Prólogos ao Tomo I

PRÓLOGOS AO TOMO I
DAS CRÓNICAS DOS REIS DE CASTELA DOM PEDRO, DOM ENRIQUE II, DOM JUAN I E DOM ENRIQUE III,
REDIGIDAS POR D. PEDRO LOPEZ DE AYALA, CHANCELER MOR DE CASTELA,
COM AS EMENDAS DO SECRETÁRIO GERÓNIMO ZURITA,
E AS CORRECÇÕES E NOTAS ACRESCENTADAS POR DOM EUGÉNIO DE LLAGUNO AMÍROLA, CAVALEIRO DA ORDEM DE SANTIAGO, DA REAL ACADEMIA DE HISTÓRIA.
MADRID: IMPRENSA DE DOM ANTÓNIO DE SANCHA, ANO DE 1779.

 

 PRÓLOGO DO EDITOR.

Dando início ao cumprimento da promessa feita de uma Colecção das Crónicas de Castela, sai agora a público a do Rei Dom Pedro, e no que a ela concerne poder-se-ia dispensar este Prólogo, dado que se vai imprimir aquele que fez Gerónimo Zurita para a edição que preparou das quatro Crónicas escritas por Dom Pedro Lopez de Ayala, se não fosse necessário expor, em nome dos que hão-de concorrer para a obra, as razões que levaram a empreendê-la, e o labor que, no seu desempenho, se efectuou com os escritos deste célebre Cronista.

O pesadíssimo e fastidioso trabalho em que nos metemos mais estímulo não teve senão o zelo patriótico, ao ver que não há na Europa nação culta sem uma Colecção, quando não completa, ao menos muito ampla dos Monumentos da sua História, e que nós nos temos entregado, neste assunto, a um abandono incrível, não obstante ser certo que a Espanha sofreu mais mudanças e revoluções que outros países, e que a nossa Nação excede as demais e a nenhuma deve ceder nas grandes empresas, nas acções gloriosas e nos Varões ilustres.

Boa parte das nossas Memórias permanece todavia no retiro dos Arquivos e Bibliotecas, outras, que foram sendo publicadas por homens doutos em diferentes épocas, cotejadas com Manuscritos e enriquecidas com notas, andam dispersas em apêndices de diversos livros, de sorte que ter delas notícia é um estudo particular, e as mais extensas e circunstanciadas, que são as Crónicas que vão da Geral até às dos Reis Católicos, encontram-se actualmente em pior estado do que há três séculos, pois à excepção da de Dom Juan o II todas se imprimiram pelo primeiro Manuscrito que se apresentou à mão, sem cotejo com outros, sem exactidão, defeituosas, alteradas no estilo, enfim, como uma operação que se fazia para traficar em feira.

No entanto deve-se dizer, para maior elogio da época em que começou a florescer entre nós a literatura, que acaso foi em Espanha onde primeiro se pensou na colecção e correcção de Histórias nacionais. O Rei Dom Fernando o Católico encarregou o Doutor Lorenzo Galindez de Carvajal, do seu Conselho e Câmara, da emenda e publicação de Crónicas, e ele com efeito compilou, corrigiu e publicou a de Dom Juan o II. Nos finais do século antecedente o Conselho Real deu o mesmo encargo a Dom Juan Lucas Cortés, Ministro do (Concelho) das Índias, que ao que parece reuniu grande cópia de materiais para a obra, e ainda que o público não chegasse a desfrutá-la, estes encargos confiados a pessoas de tal categoria e doutrina atestam o conceito que da sua importância e necessidade tiveram os Reis e o primeiro Tribunal da Nação.

Os homens doutos desta, em particular os que se dedicaram ao estudo e ilustração da História geral ou particular, como Esteban de Garibay, Ambrosio de Morales ou o Marquês de Mondejar, fizeram anotações, correcções e advertências nas margens dos seus livros, ou separadamente deles, e não faltaram mesmo alguns que, assumindo-o como desígnio, empreenderam o ímprobo trabalho de cotejar as Crónicas com Manuscritos, procurando restituí-las à sua primitiva pureza.

O principal de todos, e a quem se deve maior encómio, foi Gerónimo Zurita, o qual, juntando diferentes Manuscritos, cotejou, corrigiu e complementou com eles as Crónicas que agora começamos a publicar, preparando-as para a impressão do modo que adiante se dirá. O Licenciado Dom Sancho Hurtado de la Puente, do Conselho Real, seguiu-lhe as pisadas, como o evidenciam as Crónicas que lhe pertenceram e andam agora em diversas mãos. Também o Doutor Dom Tomás Tamayo de Vargas teve a intenção de as editar corrigidas, e ainda chegou a publicar um plano da sua obra, todavia ignoramos o que terá feito para efectivá-la, embora não devamos duvidar de que a teria executado com acerto, conforme à sua erudição e estudo cuidado da História nacional, de que dão testemunho várias obras que deixou escritas.

Parece que estes eruditos apenas se propuseram a correcção e publicação das Crónicas de Castela, e isto é o que também nós nos propusemos, limitando-nos por agora a oferecer corrigidas as que se escreveram desde a Geral, do Rei Dom Alonso o Sábio, até ao fim dos Reis Católicos, incluindo as de alguns Cavaleiros como Dom Pedro Niño, Conde de Buelna, Dom Alvaro de Luna, o Condestável Dom Miguel Lucas de Iranzu e várias Abreviações históricas, ilustrando-as com outras Memórias e Documentos e ainda com as Cortes de cada Reinado, porquanto a Colecção dos Monumentos históricos de Espanha, em todas as suas categorias e desde a época mais remota, é obra muito para além daquilo que pessoas particulares podem fazer, e deve-a a Nação atender de um corpo institucional estável, que continuamente trabalha na sua recolha.

