O espaço da História

XX - Os bravos de Almada

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».

 

135. PORQUE NÃO PELEJOU MAIS A FROTA COM A DE CASTELA, E COMO ELREI MANDOU COMBATER ALMADA.

 

Tendo o Mestre o sentido e o cuidado de fornecer bem a sua frota de gentes para pelejar contra a de Castela, pelas razões que já foram tocadas, começou a preparar com os da cidade, para a sua defensão e reforço, tudo o que viu que cumpria a tão grande feito, e as contrárias coisas que acontecer podiam houve que as deixar nas mãos da sorte; e esperando tempo oportuno para se pôr isto em obra, sobreveio a elRei de Castela mais frota da que até então tinha, convém a saber: vinte e uma naus e três galés armadas, não havendo ainda uma semana que a peleja das outras naus ocorrera.

Assim que elRei tinha, em toda a sua frota, sessenta e uma naus, afora as carracas, e dezasseis galés e uma galeota, as quais mandou deitar âncora ao longo da cidade desde Cata-que-farás até à Porta da Cruz, segundo a ordenança que tendes ouvida. E vendo o Mestre a desigualdança da frota, e as grandes avantagens que elRei de Castela tinha em semelhante feito, conveio em desistir do que tinha cuidado.

Neste comenos, havendo já cerca de dois meses que a vila de Almada estava cercada, desde aquele dia em que Diego Lopes foi preso como dissemos, era o lugar muito afincado de combates que lhe davam os seus inimigos da parte da terra onde tinham seu alojamento, que da outra, do mar, nenhuma coisa lhe podiam empecer pela grande altura do monte, salvo no tolher da água, que lha vedaram, o qual lhes foi maior guerra que outras armas ou cavas, ou ainda uma poderosa bombarda com que lhes fizeram alguns tiros, de guisa que os que ali dentro estavam, que mantinham a voz do Mestre, começaram a passar coisas ásperas de sofrer, das quais é bem que em breve saibais, pois ainda não foram tocadas.

Ora assim foi que, quando a frota de Castela veio sobre Lisboa, os moradores do lugar se acolheram todos ao castelo, e a dois barcos baleeiros que tinham, nos quais às vezes levavam mantimentos à cidade, quiseram-nos as galés tomar em terra que é abaixo do castelo, onde estavam em seco, e para os impedirem naquela hora foram muitos feridos, e não os puderam levar, e depois queimaram-nos os do lugar para não os cobrarem os castelhanos. Na vila havia assaz de gente que a pudesse defender, além de outros de fora que se acolheram a ela porque se vinham juntar ao Mestre e não o puderam fazer por causa da frota.

Eles tinham mantimentos de pão e vinho e carnes e doutras coisas para seis meses e mais, mas não havia outra água salvo a duma pequena cisterna, e sobre esta foi posta grande guarda, dando-se a cada uma pessoa por dia uma canada (1,5 litros) e não mais. E não embargando isto, os da vila saíam cá fora a esperar os castelhanos em certos passos, os quais andavam à forragem pelo termo e em Sesimbra, e matavam e feriam neles de tal forma que já não ousavam de ir senão muitos juntos, e também esperavam os que iam nos batéis a Arrentela e à Amora para roubar, de guisa que um dia mataram a mais de trinta, todos juntos, num lameiro, querendo-se eles recolher aos batéis e não conhecendo o local; e esta saída e tornada, que faziam quando queriam, era pela porta da barroca a que chamam Meijonfrio e que está contra o mar.

E sendo muitas vezes combatida e não lhe podendo fazer coisa de que grande nojo recebesse, mandou elRei que lhe fizessem uma cava por sob a terra, a qual começaram de longe, no arrabalde, e que ia direita a uma alta torre que está sobre a porta do castelo, para a pôr em contos (meter-lhe escoras) e com fogo a derribar, segundo se costuma, e os de dentro souberam disto parte. E onde os castelhanos cuidaram que iam fundo por sob a terra, foram sair com a boca da cava à cárcova (vala) da barbacã, que os de dentro já tinham cavado muito mais funda do que dantes era, e ali pelejaram uns com os outros e foi morto o mestre da cava, e feridos alguns duma parte e doutra, de modo que não se puderam dela mais aproveitar, a qual hoje em dia ainda lá está e pode-se ver.

