XIX - A frota vem para Lisboa

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».

 

128. DO CONSELHO QUE ELREI DE CASTELA HOUVE COM OS SEUS SOBRE DE QUE GUISA PELEJARIA COM A FROTA DE PORTUGAL.

 

Armando-se a frota no Porto e sendo prestes para partir, como ouvistes, elRei de Castela trazia as suas esculcas pelo caminho, de guisa que sabia a cada dia novas do que se fazia naquela cidade, e alguns dias antes que a frota houvesse de partir soube ele o dia certo em que havia de sair da foz a fora, e mandou chamar Fernam Sanchez de Thoar, seu Almirante mor, e Pero Afã de Ribeira, Capitão de naus, e disse-lhes nesta guisa: Fazei aqui vir de manhã todos os alcaides das galés e mestres das naus, que quero convosco e com eles falar dalgumas coisas que cumprem ao meu serviço.

No outro dia fizeram eles como elRei mandou e trouxeram consigo os alcaides das galés e mestres das naus, conforme lhes foram dados em rol, e foi-se elRei com eles ao mosteiro de Santos, e na companhia dele iam alguns cavaleiros, convém a saber: Pero Fernandez de Valasco, e FernandAlvarez de Toledo, e o Conde de Mayorgas e outros. E mandou elRei às guardas que cerrassem as portas e fizessem afastar todos para longe do redor do mosteiro, para nenhum poder ouvir coisa do que aí dentro se falasse, e assentou-se elRei nos degraus do altar maior, onde já estava tudo corrigido como cumpria, e posto ali um livro missal e pousados todos diante dele duma parte e da outra, disse então elRei para eles:

Eu vos fiz aqui chamar para um conselho que convosco todos quero haver, mas, antes que alguma coisa saibais do que eu vos hei-de dizer, vós me jurareis pelos Santos Evangelhos que do que eu agora aqui falar convosco nenhuma coisa será descoberta até àquele tempo que necessário for para se fazer.

E depois que todos juraram, ele acrescentou mais e disse: Não embargando o juramento que já todos fizestes, eu vos defendo a cada um, sob pena de traição, que coisa alguma do que agora aqui se falar, quer seja a parente ou amigo, ou a qualquer outra pessoa, vós o não descubrais nem deis a entender nada, salvo quando vo-lo eu mandar ou que houver de se pôr em obra; e eles disseram que assim o fariam.

Ora sabei, disse elRei, que a razão porque aqui vos fiz juntar é esta: Eu hei por novas certas que a frota de Portugal é já armada e prestes para partir em tal dia da foz a fora, e penso que vem nela NunÁlvares com muitas gentes do Alentejo; ora cumpre que hajamos conselho sobre em que guisa poderemos melhor pelejar com ela a nosso salvo, se aqui dentro, no rio, ou no mar, da foz a fora, e para isto Fernam Sanchez, com os alcaides, e vós, Pero Afan, com esses mestres das naus, apartai-vos cada um para seu cabo, e eu com estes fidalgos haverei meu conselho, e onde os mais de nós acordarem, que essa seja a nossa decisão.

Então se arredaram uns dos outros, cada uns para seu lado, e depois que elRei houve seu acordo com aqueles fidalgos fez chamar os outros, e perguntou a Fernam Sanchez que era o que haviam acordado.

Senhor, disse o Almirante, o que a mim e a estes alcaides sobre esta questão parece é isto: que melhor será pelejar com a frota no mar da foz a fora do que aqui dentro no rio, e a razão por que isto se deve fazer é esta. Ora assim é que a sua frota ou vem bem armada ou não; se o não vem, então já vem vencida; se vem bem armada, nós iremos melhor armados que eles, e pôr-nos-emos trás a Berlenga e dali sairemos a pelejar com ela, e entendemos, com a mercê de Deus e vossa boa ventura, de a vencer sem nos escapar nenhuma vela; e se pelejarmos aqui no rio, ainda que com todos eles aferremos, podem-se sempre alguns ir saindo, ademais que têm diante da vila algumas naus e barcas que bem podem armar e com que virão em sua ajuda, e podem-nos assim fazer mui grande estorvo, e por isso o nosso acordo é de todavia pelejarmos com ela a fora.