O modo de proceder que, por regra geral, adoptámos nesta correcção foi o seguinte. No respeitante às Crónicas já impressas, havendo mais de uma edição, adoptar a que se tem por menos viciada, efectuar sobre ela os cotejos com os Manuscritos, dando relação de cada um, da sua antiguidade e circunstâncias, emendar no texto a frase, a ortografia e aquelas coisas em que reconhecidamente há falha ou erro, contanto que as correcções resultem dos Manuscritos; colocar no pé das páginas as demais correcções, adições e variantes; e se já depois de impressa a Crónica, mas antes de a publicar, se encontra um novo códice que mereça apreço e não se haja tido em conta, colocar no fim as diversas lições que se creiam úteis, pois que incluí-las todas seria aumentar ociosamente os volumes, nascendo as mais delas de reconhecidas ignorâncias ou descuidos dos copistas.

Como cada Crónica, ou cada Autor de Crónicas forma uma obra separada, decidimos não seguir na edição destas a ordem cronológica, mas começar pela que estivesse melhor ordenada para sair à luz. Acreditava eu que efectivamente o estavam as de Dom Pedro Lopez de Ayala, fundado na resposta que Dom Sancho Hurtado de la Puente deu ao Reino de Aragão, quando da parte do mesmo Reino lhe foi insinuado se queria franquear o trabalho que Zurita já havia feito sobre elas, para o oferecer ao público, porque achando-me eu com o exemplar da edição de Toledo de 1526 que Puente cotejou e acrescentou, valendo-se de um Manuscrito, e com a cópia das Emendas e Advertências de Zurita que pertenceu ao mesmo Puente, quer um exemplar quer o outro com sinais de estarem preparados para a impressão, julguei que tinha o necessário para uma boa edição, acrescentando as variantes das edições antigas e as dos Manuscritos da Real Academia da História.

Mas tendo-me a Academia franqueado os seus dois códices para este fim, ao ver a grande diferença que há entre eles e as Crónicas impressas, reconheci o erro em que caíra quando julgava que os meus preparativos eram suficientes para oferecer uma edição estimável, pois os cotejos daquele Ministro, em que eu punha a principal confiança, embora ele usufruísse de um bom códice, não foram exactos nem seguidos. Emendou muitas passagens viciadas, mas não teve paciência para as emendar a todas, e deixaram-se como estavam as alterações, corrupções e redundâncias da frase que a pouca inteligência dos escribas introduzira nas Crónicas, com tal excesso que, apesar de Ayala ser o escritor mais culto e mais conciso da sua época, o tornaram vulgaríssimo e semibárbaro.

Ao que parece ambos os códices foram escritos no tempo de Dom Juan o II, em papel grosso de marca maior, a duas colunas, em bela letra, com as epígrafes a vermelhão. Ambos são muito estimáveis, em especial aquele a que chamaremos Primeiro, que foi de Gerónimo Zurita.

Possuiu aquele célebre historiador três Manuscritos destas Crónicas: um em papel de marca, outro de marquilha e, o outro, um exemplar daquelas a que chamou Abreviadas. Ademais disso teve em seu poder outros diversos códices: um do conde de Sástago, outro do fiscal de Aragão Micer Juan Peres de Nueros, outro a que chamava o de papel grande, outro em pergaminho e ainda um outro das Abreviadas, que pertenceu ao Marquês de Santillana Dom Iñigo Lopez de Mendoza. Parece que de início foi sua intenção manter o texto das impressas, pois colocou num exemplar das de Toledo de 1526 várias correcções e notas, porém, vendo ao fim a grande diferença que havia entre a impressa e os Manuscritos, abandonou esta correcção, tomou por texto o Manuscrito de papel de marca, cotejou-o com todos os outros e com os impressos, e, escrevendo da sua própria mão, nas margens, as correcções e adições que deviam de entrar no texto, fez por separado as Emendas e Advertências que o Doutor Diego Joseph Dormer publicou.

Apresentou Zurita ao Conselho este códice assim corrigido e acrescentado, e as Emendas, separadamente, pedindo licença para a sua impressão. O Conselho remeteu-o à censura de Ambrosio de Morales, que a fez com o devido elogio (1), e, por Cédula de 5 de Junho de 1577, concedeu-se a Zurita a licença e privilégio, devolvendo-se-lhe o Manuscrito, firmado no final por Pedro Zapata del Marmol, Escrivão de Câmara, e rubricadas as 280 folhas que contém. Solicitou depois que lhe ampliassem o privilégio à Coroa de Aragão (2), mas faleceu no ano de 1580, sem que se tivesse verificado a publicação destas Crónicas. Gerónimo Zurita de Oliván, seu filho, obteve a prorrogação do privilégio e cedeu-o, juntamente com o Manuscrito, a Gerónimo Lopez, Livreiro em Madrid, que tão-pouco fez uso dele. Depois possuiu-o Dom Lorenzo Ramirez de Prado, que se propôs a publicá-lo junto com as Emendas, dedicado Conde Duque, e, por fim, entrou em poder da Academia.

Apresentando este Manuscrito a singular circunstância de reunir em si todos os cotejos de Zurita, eu podia tê-lo adoptado, sem mais exame, para texto da presente edição, mas como não me merecia absoluto desprezo aquilo que antes de o ler já tinha preparado para esta, empreendi uma nova e prolixa comparação de tudo.

É de observar que a discordância entre os impressos e os Manuscritos destas Crónicas mais consiste no estilo que nas coisas relatadas, as quais, digam-se com as palavras que se disserem, poucas vezes não se apresentam as mesmas. As Crónicas impressas devem-se reputar por um Manuscrito, e não há Manuscrito nenhum, por mais corrompido que se ache, que deixe de ter algo de bom, assim como tampouco o há tão excelente que não apresente muitas falhas, porque os copistas de ordinário mais não sabiam do que fazer boa letra, sem cuidar da exactidão e correcção, e é daí que derivam as omissões, adições, modernizações e inversões de palavras e frases. Da variedade que há em elas, ainda quando os códices são antigos e bons, nasce a incerteza a respeito de como o terá dito o Autor, e, tendo reparado que em muitas passagens da edição de 1526 corrigida por Puente se mantinha o estilo mais terso e semelhante ao que usa em outros escritos Dom Pedro Lopes de Ayala, pareceu-me que, na dúvida, não era justo atribuir-se o menos correcto ao escritor mais instruído e mais culto que teve Espanha naquela época.

