XXI - Traição, combates e peste no cerco de Lisboa
A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».
138. COMO FOI DESCOBERTO AO MESTRE O QUE DOM PEDRO TINHA ORDENADO DE FAZER, E DA MANEIRA QUE EM ISTO TEVE.
Muitas graças fez o Senhor Deus ao Mestre no começo dos seus bons feitos, entre as quais uma delas foi descobrir-lhe determinadas traições que contra ele cuidavam alguns tais de que muito fiava, porque em muitos com travesso (enviesado) desejo e pérfido coração que para ele vinham, tanto pessoas grandes como doutra condição, mostrando-lhe estes sinal de amor e serviço, a sua perseverança era de pouca dura, conforme em seus lugares vereis.
Doutros tinha ele não boa suspeita, fazendo-lhes no entanto grandes mercês para mudarem a sua má vontade; porém, deixando eles pouco a pouco o fingimento começado, caíam depois em grande míngua e vergonhosa repreensão. Um entre os quais, segundo se afirma, que nódoa tomou de tal erro, foi dom Pedro, filho do Conde dArraiolos dom Álvoro Peres de Castro, que era já morto segundo ouvistes, e que era casado com uma filha a que chamavam dona Lionor do Conde dom João Afonso Telo e da Condessa dona Guiomar, mas quanto ao modo como o Mestre disto soube parte (teve conhecimento) escreve-se por muitas guisas.
Uns dizem que havendo este dom Pedro de Castro fala feita com elRei de Castela, em que também entrava João Lourenço da Cunha, para que lhe desse entrada na cidade pela sua quadrilha (troço da muralha), que disto falou com Rui Freire, porque era galego como ele, pensando que lhe guardaria segredo, e que Rui Freire o descobriu ao Mestre. O qual, quando viu dom Pedro, estando presentes muitos fidalgos, lhe disse de praça como aquilo lhe fora dito e por quem, e que dom Pedro respondeu que Rui Freire mentia e que lhe poria o corpo (o desafiava para duelo), e que dizendo o outro (Rui Freire) que bem lhe prazia e outras razões a isto pertencentes, o Mestre lhes disse que se calassem e não curou mais do assunto, e que assim cessou este feito.
Mas tal escrever é muito errado, e por duas breves razões: a primeira, porque não é de cuidar que um senhor tão sisudo e discreto como o Mestre, ouvindo uma tão grave coisa como esta, que era a perda do reino, e ademais para sua desonra com grande cajão de morte, a fosse descobrir desta guisa a quem em puridade (em segredo) lha dissesse. A outra, que não curasse mais disto, e que o deixasse assim passar sem pena, como se fosse feito de jogo (por brincadeira).
Outros dizem que João Lourenço da Cunha e mais alguns, junto com ele, andavam para matar o Mestre com peçonha ou por outra guisa, planeando dar a cidade a elRei de Castela, e que desta traição fazia parte este dom Pedro, que era o principal deles por causa da guarda de Santo Agostinho, que era sua, por cuja porta elRei e os seus haviam de entrar.
Mas um outro autor a cujas razões nós mais acostamos (nos chegamos mais), falando neste passo, diz assim: Que o conde dom Álvoro Peres e seu filho, dom Pedro de Castro, estando com o Mestre neste cerco, haviam a guarda dos muros desde a porta de Santo André até à porta de Santo Agostinho, tendo consigo pouco mais de cem lanças, afora outros homens de armas da cidade, para a guarda daquela quadrilha. E morto o Conde, como dissemos, ficou ele com as suas gentes e as de seu pai naquela mesma guarda, e que o Mestre soube por Rui Freire tudo o que dom Pedro neste feito tinha previsto de fazer e quando, mas que o Mestre não o revelou; e que de Rui Freire dizer isto ao Mestre havia muito forte razão, pois era filho do Mestre de Christos dom Nuno Freire, que fora aio do Mestre de Avis em sendo este moço, por a qual coisa o Mestre lhe tinha grande boa vontade. Diz o citado autor, além disso, que entretanto veio a adoecer duma dor de que depois morreu João Lourenço da Cunha, marido que fora da Rainha dona Lionor, e quando se confessou dos seus pecados disse ao seu abade de como ele sabia de muitas coisas que eram em dano da cidade e do Mestre, e também de todo o reino, e o confessor disse que o não absolveria nem lhe daria pendença (penitência) enquanto que as não dissesse ao Mestre; então foi o Mestre chamado e João Lourenço falou com ele, e descobriu-lhe muitas coisas de que o Mestre se avisou.
Uma entre as quais foi que dom Pedro de Castro, com todos os seus vassalos, por grande quantidade de ouro e prata que de elRei havia de receber, lhe tinha vendida a dita cidade, e que aos quinze dias daquele mês de Agosto, na noite da Assunção da Benta Virgem, havia de dar entrada às gentes delRei, as quais iriam subir por escadas postas nos muros que cumpria, e que os ferros para elas tinham sido feitos em Alenquer. E que o sinal certo das horas a que viessem havia de ser uma candeia posta numa seteira do muro, do qual sinal sabendo o Mestre, mandou pôr gentes em guarda à beira daquele lugar, as quais receberam os castelhanos, quando chegaram, com setas e pedras e outras coisas de que lhes muito não prouve, e dom Pedro foi logo nesse serão preso, e todos os seus com ele.
No dia seguinte, quando foi sabido pela cidade como isto acontecera, bradavam todos ao Mestre que o mandasse matar de morte cruel, mas ele apacificou-os com boas palavras, sem lhe ser feito mais nojo, e daí a uma semana mandou lançar fora da cidade todos os seus vassalos e chegados, tomando-lhes as suas armas e quanto haviam, e ainda alguns outros galegos e castelhanos, e dom Pedro ficou bem preso e arrecadado.
