O espaço da História

X - O início da guerra civil e contra Castela

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».

 

69. COMO FORAM FILHADOS OS NAVIOS DO PESCADO QUE VINHAM DA GALIZA.

 

Começando-se esta nova guerra entre portugueses com portugueses, além da que haviam com os castelhanos, e estando o Mestre em Lisboa, como dissemos, uma segunda-feira pela manhã, no primeiro dia de Fevereiro da sobredita era, apareceu pela foz, na entrada do rio, uma galé de Castela e cinco baixéis e uma grande nau, e, com tempo contrário, pousaram os baixéis aquém do Restelo, a mais duma légua da cidade, e a nau e a galé ficaram muito atrás, entre Hueras e Santa Catarina, a grande espaço dos baixéis.

O Mestre houve parte que alguns destes navios eram da Galiza, carregados de farinha e mantimentos, que vinham para a frota de Castela, cuidando que já estava sobre a cidade, e outros iam carregados de pescado seco para Aragão. E, sendo certo que todos eram de seus inimigos, fez logo pôr prestes duas galés e duas naus e três barcas, e foram prontas e fornecidas de armas e companha em dois dias.

Estes navios que assim pousaram não pensavam receber dano dos da cidade, imaginando que era tão grande o cuidado de se prepararem para o cerco, de que estavam à espera, que isso já lhes daria assaz que cuidar e a não ter noutra coisa o sentido; e foi assim que antemanhã partiram as naus e as barcas dos portugueses contra aqueles navios. A galé de Castela, quando viu as galés e as outras velas ir daquela guisa, deixou as âncoras, para fugir, e foi-se, e os navios pequenos foram filhados e trazidos diante da cidade sem mais peleja, que lhes não cumpria.

A nau era de duzentos tonéis (tonel = 900 litros), nova e grande e bem fornecida, dum Judeu que chamavam dom Davi da Corunha, e quando viu o que sucedia, muito à pressa desferiu, se bem que não tivesse o tempo azado, e quis sair pela carreira da Alcáçova e meteu de ló quanto pôde para o vento; as galés iam a jeito ao longo da terra, e uma nau e duas barcas seguiam-na, sendo no mar grande cavadia pelo vento que era forçoso, e porque levava grande espaço diante delas já desesperavam de a alcançar. O Mestre estava nos seus Paços e com ele muitos da cidade, olhando, e, quando viu a grande vantagem que a nau da Galiza levava diante das suas, disse para os que eram presentes: Sai-se aquela! E dizendo ele estas palavras o lais da verga, que são até três braças duma das partes, aconteceu de quebrar à nau, por cujo azo lhe foi forçado amainar, e desta guisa a cobraram os portugueses, sem mais peleja nem ferida que algum houvesse. Grande foi o prazer que o Mestre e todos os da cidade tiveram com este bom acontecimento, mormente em tempo que tanto mister lhes fazia, que nestes navios foi achado muito pescado seco, de pescadas e congros, e polvos, e sardinhas de fumo e de pilha, e muita farinha e outros mantimentos.

Agora sabei que, não embargando que fosse geral ofício de todos prover e azar qualquer comum proveito que cada um sentisse para a cidade, houve aí no entanto alguns de que tanto a cobiça se assenhoreou que ligeiramente lhes fez outorgar nos corações de requererem e demandarem ao Mestre que lhes vendesse aquele pescado, para o levarem para fora do reino pelo grande ganho que nele esperavam, tentando mostrar que isso era muito de seu serviço e proveito por meio duma aparência de palavras, todas inimigas do prol comunal. O Mestre, em que não falecia mas antes nele era abundosa a discrição e juízo, disse que ninguém lhe falasse em tal coisa, pois ele entendia que Deus lhe encaminhara aquilo para dar a todos boa quaresma, que então se chegava, e que aqueles mercadores que por cobiça de ganho tal requerimento lhe faziam bem mostravam que pouco se doíam do bem do povo e da sua defensão, em tempo em que tanto havia mister para seu mantimento e outras necessidades, e assim foi que com aquele pescado ficou a cidade satisfeita em boa abundância, e pagavam aos fidalgos e às outras gentes o soldo com ele, do que a elRei de Castela muito desprouve quando o soube em Santarém.

