XIV - Lisboa nas vésperas do cerco

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».

 

109. DALGUMAS NAUS DE GÉNOVA QUE O MESTRE COBROU EM SEU PODER, E COMO COMBATERAM ALENQUER E NÃO FOI TOMADA.

 

Vós todos ouvis e não pergunta nenhum, depois que NunÁlvares passou ao Alentejo e se fizeram estas coisas que temos contadas, que fazia entretanto o Mestre em Lisboa, ou em que gastava o seu tempo para a defensão do reino e da cidade. E pois que o não pergunta ninguém queremos que saibais que, depois que o Mestre se despediu em Coina de Nuno Álvares, como tendes ouvido, e se tornou para Lisboa, três galés suas e três barcas, não longe do porto da dita cidade, foram tomar duas naus carregadas de panos e prata e doutras muitas coisas que nelas vinham, e mais uma barca da Galiza carregada de madeira.

Barnabo Dentudo e Nicolau de Palma, que eram patrões destas naus, bradavam que eram de Génoa, dando muitas razões a provar que sim, a qual coisa era bem clara, e os da cidade bradavam muito mais do que eles, aporfiando sempre que eram de Castela; nesta dúvida, em que bem se escusar pudera, mandou o Mestre pôr na alfândega todas as mercadorias, que depois muito se aproveitaram e lhe foram de grande ajuda para paga de soldos e outras despesas. Que nelas foram achadas mais de três mil peças de pano de ipres e brujas, e escarlatas, e outros panos de menor preço, e mais de mil peças de sarjas, e mais de mil varas de lenço francês, e prata e ouro, e chumbo e penas, e muitas outras coisas que não cumpre de se escrever.

E daí a sete dias chegou uma barca à dita cidade e deu novas de que os ingleses eram prestes para partir poderosamente e vir em ajuda do Mestre e do reino (era boato). Nisto fizeram saber os dAlenquer ao Mestre que mandasse ali cinquenta homens de armas e que os da vila com eles se trabalhariam de tomar o castelo e alçariam voz por ele. Ao Mestre prouve disto muito, e vieram-se alguns de noite para irem com as gentes que o Mestre ali mandasse. O Mestre armou logo duas galés e fez capitão dos que haviam de ir micer Manuel, Almirante, filho de Lançarote, o que mataram em Beja.

E foram estas galés pelo rio acima até à ponte da Marinha, que é uma légua do lugar, e quando ali chegaram para pôr a gente eram já tais horas, pois eles foram no lugar era sol levado bem manhã, que os podiam ver de toda a parte; contudo, não embargando isto, houveram as portas da vila como tinham azado e entraram dentro sem mais estorvo, e foram-se logo direitamente ao castelo tanto os que iam de Lisboa como os moradores do lugar, e começaram de o combater muito de rijo, dizendo ao Alcaide que desse o castelo a seu Senhor, o Mestre, e vendo que o não queria fazer, começaram de bradar que viesse fogo para queimar as portas. O fogo foi asinha prestes e bem servido para arder, que uns levavam trancas e toucinhos (gordura animal), outros lenha e azeite, cada uns como melhor podiam, de guisa que por míngua de boas ajudas não deixasse de queimar, mas porque o lugar onde estava a porta era muito abrigado de vento que ajudasse ao fogo, e depois pela muita água que lançavam de cima os que defendiam o castelo, foi todo aquele trabalho despeso em vão.

E durando o combate desde hora de prima até cerca de véspera, em que foram alguns feridos, alçaram-se novas de que elRei de Castela, que estava daí a quatro léguas no Bombarral, enviava gentes à pressa que lhe mandara pedir Vasco Peres de Camões, Alcaide do castelo, para socorro do lugar, e outros diziam que vinha elRei de Castela com as gentes que tinha.

E vendo os da vila como o castelo não se podia tomar assim tão depressa como eles pensavam, e que se elRei de Castela ou os seus viessem teriam por força de passar mal, por causa da entrada que permitiram na vila, acordaram de se partir logo. Então se partiram todos os melhores do lugar com as mulheres e filhos, e com essa pouquidade que levar puderam, e não ficaram senão alguns pobres que depois não receberam nojo.

E embora Vasco Peres bradasse, ao vê-los ir, que se tornassem e não tivessem medo delRei nem de suas gentes, posto que viessem, pondo adeparte esta sua segurança todos se meteram nas galés e vieram-se a Lisboa, muito anojados do que começaram visto que não tivera fim. E ficaram-lhes muitos dos bens móveis que tinham, e as casas cheias de alfaias, que depois os do castelo roubaram antes que outra gente viesse.

No outro dia chegou a Alenquer por mandado delRei, com muitas gentes para lhe acorrer, Garcia Fernandez de Villa Odre, cuidando que ainda ali estavam combatendo os que vieram de Lisboa.

