O espaço da História

XVIII - Nuno Álvares no ninho das víboras

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».

 

125. COMO NUNO ÁLVARES HOUVERA DE IR NA FROTA, E POR QUE RAZÃO NÃO ENTROU NELA.

 

Estando as galés no Porto, como dissemos, punham as naus prestes quanto podiam para cedo virem acorrer ao Mestre e à cidade, pois haviam novas de que era minguada de mantimentos por causa da frota de Castela que lhos embargava a não poderem vir pelo mar, e empostando-se (fornecendo-se) a frota do que lhe cumpria, não embargando a grande trigança (azáfama), passavam-se mais dias dos que mister haviam aqueles que atendiam a sua ajuda e acorro. O Mestre vendo que a frota tardava, com a cidade posta em gasto de mantimentos, e havendo grande feúza (confiança) em que o seu mui leal servidor Nuno Álvares Pereira o bem serviria nisto, escreveu-lhe trigosamente para Évora, onde estava, dizendo que juntasse as suas gentes e se fosse ao Porto embarcar na frota, e nela viesse para pelejar com a de Castela que assim tinha a cidade cercada.

NunÁlvares, quando viu o seu recado, sabendo como o Conde dom Gonçalo e Rui Pereira e outros fidalgos haviam de ir na frota, escreveu-lhes à pressa que lhes prouvesse de o esperar, que muito cedo encaminharia para ser seu companheiro; e repartiu logo pelos seus um pouco de ouro que lhe enviara o Mestre, aos quais muito prouve quando Nuno Álvares lhes contou como o Mestre lhe escrevera que se fosse ao Porto. O Conde e Rui Pereira e alguns outros a que NunÁlvares escreveu, logo que viram o seu recado, com inveja e corrupta intenção, segundo se afirmava, não o quiseram esperar, e decidiram de partir com a frota, como de facto partiram.

NunÁlvares, sem disto saber parte (ter conhecimento), a grande trigança andou seu caminho, levando consigo até duzentas lanças, e quem menos escreve erra no seu escrever. E quando chegou a Tomar, onde estava o Mestre de Christos (sobrinho de Gonçalo Rodrigues de Sousa), comeu aí com ele um dia, e o Mestre perguntou-lhe o que lhe parecia destes feitos, como se os houvesse por estranhos e não para virem a tal acabamento como NunÁlvares e outros pensavam. E NunÁlvares respondeu-lhe que, graças a Deus, os começos lhe pareciam ser bons, e que esperava em Ele que o fim ainda fosse melhor, e assim se despediu do Mestre e levou o caminho de Coimbra; e quando aí chegou soube que a frota era já em Buarcos, e outra vez escreveu aos capitães dela que lhes rogava, para serviço do Mestre, que o aguardassem e não partissem sem ele, pois logo em ponto ali seria.

E eles, como viram o seu recado, usando ainda da primeira inveja, decidiram partir logo e não o quiseram ali esperar.

A NunÁlvares, quando foi certo da sua partida, pesou-lhe muito, e entendeu bem como era, dizendo no entanto que Deus os quisesse bem encaminhar. E que se alguns se apressaram a partir mais cedo do que deviam, para ele não ir com eles, que Deus não lhes o acoimasse, e os guiasse a seu salvo como desejavam.

Onde deixemos as naus e galés andar pelo mar, e, enquanto elas fazem a sua viagem, levemos NunÁlvares ao Alentejo; e quando for em Évora, donde partiu, então tornaremos a contar da frota, de como chegou a Lisboa e do que lhe aí aveio.

 

126. COMO NUNO ÁLVARES ORDENOU DE PARTIR DE COIMBRA, E DO QUE LHE AÍ AVEIO.

 

NunÁlvares estando assim em Coimbra, pousava então aí a Condessa mulher do Conde dom Henrique Manuel, que tinha Sintra por elRei de Castela, e pelo ódio que havia a NunÁlvares desde quando fora correr o termo daquele lugar, e depois por ser muito da parte da Rainha e querer fazer serviço a elRei, decidiu de o prender juntando muita gente de escudeiros e outros homens, porquanto ela tinha ali assaz de parentes e amigos e criados para bem poder fazer tal obra.

As gentes de NunÁlvares, já quando e de que guisa disto souberam parte, começaram de se avolver (agitar), reunindo-se para ir ao paço onde diziam que a Condessa fazia o seu ajuntamento, e em toda a guisa queriam ordenar de ter com ela má maneira. NunÁlvares, que de tal não sabia parte, quando lho disseram, acudiu muito à pressa a isto e fez com que não se fizesse nenhuma coisa do que se houvera de fazer, e assim Deus guardou NunÁlvares da prisão e a Condessa de grande perigo.