 

70. COMO O CONDE DE MAIORGAS MANDAVA DESAFIAR O MESTRE, E COMO NUNO ÁLVARES RESPONDEU A ISSO.

 

Entre os senhores que vinham com elRei de Castela um deles era o Conde de Mayorgas, dom PedrÁlvarez de Lara, filho bastardo de dom João Nunez de Lara. Este era um grande homem de armas e muito afamado cavaleiro e bem fogoso.

Ora aqui dizem alguns, contando dos feitos de NunÁlvares em seu louvor, que estando ele com o Mestre em Lisboa, e ouvindo falar da fama deste Conde e quanto era para muito, cuidou de o mandar requestar para se matar com ele trinta por trinta, e que pediu licença ao Mestre, declarando-lhe as razões porque a isto se movia, ao que o Mestre lha outorgou. E que NunÁlvares mandou desafiar o Conde e este recebeu o seu repto, e que foi indicado o lugar e o dia e prestes NunÁlvares para isto; e que o Mestre, vendo depois como se lhe recresciam os feitos e os trabalhos, lho defendeu que o não fizesse, e que por tanto não se pôs a sua requesta em obra.

Mas um outro estoriador, cujo falamento nos parece mais razoado, conta esta estória muito doutra guisa, e do seu escrever nos praz mais, dizendo que um jogral que chamavam Anequim, que vivera com elRei dom Fernando e ficara com a Rainha dona Lionor, ia muitas vezes às casas onde elRei de Castela pousava, e tinha por costume de chamar compadre a qualquer um que conhecia, e assim lhe chamavam os outros a ele; e como tinha em usança de andar pela casa dos senhores, disse um dia que queria ir a Lisboa para ver o Mestre dAvis e folgar com ele. O Conde de Mayorgas, quando isto ouviu dizer, chamou-o então e disse: Compadre, dizem-me que te vais a Lisboa? – Sim, disse ele, lá quero chegar para ver o Mestre. – Pois rogo-te, disse o Conde, que me faças esta graça: que digas ao Mestre que se me ele nega que não faz traição e maldade em alvoroçar este reino e em se querer assenhorear dele, o qual de direito é de meu Senhor elRei e de sua mulher, que eu lhe porei o corpo sobre isto e lho farei conhecer, e rogo-te que sempre lho digas.

Anequim disse que prometia dizer-lho e trazer a resposta; e assim foi que ele chegou a Lisboa e, falando ao Mestre, disse-lhe esta embaixada do conde, e acabando-a ele de a dizer, NunÁlvares que estava presente, antes que o Mestre alguma coisa falasse, respondeu a Anequim e disse: Meu Senhor, o Mestre, não é de razão que lhe ponha o corpo, mas sobre essa intenção que ele diz que tem eu lho quero pôr de muito boa mente, e se me ele nega que o Mestre, meu Senhor, e nós outros portugueses com ele, não fazemos guerra justa para defensão de nossos corpos e haveres, e que elRei de Castela, mal e como não deve, entrou neste reino antes do tempo que devera, britando os tratos que teúdo era de guardar, por a qual razão perdeu tudo quanto de direito nele havia, e que porende (portanto)o reino pertence ao Mestre, meu Senhor, que aqui está, como filho delRei dom Pedro que é, que eu lhe porei o corpo sobre isto e lho farei conhecer, quer um por um ou dois por dois, ou quantos ele quiser, e rogo-te que assim lho digas.