E pois que temos aqui a pena, e para não turvarmos depois a ordem do que havemos de falar, digamos logo um outro bom jogo de Afonso Anriquez que veio na frota, irmão do conde dom Pedro que ficou no Porto, o qual acompanhava muito com João Rodrigues de Sá, mostrando-lhe grande amizade. E aconteceu assim um dia que Afonso Anriquez, tendo vontade de se lançar com os castelhanos, disse a João Rodrigues que fossem mirar o arraial delRei de Castela; João Rodrigues disse que lhe prazia e cavalgaram ambos, João Rodrigues em cima dum bom cavalo castanho e Afonso Anriquez em cima duma mula; e estando ambos olhando, disse Afonso Anriquez a João Rodrigues: Irmão, empresta-me esse cavalo e irei falar àqueles meus parentes, e para lhes falar mais seguro quero ir em cima dele, ao invés de nesta mula.
João Rodrigues, muito descuidado do que ele tinha em vontade de fazer, desceu-se logo da montada e cavalgou nela Afonso Anriquez; e quando foi em cima do cavalo falou a João Rodrigues, dizendo: Irmão, queda-te com Deus, que eu quero-me ir para os meus parentes; então chegou as pernas ao cavalo e fugiu para o arraial dos castelhanos.
João Rodrigues ficou espantado e teve-se por escarnecido dele, e veio-se ao Mestre, que achou nas taracenas, e contou-lhe o que lhe aviera com ele, desculpando-se que de tal coisa não sabia parte (não tinha conhecimento).
O Mestre, que bem conhecia João Rodrigues por bom e verdadeiro português, filhou-se de rir e disse que o havia por sem culpa.
Onde sabei que Afonso Anriquez, quando se lançou, não levou consigo nenhum dos seus que com ele viviam, o que todos lhe tiveram a mal, e os seus choravam porque daquela guisa se fora. E o seu irmão lançava gajes (desafios) na presença do Mestre, dizendo que a qualquer que afirmasse que ele disto sabia parte lhe poria o corpo (o desafiava), e o Mestre ria dizendo-lhe que não curasse daquela ida, que dele não tinha nenhuma suspeita.
Nisto chamou o Mestre todos os da cidade, e ordenaram de se tirar um pedido de cem mil livras da moeda antiga para paga do soldo das gentes de armas, do qual não foram escusados clérigos nem frades, nem pessoa alguma por honrada que fosse, e afora o que cada um clérigo pagava por si, segundo a renda do seu benefício, todas as igrejas e mosteiros deram ajuda em prata de cruzes e cálices e outros ornamentos para fazer a dita moeda.
Seguiu-se então que aos dezanove dias do dito mês foi o sol em eclipse, ao meio-dia, e perdeu a sua claridade, estando nessa altura em signo de Leo, a qual coisa foi espanto para todos, e diziam os astrólogos que significava em casa real grande mortandade de gente honrada, e assim aconteceu depois nos grandes senhores delRei de Castela, conforme adiante ouvireis.
139. COMO AS GALÉS DE CASTELA QUISERAM TOMAR AS DE PORTUGAL, E DO QUE SOBRE ISSO ACONTECEU.
Jazendo as naus de Castela daquela maneira, e as galés cerca de Santos, vogavam muitas vezes diante da cidade contra Enxobregas, ao longo do rio, lançando muitos trons e virotões à frota de Portugal que estava atracada cerca dos muros, convém a saber: as naus junto com o muro do Paço da Madeira, tendo os mastros de través e outras defensões diante por causa dos trons que lhes atiravam, e as galés logo cerca, porém prazia a Deus que nenhum trom lhes empecia, nem igualmente às gentes de dentro.
ElRei de Castela ia às vezes nelas para olhar e avaliar a cidade; depois as galés tornavam-se e elRei ia-se para o seu arraial. E vendo elRei como as galés de Portugal nadavam com a maré quando esta vinha, e na baixa-mar ficavam em seco, e ademais as poucas gentes que nelas estavam de guarda, cuidou em como as poderia tomar a todas, e mandou chamar patrões e alcaides (das naus e galés) e outros que disto haviam conhecimento, e descobriu-lhes a sua tenção e o que sobre isto havia cuidado.
E louvando eles as razões delRei e quanto sobre isto pensara, deram-nas logo por tomadas da guisa que elRei o dizia, e fizeram-lhe a pergunta de se ele queria que lhas queimassem todas ou que as trouxessem como jaziam, e elRei disse que não lhe queimassem as suas galés mas que lhas trouxessem o mais em salvo que ser pudesse: Que as galés, disse elRei, são minhas, e não as quero dessa guisa perder; e isto dizia ele dando entender que as galés e o reino todo era seu, com quanto nele havia.
Então esses capitães e homens mareantes com quem elRei isto falou decidiram desta guisa: que aos vinte e sete dias daquele mês dAgosto, em que seriam as águas vivas e a maré-cheia na alva da manhã, as gentes das galés se armassem todas de noite, levando poucos galeotes e muitos besteiros e homens de armas, e que todos os grandes batéis das naus se preparassem e fizessem prestes, e isto foi assim calada e assossegadamente feito para que não fosse visto nem sentido pelos da cidade; e que o Conde de Mayorgas, com quatrocentos homens de armas e peões e besteiros, combatesse desde a porta de Santa Catelina até Cata-que-farás e pela ribeira, e, se pudessem, que cobrassem a estacada; e que àquela porta combatessem quinhentas ou seiscentas lanças, com muitos pavesados e bestaria, mostrando que queriam por ali atacar, e que, de facto, atacassem rijamente, para obrigar os da cidade a acorrer a desvairados lugares. E o conselho era muito bom se as gentes da cidade fossem poucas, dispersando-as por muitas partes, mas estavam aí tantas companhas e tão abastantes para a defender que, ainda que toda em redor se pudesse combater, o que não podia ser, havia aí bem quem lhes estorvasse o assalto.