 

110. COMO O MESTRE MANDOU ARMAR CERTAS GALÉS EM LISBOA.

 

Vendo o Mestre e os do seu Conselho como elRei de Castela vinha com todo o seu poder, e a grande frota de naus e galés que mandava armar para vir sobre Lisboa, de modo a fechar-lhe o porto para que não fosse socorrida com mantimentos de nenhuma parte, houveram seu acordo em armar as naus e galés que havia na cidade de molde a estarem em condições, se alguns navios entretanto viessem, de lhes poderem estorvar a vinda e trazer mantimentos desembargadamente da parte do Alentejo, tanto para açalmamento (abastecimento militar e civil) da cidade como para segurança dos que para ela vinham daquela parte em ajuda da sua defensão. E quando soubessem que a frota de Castela vinha poderosamente, as naus  as galés se iriam ao Porto e juntar-se-iam com as outras que lá estavam, e então viriam todas juntamente pelejar com a frota de Castela.

E para armar as galés foi dado encarrego a dom Lourenço, Arcebispo que então era de Braga, o qual o tomou muito de vontade, e começou logo de as mandar pôr nos vasos (envazaduras) e deitar à água, e tal afincamento tinha e tantas gentes fazia juntar para este trabalho que as mais delas foram deitadas na água à mão, sem cabrestante. E ele andava pela cidade em cima dum cavalo e com duas cotas vestidas, e por cima o roquete (a veste eclesiástica), e uma lança na mão, o ferro sempre para diante.

E se bem que os da cidade com bom desejo se oferecessem para aquele trabalho, ele ainda mais os afincava, não deixando escapar ninguém de qualquer estado que fosse, de guisa que não ficava clérigo nem frade, nem outra pessoa, que ele a todos ali não fizesse chegar. E se algum lhe dizia que era clérigo, ele respondia-lhe que era clérigo tanto como ele, e ao que lhe dissesse que era frade, dizia ele: E eu Arcebispo, que é melhor que frade. E tal aguça pôs em armá-las que em breves dias foram armadas doze galés, e vieram mais uma galé e uma galeota armadas do Algarve.

E porque aí não havia escudos e dardos, que se perderam nas armadas que fizera elRei dom Fernando, faziam escudos de leivas (aduelas) de tonéis, e serravam bordos e faziam dardos.

 

111. COMO FOI ENTREGUE O ESTANDARTE A GONÇALO RODRIGUES E PARTIU A FROTA PARA O PORTO.

 

Armadas sete naus e mais as galés, e prestes de tudo o que lhes cumpria, ordenou o Mestre por capitão da frota Gonçalo Rodrigues de Sousa, Alcaide que então era de Monsaraz; e veio o Mestre muito acompanhado à , e todos os da cidade e ordens e clerezia, e dali saíram em grande procissão solene, a clerezia toda adiante e o Mestre cerca com todo o outro povo, e muitas trombetas em lugar onde não faziam torva (estorvo). E assim com grande prazer levaram pelo meio da cidade o estandarte das armas direitas de Portugal, e chegaram com ele até à porta da Oira, que é junto com a beira da água.

E ali foi entregue a Gonçalo Rodrigues, e posto na maior galé de todas que chamavam a Real, e isto assim feito tornou-se o Mestre e os demais cada uns para as suas pousadas. E foi maravilha que na noite seguinte Cristãos e Mouros que velavam o muro da parte de São Vicente de Fora – perto donde é feita uma capela que chamam dos Mártires que houveram na tomada da cidade quando foi cobrada aos Mouros – os que estavam de vela à meia-noite, viram vinte homens vestidos com vestiduras alvas, assim como sacerdotes, e quatro deles traziam nas mãos quatro círios acesos, e iam e vinham em procissão entrando dentro da igreja, e falavam muito baixo entre si, como se rezassem algumas horas. Os do muro quando viram isto ficaram muito espantados, e começaram de chamar os outros para que olhassem tão grande milagre e, de repente, os homens desapareceram.

E logo nessa hora, falando nisto uns com os outros, viram nas pontas das lanças que estavam nas torres, cada uma em sua lança, candeias acesas de claro lume que durou cerca duma hora, e disto deram testemunho sete Cristãos e três Mouros que velavam uma torre. E já antes disto havia oito dias chegara um homem de Montemor-o-Velho que trouxe ao Mestre um instrumento público feito pela mão de Lourenço Afonso, tabelião do dito lugar, no qual era contido que uma segunda-feira, aos onze dias daquele mês de Abril, sendo presentes Gonçalo Gomes da Silva e seus filhos, e outros muitos da dita vila, chovera cera naquele lugar, tal como a que põem nas candeias, e trouxe amostra dela.

Os da cidade quando ademais ouviram aquele milagre que contavam os da guarda de São Vicente de Fora, foram mui ledos com ele e com outras tais coisas que nesta sazão ao Senhor Deus prazia de mostrar. E o Bispo e a clerezia com todo o povo em procissão foram àquela igreja dos Mártires, dando-lhe muitas graças e pedindo-lhe em mercê que fosse em sua ajuda.