Falaram então noutras coisas e poucos dias depois partiu Anequim para Santarém, e o Conde lhe perguntou se dissera sua encomenda ao Mestre, e ele disse que sim e a resposta que NunÁlvares lhe dera – Quem é esse NunÁlvares? Disse o Conde. – Senhor, disse ele, é um irmão de dom PedrÁlvares, Prior do Crato. – Não sei, disse o Conde, que homem é, nem o conheço, nem curo doutrem senão da pessoa do Mestre, nem porei o corpo senão a ele, que, quanto aos pais, da linhagem dos Reis vimos, e, quanto às mães, ambos somos bastardos; e, pois se mo ele não quer pôr, então com outrem não entendo de entrar em campo nem de lhe pôr o corpo sobre isto.

Neste comenos, providenciando o Mestre face ao que cedo esperava de acontecer, quando elRei de Castela foi em Santarém e ele se partiu dAlenquer para Lisboa, mandou logo recolher para a cidade todos os moradores do termo com os mantimentos que pudessem levar, e eles, apressadamente, com receio dos castelhanos que lhes diziam que já corriam a terra, partiam com as mulheres e os filhos, e com os gados e as bestas e as coisas que levar podiam, e vinham para Lisboa, e outros passavam além rio, a Ribatejo, para buscar segurança à sua vida segundo cada um melhor entendia. Oh! Que dorida coisa era de observar, ver de dia e de noite tantos homens e mulheres vir em manadas para a cidade com os filhos nos braços e pela mão, e os pais com outros aos pescoços, e as suas bestas carregadas de alfaias e coisas que podiam trazer! E assim se recolheram do termo todo para a cidade todos os moradores dos arredores antes que elRei de Castela viesse.

 

71. COMO NUNO ÁLVARES FOI AO TERMO DE SINTRA À FORRAGEM, E ALGUNS CAPITÃES DE CASTELA CHEGARAM AO LUMIAR.

 

Porque o Mestre entendia que uma das coisas que lhe eram muito necessárias, dado que cercado havia de ser, era assim a abundância de mantimentos, decidiu, antes que elRei de Castela viesse, mandar gentes à forragem aos lugares que não tinham a sua voz, para abastecer a cidade de viandas o mais que se fazer pudesse.

E mandou a NunÁlvares que fosse a Sintra para trazer do seu termo alguns mantimentos, e com ele até trezentas lanças de escudeiros e cidadãos, e poucos homens de pé, estando então em Sintra o Conde dom Henrique e gentes com que bem podia defender o lugar, que tinha voz por elRei de Castela. E correu NunÁlvares a terra toda em redor sem achar ninguém que o turvasse, e apanhou muitos mantimentos de gados e trigo e outras coisas de comer, de que carregaram assaz de azémolas que já levavam para isto, e nenhum do lugar foi capaz de se trabalhar para lho tolher.

ElRei de Castela, que em Santarém estava, havia muito pouco que enviara dom Pedro Fernandez Cabeça de Vaca, Mestre de Santiago, e Pero Fernandez de Valasco, seu Camareiro mor, e PerRodrigues Sarmento, Adiantado mor da Galiza, e com eles mil lanças de bons homens de armas, para que chegassem ao termo de Lisboa e começassem a fazer o cerco, não consentindo aos da cidade que se espalhassem pela terra a fazer dano algum. E na noite seguinte a que NunÁlvares partiu de Sintra com a sua cavalgada chegou-lhe recado de que aquelas gentes estavam em Alenquer e queriam vir sobre ele, pela qual razão logo se partiram alguns da sua companha e se vieram para a cidade, e os que ficaram lhe diziam, no dia seguinte, que se partisse à pressa e não atendesse ali aquelas gentes, mas NunÁlvares não o quis assim fazer nem curou de quanto diziam, e veio muito a passo e devagar com a sua cavalgada que trazia, e no caminho, muito contra a vontade de todos, aguardou até ao meio-dia a ver se os castelhanos viriam para lhe pôr a praça.