Nisto Nuno Álvares, querendo-se partir para donde viera, não tinha para si nem para os seus coisa com que se pudesse partir, de guisa que alguns tiravam empenhado sobre as armas o que haviam de comer. NunÁlvares, vendo nos seus esta míngua, mandou vender quanta prata tinha e repartiu o preço com eles para se desempenhorarem, mas com tudo isto não se pôde escusar que não falasse aos homens bons de Coimbra, rogando-lhes que lhe acorressem com alguns dinheiros emprestados para a sua partida, e a eles prouve de o fazer e acorreram-lhe com certos dinheiros, dos quais mandou dar a cada um sete livras naquela moeda para despesas do caminho.

Então se partiu e foi primeiro falar a Gonçalo Mendes de Vasconcelos, que tinha o castelo de Coimbra, e falou-lhe junto dum postigo, da parte de fora, e Gonçalo Mendes, quando viu algumas daquelas gentes de Nuno Álvares, não corrigidas como ele cuidava, maravilhou-se, dizendo aos seus depois que Nuno Álvares se partiu: Espantado sou de tais homens como estes poderem defender este reino de elRei de Castela, que é tamanho senhor, a não ser que Deus ande por capitão deles.

Dali se foi NunÁlvares a Tomar, e houve aí seu conselho de chegar a Torres Novas para falar com Gonçalo Vasques dAzevedo, que era muito seu amigo e tinha o lugar por elRei de Castela, para ver se o poderia reduzir ao serviço do Mestre; e de facto foi lá e falou com ele nestes feitos, como melhor entendeu; e depois de muitas razões que ambos tiveram, outra resposta não pôde haver dele salvo que não via caminho nem fundamento de como os feitos do Mestre pudessem vir àquele fim que NunÁlvares desejava, dando por isso a entender, não muito claro porém, de que se ele visse tais conjeituras (circunstâncias) em que se pudesse fundar, então que bem lhe prazia de servir o Mestre, e assim se despediu dele Nuno Álvares e se tornou a Tomar.

 

127. DO QUE AVEIO A NUNO ÁLVARES COM DOM DAVID ALGUADUXE SOBRE DINHEIROS QUE ESTE LHE QUISERA DAR.

 

Segundo parece, por qualquer guisa que foi, Gonçalo Vasques dAzevedo houve de saber parte do que a NunÁlvares sucedera em Coimbra e de como andava mesteiroso de dinheiro, e escreveu à pressa a elRei de Castela que lhe parecia que era bem de o mandar convidar com algum dinheiro, para ver e provar que resposta nele se acharia, e se mudaria de partido por azo da míngua em que estava posto, e que se el Rei o tivesse pelo seu lado, não somente haveria arredado de seus feitos um grande estorvo como ainda cobraria tudo o que desejava de alcançar.

ElRei de Castela respondeu a isto que lhe não parecia razoável nem aguisado ser-lhe tal coisa cometida pela sua parte, porque poderia acontecer que, não se outorgando nisto, andaria depois gabando-se de que o mandara rogar e convidar por peita, a qual coisa todos lhe contariam a título de míngua, mas que tratasse Gonçalo Vasques de o cometer por outra maneira, como se fosse da sua, e que se Nuno Álvares se resolvesse a tomar alguma coisa, e Gonçalo Vasques sentisse nele que por lhe darem à sua vontade se viraria para o seu lado, então que por míngua de prometer não falecesse nenhuma coisa, e que lhe fizesse logo saber tudo.

Gonçalo Vasques falou então com um Judeu que chamavam dom David Alguaduxe, irmão da mulher de dom Yuda, que fora Tesoureiro delRei dom Fernando, e o Judeu foi até NunÁlvares em Tomar, onde estava, e disse-lhe como lhe parecia que ele andava muito mesteiroso de dinheiro, e que tinha alguns dinheiros delRei de Castela, e que, se a ele prouvesse de tomar alguns deles, lhe acorreria com mil dobras por então, e que tempo viria, nalguma sazão, em que ele as serviria a elRei, seu Senhor. NunÁlvares viu as razões do Judeu e entendeu bem este cometimento, e falou com alguns do seu conselho para ver o que em tal feito lhe aconselhavam. E tais aí houve que lhe disseram que lhes parecia que era muito bem, e pois que Deus lhas trazia à mão sem ser a seu requerimento, que sempre as tomasse, visto que tanto as havia em mister para sua despesa.

