontade e com reserva mental reconhece pela primeira vez que a sogra algum direito teria à regência e ao senhorio de Portugal.

[16] Agasalho, recepção.

[17] Assinalam, apontam.

[18] Credenciais.

[19] Apressados, impacientes.

[20] Reflectir, ponderar com cuidado.

[21] Resolverem, decidirem.

[22] Ainda que.

[23] É tão-só um pouco de vento.

[24] No mês de Dezembro.

[25] Em que, no qual.

[26] E que se queixava a eles de tais coisas.

[27] Se abstivesse.

[28] Independentes.

[29] Opostas, discordes.

[30] E porque.

[31] Entretanto, nesta ocasião.

[32] Instantes.

[33] Que se desse pressa, que se apressasse.

[34] Seus parentes.

[35] Pressa.

[36] Indicam.

[37] Que tinham aliança com eles.

[38] Nomeadamente.

[39] De sorte que.

[40] E ainda muito menos.

[41] Almoçou.

[42] Aqueles que estavam com a Rainha Leonor Teles em Santarém.

[43] Alcaide de Óbidos.

[44] Vestimentas mais ricas.

[45] Vigia, espia.

[46] Directamente.

[47] Vigia a segui-lo.

[48] De surpresa, de emboscada.

[49] Mas logo pela tarde tinham vindo muitos. Muito provavelmente, as hostes de Velasco e de Sarmiento, que foram os primeiros a chegar ao Chão da Feira.

[50] Apeado, desmontado.

[51] De má vontade, constrangida.

[52] Diferentes.

[53] Não podia alienar.

[54] Última.

[55] Adir, aditar.

[56] Respondeu-lhes.

[57] Nestes termos formais, Leonor Teles nem sequer declarou renunciar à regência e senhorio do reino que tinha, ou havia, mas tão-só a um hipotético direito ao regimento do reino que havia de haver. E em Ayala, esta renúncia é relatada assim: «renunció el governamiento… que segund los tratos que fueron fechos… avia ella de tener…». A expressão «avia de tener», quer na Crónica de Pedro I de Castela, quer nas outras três Crónicas de Ayala, tem exactamente o mesmo significado da expressão «havia de haver» empregue por Fernão Lopes. Por outro lado, renunciando a todo o direito do regimento que haveria segundo o tratado, renunciava inclusive a considerar que tinha sido até essa data Regente.

[58] Embrulharem-se, coabitarem em confusão os da vila e os castelhanos.

[59] De maneira sanhuda.

[60] E em vez do que.

[61] Depois de almoço.

[62] Em montadas.

[63] Apeados.

[64] O Pentateuco hebraico.

[65] Numa montada.

[67] Segundo a sua importância social, o seu grau hierárquico.

[68] Alimentos, provisões.

[69] Decidiam, despachavam.

[70] Demandas jurídicas.

[71] Pelo meio da bandeira contra o cabo, isto é, no lado esquerdo ou segunda metade da bandeira.

[72] A barra circundante em toda essa metade.

[73] Por muito tempo.

[74] Moedas de ouro.

[75] Que tomassem o soldo.

[76] Opinião, juízo.

[77] Não viesse mais a discussão, ou a público.

[78] Juan García Manrique.

[79] Hostes.

[80] Claustro.

[81] Alcaide de Santarém e Torres Novas, Gonçalo Vasques de Azevedo.

[82] A vila estava em poder de homens de armas de João Afonso Telo, Conde de Barcelos. Ourém toma a voz do Mestre de Avis por volta de 10 de Junho de 1384. Ver capítulo 123.

[83] Alcaide, Garcia Rodrigues Taborda.

[85] Senhor da terra e do castelo da Feira, João Afonso Telo, Conde de Barcelos. Alcaide, Martim Correia.

[87] Alcaide, João Gonçalves Teixeira.

[88] Alcaide, Fernão Gonçalves de Meira.

[89] Alcaide, Vasco Peres de Camões.

[91] Em Abril de 1384, Arronches estava sob o domínio de uma guarnição castelhana. Logo após a batalha dos Atoleiros, a população chamou Nuno Álvares em sua ajuda e entregou-lhe a vila.

[92] Em Abril de 1384 a povoação encontrava-se nas mãos dos seus habitantes, que também a entregam a Nuno Álvares logo após os Atoleiros.

[94] O Crato e a Amieira pertenciam ao Priorado do Crato.