Veio aquele sábado em que tinham aprazado de combater e, bem cedo pela manhã, quando o sol queria sair, começaram as galés de vogar da par de Santos, onde fundeavam, ao longo da ribeira, mais os batéis pavesados e armados como cumpria. O Conde de Mayorgas vinha igualmente, por terra, com muitas gentes para combater ao longo do muro, e outras muitas foram à porta de Santa Catelina, segundo era ordenado, e tudo isto foi feito mui trigosamente.
As velas (sentinelas) da cidade, quando isto viram, começaram logo a repicar na Sé e também nas quadrilhas onde havia sinos, não tendo porém suspeita nenhuma do que as galés queriam fazer e pensando, ao invés, que remariam ao longo do rio segundo o que dantes haviam em usança. E por causa das gentes que por terra vinham, começou-se a acudir aos muros daquele lado por onde os inimigos faziam mostrança que queriam combater, dormindo então ainda muitos da cidade.
As galés, umas contra as outras, jaziam bem juntas e todas com os remos varados, e cada um dos fidalgos capitães tinha o cuidado da sua, nas quais sempre deixavam gente de resguardo, como melhor entendiam. As galés dos castelhanos, vindo a direito da cidade, remaram todas rijo para terra e, deixando as âncoras por de ré, começaram a aferrar com as portuguesas pela proa, e iam os batéis armados entre elas, por tal modo que subitamente e de improviso as pudessem todas tomar, porém não puderam aferrar com algumas.
E assim como aferraram, com a muita bestaria e homens de armas que traziam, magoavam muito mal essas poucas gentes e galeotes que nelas estavam desprevenidos para tal defensão, de guisa que, embora as defendessem o melhor que podiam, já muitos deles feridos, e outros, sem feridas, começavam a desamparar as galés. Os da cidade acudiam rijamente para os ajudar, mas davam-lhes grande estorvo as portas cerradas cerca das galés, e não podiam vir à ribeira salvo por porta dali alongada (longe dali).
O Mestre, que estava nos paços, quando ouviu repicar e viu como as galés aferravam com as suas, veio a cavalo muito célere à ribeira com muitos bons homens de armas que o seguiam, e entrou pela porta da Taracena muito contra a vontade do Conde dom Gonçalo que, com covarde coração, lhe dizia que não saísse lá fora até que visse que coisa era aquela. O Mestre não curou do seu dito e meteu-se pela ribeira, dizendo aos seus que entrassem nas galés e esforçando-os quanto podia; as gentes recresciam cada vez mais, cobrando esforço com a sua presença, por azo da qual tomavam maior audácia em as defender quanto podiam. Uma galé em que entrou Afonso Furtado jazia de través, e não ao longo, e duas galés vieram para aferrar com ela, e ele fez fazer banda contra terra, e a banda contra o mar ficou alta e as duas galés deram-lhe com as proas no costado, e a galé defendeu-se muito bem porque tinha a banda sobre eles, e feriu assaz de gente das galés inimigas e não foi tomada.
Entretanto uma galé de Castela estava aferrada com outra de Portugal de que era patrão Fernão Nunes Homem, Comendador da Ordem de Avis, e ela foi entrada pela força dos inimigos, mas isto só depois que um bom cavaleiro castelhano que andava com o Mestre, Afonso Guterrez de Padilha, foi derribado com feridas. Porque enquanto ele esteve na proa com uma lança nas mãos e de bacinete sem cara (sem viseira), nenhum pôde nela entrar, por muito que disso se trabalhasse, e tendo já quatro virotões chantados (cravados) no rosto, e pelejando assim com eles, alçou o braço para fazer um golpe e veio um dardo nesse instante, o qual, entrando por sob o braço, lhe apontou dentro na boca, e retido por tal ferida deu lugar a lhe darem outras com que foi forçado a cair da proa abaixo, e então entraram os castelhanos a mau grado dos que a defendiam, chegando pela força bem até metade (da galé).
As gentes da ribeira, quando viram que nenhuma outra galé era entrada senão esta, e que estava em ponto de se perder, começaram a bradar aos do muro que lhes deitassem machados para a arrombar, de modo a que a não levassem os castelhanos, e estes foram-lhes deitados.
E começando de dar na galé, era aí presente João Rodrigues de Sá, varão de notável fama e muito bom homem de armas, e vendo tão apressurada peleja dentro da galé, como cavaleiro mui prestes e de maravilhosa ardideza, foi por cima dos remos para lhes acorrer, valendo-se dos pés e das mãos, com a lança sob si de través, e deixou a galé em que estava, e um seu homem de pé com ele, e entrou na que os castelhanos tomavam, e com a lança nas mãos, pela coxia ao longo, começou de o fazer de tal maneira que aos portugueses era grande prazer de ver e aos inimigos grave de suportar. Ele fez desamparar a galé a quantos castelhanos eram dentro dela, sendo alguns deles feridos e mortos, e não querendo os outros esperar os seus golpes, de guisa que a galé foi desempachada dos que tomada a tinham pela força.