E vós, PerAfan, disse elRei, que é o que vos parece?

Parece-nos, Senhor, disse ele, que muito melhor é pelejarmos com a frota aqui dentro do rio que no mar da foz para fora, e isto por muitas razões; primeiramente, porque nós estamos no tempo em que os aguiões (ventos do norte) reinam muito nesta terra e, querendo ir ao mar, não poderiam as naus igualar com as galés, e, posto que as igualassem, não poderiam ir senão barlaventeando, e portanto convinha (era forçoso) que se espargisse a frota, e não poderia ser toda junta, como a nós cumpria que fosse, pois eles virão todos juntos, dado que trazem o vento por si, e como nos achassem a andar espalhados podiam-nos apanhar todos um a um; e ainda que nós fôssemos juntos e quiséssemos com eles aferrar, pois que eles trazem o vento consigo, cortar-nos-iam todos até o mar, mormente que nela vêm muito bons mareantes e bem sabedores de guerra; e por estas razões será melhor e mais seguro pelejarmos com ela no rio do que doutra guisa, pois nós faremos prestes muito bem as nossas naus e pôr-nos-emos além do Restelo, com as galés todas atrás de nós, e, quando eles vierem, deixá-los-emos passar por nós e depois desfraldaremos logo sobre eles, e o vento que eles trazem por si ficará desse modo por nosso e pelejaremos então com ela, e, com a ajuda de Deus e em vossa boa ventura, desbaratá-los-emos sem dúvida nenhuma, e em caso que doutra guisa fosse, o que Deus não queira, a terra dalém é vossa e igualmente a daquém, e em qualquer das partes a que fôssemos acharíamos ajuda e acorro e poderíamos haver gentes de armas quantas houvéssemos mister.

Certamente, disse elRei, esse é muito bom conselho, e é também o acordo que eu e estes fidalgos houvemos.

Em verdade, Senhor, disse então Fernam Sanchez, isto parecerá mui grande cobardice, estardes vós aqui com toda a vossa hoste e frota e não sairmos nós fora do rio para lhes dar ao menos uma saudação de trons. Mandai, Senhor, por mercê que saiamos ao menos sequer até Cascais, e essa razão da vantagem que para nós se pode haver, aqui dentro no rio, do vento que eles trazem por si, identicamente a haveremos, e ainda muito melhor, em Cascais, se bem que, a meu conselho, nós todavia iríamos aguardá-los mar adentro.

E ponhamos, disse elRei, que acontecesse tal coisa que adentro desse mar fôsseis desbaratados, que faríeis então?

Quando essa coisa fosse (caso tal coisa se desse), disse ele, que não o quisesse Deus, vir-nos-íamos a grande pressa, nas galés, por gentes que vós teríeis prontas para fornecer a nossa frota.

Almirante, disse elRei, o vosso dizer é muito bom, mas o lutador a que uma vez dão uma queda de mamente torna a outra, e vós depois que começásseis de ser vencidos de mamente tornaríeis outra vez lá, e por isso melhor é pelejar com ela adentro do rio de que doutra maneira, pois eu terei essas mesmas gentes prestes, se tal coisa cumprir, para que logo entrem em barcas e batéis.

Senhor, disse Pero Afan, quanto a nós assim parece, porque, em qualquer guisa que nos avenha, melhor poderemos ser ajudados de perto que de longe.

E a mim, disse elRei, assim me praz e mando que assim se faça.

 

130. DAS RAZÕES QUE PERO FERNANDEZ DE VELASCO DISSE PORQUE NÃO ERA BEM DE A SUA FROTA PELEJAR COM A DE PORTUGAL, E DO QUE ELREI RESPONDEU SOBRE ISTO.