[95] A 6 de Abril de 1384, e provavelmente já antes, estava nas mãos de Martim Eanes de Barbudo, Comendador de Pedroso da Ordem de Avis.

[96] Alcaide, Paio Rodrigues Marinho.

[97] Alcaide, Pêro Rodrigues da Fonseca.

[98] Alcaide, Vasco Porcalho.

[100] Alcaide, Álvaro Gonçalves de Moura.

[101] Noudar era uma fortaleza da Ordem de Avis.

[102] Alcaide, Fernão de Antas.

[103] Almada, que não tinha alcaide, a 1 de Janeiro de 1384 já seguia a voz do Mestre de Avis. Ver capítulo 58.

[104] Alcaide do castelo, Vasco Lourenço de Lira, irmão de Lopo Gomes.

[107] É aí alcaide, na Primavera de 1385, Vasco Lourenço de Lira.

[108] O alcaide, na Primavera de 1385, é um genro de Lopo Gomes.

[109] Alcaide de Bragança e Vinhais, João Afonso Pimentel.

[112] Alcaide de Monsanto e Penamacor, Fernão Gomes da Silva.

[113] A cidade foi entregue pelo seu Bispo.

[115] Alcaide de Celorico da Beira e Linhares, Martim Afonso de Melo.

[116] Rainha Leonor Teles.

[117] Sustento, criação.

VII - Diplomacia, dinheiro e mais outras coisas

54. POR QUE RAZÃO ENVIOU O MESTRE EMBAIXADORES A INGLATERRA E DA RESPOSTA QUE DE LÁ LHE VEIO.

Porque toda a razão natural outorga que melhor e mais poderosamente podem os muitos dar fim a uma grande coisa, quando a começar querem, que os poucos, por mui ardidos [1] que sejam, ordenou o Mestre com os do seu conselho que era bem de haver gentes em sua ajuda. E acordaram de enviar pedir a elRei de Inglaterra que lhe prouvesse dar lugar e licença aos do seu reino para que, por soldo, à sua vontade [2] o viessem ajudar contra os seus inimigos. E foi ordenado de irem lá por seus embaixadores Lourenço Martins, criado do Mestre que depois foi alcaide de Leiria, e Tomás Daniel, inglês, os quais partiram em duas naus de ante a cidade naquele mês de Dezembro. E depois foi acordado de mandarem dom Fernando Afonso dAlbuquerque, Mestre da Ordem de Santiago, e LourençEanes Fogaça, Chanceler-mor que fora delRei dom Fernando, o qual então, na , o Mestre fez cavaleiro antes que partisse.

Onde sabei que este dom Fernando Afonso dAlbuquerque, estando na vila de Palmela, se veio com todas as suas gentes a Lisboa para o Mestre, o recebeu como senhor e ficou por seu vassalo para o servir. Mas porém não embargando isto, porquanto ele fora feito pela Rainha, receando-se dele que se poderia deitar [3] com elRei de Castela e lhe dar as fortalezas do Mestrado, disseram que era bem que fosse por embaixador, para ser alongado [4] de tal azo, e depois, que era mor honra do Mestre enviar tais embaixadores do que uns de mais pequena condição, e outorgaram todos de o enviar.

E embarcaram em dois navios, o Mestre em uma nau e LourençEanes numa barca, e foram à sua viagem, e chegaram daquele dia a oito dias, que era sexta-feira [5], a uma vila que chamam Preamua [6], lugar de Inglaterra, e dali houveram bestas [7] e encaminharam para Londres, onde elRei então estava, e foram por ele bem recebidos, e por todos os senhores e fidalgos da corte. E depois que foram falar ao Duque dAlancastro [8], ordenou elRei de ter conselho em uma cidade de Sarasbri [9], depois que o Duque veio, onde os embaixadores propuseram [10] a sua embaixada, cuja conclusão, em breve, era esta, que sendo o reino por seu azo despachado e livre dos inimigos, toda a ajuda que os portugueses fazer pudessem, assim de galés como de seus corpos [11], onde ele mais para seu serviço entendesse, que eram muito prestes de a fazer, e que se o Duque dAlancastro, por seu corpo [12], quisesse vir cobrar o reino de Castela, que por azo da sua mulher de direito lhe pertencia, que tinham [13] o tempo [14] muito prestes e todo Portugal em sua ajuda, levando o Mestre e LourençEanes, para firmar isto e outras coisas, grandes e largos poderios [15] por procuração do Mestre, de Lisboa e do Porto.