ElRei houve grande azedume quando isto soube, e foi em pessoa à dita vila com parte das suas gentes e capitães para a poder combater à sua vontade, e mandou que lhe fizessem no campanário da igreja de Santiago, que é perto do dito castelo, um cadafalso forte de madeira donde ele visse toda a vila e como se a combatia.

E quando foi o dia do combate, pôs-se elRei naquele cadafalso e fez toda a sua gente combater o lugar todo à volta pelo lado da terra, porque da parte do mar não podia ser pela grande aspereza da altura do monte, e foi combatido com gentes de armas e de pé, e trons e bestaria, e fundas de manganela e mantas e  outras artelharias de combate desde a hora de terça até depois do meio-dia. Os da vila, sentindo que elRei estava naquele cadafalso, se bem que dele não houvessem combate salvo de setas, resolveram atirar-lhe com um trom, e quando elRei, enfadado, se partia para comer, sendo na igreja, disparou o trom e deu no cadafalso (andaime), e matou dois homens e feriu três, e mandou então elRei afastar as gentes e não combateram mais por aquela vez; e foram mortos e feridos alguns castelhanos, e, dos portugueses, mortos um filho de João Lobato e Diego Domingues, filho de Domingos de Santarém, e outros foram feridos de pedras e de setas, porque dos trons que os inimigos queriam deitar lá para dentro não recebiam dano, visto que todos passavam e iam dar na água por azo da estreitura do lugar. Depois mandou elRei levar uma bombarda que deitava uma pedra que pesava mais de cinco quintais (1 quintal maior = 44 kg), e a primeira pedra que lançou foi muito baixa e não fez nenhum nojo, e ao segundo tiro, que não empeceu nada, quebrou de tal guisa que não se pôde mais aproveitar.

Vendo elRei que não se queriam dar por nenhuma guisa, prometeu de nunca preitear com eles, mas que todos andassem à espada (fossem passados a fio de espada), e deixou sobre o lugar Pero Sarmento e João Rodriguez de Castanheda com gentes em grande abundança, e mandou-lhes que os combatessem a cada dia, e ordenou de partir-se dali.

 

 

136. DAS COISAS QUE PASSAVAM OS DE ALMADA POR MINGUA DE ÁGUA.

 

Tornou-se elRei para o seu arraial, jurando e prometendo que nunca lhes daria vagar de serem combatidos até que por força fossem entrados sem nenhuma preitesia.

Onde sabei que dentro da vila havia uns quarenta cavalos, afora outras bestas de serventia, e quando a água lhes foi minguando, houveram conselho de não darem de beber às bestas, e foi tanta a sede nelas que ali onde mijavam os homens iam as bestas chuchar e comiam daquela terra molhada. Então ordenaram de os lançar fora do lugar para os não verem morrer, e de maneira a que os castelhanos não se prestassem deles, lançaram-nos todos pela barroca abaixo contra o mar, e cada um lançava o seu, e assim foram as bestas todas mortas. E por míngua da água que não tinham, amassavam o pão com vinho e nele igualmente coziam a carne e o pescado, e comiam o pão enquanto era quente, porque logo que era frio não o podia ninguém comer, e assim com outras viandas.

Nisto acabou a água da cisterna, e foi-lhes forçoso passar a beber outra muito de aborrecer, convém a saber: a que jazia na alcárcova e que chovera durante o Inverno, onde as mulheres, antes de serem cercados, lavavam as roupas infundiçadas e os trapos dos meninos, a qual era verde e muito suja, e jaziam ali bestas mortas e cães e gatos, que era nojosa coisa de ver, e de noite saíam homens de dentro, por cordas, a furtar daquela água. E quando os castelhanos souberam que dessa guisa a tomavam, trabalharam-se de a guardar, e muitas vezes aconteceu, quer de noite quer de dia, serem mortos e feridos por causa dela alguns duma parte e doutra; e esta água coziam-na (ferviam-na), e cozida a bebiam e amassavam com ela.