O Mestre em Lisboa, onde estava, quando houve disto parte, mandou-lhe em ajuda Rui Pereira, tio de NunÁlvares, com cento e cinquenta lanças. E depois que foi tarde, vendo que os castelhanos não vinham a eles, vieram-se para a cidade com tudo aquilo que traziam, e foram do Mestre muito bem recebidos. Aqueles capitães de Castela que dissemos vinham com as suas gentes para encalçar NunÁlvares e tomar-lhe a presa que fizera, e, porque havia já um dia que NunÁlvares era na cidade, pousaram-se no Lumiar e pelas aldeias em redor, sem ir mais por diante, e foi isto aos oito dias do mês de Fevereiro já nomeado.

 

72. COMO O MESTRE TEVE ORDENADO DE IR A SANTARÉM PELEJAR COM ELREI DE CASTELA, E PORQUE AZOS SE NÃO FEZ.

 

Já dissemos, quando elRei de Castela veio a Santarém, como foram aposentados todos os seus pela vila, com as pessoas grandes e  meãs e de pequena condição, de guisa que não havia nenhum no lugar com que não pousassem.

E logo no começo do seu aposentamento principiaram por ter boa maneira com os hóspedes, e depois, passados dias, começaram de se assenhorar deles, fazendo-lhes tantas sem razões e desmesuras que todos se tinham por muito agravados. Pois que eles filhavam a seus donos o que estes haviam, e tiravam dois e três vizinhos de suas casas e faziam-nos pousar em outra à parte, acolhendo-se todos numa casa, e não lhes deixavam tirar das casas nenhuma coisa, nem roupa de cama para dormir, salvo a que traziam vestida.

Lançavam outros fora de casa e ficavam eles com a mulher, e dormiam-lhe com ela, e a outros o faziam diante de seus olhos, por pior que lhes pesasse, dizendo que de quanto tinham tudo era seu e deles coisa nenhuma, doestando-os com torpes e más palavras, dizendo-lhes assaz de desonras e escatimas, e se algum queria falar ou responder, logo mostravam que o queriam matar. A outros ligavam de pés e mãos, e assim os tinham toda a noite, e outros não ousavam sair fora de suas casas para nenhum lugar sem alvará, doutra guisa logo eram presos e mal trazidos (forma primeva de «trazidos a mal»), de tal modo que muitos desamparavam quanto haviam e fugiam para Lisboa e para outros lugares. E foi isto tamanho que alguns daí de Santarém, e outros portugueses que com elRei de Castela estavam, mandaram a Lisboa diversas vezes dizer ao Mestre que ali fosse com barcas para pelejar com elRei de Castela, que eles o ajudariam.

Desta coisa falou o Mestre primeiro com NunÁlvares, e depois com os outros do Conselho, e todos acordaram que era bem de se tentar isto, e querendo-se o Mestre trabalhar de o pôr em obra, houve depois conselho de o não fazer, nem de ir a tal lugar em barcas, que são navios que não podem levar senão pouca gente, quando cumpria de levar muita, ademais que as barcas não chegariam mais longe do que até Muja (Ribeira de Muge), que são duas léguas do lugar, porque a água do Tejo era muito pouca e não podiam ir mais acima, e a maior dúvida deste feito era de se aqueles recados que vinham seriam verdadeiros ou azados por arte delRei de Castela, para matar ou prender o Mestre e todos aqueles que em sua companha fossem, e por isso acabou por se não fazer.

 

73. COMO A RAINHA ESCREVEU AO CONDE DOM GONÇALO, SEU IRMÃO, QUE DESSE COIMBRA A ELREI DE CASTELA.

 

A Rainha, logo no começo, sendo de acordo com elRei de Castela, fez-lhe entender que facilmente poderia haver e cobrar todos os lugares que no reino havia, pois os maiores da terra eram seus dívidos (parentes) e de sua mulher, e todos os outros que tinham vilas e castelos estavam obrigados a ela por criação e benfeitoria.