A elRei, havido sobre isto acordo, prouve-lhe, e a todos os do conselho, que quaisquer gentes de armas que, por seu soldo, em ajuda de Portugal lhes prouvesse vir, livremente o pudessem fazer, jurando elRei e prometendo que não faria menos, para pôr em obra toda a boa ajuda que neste feito pudesse dar, do que faria para defender o seu reino. E porquanto o Duque dAlancastro era agora em Cales [16], a tratar trégua com elRei de França, e esperavam por ele cedo para elRei lhe dar encarrego de como isto [17] melhor se encaminhasse, trabalhou entretanto o Mestre, e LourençEanes Fogaça, de enviar algumas gentes de armas e archeiros, pela necessidade em que o reino estava, porém foram poucas, das quais eram capitães um que chamavam Elisabri [18], outro, Tersingom, e um cavaleiro gascão que havia por nome mossem [19] Gavilho de Monferro.

E estando eles prestes para partir em duas naus, o Mestre mandou Lourenço Martins ao dito lugar de Preamua, para os fazer vir e embarcarem ali, e ele, como aí chegou, meteu-se com eles nos navios e veio-se para Portugal, como adiante diremos, da qual coisa o Mestre e LourençEanes houveram mui grande queixume, por se vir daquela guisa.

E tanto prouve aos ingleses desta ajuda que os portugueses lhes requerer enviavam, que muitos aí houve que lhes emprestaram dinheiros para paga do soldo das gentes que logo haviam de enviar, assim como mosse Nicol, Mayre [20] de Londres, e Henrique Bivembra [21], cavaleiro, que lhes emprestaram três mil e quinhentos nobres, e assim outros, mais e menos, como cada um podia. De guisa que com isto e com as mercadorias dos portugueses que lá achavam, que tomavam a seus donos por escrito, dizendo que lhas pagariam depois, contentavam as gentes por tal modo que lhes prazia de vir com leda vontade.

E a resposta que elRei de Inglaterra enviou ao Mestre, sobre a ajuda que então lhe foi demandada, podeis ver por esta seguinte carta [22]:

Ricardo, pela graça de Deus, Rei dInglaterra e senhor dIbérnia, ao mui nobre e grande varão Joane, por essa mesma graça, Mestre da Ordem da Cavalaria dAvis, Regedor e Defensor dos reinos de Portugal e do Algarve, nosso mui preçado [23] amigo, saúde e desejo de limpa amizade.

Pouco há que recebemos ledamente os nobres e excelentes cavaleiros Fernando, Mestre da Ordem de Santiago, e Lourenço Fogaça, Chanceler-mor de Portugal, vossos embaixadores a nós enviados, e claramente entendemos tudo o que nos disseram da vossa parte. E certamente, mui preçado amigo, do coração vos agradecemos o bom desejo que vós e os gentis-homens dessa terra, por vosso azo, a nós têm, segundo por obra e conhecimento vemos.

E quanto é ao que nos por eles foi declarado sobre os vossos oferecimentos, assim do serviço de galés como doutras coisas que nos desses reinos cumpridoiras fossem, tal vos agradecemos muito, e entre eles e os do nosso conselho foi sobre isto feito certo trato, segundo esse mesmo Lourenço vos mais largamente pode recontar. E para o acorrimento que a vós e a vossos aliados desses reinos [24] cumpridoiro era, nós outorgamos aos ditos embaixadores que da nossa terra pudessem tirar homens de armas e frecheiros por seu soldo [25], quantos e quais lhes prouvesse.

O que em verdade, considerando as revoltosas guerras em que pelo presente somos postos, assim de ligeiro a outra pessoa não outorgaríamos. E queremos que num trato, que agora com os nossos adversários de França e de Castela fizemos em Cales, se entendam aí vós e os vossos aliados. E bem nos prouvera que os vossos embaixadores deram [26] a isto consentimento, mas, escusando-se, disseram que não haviam de vós tal mandado. E porque o não traziam, aqueles que pela nossa parte ali eram nos afincaram [27] a que vos escrevêssemos, e isso mesmo os franceses, por sua parte, ao ocupador de Castela, para que as tréguas por nós feitas até ao primeiro dia de Maio seguinte, com os ditos adversários, duma parte à outra fossem guardadas. A qual coisa [28], se o nosso comum adversário a não quiser consentir, nós vos reservamos a liberdade própria para haverdes guarda e defensão das nossas gentes.