Depois que esta água minguou, trabalharam-se de haver da água do mar (do estuário do Tejo), e de tinas que tinham postas na ribeira para apanharem água doce, e desciam pela barroca por um caminho que fizeram para tomar daquela água, e ao primeiro dia trouxeram-na à sua vontade, e os castelhanos, como o souberam, puseram guarda nela. E os da vila, indo lá, acharam os castelhanos que a guardavam, e eles não eram mais que dezassete e, dos inimigos, eram bem um cento os que esperavam escondidos entre os penedos, e pelejando por causa dessa água foram mortos três portugueses e os restantes catorze ficaram muito mal feridos de setas e de dardos, e não puderam levar mais que dois odres meios de água, e os castelhanos quebraram-lhes as tinas.

Nisto morria já a gente com sede, tanto homens e mulheres como moços pequenos, e alguns dos que a ela se haviam acolhido lançavam-se fora da vila de noite e fugiam para conservar as suas vidas. E faziam do lugar toda a noite ao Mestre muitas almenaras de fogo com que lhe davam a entender o grande afincamento em que eram postos, porque doutro modo não lho podiam fazer saber, sendo assim cercados por mar e por terra.

O Mestre e os da cidade bem entendiam o grande trabalho em que eles eram postos, mas não lhes podiam prover de nenhum acorro, contudo o Mestre mandou certa noite uma barca ligeira com um trom que atirava muito, e pólvora (I), e bestas e outras armas para defesa, e aconteceu que foi aportar onde jaziam batéis de Castela e foi filhada com as armas, e presos todos os que a levavam. Então um cavaleiro gascão que dava pelo nome de mosse Ymam, muito homem de prol e bom homem de armas, tinha cativo Afonso Galo, que era Regedor da vila e fora aprisionado aquando daquela primeira escaramuça em que também foi preso Diego Lopes Pacheco. E este cavaleiro trouxe ali atado por uma corda Afonso Galo, até à beira do castelo, e disse aos de dentro que bem sabiam como aquela vila, e todo o reino de Portugal, era de direito delRei de Castela, e como muitos lugares do reino se lhe deram e davam, mas que eles com perfia (teimosia e deslealdade) não queriam fazer como faziam os outros, e que, ao invés, fizessem de guisa a não quererem ser traidores e dessem a vila a elRei de Castela, que lhes faria por isso muitas mercês. E que ele trazia diante deles aquele Afonso Galo que era Regedor da vila, e que fizessem o que ele lhes dizia senão que havia por força o dito Afonso Galo de morrer, e que não quisessem ver a sua morte nem a dos outros que eram presos, que elRei os mandava matar a todos.

Os da vila responderam que bem os podia elRei matar, se quisesse, mas que à vila não a dariam por coisa alguma que fosse, e que se arredasse dali com sua honra e se fosse com o seu prisioneiro. E insistindo ele nas suas razões para que todavia dessem a vila a elRei, fizeram prestes um trom pequeno e atiraram-lhe dentre as ameias, e foi tal a sua ventura que o tiro deu com ele morto por terra, e ficou Afonso Galo vivo e em pé, da qual morte elRei houve grande queixume, jurando que todos eles haviam de morrer à espada.

 

Nota (I): Bom, dado que, ademais dos tiros certeiros a curta distância no palanque do rei castelhano e na pessoazinha de monsieur Ymam, também agora aqui descobrimos a pólvora, parece-nos não haver dúvidas de que Fernão Lopes, quando fala de bombardas e trons, está-se mesmo a referir a armas de fogo e ao respectivo uso antes da batalha de Aljubarrota. Assim sendo, não tem nenhum fundamento no texto de Lopes a velha tese estapafúrdia de que os portugueses teriam visto pela primeira vez um canhão naquela batalha.