E apesar de que alguns de mau recado alçassem voz contra ele, mostrando que o queriam desservir, que não curasse da doidice de tais, que eram sandeus e seguidores da opinião sandia, fundada em vã esperança.

E que ela escreveria ao Conde dom Gonçalo, seu irmão, e a Gonçalo Mendes de Vasconcelos, seu tio, que estavam em Coimbra, um dos principais lugares do reino, e que logo tomariam a sua voz e lhe dariam a cidade, embora não tivessem saído a recebê-lo quando ele por aí passara. E que ela chegaria lá com ele, se necessário fosse, e assim em cada um dos outros lugares quando pusessem em dúvida de lhos entregar.

Ora segundo achámos escrito, o Conde dom Gonçalo, antes disto, viera ao Porto fazer saimento por elRei dom Fernando, e a Rainha escreveu-lhe que se viesse a Coimbra; e aos homens bons da cidade, que o recebessem e lhe fizessem toda a honra, e ele veio-se para aí e trouxe consigo cem lanças. No castelo estava por Alcaide Gonçalo Mendes, tio do Conde e da Rainha, a que muito prouve a sua vinda, e dizem que pousando ele na vila lhe fez prometer seu tio que não a entregaria, tal como ele não daria o castelo, a nenhuma pessoa sem o consentimento de ambos, e desta guisa estava o lugar.

E depois que o Conde aí foi, vieram para ele João Rodrigues Pereira e João Gomes da Silva, e Álvoro Gonçalves Camelo, que depois foi Prior do Hospital, e Nuno Viegas, e Nuno Fernandes de Mariz, e Nuno Fernandes de Penacova, e Pero Gomes de Seabra, e Martim Correia e outros, de modo que tinha aí consigo trezentos e cinquenta lanças, e estava bem seguro e muito à sua vontade. E quando a Rainha falou a elRei assim como já dissemos, disse-lhe ele que escrevesse a seu irmão e Gonçalo Mendes que houvessem por bem de darem-lhe a cidade e tomar a sua voz, e que ele lhes faria por isso muitas mercês; e a carta que lhe enviou achámos que foi desta guisa:

«Irmão, amigo que eu muito amo, creio que bem sabeis como hei renunciado o regimento deste reino e hei-o posto em elRei de Castela, meu filho, e entendo que fiz nisto o que devia, porque bem vedes vós que doutra guisa não podia minha filha cobrar esta terra e haver o senhorio dela, segundo o começo que estas coisas levam. E porque eu sei que Gonçalo Mendes vosso tio, posto que me dessa cidade tenha feita menagem, não a pode dar se vós não quiserdes, por isso vos rogo, como irmão e amigo em que hei grande fiúza, que vos praza de tomardes voz por elRei de Castela vosso cunhado, recebendo-o por senhor, e fareis nisso o que deveis por minha honra e vossa, e ele vo-lo galardoará com muitas mercês e vos porá em maior estado, pois não cumpria a mim nem a vós cobrá-la o Mestre dAvis, para nossa linhagem ser por isso desonrada.»

Escreveu outrossim a Gonçalo Mendes, dizendo-lhe que bem sabia a honra e acrescentamento que ela nele fizera, e como tinha aquele castelo de sua mão, de que lhe tinha menagem feita, e que por isso lhe rogava que, sem mais contenda, tomasse voz por elRei de Castela, seu filho, e lho entregasse, e que nisto faria o que devia e a ela grande prazer e serviço, e que fosse bem certo de que ele lho galardoaria com muitas mercês, melhor do que ele poderia cuidar.