 

Acabadas estas razões e havido o conselho como já foi dito, levantou-se Pero Fernandez de Valasco e pôs-se de joelhos ante elRei, e disse nesta guisa:

Senhor, vós haveis tomado conselho e acordo de pelejar com a frota de Portugal aqui no rio em vez de para lá da foz, posto que contra a vontade do Almirante e destes alcaides que com ele vieram, do que a mim parece que não é de fazer grande força em pelejar com ela mais num lugar que no outro, pois que de ambas as partes são dadas muitas razões que cada uns (uns e outros) entendem de haver em sua ajuda, e portanto onde quer que a vossa mercê for disto se fazer ali é bem que se faça, sem mais razoado sobre o assunto. Mas, todavia, quanto a pelejar com ela ou não, a isto digo na vossa mercê, e com o devido respeito a vós e a quantos aqui estão, que tal conselho não é tão bom que não se possa haver outro melhor, por algumas razões segundo a mim se afigura.

Vós, Senhor, ao que parece, entendeis que ao pelejar com esta frota, e vencê-la, por aqui venceis e cobrais todo o reino, mas a coisa não é assim porque nela vem boa parte dos fidalgos de Portugal, e outros que são escudeiros e cidadãos e ainda muitos homens de baixa mão, e morrendo parte deles aqui fica-vos para sempre homizio com todos os seus divedos (parentes), que pode ser que terão boa parte das fortalezas do reino. E vendo eles como vós lhes haveis matado seus filhos, irmãos e parentes, e os senhores por que foram feitos, não vos quererão obedecer e sempre vos farão todo o nojo e desserviço em qualquer guisa que puderem, e ainda que vos assenhoreis dos corpos, nunca jamais podereis cobrar os corações deles nem o seu amor, que é a melhor coisa que o Rei pode haver quando se quer assenhorear dalgum reino novamente, porque, doutra guisa, que prol é ao senhor de haver os corpos dos vassalos se deles não há os corações? Pois não lhes havendo as vontades nunca sereis senhor da terra em assossego e paz, o que vos não cumpria.

Em segundo lugar, vós dissestes que cuidais que NunÁlvares vem na frota com muitas gentes dentre Tejo e Odiana, pelo que parece que ela vem bem armada, e sendo tantos por tantos no combate, ou pouco mais, não há aí vantagem nenhuma, mas tão-somente o bom sucesso da aventura a quem Deus o quiser dar, o qual é muito duvidoso até que seja visto. E ademais é de pensar que eles todos vêm com um só coração para morrer ou vencer, e, posto que eles sejam vencidos, farão tal mortandade na vossa gente, antes de o serem, que isto será a vós mui grande nojo e desserviço, e perda grande ao reino de Castela; por outro lado, se eles vencerem, que é coisa que podia acontecer, então seria já muito maior perda e nojo, e em grande quebranto da vossa gente, e esforço grande da sua.

E para em todas estas coisas vós escolherdes o mais seguro, parece-me que seria melhor de tratardes boa avença com o Mestre, de modo que ele ficasse grande na terra, e vós, senhor do reino, antes de pelejardes com a frota e de se fazer mais qualquer guerra, pois que ele está em tal situação que é de cuidar que tratareis com ele à vossa vontade, e por esta guisa assossegareis melhor os corações de todos eles e não os movereis contra vós mais do que aquilo que estão acesos.

ElRei disse que tal conselho não entendia de tomar, nem moveria ao Mestre nenhuma preitesia, pois bem via ele que a maior parte dos lugares e fidalgos de Portugal tinham a sua voz e eram da parte da Rainha, sua mulher, e que bem mostraria míngua e grande cobardice, quem tais avantagens tinha por mar e por terra sobre o Mestre, se lhe propusesse alguma avença ou outra preitesia, e que todavia ia pelejar com a sua frota e continuar o seu cerco sobre a cidade até que a tomasse e ao reino todo que lhe pertencia.

E se neste lugar alguns escrevem que elRei respondeu que já lhe cometera muitas preitesias, assinalando como e por que guisa, e as respostas que o Mestre dava, a tal escritura havei por patranha e não lhe deis fé por ser muito contrária à verdade. Porque manifesto é que elRei até este tempo nunca lhe cometeu nenhuma avença nem tinha razão de lha cometer, antes havendo desprezo pela voz que ele e a cidade tomaram, supondo que cedo se haviam de todo de perder ele e quantos mantinham o seu bando.