Devido a estas considerações decidi tomar por texto o Manuscrito de Zurara, conservar do exemplar impresso corrigido por Puente as passagens que merecessem preferência, colocar no pé das folhas as várias lições quanto à matéria de facto, deixando todas as demais, que apenas pertencem ao estilo, por serem completamente inúteis e até por vezes absurdas, como reconhecerá quem coteje esta edição com as anteriores, colocar do mesmo modo, no pé das folhas, as Emendas e Advertências de Zurita que Dormer publicou, confrontadas com a cópia que pertenceu a Puente, na qual faltam as notas que Dormer retirou das margens de vários livros, porquanto Zurita as reuniu depois no já citado Manuscrito, incluindo-as no texto, e acrescentar as citações de Actas públicas, Diplomas e escritos coetâneos que comprovam ou ilustram o que o Cronista refere.

Esta última diligência, convenientíssima em qualquer Crónica de modo a reunir os monumentos de cada época, sem inspecção dos quais ignoraríamos, com frequência, o mais útil ou o mais curioso da História, é na Crónica del Rei Dom Pedro absolutamente necessária devido ao descrédito em que quiseram colocá-la aqueles que desejariam riscar da memória dos homens as enormidades que ela refere. Mas a sua execução teria sido muito difícil se a Academia não me tivesse permitido desfrutar das suas Colecções Diplomáticas. Com este grande auxílio, e o cuidado posto em recolher outras notícias, penso que não só se encontrará nas Notas boa parte do que pode ilustrar a História daquele reinado, como também que os leitores, ao ver os documentos que apoiam a narrativa de Dom Pedro Lopez de Ayala, e que nenhum a contradiz, observarão com quanta ligeireza se lhe chamou caluniador de elRei Dom Pedro.

As notas de Zurita não levam marca quando não se lhes acrescenta qualquer coisa. As minhas têm um «E», embora às vezes se o omita. Segundo as remissões que nelas fiz, deviam-se ter colocado, no final de cada Crónica, os Cadernos das Cortes e os Ordenamentos que ali foram feitos, os Tratados com outros Príncipes, os Breves Pontifícios, algumas Escrituras notáveis, os Excertos de autores estrangeiros e outras Memórias correspondentes a cada reinado, contudo este volume cresceu tanto que não permite que nele se contenha mais Apêndice do que algumas Adições às Notas. As três Crónicas seguintes de Ayala comporão um outro volume, e no terceiro imprimir-se-ão, com discriminação dos reinados, todos os referidos documentos e os Preliminares do Doutor Dormer à sua edição das Emendas de Zurita.

Nesse mesmo terceiro volume colocar-se-ão as variantes do Segundo Manuscrito da Academia e de um outro do senhor Dom Fernando de Velasco, do Conselho Real e Supremo de Sua Majestade. O Segundo da Academia apenas é inferior ao Primeiro porque lhe faltam os cotejos e as correcções de Zurita, em tudo o resto o iguala. Em geral concordam entre si, de forma que parece que foram copiados de um mesmo original, sem mais diferença do que a inversão de palavras, a omissão de algumas, a referência de uma mesma coisa com palavra ou frase equivalente e a variação nas terminações e letras, escrevendo-se «anduvo» e «andudo», «grand» e «grant», «maguer» e «maguera», «fizole» e «fizolo», «compaña» e «compañia», «logar» e «lugar», «estovo» e «estuvo», «desto» e «de esto», «fizo» e «fiso», confundindo-se o «s» com o «c» e o «z», «plugo» e «plogo», etc. Estas diferenças derivam de naquele tempo a ortografia e pronúncia de muitas palavras não ser tão constante e uniforme como agora, e os copistas, tomando para abreviar um longo período de memória, escreviam-nas conforme cada um as pronunciava. Ambos os Manuscritos, tal como todos os daquele tempo, têm o «é» por conjunção, e nunca o «y», o «y» é sempre advérbio de lugar, e significa «aí», «ali». Também concordam na escrita de «aver», «ovo» sem «h» e com «v». Eu mantive a escrita antiga quando há nela constância, e quando não, reduzia ao uso actual.

Se o tamanho do segundo Tomo o permitir, editar-se-á nele um Índice das quatro Crónicas, senão, irá no Terceiro, no qual se procurará também publicar as Memórias da Vida de Dom Pedro Lopez de Ayala, bem como alguns escritos seus, embora não sejam históricos. Entretanto suprirão as notícias que sobre este célebre Cavaleiro nos deixaram Fernan Perez de Guzman e a Relação da sua Linhagem.

O retrato do Rei Dom Pedro é uma cópia da estátua de mármore que se encontra numa cripta das Senhoras de Santo Domingo o Real de Madrid, a mesma que foi colocada no seu sepulcro por volta do ano de 1446, sendo Priora Dona Costanza de Castela, sua neta. Tiveram-se em consideração outras duas cópias que enviou D. Francisco de Bruna, Ouvidor Decano da Real Audiência de Sevilla, a primeira retirada da série de imagens dos Reis de Espanha desde os Godos, uma pintura antiga num friso do salão da meia-laranja do alcazar de Sevilla, e a outra do busto de pedra que está no interior de um nicho na rua do Candilejo, na mesma cidade (3), e achou-se que merecia preferência o retrato de Madrid, copiando-se-lhe exactamente as feições e o traje e alterando a atitude (4), porquanto, para além de ser uma das melhores esculturas daquele tempo, em que já as Artes haviam começado a sair da barbárie, é de supor que Dona Costanza de Castela teria feito copiar o verdadeiro retrato do seu avô, se é que ainda se conservava algum.