 

74. DO QUE AVEIO A ALGUNS DA CIDADE QUE SAÍRAM FORA PARA PELEJAR COM OS CASTELHANOS.

 

Enquanto estes recados forem a Coimbra, para ver deles alguma resposta, vejamos que fizeram o Mestre de Santiago, e Pero Fernandez de Valasco e Pero Rodrigues Sarmento que deixámos no Lumiar como ouvistes. Ora assim foi que, pousando eles naquelas aldeias a uma légua da cidade, saíram um dia, por mandado do Mestre, João Fernandes Moreira e outros a cavalo, com alguns peões e besteiros, até um campo que chamam Alvalade Grande, e isto para fazerem sair a eles os castelhanos e os trazerem até perto da cidade.

E foi de tal guisa que os castelhanos, como souberam que eles estavam naquele lugar, logo deram às trombetas e cavalgaram os capitães e muitos dos seus com eles, e fizeram os portugueses a volta, e como estavam perto não se puderam tanto sair que os outros os não alcançassem, e mataram e prenderam alguns deles, e foi aí morto o dito João Fernandes, e se não foram as vinhas por onde se metiam, e que os de cavalo não podiam romper, mais dano teriam feito neles os seus inimigos. O mestre saíra naquele dia, e NunÁlvares com ele, e gente da cidade até trezentas lanças e homens de pé e besteiros, e puseram-se em batalha numa lombada que se faz acima da igreja de são Lázaro, que serão dois tiros de besta da cidade, e aguardaram ali, para que quando chegassem os castelhanos, vindo no encalço daqueles que tinham ido até Alvalade, os achassem prestes para a peleja, e eles, quando chegaram e os viram assim estar pé terra ordenados em batalha, não se quiseram descer e houveram então por seu acordo de não pelejar (I), e tornaram-se para as aldeias onde pousavam, e o Mestre com os seus para a cidade.

 

Nota (I): A vantagem táctica estava do lado português, desmontados e pé terra, ou seja, em ordem de batalha de infantaria, e obrigando os castelhanos a ter de fazer o mesmo: desmontar e combater a pé. Seria útil se algum dos leitores lisboetas nos conseguisse indicar a localização desta igreja de São Lázaro e do alto (lombada) de que o texto fala. Será que o local seria aí pelos lados da actual Rua de São Lázaro?

 

75. DAS RAZÕES QUE NUNO ÁLVARES DISSE AO CONDE DOM ÁLVORO PERES DE CASTRO E A SEU FILHO, E COMO O MESTRE ORDENOU DE PELEJAR COM OS CAPITÃES DE CASTELA QUE ESTAVAM NO LUMIAR.

 

Certamente que falando neste passo, e tirada toda a afeição afora, o Mestre maravilhosamente é de louvar, se bem considerardes com atenção o prosseguimento de seus notáveis feitos, porque se bem que ele tivesse um muito ardido e ousado coração, igual aos dos fortes e virtuosos varões, muitos contrários lhe eram porém prestes. Pois ele via a maior parte de Portugal contra um pequeno Portugal que ficava, e conhecia alguns que vinham para ele por moles e de fracos corações, segundo os conselhos que lhe davam, e doutros também lhe levantavam suspeita, e duvidava de suas lealdades.

Mas estas e todas as coisas que bem entender podeis, que lhe eram assaz contrárias, não o mudavam por isso de seu firme propósito, como coisas que se abatiam sobre um grande e alto coração que não era vencido por tais tempestades. E assim foi que, quando o Conde dom Álvoro Peres de Castro se veio para ele, falou um dia o Mestre com ele e com seu filho de todas as coisas que lhe tinham sucedido até ali, e do que tinha em vontade de fazer.

E o Conde, que maior desejo tinha ao proveito e honra delRei do que àquilo que o Mestre começara, havia por nada todos os seus feitos, dizendo-lhe que tinha forte coisa começada e muito duvidava que a pudesse acabar com sua honra. E assim aquele que o devia de animar, pois que vinha para o servir, era quem lhe dizia estas e outras tais palavras, que eram bastantes para abandonar tudo quanto tinha começado e em vontade de fazer.