 

131. COMO A FROTA DO PORTO CHEGOU A CASCAIS, E DA MANEIRA QUE O MESTRE LHES MANDOU QUE TIVESSEM.

 

Depois que elRei teve determinado de pelejar com a sua frota dentro do rio, como dissemos, mandou duas galés a fora da foz, como por atalaia, para que ali estivessem aguardando e lhe trouxessem recado quando vissem a frota de Portugal vir.

E jazendo as galés a sete léguas da cidade, onde chamam Matam Palombas, a frota de Portugal apareceu toda junta, assim como vinha, a qual era de dezassete naus e dezassete galés, como ouvistes (o «como ouvistes» há-de referir-se ao facto da frota ser composta por naus e galés, e não ao número de navios, a que agora acresciam 4 galés e 10 naus).

As duas galés, como as viram, vieram logo dar as novas a elRei de Castela e igualmente aos da sua frota, e quando deram as novas aos seus de que a frota de Portugal já se avistava, toda a chusma das galés se levantou em pé, e esgrimiam espadas nuas e outras armas, dando muitos apupos e alaridos e fazendo grandes alegrias, cuidando que no outro dia haviam de vencer a frota, e, tanto que a vencessem, que logo a cidade era tomada, e isto seria a pouco mais duma hora antes do sol-posto. Os da cidade viam os da frota fazer tais alegrias mas não sabiam porque era esta tamanha ledice, e nisto chegou a frota a Cascais nesse mesmo dia depois do comer, que era domingo, aos dezassete dias de Julho da era já nomeada.

A frota pousada naquele lugar, que era a cinco léguas da cidade (distância entre Lisboa e Cascais = 28 km), houveram acordo os capitães dela sobre a maneira que teriam na sua entrada e igualmente quanto à peleja que havia de haver, e uns diziam que, porque elRei de Castela tinha muitas gentes e muito maior frota que eles, não lhes cumpria arredar-se pelo mar, porquanto aí vinham muitos homens de terra que o não haviam em uso (não estavam acostumados ao mar), e podia acontecer que o mar os turvaria, e seguindo-os as naus de Castela, voltariam sobre elas quando vissem jeito, e que isto lhes daria grande avantagem para os vencer. E estas e muitas outras razões falaram uns com os outros, mas nenhuma determinaram de se fazer, e houveram acordo de mandar um batel mui ligeiro que trouxesse novas ao Mestre de como ali estava a frota, e pediam-lhe que maneira lhes mandava que tivessem na sua entrada, e que encaminhasse de os ajudar.

O batel partiu bem de noite, muito remado e com bons paveses, vindo cerca da terra de Almada para os da frota não haverem dele pressentimento, e para falar ao Mestre vinha nele João Ramalho, mercador do Porto bem rico e muito atrevido no mar, e chegou a Lisboa era alto serão. E disse ao Mestre como a frota estava em Cascais e as horas a que tinham chegado, e que vinha saber como era sua mercê de fazerem no outro dia. O Mestre recebeu-o muito bem e folgou muito com estas novas, tal como quantos aí eram presentes, e todos perceberam então que a alegria que mostravam os das galés de Castela fora por causa da vinda da frota, quando souberam que já se avistava.

Então se apartou o Mestre com ele numa câmara (sala) e perguntou-lhe pela frota, como vinha armada e de que guisa, e ele respondeu-lhe que as galés vinham bem armadas, mas que, quanto às naus, algumas vinham armadas comunalmente, e outras minguadas de homens de armas, e que a razão de as galés virem bem armadas era porque o Conde dom Gonçalo vinha por capitão delas, com muitos e bons escudeiros.

Ao Mestre pesou muito disto e, por isso, disse: João Ramalho, vós fareis por esta guisa: eu tenho aqui muitas barcas grandes que mandei corrigir, e todas com bandas à guisa de fustas, e mais algumas naus e barcas que aqui jazem, as quais de manhã bem cedo estarão todas prestes; e pois que o vento é bom e bem para viagem, vós partireis logo com a maré, as galés todas ao longo do rio, e com as naus cerca delas da banda de Almada o mais que puderdes, ou como melhor entenderdes, e não cureis de pelejar coisa nenhuma, mas vinde-vos todos para diante da cidade, e então forneceremos as naus de boa gente e igualmente armaremos estes navios e barcas que aqui estão, e todos juntamente, e eu convosco, iremos depois pelejar com eles. Se, entrementes, porventura as naus de Castela aferrarem com algumas das vossas, defendam-se então o melhor que puderem, e eu terei os navios prestes com assaz de gentes com que vos possa ocorrer, ou porventura me achareis já no mar (estuário), e por este modo seja a vossa vinda.