NunÁlvares disse que não lhe parecia bem nem aguisado tomarem dinheiros de nenhuma pessoa salvo daquela a que lhes competisse de servir, e pois que eles andavam ao serviço do Mestre e em defensão do reino de Portugal, de nenhum outro deviam tomar dinheiro, e que eles até então tinham andado sempre limpos e sem prasmo de nenhuma coisa, e que agora, tomando estes dinheiros, por fazer desprezo de quem eram, que de alguns poderiam ser prasmados, dizendo esses que já tinham tomado dinheiros delRei de Castela e havido dele bem e mercês, a qual coisa porventura poria entre eles desacordo e má suspeita. E assim os dinheiros não foram tomados, se bem que o Judeu muito afincadamente o convidasse com eles.

 

128. COMO NUNO ÁVARES PELEJOU COM ALGUNS CASTELHANOS E OS DESBARATOU.

 

Nuno Álvares partiu de Tomar, onde estava, e foi-se a Punhete para encaminhar a Entre Tejo e Odiana, que era a comarca donde tinha carrego, e ali soube que certas gentes dos castelhanos estavam no Crato prestes a partir para Santarém, e que de Santarém outros queriam ir para Castela, e estas gentes iam em guarda de grandes récuas carregadas de roubos que alguns castelhanos faziam no termo de Santarém e por outros lugares, de roupas de camas e vestidos, e alfaias e outras coisas de que se pudessem prestar, e houve conselho de aguardar uns ou outros, durante dois ou três dias, na estrada por onde haviam de passar para, com a ajuda de Deus, pelejar com quaisquer que acontecesse de vir.

E com esta tenção partiu de Punhete e chegou à estrada por onde os castelhanos haviam de passar para Santarém, ou de Santarém para Castela, a uma pequena ribeira onde chamam Alperraiam, e comeu cerca dela sob uns verdes freixos. E antes que se assentasse a comer mandou pôr a tiro de besta e mais longe, em alguns outeiros, as suas atalaias para nenhumas gentes poderem passar de que ele não soubesse parte, porque ele havia o costume de nunca se alojar de dia sem que tivesse atalaias, e de noite guardas e escutas, ao longe e ao perto.

E tendo as suas atalaias postas e estando a comer, assim ele como as outras gentes, eis que vem um dos escutas rijamente e muito calado, dizendo que na estrada, do lado de Santarém, vira grandes pós, e que lhe parecia que vinham aí alguns de cavalo e de pé. NunÁlvares foi mui ledo com estas novas e deu logo de mão aos mantéis, e mandou que lhe selassem as bestas mui passo e sem arruído, e assim o disseram a todos os seus, e que se viessem logo para ele mansamente; e eles assim o fizeram, pois não tinham razão para se deter, porquanto todos estavam armados somente nas cabeças (não usavam armaduras, só elmos ou bacinetes) e tinham as bestas seladas e prestes para o que esperavam.

NunÁlvares estava desviado da estrada por onde os castelhanos vinham, e entre ele e a estrada havia um levantamento da charneca, a modos de cumeada, e dessa cumeada se fazia uma descida para a estrada, e ele então disse aos seus que fossem todos a pé e calados até ao teso da charneca, e eles assim o fizeram. E logo que foram em cima do teso mandou dar rijamente às trombetas, e todos em tropel rapidamente desceram àquela estrada onde os castelhanos vinham, os quais não eram mais que oito a cavalo e um cento de homens de pé, bons almogávares, todos com lanças e dardos e seus punhais, e alguns besteiros com eles.

Quando os castelhanos viram NunÁlvares descer assim rijo com a sua gente, ficaram contudo muito pouco turvados, pois logo se começaram a defender como bons homens, mas a sua defensão não lhes serviu de nada, porque muito asinha foram desbaratados, e entre mortos e feridos ficaram aí um pouco mais de oitenta, e alguns esconderam-se pelo matos de maneira que não puderam ser achados. E levaram os de Nuno Álvares muitas azémolas e outras bestas, e ouro e prata e dinheiros, e roupas de vestir e outras coisas, e foram-se a caminho dÉvora.

Onde deixemos Nuno Álvares por guarda de sua frontaria e vejamos se já chegou a Lisboa a frota que partiu do Porto, e do que lhe aconteceu.