Concluirei por observar que esta edição foi revista por Comissários da Real Academia da História, a qual o Conselho nomeou «por Censor permanente destas Crónicas, para que com a sua aprovação se possam imprimir e, por este meio, se evitem dilações», uma providência bem própria de um Supremo Tribunal que protege a literatura e facilita os meios para que se a leve em frente. Sem ela teria sido quase impossível realizar esta Obra.

 

Nota 1. A censura, da própria mão de Morales, que está na primeira folha do Manuscrito, diz: «Em cumprimento do que o Real Conselho me ordenou, vi os originais das Crónicas dos Reis Dom Pedro, Dom Enrique Segundo, Dom Juan Primeiro e Dom Enrique Terceiro que Gerónimo Zurita, Secretário de Sua Majestade e do seu Conselho da Inquisição Geral, apresentou, e as Anotações e Emendas que o dito Autor sobre as ditas Crónicas fez. E quanto às Crónicas, digo que os originais que foram apresentados são muito bons e estão muito bem emendados pelo dito Gerónimo Zurita, e que assim sairão as Crónicas, que por eles se imprimirem, muito corrigidas e sem o grande dano que as até hoje impressas contêm. E quanto às Anotações, digo que estão escritas com muita diligência e doutrina, e com grande juízo. Em conformidade com isto, de imprimir-se e publicar-se um e outro original resultará muito proveito e autoridade a estes Reinos, porque, tendo estas Crónicas Autor tão principal e assinalado como Dom Pedro Lopez de Ayala, é de muita razão que saiam tão bem impressas como merecem. E este é o meu parecer, sujeitando-o sempre a quem melhor o tiver. E por ser tudo assim o firmei de meu nome em Alcalá de Henares a 24 de Abril de 1577. Ambrosio de Morales.»

Nota 2. O Memorial que então apresentou é este: «S. C. R. M. Gerónimo Zurita, Secretário de V. M., diz: Que por Cédula Real de V. M. feita em San Lorenzo el Real a 5 do mês de Julho do ano mil quinhentos e setenta e sete se lhe deu licença para imprimir as Crónicas dos Sereníssimos Reis de Castela D. Pedro, D. Enrique o Segundo, D. Juan seu filho e D. Enrique Terceiro, cujo Autor foi Dom Pedro Lopez de Ayala, Chanceler Mor de Castela, com privilégio de que nenhuma pessoa as pudesse imprimir sem ordem sua por espaço de dez anos, por estarem as que se hão imprimido com muitos erros, e tão defeituosas que faltam nelas capítulos inteiros, e havê-las corrigido por muitos e diversos originais, e por se acrescentar a história de cinco anos do dito Sereníssimo Rei Dom Enrique o Terceiro, do mesmo Autor, que nunca se há publicado, e haver composto uma relação das correcções e emendas das ditas Crónicas. Suplica a V. M. que, em contemplação do que nisso há trabalhado, se digne mandar-lhe fazer mercê de conceder-lhe o seu Real privilégio para que nos Reinos da Coroa de Aragão ninguém as possa imprimir, nem trazer impressas para vender de outra parte sem ordem sua, ou dos seus herdeiros, na qual receberá bem e mercê de Vossa Majestade.»

Nota 3. Antes haveria ali uma cabeça de barro, a propósito da qual, nos seus Apontamentos para a história daquela cidade, escreveu Argote de Molina: «está na Colação de San Isidro, na rua do Candilejo, a cabeça del Rei Dom Pedro, imitada do natural em barro cozido, com cores, e é semelhante à que se vê no seu retrato de mármore em Santo Domingo o Real de Madrid.» Veja-se em Zuñiga, Anais, ano de 1354, a tradição que há em Sevilla quanto à razão por que se pôs naquele sítio. Tendo de ser reedificada a casa onde estava a Cabeça de barro, entrado o século anterior, puseram à custa da cidade, em seu lugar, o nicho e o busto de pedra que agora existem.

Nota 4. Está de joelhos, com as mãos juntas e em atitude de fazer oração. Não tem Coroa, mas vê-se que a teve, noutros tempos, de metal. A escultura, por ter sido mudada do Sepulcro onde estava, sofreu bastante dano.

 

 

PRÓLOGO DO SECRETÁRIO GERÓNIMO ZURITA, dando razão das Crónicas dos Reis de Castela Dom Pedro, Dom Enrique II, Dom Juan I, Dom Enrique III, escritas por Dom Pedro Lopez de Ayala, e das Emendas que a elas fez.

 

Nas Memórias das coisas que aconteceram em Castela e Leão, desde o mui antigo, parece que se teve muito cuidado, para maior crédito e testemunho da verdade, em que fossem escritas por Prelados e pessoas mui graves que intervieram nos negócios públicos que tocavam ao estado do Reino. Isto foi à imitação daqueles que escreveram as coisas dos Reis Godos, entre os quais os mais assinalados foram Cassiodoro, São Isidoro, aquele doutíssimo e santo varão Juliano, Arcebispo de Toledo, e Isidoro o Menor, a quem Dom Rodrigo Ximenez, Arcebispo de Toledo, diz que segue nas suas Histórias. Depois deles quase que não se encontra História que não seja de mui assinalado Prelado – como Pelayo, Bispo de Oviedo, o mesmo Arcebispo Dom Rodrigo, Dom Lucas, Bispo de Tuy, já no tempo do Rei Dom Alonso que venceu a batalha de Tarifa, Dom Gonzalo de Hinojosa, Bispo de Burgos, que fez a Abreviação de todas as Histórias até ao seu tempo de todos os Reis Cristãos, e, os postimeiros de todos, Dom Garcia de Eugui, Bispo de Bayona, nas coisas de Navarra, Dom Alonso Garcia de Santa Maria, Bispo de Burgos, e Dom Rodrigo Sanchez, Bispo de Palencia, nas dos Reinos de Castela – deixando-se de fazer menção do Rei Dom Jayme o I e do Rei Dom Pedro o IV de Aragão, assim como do Rei Dom Alonso o X de Castela, que ordenaram as Historias dos seus tempos ou mandaram que outros as publicassem em seu nome, entre os quais seria mui digno de referir-se Dom Carlos, Príncipe de Viana, pela Relação dos Reis De Navarra seus antecessores.

