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Capítulo I - As causas das cruzadas e os seus preparativos

A análise das causas das cruzadas é desde há muito objecto da atenção da ciência histórica. Os estudiosos dos séculos XIX e XX avançaram muitas e diversas explicações para essas investidas de milhões de europeus ocidentais sobre o Próximo Oriente no decurso de quase dois séculos (com interrupções, as cruzadas duraram de 1096 a 1270).

 Nos primeiros decénios do século XIX, Friedrich Wilken e J. F. Michaud, seguindo a tradição eclesiástica católica, viam-nas como uma manifestação da religiosidade dos povos da Europa Ocidental de outrora. Teriam sido o resultado de uma sincera e profunda vontade mística. Esses povos queriam arrebatar aos muçulmanos a cidade de Jerusalém, com o chamado Santo Sepulcro, e os restantes “lugares sagrados” da Palestina.

Posteriormente, em consequência do desenvolvimento científico, à medida que se iam descobrindo novos materiais históricos e se elaborava um método crítico para estudar as fontes medievais, essa ingénua e fantástica tese será afastada pela maioria dos historiadores.

Os eruditos da segunda metade do século XIX e dos inícios do século XX, após uma análise mais aprofundada da enorme massa de documentos já disponível, concentraram a sua atenção nos diversos fenómenos da vida económico-social dos séculos XI a XIII.

H. Prutz, T. Wolff e outros vão sublinhar a miséria que então grassava entre as massas populares de muitas regiões da Europa. W. Heyd, os interesses comerciais das cidades da Itália do norte. L. Breyer, W. Stevenson, W. Norden e muitos outros historiadores, que o papado foi levado a organizar as cruzadas como meio de reforçar o seu prestígio na luta contra os imperadores germanos e conseguir a reunificação com a Igreja ortodoxa grega.

Encontramos importantes contribuições para o estudo das causas reais das cruzadas, os seus factores económicos, sociais e políticos, nos trabalhos dos franceses P. Riant, L. Breyer, A. Luchaire, F. Chalandon, dos alemães H. Sybel, H. Prutz, B. Kugler, T. Wolff, do austríaco R. Röricht, dos russos V. G. Vasilevsky, F. I. Uspensky, P. Mitrofanov, D. N. Egorov e em muitos outros.

No entanto, mesmo entre estes são numerosos os investigadores que, no fundo, ainda mantêm a ingénua representação das cruzadas como luta de duas religiões. Guerra entre cristianismo e Islão, «entre a cruz e a meia-lua», nas palavras de Sybel.

Quanto aos autores contemporâneos, se uma parte mantém a tradição de estudo da realidade social dessa época medieva, muitos outros recuam para as “explicações” fantásticas. E há mesmo alguns que se ancoram no fanatismo religioso e nas teorias que foram absolutamente gratas ao Vaticano até ao momento da meia mea culpa de João Paulo II.

Regra geral, a “escola do fantástico” apraz-se em repisar, uma e outra vez, a ideia de um ocidente europeu, no século XI, imbuído de profunda “exaltação religiosa”, em virtude das reorganizações eclesiásticas então verificadas, a ideia de “guerra santa” que essa exaltação religiosa teria popularizado, etc.

Assim, por exemplo, segundo Yves Le Febvre, as cruzadas teriam por único propósito o triunfo de uma religião, e visavam responder a uma única incógnita: o mundo seria cristão ou muçulmano, os seus costumes e instituições teriam de ser regidos ou pelo Evangelho ou pelo Corão.

Traço comum a todas as “escolas do fantástico” é o conceito de que as causas das cruzadas radicaram exclusivamente nas ideias então predominantes, não se preocupando em tentar compreender porque é que e como é que tais ideias entraram na cena histórica. P. Rousset, no seu livro “As origens e particularidades da primeira cruzada”, põe em primeiro plano «o clima psicológico», «a disposição da mente e dos corações do século XI», etc. Pela mesma “cartilha” lêem, ainda a título de exemplo, os norte-americanos P. R. Lamont e A. S. Atiya.

Para compreender quais foram na realidade as causas das cruzadas há que responder, no mínimo, a três questões:

Porque é que os camponeses e os feudais da Europa Ocidental (e, posteriormente, também os habitantes das cidades) se encaminharam, no termo do século XI, a países do ultramar como a Síria e a Palestina?

Porque é que esse movimento se fez sob a bandeira da religião?