NunÁlvares, que estava presente, não pode sofrer seu razoado nem aguentar que lhe não dissesse, e respondeu-lhe então desta guisa: Digo-vos, senhor Conde, pois que vós ficastes com meu Senhor o Mestre, e vontade boa tendes de o servir, que tais razões e conselho esse que vós lhe dais não é bom nem comunal, nem ele vo-lo deve de crer, antes deve de ir com seu feito adiante e em nenhuma coisa tornar atrás. E não digo já contra elRei de Castela, que é um alto e poderoso Rei, mas ainda que fosse contra todos os Reis do mundo ele devia de continuar a sua defensão e de todos aqueles que lhe são sujeitos, que tem coração e razão de o fazer, e nenhum outro há em Portugal pertinente para isso senão ele, e todos os bons portugueses têm razão de o servir e ajudar e seguir o que começado tem, despendendo com ele os corpos e haveres até à morte. E Deus que a isto o chamou encaminhará seus feitos de bem para melhor, e trazê-lo-á em sua guarda e ao fim que ele deseja, e quem vontade houver de bem e lealmente o servir assaz terá de tempo em que o mostre.

O Conde, com sanha quando o viu assim falar, respondeu-lhe logo e disse: E isso, NunÁlvares? Como falais vós assim ousadamente? Não haveis empacho de falardes tão solto?

Em verdade, disse NunÁlvares, não, que de quanto eu disse nenhuma coisa me pesa, senão por ser muito pouco.

A isto respondeu então dom Pedro, seu filho, e disse contra NunÁlvares: Não haveis vergonha, NunÁlvares, de assim falardes contra meu pai?

Digo-vos, disse ele, que não, que eu do que a vosso pai disse não hei vergonha dele nem de vós, pois disse o que devia por serviço de meu Senhor, o Mestre, e não por outra coisa. Nisto, antes que mais palavras houvesse entre eles, mandou o Mestre que se calassem, e calaram-se logo.

Ora vendo o Mestre como aqueles capitães de Castela estavam tranquilos no Lumiar havia já bem quinze dias, e não se partiam dali, vindo algumas vezes escaramuçar cerca da cidade, falou com o Mestre de Santiago (I) e com Nuno Álvares, e com todos os do seu Conselho, dizendo que lhe parecia que era bem de irem pelejar com eles, e Rui Pereira, e João Lourenço da Cunha, e todos os outros que aí estavam outorgaram de isto se pôr em obra.

 

Nota (I): portanto, cerca de 23 Fevereiro de 1384 o Mestre de Santiago ainda não partira como embaixador para Inglaterra. Aliás, como veremos na segunda parte da Crónica, só no final de Março isso aconteceu.

 

E ao falarem de que capitães eram os que vinham com aquelas gentes, e ao nomearem cada um pelo seu nome, quando diziam: Vem aí foão, Mestre de Santiago, respondia o Conde dom Álvoro Peres, encolhendo-se todo, e dizia: Ai! Que menino! E ao dizerem: Vem aí mais foão, ele respondia dizendo: E esse que parvoo (criança)! E assim dizia sobre outro: Ai que cachopo! E assim dava a cada um o seu motete, dando a entender que não era bem de irem pelejar com eles, dizendo que lhe parecia que eram muitas gentes, e grandes e bons capitães com elas, e pois que deles pouco nojo recebiam que não curassem de sua estada.

O Mestre disse que aquilo não era de sofrer, estarem para seu despeito tão perto da cidade e não responderem a isto como deviam, então juntaram todos as suas gentes, fazendo-se prestes para o outro dia, e os castelhanos, que depressa disto souberam, partiram-se à pressa, parte deles para Alenquer e os outros para Torres Vedras, e não os quiseram esperar, e muitos dos portugueses, quando isto ouviram, foram lá e acharam as aldeias desamparadas deles, e as panelas ao fogo e espetos com carne que não tiveram vagar de comer com a pressa da sua partida; e se alguns doutra guisa o escrevem, como opinião inimiga da verdade deve ser enjeitado seu dito.