Em nenhum tempo se nota que se tivesse isto em maior atenção, nem que se tratasse com mais consideração do que nos sucessos que ocorreram desde o reinado do Rei Dom Alonso, filho do Santo Rei Dom Fernando, e nos de seus sucessores, nomeadamente na História dos Reis Dom Pedro, Dom Henrique, seu irmão, a que chamaram o Maior e alguns chamam o Nobre, Dom Juan o I e Dom Henrique o III, e na do Rei Dom Juan o II, a partir de quando a História daqueles tempos começou a estender-se mais e a ter mais gravidade e ponto, porquanto a memória das coisas sucedidas nos reinados destes Príncipes se encomendou a pessoas de muita autoridade, como é tão necessário que seja, e que tiveram um grande papel na resolução das coisas maiores que por eles passaram.

Entre eles o mais insigne é Dom Pedro Lopez de Ayala, Chanceler Mor de Castela, que escreveu mui ordenadamente aquilo que respeitava aos seus tempos, desde o princípio do reinado do Rei Dom Pedro até aos cinco anos primeiros do Rei Dom Henrique o III. Este Cavaleiro passou por grandes sucessos de paz e de guerra, esteve nas duas mais notáveis batalhas que, desde muito tempo atrás, em Espanha houve – a batalha de Nájera, que se deu entre dois Príncipes irmãos, que tinham divididas as forças e o poder dos Reinos de Espanha, França e Inglaterra, e a de Aljubarrota, aonde não se contendia por prémio menor do que a sucessão nos Reinos – interveio nos principais conselhos de estado e teve a seu cargo mui solenes embaixadas. Não foi menos prudente e sábio nos negócios da paz e da guerra do que principal e insigne Cavaleiro na sua casa e linhagem, e, se bem que seguiu o partido delRei Dom Enrique contra elRei Dom Pedro, seu irmão (1), e foi seu privado e se viu por ele em grandes perigos e trabalhos, não se pode dizer com razão que houvesse alguma coisa verdadeira que ele não ousasse escrever, nem nenhuma alheia à verdade que ele conte nas suas Relações e Memórias, como vemos que alguns fazem por vã ambição ou paixão.

Em confirmação disto, a meu juízo, bastaria referir aquilo que ele escreve que se tratou em Portugal – por ordem do Conde Dom Enrique, do Mestre Dom Fadrique, seu irmão, e de Dom Juan Alfonso, Senhor de Alburquerque – para que o Infante Dom Pedro, filho do Rei Dom Alonso de Portugal, como neto do Rei Dom Sancho de Castela, se lançasse à empresa de se tornar Rei dos Reinos de Castela e de Leão, contra elRei dom Pedro, seu sobrinho, que era deles o legítimo Rei e sucessor. Pois ele, que sobre este sucesso escreveu tão em particular e não o quis encobrir, tendo sido a sua negociação secreta e tratada por intermédio de Dom Alvar Perez de Castro, e sendo o facto tão reprovado e dado como mau exemplo, que pôde sobre isto deixar de dizer?

Pois que tal acometimento foi o princípio e a causa do cruel estrago e do derramamento de sangue que aquele Príncipe fez entre seus irmãos e entre tão grandes e nomeados Cavaleiros que seguiram a querela e a empresa do Rei Dom Enrique, andando então ele por Reinos estranhos feito um Capitão aventureiro. E se porventura deixou de escrever algumas coisas notáveis e mui dignas de ser conhecidas em todos os séculos, não as vemos escritas por outros autores, se alguns houve que tiveram o cuidado de justificar as execuções rigorosas que, com tanto furor, se ordenaram por el Rei Dom Pedro, vingando-se de seus irmãos que lhe foram tão declarados e terríveis inimigos. Também sabemos que não quis dizer algo que esteve mui espalhado pelo vulgo – e que parecia justificar tanto aquela empresa do Infante Dom Pedro de Portugal como a que tomou mui deveras o mesmo Conde Dom Enrique, mormente que se saiu bem com ela, para si e os seus sucessores – e que era o que foi divulgado por infinitas gentes: que o Rei Dom Pedro não era filho do Rei Dom Alonso, antes fora trocado, por receio e temor do Rei, não tendo este filho varão da Rainha e tendo tantos de Dona Leonor Nuñez de Guzman, como se encontra escrito na História que compôs, ou mandou ordenar, o Rei Dom Pedro de Aragão, seu inimigo, e não parece tê-lo deixado Dom Pedro Lopez de escrever pela honra da Rainha Dona Maria, sua mãe, pois quanto à sua vida em diversas passagens assinala que não foi a que devia, e que por essa causa foi morta em Portugal, mas, ao que se pode julgar, deixou-o de referir porque não era coisa com qualidade que pudesse aproveitar a elRei Dom Enrique, pois nunca fora objectada a elRei Dom Pedro por nenhum adversário para justificar a sua sucessão, ainda que lhe chamassem tirano, como elRei Dom Enrique lhe chamava (2).)