Nisto acendia-se cada vez mais a peleja, a qual duma parte e doutra era muito brava e de grande arruído, assim de brados de homens e sons de trombetas e repiques de sinos como do chamar em altas vozes: Portugal e são Jorge! E os outros: Castilha! Santiago! E não eram postos em menos aperto do que como se já a cidade tivesse parte dos seus inimigos dentro do muro e outros provassem (se aprestassem) para entrar.
Bradava o Mestre que fizessem algumas coisas que via que cumpriam urgentemente, e o grande arruído das gentes e o som das armas com que pelejavam empachava-lhe tanto o seu mandado que parecia que mandava em vão.
Duas coisas faziam ser esta peleja mui forte e descomunal da parte dos castelhanos: a primeira, o grande desejo de tomarem a galés por que vinham, que ligeiramente cuidavam de cobrar como prometeram a elRei seu senhor; a segunda, o determinado tempo que tinham para pelejarem, que mais durar não podia que enquanto as galés pudessem nadar (vogar, não ficassem em seco com a baixa-mar). Da parte dos portugueses outrossim era a peleja mui ferida, tendo-se todos por mui escarnecidos perdendo-as daquele jeito por desapercebimento.
E posto que nós louvemos João Rodrigues e Afonso Guterrez, porque eles faziam tão boas façanhas, não entendais vós, porém, que eles sós defendiam as galés sem outrem pelejar por as defender, mas estes e mais alguns fidalgos, que aqui não nomeamos, tinham tão grande avantagem face aos outros homens de armas como os bravos touros metidos em curro na companha de manso gado.
O Mestre andava a cavalo pela ribeira, como dissemos, fazendo entrar as gentes nas galés, metendo-se no mar com afincamento, e estando na água veio um virotão e deu-lhe na espádua do cavalo, e o cavalo, sentindo-se ferido, caiu logo com ele na água, e foi o Mestre sob a água armado como andava com um bacinete sem cara, e como a gente era toda ocupada, cada um onde melhor podia, não o viram, e sem ser acorrido por ninguém, logo que se sentiu debaixo de água fora da besta, pôs as mãos nos joelhos e alçou-se em pé, e achou-se tão fundo que a água lhe dava por sob a barba, e quando se viu assim saiu-se para fora da água, e alguns que então o viram chegaram-se logo a ele e trouxeram-lhe uma mula em que cavalgou, e ele tornou ao seu primeiro ofício de esforçar os seus e de os fazer entrar nas galés para as defender.
Ora assim aveio que, por acaso, a esta galé de Castela de que era patrão Vasco Perez de Meira e que entrou a de Portugal que foi liberta por João Rodrigues, quando juntou ao aferrar, caiu a mão (pata) da sua âncora pela argola, a que chamam anete, da âncora da galé com que então aferrou, e aquela galé de Portugal jazia a direito da porta do Açougue e tinha um proiz (cabo) que entrava por uma larga agulheira (fresta) adentro dos muros da cidade, e vendo um homem, enquanto pelejavam, como as âncoras assim estavam empachadas, meteu-se num cópano (pequeno barco) preso à banda da galé e foi amarrar bem uma âncora com a outra. O muito sem medo e bom do João Rodrigues, embora estivesse já mui ferido, não se contentou daquilo que tinha feito, no que era assaz de louvar por tolher daquele jeito aos castelhanos a galé que tinham tomada, mas ainda se trabalhou de lhes filhar por força a sua, e de tal guisa pelejou, com outros que o ajudavam, que a mau grado dos inimigos saltou para dentro da sua galé. Os castelhanos, vendo como se venciam, quiseram desaferrar e não podiam, pois era aquele lugar muito defendido e não prestava todo o seu afã, nem sabiam parte (se apercebiam) de que estavam empachados daquela maneira. Então começaram os portugueses de bradar aos do muro que tirassem pelo proiz da sua galé, e começando de tirar (a puxar o cabo), eram os homens e mulheres tantos naquele trabalho que não achavam onde pôr mão, e tiravam ambas as galés para terra. Nisto a galé era vencida cada vez mais, deitando-se muitos galeotes à água antes que fossem mortos ou cativos. Vasco Perez, quando viu que a galé se perdia de todo e não se podia salvar por nenhuma guisa, desceu-se pela popa, assim armado como andava, e pôs os pés na beira do cópano e emborcou-se com ele na água (virou o barco) e ali morreu; e assim se finaram muitos outros, os quais, depois que a maré vazou, ficavam em seco; e, a parte deles, tiravam-nos com redes.
As outras galés continuaram a pelejar até que o cansaço e a desesperação de não poder cumprir o que começado tinham as fez afastar a fora, e deixaram-se jazer ao largo, muito anojados do que lhes acontecera, pensando os que eram feridos. E foram presos e mortos muitos castelhanos e, dos da cidade, até dez, e ferido João Rodrigues de Sá de quinze feridas, duas sendo no rosto. E acharam na galé que assim foi tomada prisioneiros portugueses por sob a tilha (coberta do navio), e cartas que alguns mandavam de Sevilha aos seus amigos para que lhes levassem das moças chamorras que eram boas servidoras.
Das gentes que vieram por terra e pela ribeira, como dissemos, para combater, não empeceu o seu trabalho coisa que nojo fizesse, que mais era feito pela turvação de confundir as gentes do que para proveito que nisto sentissem, e depois as pedradas e setas foram tantas de cima do muro que houveram por seu barato de se afastarem dele e da estacada da ribeira.