 

137. COMO OS DE ALMADA DERAM A VILA A ELREI DE CASTELA.

 

Sendo os de Almada em tão grande aperto por míngua da água que não podiam haver, acordaram em que mandassem recado ao Mestre, mas não tinham remédio nem conselho de como o pudessem mandar. De igual modo, o Mestre, que bem suspeitava das atribulações em que eram postos, desejava muito de saber em que ponto eram os seus feitos, mas não tinha jeito nem sabia maneira de como disso pudesse haver cumprida certidão. Então um homem dAlmada que viera na frota do Porto disse que lhe levaria a nado o recado, se o Mestre lho quisesse mandar.

Ao Mestre prouve disto muito, e disse-lhe por palavras as coisas que lhes havia de dizer, e mais lhes escreveu por carta o que entendeu para seu serviço, e uma noite chegou aquele homem à ribeira do monte e subiu por aquele escuso caminho da barroca que bem conhecia, onde chamam Meijonfrio, e falando aos do castelo que velavam, espantaram-se estes quando o ouviram e, conhecendo-o, abriram-lhe a porta, folgando muito com ele, e quando viram que viera a nado houveram-no para muito; e a conclusão do recado, por palavra e por escrito, era que lhe mandassem dizer em que ponto estavam, e que se aguentassem o mais que pudessem. E eles lhe fizeram saber quanto haviam passado até ali, e que não tinham água nenhuma nem sabiam que remédio fazer às suas vidas, e com este recado se tornou logo de noite aquele homem a nado.

Vistos pelo Mestre os seus padecimentos a que não se podia pôr remédio, ao cabo de três dias tornou aquele homem outra vez com recado em que o Mestre mandava dizer que lhe pesava muito do que tinham padecido, e, pois que assim era, que preiteassem o melhor que pudessem com elRei de Castela e lhe entregassem o lugar. Então decidiram mandar dois homens bons com recado a elRei de como queriam ser seus e lhe dar a vila; porém, primeiro que isso, nadou aquele homem o rio que é entre Lisboa e Almada seis vezes a levar e trazer respostas, e sempre de noite.

elRei sabia já por um homem que fora tomado, dos que fugiam do lugar, como não tinham água nenhuma, e que morreram muitas crianças e morriam mais a cada dia, e que haviam por força de se darem ou morrerem todos, e tinha vontade de não preitear com eles, e tal resposta deu aos que lá foram. E havendo já três dias que lá andavam, elRei não os queria ver e, querendo-se tornar, mandou-os chamar a Rainha, e com eles pediu a elRei, por mercê, que lhes perdoasse e preiteasse com eles.

E a elRei prouve disto, e foi a preitesia que elRei lhes segurava os corpos e haveres, e que cada um estivesse em sua casa e fosse senhor do seu sem lhes ser tomada nenhuma coisa, e assim lho cumpriu. E aos dois dias depois do trato, primeiro dia de Agosto, elRei e a rainha foram em galés a Almada, e foi-lhe entregue a vila, e as chaves dela, sendo ele recebido por senhor; mas padecendo a vila primeiro, como dissemos, tantos apertos e atribulações tais como nenhum outro lugar de Portugal padeceu pelo serviço do Mestre e por manter a sua voz.

ElRei e a Rainha comeram dentro da vila, e ele chamou os do lugar, dizendo-lhes que lhe fossem leais e que lhes daria muitas mercês, e alguns lhe pediram algumas coisas, e ele outorgou-lhas, e mandou que os tabeliães escrevessem em seu nome e se chamassem seus, e deixou por juízes os que o eram antes, e pôs na vila como regedor um cavaleiro que chamavam João Bravo, e para guarda dela as gentes e os capitães que antes a tinham cercada, e logo nesse dia se tornou para o seu arraial.