No entanto, é afirmado o seguinte por alguns, que houve outra Relação das coisas sucedidas no reinado delRei Dom Pedro, escrita com toda a pureza e verdade, e que ela foi levada a Inglaterra à Infanta Dona Costanza, sua filha, e ao Duque de Alencastre, marido desta, e que depois, do Mosteiro de nossa Senhora de Guadalupe, veio às mãos do Doutor Lorenzo Galindez de Carvajal, que postimeiramente, em tempo do Rei Católico, se fez censor e juiz para emendar os escritos dos Cronistas que foram dos Reis Dom Juan o Segundo e Dom Henrique, seu filho (o qual Doutor, pelas letras e autoridade, o podia mui bem ser), e que esta verdadeira História, da qual afirmam ter sido autor Dom Juan de Castro, Bispo de Jaen, nunca mais apareceu (3). E esta opinião não é assim tão ligeira, visto que se afirma numa Abreviação das Histórias de Castela que se ordenou no tempo delRei Dom Juan o Segundo, como coisa mui certa constante, que não houve outra verdadeira, por estas palavras: «segundo o que mais largamente está escrito na Crónica verdadeira deste Rei Dom Pedro, porque há duas Crónicas, sendo a outra fingida para se desculpar os erros que contra ele foram feitos em Castela, os quais causaram que este Rei Dom Pedro se mostrasse tão cruel como em seu tempo foi.»

Certamente, para mim, não é tão de maravilhar que existisse uma História a que se pudesse chamar verdadeira, por se referirem nela muitas coisas que na de Dom Pedro Lopez de Ayala se calassem, quanto chamar-se a esta que temos fingida, sendo toda ela de coisas tão sabidas, certas e notórias, que não se podem com verdade negar, mormente que o Autor deste Compêndio, que isto afirma como coisa tão adquirida, escrevendo, se bem que em suma, as coisas que sucederam no reinado delRei dom Pedro, nenhuma assinala nem declara, em sua justificação, pela qual se possa reputar o Autor da Crónica que possuímos como homem de ficção, e não, ao invés, como mui leal e verdadeiro. Só uma coisa refere – o artificio de que usou o Conde Dom Enrique para persuadir a Rainha Dona Maria, mãe delRei, a que saísse de Segovia e se juntasse aos Senhores que haviam tomado a voz de que elRei voltasse a viver com a Rainha Dona Blanca, sua mulher – para mais autorizar a sua causa, que se colocará adiante em seu devido lugar, e este mesmo Autor dessa História Abreviada erra em coisas que são mui averiguadas e notórias em matéria de verdade. Por onde se entende manifestamente que, ao dizer que havia uma História que era verdadeira e outra fingida, seguiu uma voz e opinião introduzida entre as gentes sem a averiguar.

Porque quando considero que tantos anos são passados de então para cá – depois que a sucessão destes Reinos foi restaurada e igualada com o matrimónio da Princesa Dona Catalina, filha do Duque Juan de Alencastre e da Infanta Dona Costanza, filha do Rei Dom Pedro, e cessou aquele ódio e inveja que havia nas coisas deste Príncipe, de tal maneira que os seus sucessores já não lhe chamavam o Cruel, mas sim Justiceiro – e esta que chamam verdadeira Crónica nunca veio à luz, apesar de conter, como há muito se diz, a causa da inimizade, temo que tal opinião, acolhida por tantos, haja tido fundamento em alguma vã persuasão, como muitas vezes acontece, pois que a diligência de homens tão curiosos como os dos nossos tempos não conseguiu descobrir uma obra como esta, de cuja leitura não podia resultar nenhum mau exemplo, mas antes muito aviso para os tempos que hão-de vir.

Pois que assim é, e até agora em nada, se eu não me engano, podemos ter por suspeito ou parcial o Autor desta Vulgar, e porque é a mais grave e mais bem ordenada que foi escrita pelos Autores daqueles tempos, de muita razão será não dar azo a que vá tão maltratada e descomposta como até agora a vemos, pelo grande descuido e a negligência dos que primeiro a imprimiram e publicaram com os mesmos vícios e erros que ainda hoje se mostram. A consideração e a fadiga que nisto se teve, se dela resultar algum proveito, poder-se-á ter por bem empregada, e ainda mais se, em sua imitação, aqueles que o poderão fazer com maior indústria e suficiência tomarem a seu cargo o colocar dalgum cuidado na correcção das Histórias dos Reis seus antecessores, que tanta necessidade têm disso e foram ordenadas por pessoas de muita autoridade.

No que toca à autoridade desta, é de advertir que existem duas Relações da obra de Dom Pedro Lopez de Ayala que são muito diferentes, ainda que na substância de facto divirjam pouco, assim como no discurso do proceder (4), porque uma, que é a Vulgar – da qual existem muitos originais e que termina na morte delRei Dom Juan I – é mais copiosa, bem ordenada e feita com mais diligência que a outra, que é mais Abreviada e deve-se ter ordenado primeiro (5), enquanto a segunda se poliu mais e foram-lhe retiradas algumas coisas que, estando já alicerçada a sucessão do Reino, se pensou que poderiam ofender, e as que eram dignas de saber-se declaram-se adiante (6), para maior notícia das coisas passadas.

Desta reduzida à brevidade, de que falo, existem mui poucos originais, e na Livraria do Mosteiro de nossa Senhora de Guadalupe há um (7), que dizem que foi trocado, como filho espúrio, em lugar do legítimo, natural e verdadeiro, que ficou em poder do Doutor Carvajal, e nele se copia o Proémio que foi ordenado por Dom Pedro Lopez de Ayala – que nunca se acha em nenhum dos originais da Vulgar – e se pôs ao início da tábua dos capítulos. Esta Abreviada também termina na morte do Rei Dom Juan o I, mas em algumas encontra-se a Relação do sucedido nos cinco anos primeiros delRei Dom Enrique, seu filho, que não se publicou nem se continua na Vulgar, sendo uma mui notável parte do que aconteceu nas tutorias deste Príncipe, e ordenada pelo mesmo Dom Pedro Lopez de Ayala, que se seguirá à História delRei Dom Juan, seu pai, e, assim, pode ser que esta diversidade fosse o motivo por que se persuadiram alguns que havia duas Histórias que eram entre si mui diferentes.

Esta conferiu-se com diversos originais, e, usando-os a todos, reduziu-se à forma e linguagem em que foi escrita, emendando-a e corrigindo-a em muitos erros e vícios. Quanto aos que são de alguma consideração, põem-se aqui as Advertências que se pensou convir, para apresentar esta obra em toda a pureza e perfeição, como era justo, sendo as coisas tão notáveis e o Autor de tanta dignidade e autoridade, e pelo que é devido à memória das coisas antigas, que tão necessária é em todo o bom governo de tão grande Reino.