O Mestre andava vendo aqueles cavaleiros e escudeiros que eram feridos, esforçando-os com boas palavras e fazendo-lhes mercê, e todos davam graças a Deus que os assim ajudara a defender de seus inimigos.
140. DALGUMAS COISAS QUE ACONTECIAM AOS DA CIDADE COM OS DO ARRAIAL, JAZENDO CERCADOS.
Passado aquele dia de grande trabalho, assim por mar como por terra, e vendo o Mestre e os da cidade como aquilo lhes fora feito por arte, não havendo eles disso nenhuma suspeita, puseram nas galés e noutras coisas melhor resguardo e avisamento. E tendo assim elRei a cidade cercada com grande multidão de gentes, e ademais a ribeira cheia e ocupada pelas suas naves e galés, com o que lhes embargava toda a ajuda e mantimento que podiam haver, começou a cidade a sentir maior gasto do que dantes havia por causa das gentes que vieram na frota, de modo que era crença delRei, sabendo bem disto parte, que a havia de tomar pela fome.
Ora mantendo-se assim a cidade o melhor que podia, não eram então nela mais do que até vinte de cavalo, porquanto, como souberam que haviam de ser cercados, logo mandaram todas as bestas para a parte dalém, visto que as não podiam manter longamente durante o cerco. E estes vinte eram tais como João Afonso de Beça e Gomes Garcia de Fóios, e Vasco Martins de Gá, e Luís Anriques e outros assim.
E mesmo estes poucos que aí havia não podiam haver mantimento para as bestas, e antes compravam os cabeçais (travesseiros) cheios de palha e livravam-nos dela, e isto lhes davam de comer. E às vezes iam estes de cavalo com homens de pé e besteiros escaramuçar com os inimigos, e os do arraial saíam a eles, e embrulhavam-se como é de costume.
Assim que contando por miúdo todas as coisas que em combates e escaramuças aconteciam a uns com os outros não abastaria o presente dia, dando a vós fastio de ouvir e a nós cansaço de escrever, por isso, abandonando um homem destes feitos aquilo de que chãmente poderia bem falar, tende apenas em nota o que em semelhantes jogos comummente acontece, convém a saber: que a ventura, que não pode aprazer a ambas as partes, às vezes ordenava que combatiam os inimigos com os da cidade até às portas e, outras vezes, os portugueses com os castelhanos até junto com o palanque do seu arraial, cerca do poço de Santos, lutas nas quais dum lado e doutro algumas vezes havia presos e mortos e feridos e doutras vezes não. E porque estas escaramuças se faziam não muito longe da cidade, saíam muitos a olhar sem levar armas algumas, e o Mestre houve isto por mal, porque podiam receber algum dano dos inimigos, e mandou que a qualquer um que fosse ver e não levasse armas para se defender ou ferir lhe tomassem a roupa, e desde então se cavidaram (precaveram-se) e saíam todos com armas.
Nisto sucedeu um dia que surgiram novas na cidade, e não foi sabido por quem, de que elRei de Castela se passara a Almada por azo da pestilência e de que não estava no arraial senão mui pouca gente.
E alvoroçaram-se todos trigosamente e quiseram sair lá fora para dar no arraial, não somente os homens mas ainda as mulheres, dizendo que queriam levar lenha para o queimar. Eles já à porta de Santa Catarina, esguardou o Mestre a isso e disse que não era bem de saírem assim desordenadamente, porque porventura não era tal como se dizia e seria de mui grande perigo, mas que ao invés fossem esses poucos de cavalo que ali havia saber ao certo como isto era, e que então acordariam na maneira que sobre este feito haviam de ter.
Partiram os de cavalo por outra porta que chamam de Santo Antão, para não serem vistos pelos do arraial, e foram por um vale acima até perto das tendas dos inimigos; os castelhanos, quando os viram juntos de si, começaram de bradar: Armas! Armas! Dando às trombetas muito rijamente. E foi um grande alvoroço no arraial, cavalgando à pressa muitos de cavalo, que sempre tinham as bestas prestes, e igualmente se apressavam os de pé, cada um como melhor podia, e foram atrás deles e encalçaram, porque caiu com o cavalo, um escudeiro galego chamado Vasco Gonçalves, que depois foi almoxarife do celeiro, e prenderam-no e foi mais tarde livre por rendição (resgate).
E enquanto eles assim foram e tornaram o Mestre esteve sempre à porta, contendo as gentes para que não saíssem, e quando os viram vir daquela guisa, Fernão Rodrigues, Comendador de Juromenha que depois foi Mestre dAvis, de quem era a guarda da porta naquele dia, saiu com homens de armas que tinha consigo para recolher os de cavalo que vinham fugindo com os castelhanos a persegui-los de perto. E desta guisa se houvera então de perder muita gente da cidade se o Mestre os não tivesse detido com a sua boa discrição e avisamento.
141. COMO ELREI ENVIOU COMETER AVENÇA AO MESTRE, E DAS RAZÕES QUE SOBRE ISTO SE TROCARAM.
Não curando agora de falar das coisas que aos da cidade no cerco aconteceram, principiou a triste morte de mostrar a sua sanha mais asperamente contra os do arraial, e igualmente contra os da frota, e matou não somente escudeiros e fidalgos, e dos outros de pequena condição tantos que era estranha coisa de ver, como ainda começou a encetar nos senhores de grande estado, de guisa que pôs grande espanto em todos.