E isto entendemos que era bem de escrever à Vossa Nobreza, para fazerdes requerer esse vosso adversário o mais cedo que puderdes, por tal que [29], vista a sua resposta, nós com bom e maduro conselho possamos esguardar [30] a vossa e principalmente a nossa comum defensão. Vós, em tanto [31], sede forte, tendo boa esperança em Deus, crendo firme que o Rei dos Reis, que é justo e não desampara os que por justiça pelejam, não desamparará os vossos feitos, mas fazer-vos-á [32] glorioso vencedor com grande e honrada vitória.

Nobre e Excelente Varão, todas as vossas obras guie o Senhor Deus, e vivais bons e prolongados dias a vosso prazer.

55. COMO A CIDADE DE LISBOA DEU UM SERVIÇO AO MESTRE PARA AJUDA DE FAZER MOEDA.

Já vistes, no reinado delRei dom Pedro [33], quanto os Reis de Portugal fizeram por juntar tesouros e haver riqueza para ter largamente que despender quando lhes acontecesse de defender os seus reinos, ou mover outra guerra [34], se vissem que lhes cumpria, e quanto eles trabalharam a fim de que aquele tesouro não viesse a tal míngua por que [35], em tais misteres, conviesse [36] lançar peita ao povo.

Tanto trabalhou elRei dom Fernando de os gastar [37] sem necessidade, por vãs guerras e sem proveito, e não somente gastou todos os tesouros que dos outros Reis lhe ficaram, mas lançou novamente sisas e mudou as moedas, para grande dano e destruição de todo o seu povo, de guisa que, quando o Mestre tomou carrego de regedor e defensor dos reinos, não tinha nenhuma coisa com que manter a guerra, nem de que fizesse bem e mercê àqueles que a ele se chegavam para os ajudar a defender. Então vendo todos que lhes convinha, para serem livres de tal sujeição [38], de acorrer a tamanha necessidade como esta, ordenaram de dar ajuda e fazer serviço ao Mestre de alguns dinheiros, prometendo-lhe a cidade cem mil libras em serviço – em que eram mil dobras [39] que pagavam os mouros e judeus moradores nela – as quais lhe foram pagas em dinheiros miúdos [40], em moeda branca e em prata. Moeda branca chamavam então aos graves, barbudas e pilartes, e estes dinheiros tiravam [41] certas pessoas pelas freguesias. E era mandado que qualquer que levasse moeda, da cidade para fora, a perdesse toda, e que houvesse o quinto [42] o que a tomasse, e filhavam-na a alguns, que a levavam escondidamente, e entregavam-na ao Mestre.

Além disto, pediu o Mestre a algumas pessoas da cidade e do seu termo – que entendeu que o podiam fazer – certos dinheiros emprestados, e todos lhe ofereciam de boa vontade qualquer coisa com que o ajudar podiam, e a Comuna dos judeus, afora o que pagaram no serviço, emprestou-lhe sessenta marcos [43] de prata. Emprestou-lhe mais a clerezia, em cruzes, cálices e outros lavores, aquela prata que escusar [44] podiam, em guisa que a igreja catedral da Sé, com as vinte igrejas que há na cidade, lhe fizeram [45] duzentos e oitenta e sete marcos, de que a Sé deu oitenta e sete, e as outras igrejas, segundo a que cada uma tinha escusada [46].

E ordenou o Mestre para ser Tesoureiro da sua Moeda um mercador que chamavam Persifal. A este foram entregues todos estes dinheiros e prata que dissemos, e mais novecentos marcos de prata que o Mestre tinha em sua câmara, muitos dinheiros miúdos e moeda branca, e outras moedas de Castela que dizer não curamos, as quais lhe entregou Afonso Martins, seu Escrivão da Puridade.

56. COMO O MESTRE ORDENOU DE FAZER MOEDA E DE QUE LIGA E TALHA FOI FEITA.

Como o Mestre teve encaminhado para poder fazer moeda, ordenou logo de mandar lavrar reais de prata, mas primeiro sabei que ao tempo em que o Mestre tomou esta voz de regedor e defensor do reino, corriam-se [47] nele as moedas que já dissemos [48], convém a saber, dinheiros alfonsis, que nove deles valiam um soldo, e vinte soldos valiam uma libra, mais barbudas, que valiam dois soldos e quatro dinheiros, e graves, que cada um valia catorze dinheiros, e pilartes, que valiam sete dinheiros, segundo é escrito em seu lugar, onde falámos do abaixamento que elRei dom Fernando fez nas moedas, e corriam mais reais de prata de lei de dez dinheiros, e de cinquenta e seis no marco [49]. E a razão porque então foram tais nomes postos a estas moedas queremos aqui dizer.