Então se despediu João Ramalho, e tornou-se o batel da mesma maneira que veio, não sendo sentido da frota e sem outro estorvo que houvesse.

 

132. COMO FOI SABIDO PELA CIDADE QUE A FROTA VINHA, E DO QUE AS GENTES POR ISSO FIZERAM.

 

Quando João Ramalho se despediu do Mestre, embora fosse já alta noite, logo foi sabido pela cidade como viera recado da frota que já estava em Cascais, e como no outro dia havia de entrar e pelejar com a frota de Castela, e quando isto soou e foi sabido por toda a cidade, de quanto cuidado e esperança foram cheios os corações dos moradores dela não é coisa fácil de dizer. Eles haviam grande prazer ao terem a esperança de que, pelejando a sua frota com a de Castela e vencendo-a, ficaria a cidade desabafada da parte do mar e poderiam haver por esta via mantimentos, de que eram muito minguados, e, vencida a frota, haveriam por força de capturar uma parte dela, razão pela qual adviria tal perda aos castelhanos que, porventura, seria azo de elRei de Castela descercar a cidade.

Doutra parte haviam temor e receio, quando consideravam como a frota de Castela era muita mais que a sua, e armada de muitas e boas gentes, e grande a ajuda que podia haver do arraial delRei que tão perto tinha, caso lhes cumprisse; e sendo a frota de Portugal vencida, a grande perda que todos também haveriam de pais e filhos, e maridos e irmãos, e doutros seus parentes que pereceriam pela morte. Além disto, viam outro grande mal que lhes era prestes, convém a saber: a cidade posta em tanto alarme e angustura (aperto) que não somente de todo perderiam a esperança da sua defensão, como ainda, acontecendo-lhes tal coisa, haveriam em breves dias de caírem por força nas sanhosas mãos de tão mortais inimigos, que usariam deles a seu livre talante.

E estes tão forçosos cuidados os fizeram logo levantar a todos, assim homens como mulheres, que não puderam mais dormir, e falando das janelas uns com os outros, tanto nestas coisas como na peleja do seguinte dia, começou-se a gerar por toda a cidade um grande rumor e alvoroço de fala, o qual, durando por grande espaço, foi azo de cedo tangerem às matinas, mormente sendo então as noites pequenas. Nisto começaram as gentes de ir-se às igrejas e mosteiros com candeias acesas nas mãos, fazendo dizer missas e outras devoções com grandes preces e muitas lágrimas.

Qual estado ou modo de viver era então isento deste cuidado? Nenhum, certamente, porque não somente as pessoas leigas como ainda as religiosas eram todas postas sob o grande manto de tal pensamento, como assim era que da vitória ou do seu revés cada uns esperavam de receber parte.

Qual seria o peito tão duro e falto de piedade que não fosse amolentado pela maviosa compaixão ao ver as igrejas cheias de homens e mulheres com os filhos nos braços, todos bradando a Deus que lhes acorresse e que ajudasse a casa de Portugal? Seguramente nenhum, salvo se fosse não airoso português. E assim gastaram boa parte da noite, até de manhã, uns em lágrimas e devotas orações, outros em preparar-se e fazer-se prestes contra os inimigos.

 

133. COMO ALGUMAS NAUS DE PORTUGAL PELEJARAM COM AS DE CASTELA, E FORAM TOMADAS TRÊS DOS PORTUGUESES E MORTO O BOM DO RUI PEREIRA.

 

Muito pouco dormiu o Mestre aquela noite, da mesma forma que as gentes da cidade, como dissemos, e logo que se ergueu a manhã, bem cedo, ouviu a sua missa e veio-se à ribeira com muitos que o aguardavam para armar os navios e barcas com que havia de acorrer à frota. E ao se meterem as gentes neles, e querendo o Mestre entrar numa nau, nasceu entre eles uma doce contenda: os da cidade diziam ao Mestre que não se metesse em nenhum navio, que não era coisa para se consentir que nele se aventurasse a tal perigo, pondo a sua salvação em dúvida, mas que iriam eles pelejar com os inimigos e que ele ficasse na cidade, e não os desamparasse.