Os castelhanos, vendo-se assim afincados pela pestilência que cada vez mais se ateava neles, bem entenderam que a sua estada não podia aí ser por muito tempo, e que teriam por força de descercar a cidade e de se partir dali cedo, e disseram a elRei, razoando sobre isto muitas e desvairadas considerações, que era bem de mover ao Mestre alguma preitesia, para levar alguma honra da sua vinda. A elRei pareceu bem pelas razões que cada um lhe dizia, e mandou pedir ao Mestre segurança para da sua parte lhe poder ir falar Pero Fernandez de Valasco, que era homem de que elRei muito fiava. Ao Mestre prouve disto e, no dia em que foi aprazado de lhe vir falar, mandou alguns cavaleiros ao caminho para que ficassem por reféns das gentes que vinham com Pero Fernandez, até que ele falasse com o Mestre e se tornasse, conforme da parte dos castelhanos fora pedido. Estes foram João Afonso de Beça e Álvoro Gonçalves Camelo, e AfonsEanes Nogueira, e Mem Rodrigues, e Rui Mendes de Vasconcelos e outros. Chegou Pero Fernandez antes do meio-dia, em cima dum bom cavalo, e vinha um pajem consigo com uma lança e barreta (espécie de capacete), o qual ficou com os outros.
O Mestre estava a cavalo com cota e braçais e uma espada cinta, e uma tabardilha por cima. E quando se viram fizeram as suas mesuras e abraçaram-se, e isto foi entre a barbacã e o muro, à porta de Santa Catelina.
Mas as falas que neste lugar foram faladas fez a afeição escrever a alguns em favor delRei de Castela, duma guisa que não aconteceram, dizendo que o Mestre demandava a Pero Fernandez que se a elRei prouvesse de ele ficar por governador do reino até que elRei de Castela houvesse filho da Rainha sua mulher, tendo o governamento segundo o havia de ter a Rainha dona Lionor, conforme fora posto nos tratos entre elRei e elRei dom Fernando, que ele tomaria a voz da Rainha dona Beatriz e regeria o reino por ela, voltando elRei de Castela para o seu reino e não curando mais de aqui entrar, guardando a forma dos capítulos neste passo determinada, e que disto lhe faria quaisquer menagens e escrituras que em tal caso cumprissem. E acrescentam ainda, dizendo ademais que Pero Fernandez respondeu ao Mestre que elRei, seu senhor, não faria semelhante preitesia por nenhuma guisa que fosse, mas que lhe faria uma outra em que fossem dois os governadores, convém a saber: um deles, o Mestre, e o outro um cavaleiro castelhano qual elRei quisesse escolher; e que o Mestre deu em resposta que o reino de Portugal não consentiria que um cavaleiro castelhano fosse regedor nem governador dele, e que assim se despediu Pero Fernandez, não se acordando com ele em tal preitesia.
Mas quem tais razões, vencido pela afeição, escreveu em favor de outrem à verdade fez grande injúria, pois nenhum humanal entendimento, ainda que por nós tal não fosse escrito, pode consentir que Pero Fernandez viesse para tratar dalguma avença com o Mestre da parte delRei, seu senhor, e que o Mestre fosse cometedor dela antes que Pero Fernandez a requeresse, para além do que depois se seguiu com a vinda do Prior do Crato, que encobertamente calaram; assim enjeitando tal razoado, as falas, recontadas em breve, passaram-se deste modo.
Pero Fernandez disse ao Mestre que vinha falar-lhe de coisas de seu serviço, se a ele prouvesse de consentir nelas, dizendo-lhe que bem via como era cercado por mar e por terra pelo seu senhor, elRei de Castela, e que os mantimentos eram tão poucos na cidade que ela não havia de poder manter-se muito, como ele bem sabia, e pois que filho de rei era, que não se quisesse perder de tal jeito, mas que preiteasse com elRei, seu senhor, de quem receberia muitas mercês e acrescentamento em coisa que fosse de sua honra, e que da preitesia que fizesse com elRei de Castela, tanto ele, Pero Fernandez, como Pero Sarmento, e outros quais ele quisesse, lhe fariam preito e menagem de que elRei de Castela lhe havia de guardar toda a avença e concórdia em que ambos ficassem; e não o fazendo elRei assim, que eles desservissem elRei de Castela e ajudassem o Mestre contra ele em toda a coisa de seu serviço.
A isto respondeu o Mestre que Pero Fernandez falava como bom cavaleiro que era, e que lho agradecia muito, mas que fosse certo que em qualquer coisa que lhe aviesse nesta demanda que tinha começada, que ele entendia que não se perdia, mas antes que se ganhava, porque este reino fora de seu pai e de seus avós e agora elRei de Castela queria subjugá-lo e havê-lo injustamente contra os tratos que prometidos tinha. E que por isso muitos criados delRei seu pai e delRei dom Fernando, seu irmão, se tinham vindo para ele para lho ajudar a defender, e que ele, com estes e com a verdade que tinha, entendia, com a graça de Deus, de o defender não somente delRei de Castela como de qualquer outro que dano lhe quisesse fazer. E que ainda que as coisas não viessem àquele fim que ele desejava, e fossem assim como Pero Fernandez dizia, que ele entendia que nisso não se perdia mas que se ganhava, com muito sua honra, ele e todos aqueles que o seguiam.
Sobre isto trocaram-se muitas razões às quais o Mestre nunca deu resposta que abrisse algum começo de preitesia, porque se a houvesse dado, como alguns escrevem, cuidai que mui áspera teria de ser a convença em que elRei de Castela não consentisse, dada a pestilência que entre os seus andava, e para levar alguma honra da sua vinda.
As gentes estavam olhando de longe, dos muros, rogando a Deus que os pusesse em alguma avença para que a cidade fosse descercada, por causa da grande míngua que haviam de mantimentos.