Quando elRei dom Fernando começou a guerra com elRei dom Henrique, como ouvistes, vieram a Castela com ele muita gente dos franceses a que chamavam companha branca, e vinham armados a esta guisa, traziam bacinetes com estofas e camal de malha com cara posta [50], e chamavam-lhes barbudas. E o cunho com que era cunhada aquela moeda tinha duma parte uma cruz em aspa e no meio dela um escudo com cinco pontos de quinas, e da outra parte a barbuda com a sua cara. E esta gente de armas trazia graves com pendões pequenos em cima, a que agora chamam lanças de armas, e aos moços que traziam as barbudas em cima dos chibaus [51] chamavam pilartes, e depois lhes chamaram porta-grave, e nós chamamos agora às barbudas bacinetes de camal e aos moços pajens. E daqueles nomes das armas levaram nomes aquelas moedas, que o grave tinha uma lança no cunho com um pendão pequeno em cima, e da outra parte aspa e quinas.

E correndo-se assim estas moedas juntamente, valia a dobra cruzada cinco libras, a mourisca quatro libras e meia, o franco de ouro de França quatro libras e o marco de prata de lei de onze dinheiros, vinte e duas libras.

E o Mestre ordenou de lavrar moeda de reais de prata, e eram de lei de nove dinheiros, e de setenta e dois no marco, e depois mudou outros desse mesmo peso para de lei de seis dinheiros, e após isso outros para de lei de cinco, e por o lavramento que mandava fazer, de menos lei, ganhava para as despesas. E dizem alguns, nas suas histórias, que estes primeiros reais que o Mestre mandou lavrar prestavam para algumas dores [52], e muitos os encastoavam em prata e traziam-nos ao colo. E depois que o Mestre reinou, mandou lavrar reais de lei de um dinheiro, que valia cada um dez soldos, e de pós [53] estes mandou fazer outros reais de três libras e meia, de três dinheiros de lei. E quando ordenou de tomar Ceuta, segundo adiante ouvireis, mandou lavrar uma moeda de reais que chamavam brancos, que valia, cada um, dez de três libras e meia, e eram de lei de três dinheiros, e de setenta e dois no marco.

E durando assim estas moedas, foram nelas feitas tantas mudanças de liga e talha [54] que seriam longas de contar, de guisa que veio a valer uma coroa cento e cinquenta reais brancos, de trinta e cinco libras cada um, e mil e quinhentos reais de três libras e meia, em que montavam cinco mil e duzentas e cinquenta libras, assim que por quanto achavam no tempo delRei dom Fernando mil e cento e setenta e três dobras, não achavam, depois, mais de uma dobra. E estas mudanças lhe fez fazer [55] as necessidades das guerras que muitas vezes com elRei de Castela houve, por azo das quais se lhe recresciam grandes despesas que escusar não podia. E por isso cumpre aqui de notar um grande dito e mui proveitoso que cada rei e príncipe deve de haver em seu conselho, quando tal necessidade lhe avier que doutra guisa o remediar não possa, Que mais vale terra padecer do que terra se perder, pois por tais mudanças e lavramento de moedas, com a ajuda do mui alto Deus, o reino de Portugal foi por ele defeso e posto em boa paz com os seus inimigos, posto que as gentes em isto alguma míngua e dano sentissem.

57. COMO O MESTRE DEU LUGAR A ALGUNS QUE LAVRASSEM MOEDA, E PÔS MANTIMENTO A MUITAS PESSOAS.

Deixadas as razões, que abastosamente [56] alguns escrevem, mostrando quanto é proveitoso ao reino de lavrarem todos moeda, quaisquer que o fazer puderem, do modo que o Mestre em isto teve digamos, e mais não.  