 

Nota 1. Ver, nas Adições às Notas, a XXI.

Nota 2. Ver no Apêndice as Cartas de Zurita a Dom Diego de Castela, Deão de Toledo, que inseriu Dormer nos preliminares à sua edição das Emendas, onde se faz, de forma algo mais extensa, esta defesa das Crónicas de Ayala. E.

Nota 3. Ver, nas Adições às Notas, a XXII.

Nota 4. Diferenciam-se sobretudo na divisão em Capítulos, pois por vezes um da Abreviada inclui dois ou três desta Vulgar E.

Nota 5. Parece não haver dúvida de que a Vulgar foi a última que Ayala ordenou, reinando Dom Enrique III, pois no final do capítulo 13, Ano V, página 131, diz que «ao Rei Dom Pedro nasceu-lhe, de Dona Maria de Padilha, uma filha que chamaram Dona Costanza, a qual casou com o Duque de Alencastre, e tiveram por filha a Rainha Dona Catalina, que é agora mulher do Rei Dom Enrique.» E.

Nota 6. No pé das folhas. E.

Nota 7. Há dela outro Manuscrito na Livraria do Escorial, e igualmente nele, como no de Guadalupe, estão os cinco Anos de Dom Enrique Terceiro. E.

 

 

NOTÍCIAS DA QUALIDADE E CIRCUNSTÂNCIAS DE DOM PEDRO LOPEZ DE AYALA.

Das Generaciones y Semblanzas, de Fernan Perez de Guzman.

 

Dom Pero Lopez de Ayala, Chanceler Mor de Castela, foi um Cavaleiro de grande linhagem, pois da parte de seu pai vinha dos de Haro, de que quem os de Ayala descendem, e da parte de sua mãe vinha de Zavallos, que é um grande solar de Cavaleiros. Alguns da linhagem de Ayala dizem que vêm de um Infante de Aragão a quem elRei de Castela deu o Senhorio de Ayala, e eu assim o achei escrito por Dom Fernan Perez de Ayala, pai deste Dom Pero Lopez, mas não o li em Historias nem tenho disso outra certeza. Foi este Dom Pero Lopez de Ayala alto de corpo e delgado e de boa pessoa, homem de grande discrição e autoridade e de grande conselho, quer na paz, quer na guerra. Teve grande lugar cerca dos Reis em cujo tempo viveu, pois, sendo moço, foi bem quisto delRei Dom Pedro, e depois foi-o delRei Dom Enrique Segundo, sendo do seu conselho, e mui amado por ele. ElRei Dom Juan e elRei Dom Enrique, seu filho, fizeram dele grande menção e fiança. Passou por grandes feitos de guerra e de paz. Foi preso duas vezes, uma na batalha de Najara e outra em Aljubarrota. Foi de mui doce condição e de boa conversação, e de grande consciência, pois temia muito a Deus. Amou muito as ciências, entregando-se muito aos livros e às Histórias, de tal modo que, embora fosse assaz Cavaleiro e de grande discrição na prática do mundo, foi todavia naturalmente mui inclinado às ciências, e assim ocupava grande parte do tempo a ler e estudar, não as obras de Direito, mas as de Filosofia e as Histórias. Por causa dele são conhecidos certos livros em Castela, pois antes não o eram, tais como o Tito Lívio, que é a mais notável História Romana, as Quedas dos Príncipes, os Morais de São Gregório, o Isidoro de Summo bono, o Boécio, a História de Tróia. Ordenou a História de Castela desde o Rei Dom Pedro até ao Rei Dom Enrique o Terceiro, e fez um bom livro de Caça (1), que ele foi mui caçador, e outro livro chamado Rimado de Palácio (2). Amou muito as mulheres, mais do que a Cavaleiro tão sábio como ele convinha. Morreu em Calahorra com a idade de setenta e cinco anos, no ano de mil e quatrocentos e sete. Está sepultado no Mosteiro de Quejana, onde estão os outros da sua linhagem.

 

Nota 1. É um livro de Cetraria intitulado «Da Caça das Aves, das suas plumagens, doenças e mezinhas», dedicado «ao mui honrado Padre e senhor Dom Gonzalo de Mena, Bispo da mui nobre cidade de Burgos», a quem chama seu parente e mestre.

Nota 2. «Rimado» porque está escrito em versos de catorze sílabas, chamados Rimos. O Marquês de Santillana, na sua Carta a Dom Pedro Condestável de Portugal, diz: «Entre nós usou-se primeiramente o metro em assaz formas, tais como o livro de Alexandre, os Votos do Pavão e ainda o livro do Arcipreste de Hita, e também desta guisa escreveu Pero Lopez de Ayala, o Velho, um livro que fez das maneiras do Palácio e chamaram os Rimos.»

 

 

DE UMA RELAÇÃO DA LINHAGEM DE AYALA (1), que se encontra no final da Crónica Manuscrita do Rei Dom Alonso XI, na Biblioteca do Escorial, donde a copiou Salazar, Provas da Casa de Lara, p. 56.

 

Dom Pedro Lopez de Ayala, filho primogénito do dito Dom Fernan Perez, foi Chanceler Mor de Castela e Senhor de Salvatierra de Álava. Foi este foi um dos nobres e notáveis Cavaleiros do seu tempo, pois foi um Cavaleiro de mui grande discrição e autoridade e de grão conselho, que passou por mui grandes sucessos assim de guerra como de tratos, e dele fizeram mui grandes confianças os Reis em cujo tempo viveu, e não somente os Reis de Castela, mas ainda os Reis e Príncipes do Reino de França. E foi homem de grande saber, e – para avisar e enobrecer a gente e a nação de Castela – fez romancear do Latim, em língua Castelhana, algumas Crónicas e Estórias que antes dele nunca foram vistas nem conhecidas em Castela, entre as quais uma foi a Estória do Tito Lívio, que fala mui cumpridamente dos feitos dos Romanos, e outra a Estória que é dita Dos Sucessos dos Príncipes, e a Estória de Tróia, e o Boécio de Consolação, e os Morais de São Gregório. E para que os grandes e notáveis feitos de Castela não ficassem sem memória, fez ordenar uma Crónica de todos os sucessos que aconteceram em Castela desde que morreu elRei Dom Alfon até ao tempo delRei Dom Enrique o III, o qual foi filho delRei Dom Juan. E morreu este dito Dom Pedro Lopez em Calahorra com a idade de setenta e cinco anos.