Pero Fernandez, vendo que por quantas boas razões que podia dizer ao Mestre não dava lugar a que falassem em qualquer preitesia, despediu-se dele, com a sua graça, e foi-se para os seus que o estavam aguardando, e os cavaleiros portugueses que haviam servido de reféns voltaram então para a cidade. E quando Pero Fernandez chegou a elRei de Castela, este perguntou-lhe que recado achara no Mestre, e ele respondeu, dizendo: Dai-o ao demo, Senhor, que nunca outra razão nele pude achar, de quantas coisas lhe falei, nem outra resposta que me respondesse, salvo: Não, não, não e não! ElRei houve com isto azedume e disse que não curava de tal, pois que porventura ele lhe requereria depois avença em tempo que lhe seria muito má de a haver, e outras razões que tais.
Dom Pedro Álvares, Prior do Hospital que aí estava e que era grande privado delRei, e muito amigo do Mestre e seu compadre, disse que lhe queria ele ir falar, e que entendia que o demoveria e saberia dele toda a sua intenção. ElRei naquele momento e depois, por vários dias, nunca nisto quis consentir, mas no fim, por afincamento dos seus, e ademais pela pestilência, que cada vez era maior, houve de o outorgar. E havendo já vinte e dois dias que Pero Fernandez viera falar ao Mestre, veio-lhe falar o Prior, e vinha com ele o Conde de Mayorgas, mas não para lhe falar.
E propostas todas as razões que o Prior em tal feito bem pôde dizer, outra resposta não pôde haver do Mestre salvo a que já dera a Pero Fernandez, e despediu-se dele e foi-se, da qual coisa elRei houve mui grande queixume, dizendo que jurava a Deus que nunca mais lhe cometeria avença nem se partiria de sobre a cidade, por coisa que avir pudesse, até que pela fome ou pela força das armas a cobrasse como desejava. Então entenderam todos, assim os da cidade como os do arraial, que esta nova e grande guerra não se havia de acabar por avença e preitesia, mas sim por ferro e espargimento de sangue.
O Prior, tendo disto sentido, para confundir Nuno Álvares, seu irmão, e o pôr em desacordo com o Mestre, escreveu-lhe uma carta em que lhe fazia saber que elRei de Castela preiteava com o Mestre suas avenças, o que lhe prazia muito, mas que, por outro lado, lhe pesava muito porquanto na preitesia que tinha tratada não se fazia dele (Nuno Álvares) nenhuma menção, tendo-lhe ele feitos tão bons serviços.
NunÁlvares, quando viu tal carta, bem entendeu que isto não era senão para o desviar do serviço do Mestre, e respondeu-lhe por outra que se o Mestre, seu Senhor, fazia com elRei algumas avenças por qualquer guisa que fosse, ele o conhecia por tal e tão bom que não faria nenhuma preitesia salvo com sua honra e de todos os seus, e que se maravilhava muito dele, seu irmão, haver tão pouco tempo que andava com os castelhanos e já saber tantas castelhanias.
Onde sabei que no dia seguinte àquele em que o Prior falou ao mestre, que era o postumeiro (último) de Agosto, depois do comer veio do arraial o Conde de Mayorgas, muito acompanhado de bons homens, e recebeu por mulher dona Beatriz, filha do Conde dom Álvoro Peres de Castro, já finado, sendo presente o Mestre, que a levou de rédea, e o Conde dom Gonçalo, que os meteu pela mão, e outros muitos cavaleiros e fidalgos, e levaram depois a noiva para o arraial, e sua mãe com ela.
142. COMO O MESTRE DETERMINOU COM OS DO SEU CONSELHO DE PELEJAR COM ELREI DE CASTELA.
Tardando toda a esperança e humanal ajudoiro que o Mestre podia haver dos lugares e pessoas a que o requerido tinha, por turvação da fortuna, conforme ouvistes, e não dando lugar a nenhuma avença que elRei de Castela lhe mandara cometer, propôs em sua vontade e conselho de nunca cair em nenhuma preitesia que lhe fosse cometida, mas, ou de todo o ponto pôr o reino em aventura, e a sua honra e vida e estado, ou por tal guisa trabalhar pela defensão dele que nunca fosse sujeito a Castela.
E vendo como os mantimentos eram gastados (gastos), além das coisas que já são tocadas e outras que adiante ouvireis em maior acrescentamento, determinou de fazer aquilo que não convinha senão a um grande e forte coração, convém a saber: antes que a míngua fosse mais acesa, e outras coisas que se recrescer podiam, que se juntassem todos e fossem pelejar com elRei de Castela, e que por eles sendo este vencido, o que eles em Deus esperavam, que cobrariam tão grande honra como de há longos anos não fora ouvida, e avindo pelo contrário, o que acontecer podia, que morreriam como bons e honradamente, ao invés de serem sujeitos de quem não deviam. E ainda que vissem a grande cavalaria dos seus inimigos, e os muitos e notáveis perigos a tal feito prestes, acordaram em toda a guisa que o postumeiro remédio deste feito era pelejar com elRei de Castela, à ventura que Deus lhes dar quisesse, esperando nele que seria boa, mas esta peleja razoavam por desvairados modos.
Uns diziam que viesse NunÁlvares dalém Tejo com as suas gentes, e todos, juntamente, saíssem a pelejar com elRei, mas isto era mau de fazer porque ali não havia em que passassem escusamente, excepto uns poucos de batéis pequenos em que tantos não podiam vir duma vez, e ainda que tantos aí houvera em que pudessem vir, seria com grande medo e perigo por causa da frota de Castela que tinha o rio tomado.