Onde sabei que nesta sazão em que o Mestre mandou lavrar a sua moeda, sentindo-o para seu serviço e proveito, deu licença ao concelho de Lisboa que lavrasse uma soma de prata para ajudar a suportar os seus encarregos – assim de gentes de armas que a cidade havia de pagar, como doutras coisas necessárias à sua defensão – que por então lhe recresciam. E isso mesmo deu lugar ao doutor João das Regras e outros, não levando ganhança do que assim lavravam, pois quanto rendia lhe era entregue.

E como o Mestre teve feita a moeda, ordenou logo os seus mantimentos aos fidalgos e oficiais da sua casa, assim como ao doutor João das Regras e ao doutor Martim Afonso, a cada um cem libras, e assim a outros, segundo o que tal era [57], como a dom Afonso, filho do Conde dom Álvoro Peres, a dona Lionor Teles, mulher de dom Pedro de Castro, e a dona Beatriz, irmã dele, que haviam cem libras por mês, e dos mais não cumpre de escrever.

Mas que diremos [58] deste virtuoso Senhor e da sua grande bondade? Que não embargando que o seu coração fosse então repartido por tantos e desvairados cuidados, como cada um pode pensar que tal negócio requeria, não se esqueceu porém dos espirituais feitos, e ordenou logo um mui honrado saimento pela alma delRei dom Fernando, seu irmão, de que teve carrego Antão Rodrigues, Prior de São Nicolau, em que fez grande e larga despesa. E mais pôs mantimento a certas pessoas devotas para que rogassem a Deus por ele e pelo estado do reino, assim como a frei João da Barroca, a Margarida Anes e a Maria Estevens, emparedadas, que haviam quatro soldos por dia.

Fez mais uma coisa muito notável e de grão louvor entre as gentes, que todos tiveram por assinado [59] bem, pois alguns que eram presos em poder dos castelhanos, pela guerra que era já muito acesa, e não tinham por onde pagar as suas rendições [60], eles os mandava tirar de cativo [61], pagando por eles tudo o que haviam de dar, e a outros fazia grossas ajudas para logo serem livres do poder de seus inimigos.

E por estas e semelhantes coisas que obrava, começou de ser tão amado do povo, vendo-se em ele largueza de dons, com leda e prazível graça de dar, e além disto, fé e saber e grande avisamento na governança e regimento que tomara, que todos se tinham por bem-aventurados de o haver por senhor.

58. COMO OS DA VILA DE ALMADA TOMARAM VOZ PELO MESTRE, E COMO FOI SOBRE ALENQUER.

Segundo ensina o longo uso, e a prática disto nos faz muito certos, em nenhuma parte tem a inveja tão grande morada como na corte dos reis e senhores, e tendo o Mestre amiúde conselho com os seus para prosseguir tamanho negócio, falava às vezes, porém adeparte [62], dizendo a NunÁlvares algumas coisas de que os outros não eram em conhecimento. Ora assim aveio que este comum mal que é a inveja se veio tanto a senhorear dos corações daqueles que eram do conselho do Mestre, assim como de Rui Pereira, de Álvoro Vasques, do doutor João das Regras e de todos os outros seus privados, vendo como o Mestre falava em especial com NunÁlvares de algumas coisas e seguia nelas o seu conselho, que vieram todos a acordar em segredo, havendo disto grande despeito, que sempre fossem contra quaisquer conselhos que NunÁlvares desse ao Mestre, posto que bons e razoados fossem, e que nunca se tivessem [63] a eles, e de feito [64] assim o faziam.

NunÁlvares soube parte deste segredo, e nenhuma coisa disse a alguns deles. E falando um dia ao Mestre, no seu conselho, duma coisa muito notável, respondeu NunÁlvares o que entendeu, de guisa que prouve ao Mestre da sua resposta e acordou-se com ele na sua tenção. Os outros do conselho, porque o Mestre se tinha à razão de NunÁlvares, não foram de tal acordo contentes, antes o contradisseram muito, mostrando assaz de razões ao seu conselho não ser bom. NunÁlvares, vendo isto, começou de rir, sabendo bem parte porque o faziam. E o Mestre, quando viu, perguntou-lhe porque assim ria, e ele contou-lhe tudo como era e porque desacordavam do que ele dizia, e o Mestre se maravilhou muito de tal inveja, e teve com eles jeito em lhes falar, de guisa que não tiveram mais tal tenção e foram dali em diante todos em um acordo [65].