O Mestre disse que lhes tinha muito em serviço o seu bom desejo e fiel benquerença, mas que por nenhuma guisa do mundo ficaria na cidade e, ao invés, ele próprio seria presente na peleja, e que confiava em Deus que dela sairia com muita sua honra e de toda a cidade e do reino de Portugal. E eles, quando viram que mais não se podia fazer, disseram que fizesse como fosse sua mercê.

E fazendo-se isto assim, na frota delRei de Castela, que era de quarenta naus e treze galés, como foi manhã, as naus todas meteram as vergas altas e forneceram-se de muitas e boas gentes, e porque a maré vazava e o vento era de calma, as galés levavam para diante as naus grandes à toa (a corda de reboque), e os batéis as outras mais pequenas, e foram-se todas a Restelo-o-Velho, que era dali uma légua pequena, contra donde a frota havia de vir, e puseram-se todas em ordem com as proas viradas para a terra dAlmada, e cada uma tendo o seu proiz em terra (na margem norte), para não garrarem com a maré, e assim estava ordenada a sua batalha. E mais mandou elRei gentes de armas a cavalo cerca dos muros de Santo Agostinho e de São Vicente de Fora, para ficarem os da cidade ocupados em acudir àquela parte e não ajudarem desembargadamente os da frota.

Ora assim foi que sendo pouco mais de hora de terça, e enchendo já a maré, surgiu a frota de Portugal pela ponta de São Gião, que são três léguas da cidade, e vinha ordenada desta guisa.

Vinham cinco naus adiante, e na maior delas, que chamavam a Milheira, vinha Rui Pereira, com sessenta homens de armas e quarenta besteiros consigo; e em outra que chamavam a Estrela, Álvoro Peres de Castro; e na Farinheira, João Gomes da Silva; e na Sangrenta, Airas Gonçalves de Figueiredo; e noutra, Pero Lourenço e Rui Lourenço de Távora; e também as outras traziam os seus capitães, assim como Gil Vasques e Lopo Vasques da Cunha, e João Rodrigues Pereira, e Lopo Dias de Castro, e Nuno Viegas e GonçalEanes do Vale e outros; mas àquelas quatro nomeámos porque só a elas aferraram. Depois destas cinco naus vinham as galés todas juntas, pavesadas e apendoadas, e trás as galés vinham doze naus, e a viração (aragem) ventava tendente ao longo do rio, muito de viagem para poder entrar.

Rui Pereira, varão bem notável em que abundava um maravilhoso e ardido coração, quando viu as naus de Castela estar amarradas pelos cabos em terra, como dissemos, dado que ainda não tinham largado, não sabendo a tenção porque o faziam, veio-as demandar de muito perto, e as outras quatro naus com ele, e, quando viu que os castelhanos não mostravam querença de ir contra eles, fez-se no outro bordo para Almada.

Ora assim foi que ainda a manhã com a sua claridade não alumiava bem a terra e já os muros e lugares altos eram cheios de homens e mulheres que queriam assistir. Neste espaço do dia que até aqui se passou outra coisa não faziam homens e mulheres, desde que amanheceu, senão correr para os muros e lugares altos para terem lugar donde vissem a peleja. Vinham-lhes à memória os seus pais e irmãos que ali traziam e, batendo nos peitos, com os joelhos fincados em terra, rogavam a Deus, chorando, que os ajudasse; as mães induziam os inocentes pequenos que tinham ao colo a que alçassem as mãos para o céu, ensinando-os a que dissessem que prouvesse a Deus de ajudar os portugueses; e outros faziam os seus votos por desvairadas maneiras, chamando a preciosa Mãe de Deus e o mártir são Vicente para que fossem em sua ajuda.