Nisto foi grande tormenta no mar, e chegaram um dia três naus de Castela com tempo contrário muito a seu pesar, e pousaram dentro do rio a três léguas da cidade, em direito onde chamam Hueiras, e estas naus vinham carregadas de farinha e de cevada e doutras coisas para o arraial de elRei de Castela, cuidando que já estava sobre a cidade. As gentes das galés, como houveram delas vista, remaram contra elas para as haverem de tomar, e as naus, quando isto viram, fizeram todas vela para se saírem e fugir a salvo se pudessem. E, levantadas as velas, vendo que o fazer não podiam, pelo tempo que lhes era contrário, antes preferiram dar com as naus em terra para que quebrassem do que as cobrarem os portugueses e se aproveitarem delas e das coisas que traziam; e os homens puseram-se a salvo em batéis e a nado, e como melhor podiam, e as gentes de elRei de Castela que estavam em Sintra e andavam por aquele termo ajudaram-nos a defender, pelo que não houveram dano. E os portugueses queimaram as naus e tornaram-se para a cidade; e naquela tormenta que fez estiveram para se perder quatro galés das que jaziam ante a cidade, e prouve a Deus de as guardar.

Quando o tempo foi azado para as galés poderem partir, antes que a frota de Castela chegasse, que já haviam novas que era no mar, foi o Mestre fazer alardo com elas da parte dAlmada, onde chamam a Amora, e à tarde vieram, aproveitando as velas, ancorar ante a cidade, e aos catorze dias do mês de Maio partiu Gonçalo Rodrigues com elas para a cidade do Porto.

As naus não puderam ir em sua companhia, pelo tempo que era contrário, e tornaram-se para a cidade. Chegaram as galés a Atouguia e o lugar estava por elRei de Castela, porquanto João Gonçalves, que era Alcaide de Óbidos e tinha a sua voz, constrangia por tal guisa os moradores dali que estes tinham o partido que ele defendia, e portanto os das galés saíram a terra e roubaram mantimentos e outras coisas que achavam, e tomaram nove batéis baleeiros que ficaram do tempo delRei dom Fernando, para se aproveitarem deles porque eram ligeiros.

Dali seguiram as galés sua viagem e chegaram à cidade do Porto, onde fiquem um pouco folgando enquanto nós vamos ver elRei de Castela.

 

112. COMO ESCARAMUÇARAM OS CASTELHANOS COM OS PORTUGUESES, E FOI AÍ PRESO JOÃO RAMIREZ DARELHANO.

 

ElRei de Castela ficou uns dias perto dÓbidos na aldeia que chamam Bombarral, por azo dos seus que o aconselhavam que não viesse cercar Lisboa até que a sua frota chegasse para lhe tomar toda a ribeira e não poder haver socorro de gentes nem de mantimentos da parte de além Tejo, e também por outras razões que já são escritas. E por isso assossegou elRei ali durante alguns dias, e depois veio-se chegando por essas aldeias, onde melhor desenfadamento achava, até que chegou a uma grande e espaçosa aldeia que chamam o Lumiar, a uma légua da cidade, e ali se propôs entretanto estar de assossego.

Os outros pousavam em outras aldeias das muitas e boas que há por essa comarca. E enquanto elRei por ali esteve não vinham os seus escaramuçar contra a cidade, salvo muito poucas vezes, e isto porque estavam arredados dela e não lhes vinha assim à mão.

Porém um dia vieram alguns capitães com as suas gentes de armas, e peões e besteiros, e subiram do vale de Santa Bárbara ao monte de São Gens, e ali se puseram em magote com suas bandeiras, apupando todos em pavesada contra os da vila, e estando assim um pouco, moveram-se contra a porta de Santo Agostinho. Naquela quadrilha (troço da muralha) estavam por guarda o Conde dom Álvoro Peres de Castro e dom Pedro, seu filho, e Mem Rodrigues e Rui Mendes, filhos de Gonçalo Mendes de Vasconcelos, que tinham bem as suas duzentas lanças, afora outros da cidade que com eles eram de companhia; e quando viram os castelhanos estarem daquela guisa alguns saíram cá fora para escaramuçarem, e em se revolvendo a escaramuça muito de vontade entre uns e os outros foi preso do lado dos inimigos um bom fidalgo daqueles capitães que chamavam João Ramirez dArelhano, e como aquele foi preso cobraram os da cidade esforço, e fizeram-nos dar a volta e deram com eles por aquele grande sopé abaixo, e iam arrastando as bandeiras por cima de pães (cereais) semeados na encosta daquele monte, onde foram alguns feridos e mortos.

O Mestre, ouvindo como os seus escaramuçavam, saiu cá fora pé terra com gentes de armas e besteiros à porta de São Vicente, naquele chão que aí se faz, e depois que viu a escaramuça desfeita tornou-se para a cidade, e mandou guardar João Ramirez no castelo da menagem aos que tinham carrego de nele estar, e deu-lhe dos vestidos de seu corpo e faziam-lhe toda a honra.

Neste dia, que era vinte e seis de Maio, começou de vir a frota de Castela, e chegaram ante a cidade treze galés e uma galeota, com as quais elRei folgou muito, por ter azo de se vir lançar ao redor dela.