E entre as coisas que naquele conselho foram faladas, assim foi [66] quanto era necessário de a vila de Almada ter a sua voz pelo Mestre, porque era assim como a chave do mar para qualquer armada que elRei de Castela sobre a cidade quisesse trazer, e pois que a vila não tinha castelo [67] nem alcaide que dela tivesse feita menagem, que ligeiramente a poderia haver. O Mestre houve este por bom conselho e foi lá, e os da vila o receberam bem e ficaram por seus para o servirem, e isto foi ao primeiro dia de Janeiro de mil e quatrocentos e vinte e dois anos [68].

E como tornou de Almada para Lisboa, ordenou logo de ir sobre Alenquer, uma vila com o seu castelo que são a oito léguas da cidade, na qual estivera a Rainha depois da morte do Conde João Fernandes, antes que partisse para Santarém, segundo já tendes ouvido, e em esta vila estava por alcaide Vasco Peres de Camões, que a tinha por a Rainha dona Lionor.

O Mestre juntou até duzentas lanças, e besteiros e homens de pé, não muitos, e foi esse dia dormir à Castanheira, a uma légua do lugar, e no outro, bem cedo de madrugada, amanheceu sobre ele, e pousou no mosteiro de São Francisco, e NunÁlvares nas casas de Vasco Martins dAltero, que estava casado com uma sua irmã. E logo à tarde foram os do Mestre escaramuçar com os da vila, onde chamam a porta de Soire, e o Mestre chegou aí e fê-los recolher, porque os feriam do muro com as bestas. E embora aí fossem feitas por vezes escaramuças, nenhuma coisa aproveitavam que prestasse, porque o lugar era mui forte e eles não levavam artifícios de combater [69].

Mas agora convém de cessar disto e deixarmos o Mestre em Alenquer, e a Rainha em Santarém, e vamos ver que fez elRei de Castela em seu reino quando lhe chegaram novas de que elRei dom Fernando era finado.

 



[1] Valentes, intrépidos.

[2] De moto próprio.

[3] Lançar.

[4] Afastado.

[5] Partiram a 31 de Março e chegaram a 8 de Abril de 1384. Ver capítulo 279.

[7] E ali arranjaram montadas.

[9]  Salisbury.

[10] Expuseram.

[11] Das suas pessoas, pessoalmente.

[12] Em pessoa, pessoalmente.

[13] Os ingleses.

[14] A ocasião.

[15] Poderes.

[16] Calais.

[17] Este assunto.

[18] Provavelmente, Elias Blith.

[19] Senhor.

[20] Maire, mayor.

[21] Quiçá se trate de Henry Vanner.

[22] Escrita em Outubro de 1384.

[23] Estimado, prezado.

[24] As cidades de Lisboa e do Porto.

[25] A troco de soldo.

[26] Tivessem dado.

[27] Instaram.

[28] Quanto à qual trégua.

[29] De forma que.

[30] Considerar.

[31] Entretanto.

[32] Vos fará.

[33] História do Rei D. Pedro.

[34] Guerra de outro tipo, que não defensiva.

[35] Pela qual, ou por razão da qual.

[36] Fosse necessário.

[37] Tanto, quanto aqueles Reis fizeram por juntar tesouros, trabalhou el Rei D. Fernando de os gastar.

[38] A sujeição castelhana.

[39] Seriam 5.000 libras, se dobras cruzadas, ou 4.500, se mouriscas.

[40] Moedas cujo valor nominal era inferior a um soldo.

[41] Cobravam.

[42] A quinta parte.

[43] Medida de peso para metais preciosos e moeda, correspondendo a 229,5 gramas. Ver Luís Seabra Lopes e Silva Costa Lobo.

[44] Dispensar.

[45] Lhe emprestaram.

[46] Segundo a prata que cada uma podia dispensar.

[47] Circulavam.

[48] História do Rei D. Fernando, capítulo LVI.

[49] 56 moedas pesariam, por lei, um marco.

[50] Com viseira.

[51] Quiçá, cavalos, montadas.

[52] Curavam ou aliviavam algumas maleitas.

[53] E após.

[54] De liga e peso.

[55] Lhe fizeram fazer, o obrigaram.

[56] Abundantemente.

[57] Segundo o seu estado.

[58] Mas o que poderemos dizer.

[59] Assinalado.

[60] Os seus resgates.

[61] Cativeiro.

[62] À parte, em privado.

[63] Se ativessem.

[64] De facto.

[65] Em comum acordo.

[66] Uma foi.

[67] Muralha.

[68] 1384.

[69] Máquinas de assalto.