 

Nota 1. Argote de Molina – Nobiliário, liv. I, cap. 80, p. 81 – atribui esta Relação ao próprio Dom Pedro Lopez de Ayala.

 

 

PROÉMIO (1) DE DOM PEDRO LOPEZ DE AYALA ÀS CRÓNICAS DOS REIS DE CASTELA DOM PEDRO, DOM ENRIQUE II, DOM JUAN I E DOM ENRIQUE III.

 

A memória dos homens é mui fraca e não se pode acordar de todas as coisas que no tempo passado sucederam, razão pela qual os Sábios antigos inventaram certas letras e artes de escrever, de maneira a que as ciências e grandes feitos que aconteceram no mundo fossem escritos e guardados, permitindo aos homens conhecê-los e tomar daí bons exemplos para fazer bem e se guardar do mal, e para que ficassem em relembrança perdurável foram depois feitos livros onde tais coisas foram escritas e guardadas. E por conseguinte, quando os Macabeus fizeram as suas amizades e confederações com os Romanos, ordenaram que todas as composições e avenças que entre eles se passaram fossem escritas com letras caudinais (2) em tábuas de cobre, a fim de que para sempre ficasse deles memória, e assim foi feito. E igualmente foi depois usado e mandado por os Príncipes e Reis que fossem feitos livros, que são chamados Crónicas e Estórias, onde se escrevessem as cavalarias e outras quaisquer coisas que os Príncipes antigos fizeram, para os que depois deles viessem, lendo-as, tomassem melhor e maior esforço de fazer bem e de se guardar de fazer mal.

E porque dos feitos dos Reis de Espanha – os quais foram mui antigos – do tempo em que os Reis e Príncipes Godos começaram, houve alguns que se trabalharam de os mandar escrever, de modo a que os seus nobres feitos e Estórias não fossem olvidados, assim houve depois outros, até aqui, que quiseram tomar carrego de o continuar.

E deveis saber que do primeiro Rei Godo que veio à Espanha, que era Cristão e foi chamado Atanarico (3), até ao Rei Dom Rodrigo, que foi o postimeiro Rei dos Godos, houve trinta e cinco Reis. E depois que a terra de Espanha foi conquistada pelos Mouros, quando Tarif e Muza a ela passaram por conselho do Conde Dom Illan, ficou Rei nas Astúrias elRei Dom Pelayo, filho do Conde Dom Pedro de Cantabria, que vinha daquela linhagem dos Godos, e houve desde ele até ao Rei Dom Alfonso que venceu a batalha de Tarifa a Abulhacen, Rei de Fez e de Marrocos e de Sujulmenza e de Tunez, trinta e cinco Reis (4). E do dito Dom Alfonso até hoje houve depois quatro, que foram Dom Pedro, Dom Enrique, Dom Juan e Dom Enrique, que reina. E de todos ficou relembrança por escritura de todos os seus grandes feitos e conquistas que fizeram, dos sobreditos Reis Godos e daqueles que, depois que elRei Dom Pelayo reinou, até ao dito Rei Dom Alfonso, que venceu a batalha de Tarifa, reinaram.

E por conseguinte daqui em diante, eu, Pero Lopez de Ayala, com a ajuda de Deus, assim o entendo de continuar, o mais verdadeiramente que puder naquilo que vi, do qual não entendo dizer senão a verdade, e outrossim do que acontece na minha idade e no meu tempo, em algumas partes do mundo onde não hei estado, e o souber por verdadeira relação de Senhores e Cavaleiros e outros dignos de fé e de crer, dos quais o ouvi e me deram disso testemunho, tomando-o eu com a maior diligência que pude. E neste livro terei esta ordem, começarei cada Ano que elRei reinou segundo o Ano do Nascimento de nosso Senhor Jesu-Christo e o da Era de César, que se contou em Espanha de há grandes tempos para cá, e em cada ano partirei a Estória por capítulos. De tudo isto farei Tábua, para que o leitor possa mais à sua vontade encontrar a Estória que lhe prouver, e a Tábua está aqui abaixo deste Prólogo, antes das Estórias dos feitos.

 

Nota 1. Este Proémio falta em todos os impressos e Manuscritos da Vulgar, Zurita copiou-o de um Manuscrito da Abreviada e juntou-lhe Notas. Vai cotejado com o do Escorial. E.

Nota 2. Juan de Iciar, na Arte de Escrever, chama letras caudinais às maiúsculas da letra de livros de coro. Zurita diz que noutro códice está: «letras cavadas em tábuas de cobre». E.

Nota 3. Em nenhum Autor grave antigo, nem moderno, se encontra que Atanarico viesse a Espanha, e todos em conformidade escrevem que morreu em Constantinopla, como, por exemplo, Amiano Marcelino, Orósio, São Isidoro e Próspero Aquitânico. E Ataúlfo foi o primeiro que veio. Z.

Nota 4. Mais certo é o número dos Reis Godos que se coloca neste Proémio, desde elRei Atanarico até elRei Rodrigo, do que aquele que se assinala aos Reis desde Dom Pelayo até Dom Alfonso, pai delRei Dom Pedro, que se diz ser também de trinta e cinco, porque se acham mais Reis, e assim creio que está errada esta passagem por culpa dos copistas, e não do Autor. Z.