Outros acordavam que era melhor que se passasse o Mestre, com as gentes que tinha, nas galés à margem dalém, e que as queimassem logo todas, para as não tomarem os castelhanos, e que se juntasse com Nuno Álvares e viessem todos por ao redor pelejar com elRei de Castela, mas esta razão desfaziam muitos, dizendo que a cidade ficava entretanto em muito grande dúvida e perigo.
E depois de muitas razões, tais como podeis entender que em tal coisa se falariam, finalmente foi acordado que o melhor conselho para tão grande feito era mandar recado a NunÁlvares que em certo dia e hora, o mais caladamente que pudesse ser, viesse com as suas gentes dar no arraial, e que então saísse o Mestre com todos os da cidade, e que desta guisa tinham feúza (confiança) em Deus que desbaratariam os seus inimigos muito mais a seu salvo.
Então escreveu o Mestre a Nuno Álvares como a frota do Porto chegara a Lisboa e não pudera pelejar com a de Castela por esta ser muita mais e melhor armada, e o tempo não bem azado para a socorrer com ajuda, e que a cidade ficara cercada do mar assim como dantes era, pela qual razão, se à primeira era minguada de mantimentos, agora o era e seria cada vez muito mais, mormente pelas muitas gentes que sobrevieram na frota. E porque de dia para dia a esperança de se poder defender minguava, que ele tinha determinado e acordado em seu conselho de sair com as gentes da cidade a pelejar com elRei de Castela. E que NunÁlvares, além das trezentas e vinte lanças que então trazia consigo, juntasse as mais que pudesse e viesse de redor (pela retaguarda castelhana) naquele dia e hora que ambos aprazassem para se pôr isto em obra; e que fizera alardo das gentes que tinha consigo e que achara, de lanças do soldo, mil e seiscentos homens de armas, e dos moradores da cidade, quatrocentas lanças e muitos peões e besteiros; e que portanto lhe fazia saber de tudo, para ele lhe responder sobre o assunto e encaminhar-se a maneira que nisto houvessem de ter.
E se alguns contam que o Mestre lhe escreveu que se viesse aos Montijos com todos os seus, porquanto ele queria passar além Tejo para tratarem de juntar as gentes e vir pelejar com elRei de Castela, e que Nuno Álvares veio ali, isto era para falar com NunÁlvares da maneira que haviam de ter na peleja e não para desamparar a cidade e a deixar em poder de muitos de cujo serviço não era bem seguro, e tal coisa acabou por não se poder fazer.
NunÁlvares foi ledo com este recado como alguém que de honrosos feitos era muito desejador, e disse aos seus como o Mestre lhe escrevera a respeito de tudo o que se passara até então, e sobre o ponto em que já estavam, e pois que a cidade era cercada por mar e por terra, e não podia ser acorrida de mantimentos, era grande dúvida poder-se defender que muito fosse, e que sendo Lisboa tomada era todo o reino perdido. E que por isso lhe parecia que era bom que deixassem ali toda a carriagem que se pudesse escusar e não levassem mais mantimentos do que os necessários até Lisboa, e que uma madrugada amanhecessem sobre o arraial delRei de Castela, e que não curassem de guardas que achassem nem de nenhum outro embargo, mas que todos juntamente fossem direitos à casa onde elRei pousava e, trabalhando-se os do arraial de o querer defender, pelejassem então com eles; e que ele enviaria dizer ao Mestre que naquele dia e naquela hora saísse com as gentes da cidade a ajudá-los, e que esperava em Deus e na sua preciosa Mãe que levariam a sua obra adiante com muita sua honra, e quando doutra guisa fosse, o que Deus encaminharia pelo contrário, que muito melhor era morrerem ali todos honradamente, ao redor das fraldas dum tão nobre rei, do que os andar ele depois apanhando de lugar em lugar como a perdigotos, e a enforcá-los um a um pelos sobreiros.
Ouvido isto que Nuno Álvares propôs, responderam os seus e disseram que o conselho era muito bom e bem acordado, mas que Lisboa não estava ainda em tamanho afincamento para que se tivessem de pôr em tão grande aventura, e que, ao invés, aguardassem durante alguns dias até que vissem o que Deus nisto queria obrar, e quando a cidade viesse a tal afincamento que outro cobro (solução) aí então não houvesse, que isto lhes ficava para fazer em derradeiro.
E ainda que NunÁlvares muito tivesse em vontade de isto logo se pôr em obra, contudo, porque era seu costume consentir aos do conselho nas boas e aguisadas razões, outorgou-se com eles nisto, mormente que para tal obra, como bem é de entender, não cumpria de irem nenhuns senão com viva e leda vontade. Da qual obra depois dizia Nuno Álvares, por vezes, que quando cuidava como eles eram tão poucos e os outros muitos e bem corrigidos, tal lhe parecia um forte feito e muito receoso de cometer, mas que por outro lado, quando esperava em Deus com firme feúza que haviam de vencer elRei de Castela, se lhe assemelhava que já os via a fugir para Sintra e para Cascais e para os outros lugares que tinham a sua voz. Escreveu então ao Mestre o acordo que com os seus houvera e tudo o que naquele feito entendiam de fazer.
E desta guisa estava a cidade esperando aquele dia da mercê de Deus, que já doutrem não entendia ajudoiro nem socorro. À qual deixemos com esta esperança, sem mais por ora falar de seus feitos, e vamos entrementes saber o que fez NunÁlvares depois que partiu de Punhete e chegou à cidade de Évora.