Doutra parte, o Mestre e toda a gente da cidade era ocupada em se fazer prestes para entrar nos navios e barcas que haviam de armar para acorrer à sua frota, de guisa que não somente os homens mancebos mas também as velhas cabeças cobertas de cãs se guarneciam de armas para pelejar. Então entrou o Mestre numa grande e formosa nau que fora uma das que tomaram com os panos dos genoveses de que falámos, e entraram com ele bem quatrocentos homens de armas, mas porque a nau não era lastrada, e entrou mais gente da que devera, não se podia reger como cumpria.

Nos outros navios meteram-se tantas gentes, e igualmente nas barcas bandadas, que se queriam entornar com elas. Uma barca em que ia Gonçalo Gonçalves Borjas desferiu para fazer viagem rumo ao Restelo e a força do vento contrário levou-a a caminho de Sacavém, e isso mesmo aconteceu a outra em que ia Mem Rodrigues de Vasconcelos.

O Mestre quisera também fazer vela, mas vendo a maré e o vento contrário, e que estava muito pior de desferir, saiu-se em terra, e as gentes com ele; as barcas eram navios pequenos e não podiam empecer aos grandes, mormente pelo tempo que lhes era contrário, e desarmaram-se como os navios.

Ora fazendo a nau de Rui Pereira e as outras aquele bordo que dissemos contra Almada, e vindo as galés de Portugal todas a remos em escala quase em frente à frota dos inimigos, e vendo os castelhanos que já as poderiam ter a julavento (sotavento), largaram todos assim como estavam para ir sobre elas, dos quais o primeiro que fez vela foi uma grande nau que chamavam de João dArena, que tinha a meio mastro um batel repleto de homens de armas.

Rui Pereira, quando viu que as naus iam sobre as galés, com a viração que refrescava cada vez mais, temendo que as abordariam e lhes fariam dano, mais com avisamento que por sandia temeridade, como depois alguns disseram, fez-se no outro bordo e veio aferrar com a João dArena, e aferraram com três naus de Portugal cinco de Castela e um carracão, e empacharam-se as guarnições dumas com as outras, de guisa que todas iam numa massa, pelejando não muito devagar e bem sem piedade, e assim os lançou a maré e o vento contra as barrocas de Almada a par de Cacilhas. E este aferramento que Rui Pereira fez com aquelas naus deu grande ajuda às galés de Portugal, porque as primeiras naus de Castela quiseram atacar as galés e, enquanto Rui Pereira aferrou e se empachou com elas, passaram as galés sem que nenhuma das outras naus lhes pudesse empecer nem chegar, mas a cruel fortuna, havendo já grande espaço que durava a peleja, azou então a sua morte deste modo.

Pelejando Rui Pereira quanto um valente e ardido cavaleiro podia pelejar, alçou a cara do bacinete, que não podia bem suportar, e recebeu uma virotada pela testa, do que em pouco espaço exalou aquele fidalgo o espírito que tão cedo não devera ter findado.

Ó nobre e valente varão e verdadeiro português! De quantos então foste prasmado, dizendo eles que pela tua sandia audácia, podendo bem evitar a peleja e ires-te a salvo como as outras naus, te ofereceste a tão mortal perigo! Porém não foi assim, mas como falava o comum povo, dizendo que assim como Jesus Cristo morrera para salvar o mundo todo, assim morrera Rui Pereira para dar azo à salvação dos outros, de cuja morte o Mestre e todos os da cidade tiveram grande sentido.

As doze naus que eram de trás vinham quanto depressa podiam para a cidade, e as de Castela todas após elas, mas não lhes podiam fazer nojo pelo muito vento que traziam. A nau em que vinha Airas Gonçalves desaferrara quando as outras começaram de ser vencidas, e seguiam-na, aferrando com ela, cinco galés, fazendo muito por a tomar, especialmente num sítio que chamam a Cuba por azo do vento que aí se acalmava, segurando-o a altura da terra, e afincavam-na tanto as bestas que toda a nau e o treu (velame) e os aparelhos estavam cheios de virotões, dum modo que era estranho de ver, mas quando a nau se houve fora da sombra daquele monte saiu-se das galés com a maré e o vento que trazia, e escapou e foi-se a salvo.

Oh que formosa coisa era de ver! Em tão pouco espaço, através dum tão estreito rio, ver cinquenta e sete naus e trinta galés, todas armadas e bem corrigidas, com desejo de empecer umas às outras! Oh que dia de tanto cuidado! Mormente dos que na presente peleja punham grande parte da sua esperança, porquanto uma coisa julgava o desejo e outra ordenava a ventura.

As galés de Castela não puderam alcançar as de Portugal, nem estas quiseram aferrar com elas porque cada uma das galés de Castela trazia atrás de si uma nau fornecida de gentes de armas, para lhe socorrer quando tal coisa cumprisse. Nem aferraram outras naus salvo as que dissemos, de que foram tomadas três dos portugueses, sendo mortos alguns duma parte e doutra e todos os demais portugueses presos, boa parte deles feridos. O Mestre andava pela ribeira armado e a pé, com muitos consigo, recebendo bem as gentes da frota, a qual fundeou junto com a terra desde as taracenas (arsenal) até à Porta do Mar, e a de Castela tornou-se para o Restelo.

 

134. COMO TROUXERAM A ELREI UM DOS ESCUDEIROS QUE FORAM PRESOS, E DAS RAZÕES QUE HOUVE COM ELE.

 

Tomadas assim aquelas três naus, e com as outras todas postas a salvo, cessou a peleja de ambas as partes, e os castelhanos começaram a pôr fora das naus, nos batéis, os portugueses que nelas acharam, quer os feridos quer os outros que nenhum cajão (ferimento) houveram, e elRei mandou que levassem ante ele algum dos que então aí foram tomados que não fosse refece pessoa.

Os que foram enviados para isto, ao chegarem à ribeira, viram vir num batel, junto com outros que traziam para terra, Vasco Rodrigues Leitão, que era um dos bons escudeiros que ali vinham, e disseram que aquele abastava para dar novas a elRei do que em sua vontade desejava de saber. Levaram-no então perante elRei, e a primeira coisa que este lhe perguntou foi se vinha NunÁlvares naquela frota, e ele respondeu que não, e então lhe perguntou  quais eram os que vinham nas galés e nas naus, e ele nomeou-lhos a todos pelo nome, e contou-lhe da guisa que tinham pelejado e como fora morto Rui Pereira, e outras coisas que a isto eram pertinentes.

E estando assim a falar com elRei, veio a Rainha para uma câmara junto donde elRei estava, e Vasco Rodrigues, quando a viu, foi-lhe beijar as mãos, e ela, que o bem conhecia, porque era criado de Gonçalo Vasques dAzevedo, olhou-o e disse: Ó Vasco Rodrigues! Aqui sois vós?

Aqui, senhora, disse ele, à mercê de Deus e  vossa.

Passou então a Rainha e, ficando ele assim, tornou-se aonde elRei estava, e elRei, sorrindo-se, disse contra ele: À em hora mala! Que bom beijar de mão este! Vem com a lança na mão contra sua natural senhora, para lhe fazer perder o reino que é seu de direito, e beija-lhe as mãos a modo de escárnio! Não havíeis vós mister senão de quem vos cortasse os beiços e a língua, por tal beijar de mão qual fazeis.

Senhor, disse ele, não no-lo dizem assim a nós, mas fazem-nos entender que considerando o fundamento desta guerra e como entrastes no reino antes do tempo que era posto nos tratos, e britastes as coisas ali contidas, perdestes o direito que nele havíeis, e que nós temos razão e fazemos o que devemos ao defender a nossa terra, pois desta guisa no-la quereis tomar.

Pero Fernandez de Valasco e outros cavaleiros que aí estavam, quando ouviram isto a Vasco Rodrigues, disseram então contra elRei: Tomai-la, Senhor, que vo-la dizem! Isto é o que vos dissemos várias vezes e o nosso conselho não foi crido, e fizestes o que vossa mercê foi. E falando eles nisto, tiraram o Escudeiro da sua presença e levaram-no para junto dos outros prisioneiros que traziam das naus, e tais aí houve que depois foram rendidos (resgatados a dinheiro) ou dados por outros (trocados por gente dos castelhanos que estava presa), e alguns fugiram e vieram-se para a cidade, e outros foram levados nas galés para Sevilha.