Que circunstâncias determinaram, pelos menos no seu início, precisamente esta direcção (a da costa oriental do Mediterrâneo)?

Para esclarecermos estes problemas é-nos necessário analisar a situação das diferentes classes feudais do Ocidente nos finais do século XI, o papel que a Igreja católica desempenhava na sociedade de então, as relações económicas e políticas existentes à época entre a Europa Ocidental, Bizâncio e o Oriente.

O século XI, na Europa Ocidental, é assinalado por grandes mudanças económicas. Progressos na transformação da lã, no trabalho dos metais, nos métodos de construção e também na agricultura e na criação de gado, levaram à gradual separação dos ofícios, em particular na agricultura (no “campo”). Fundam-se e expandem-se cidades. Entre a cidade e o campo que a circunda estabelecem-se relações comerciais regulares de maior ou menor vulto. Também de modo gradual, vão-se desenvolvendo os vínculos comerciais de carácter internacional, não apenas entre os países europeus, mas também com Bizâncio e o Oriente.

No comércio com o Oriente, até aí escasso, participam agora várias cidades. A cidade de Arles, no sul da França, comerciava com os árabes desde tempos remotos. Mas, no século IX, já Lião, Marselha e Avinhão organizavam expedições comerciais a Alexandria, no Egipto. Dali traziam as especiarias da Índia, as essências aromáticas da Arábia e outras mercadorias do Oriente, que depois seguiam pelos rios para o interior da França.

Em Itália, Bari praticava com o Oriente um comércio constante. Por exemplo, dali partiu em 1086 uma frota de naves carregada de produtos agrícolas e de outras mercadorias com destino a Antioquia, na antiga Síria (hoje a cidade pertence à Turquia). Os comerciantes de Amalfi foram frequentes hóspedes do Egipto. O Sultão egípcio, que também dominava a Palestina, cedeu-lhes um bairro inteiro em Jerusalém para as suas operações comerciais. Também Veneza efectuava um activo comércio com o Oriente. Nos inícios do século XI, as frotas comerciais venezianas dirigiam-se a quase todos os centros árabes importantes, Alepo, Damasco, O Cairo.

As jovens repúblicas italianas já detinham então a maior parte do comércio com o Oriente.

Mais tarde, os comerciantes da Itália do norte jogarão um importante e activo papel nas cruzadas, na mira do lucro e da consolidação da sua posição de “intermediários” no comércio entre o Ocidente e o Oriente, eliminando Bizâncio, o principal concorrente das cidades italianas no Mediterrâneo Oriental.

Assim, Génova, Pisa, Veneza só posteriormente irão ser “causa” no processo das cruzadas, quando estas já haviam alcançado certos resultados práticos. Na etapa inicial, as repúblicas comerciais da Itália do norte representam uma força de carácter secundário. As forças dos cruzados brotaram de outras camadas sociais da Europa Ocidental de antanho.

As causas das cruzadas radicam, em primeira instância, nas mudanças verificadas, nos começos do século XI, na situação relativa das duas principais classes sociais do Ocidente feudal. Essa mudança foi uma consequência das transformações económicas que já então se haviam dado.

 

A CLASSE CAMPONESA E A OPRESSÃO FEUDAL.

No século XI, os camponeses de muitos dos “países” da Europa Ocidental encontram-se reduzidos à servidão da gleba. Nessas regiões, se alguns ainda conservam parte da sua liberdade pessoal, nem por isso deixam de estar sujeitos a todo um rol de gravames sobre a terra em espécie e corveias.

[Corvéias eram as prestações em trabalho gratuito, obrigatórias. Os franceses ainda dizem: «quelle corvée!», ou seja, “que maçada!». E «être de corvée» tem o significado de “estar de faxina”.]

O servo da gleba chega a ser obrigado a trabalhar de graça três dias por semana para o senhor feudal. Tem de lhe entregar uma parte da sua própria colheita, de pagar a alcavala por pessoa (chamemos-lhe “imposto” por pessoa, “por cabeça”), paga pelo usufruto do bosque ou da pradaria, presta tributo para a manutenção do “exército” privado do senhor quando ele entra em campanha, etc., etc.

Algumas dessas sujeições exprimem e reproduzem a posição de dependência pessoal do camponês perante o seu senhor. Assim, se os herdeiros do falecido camponês queriam conservar os bens deste, tinham de os resgatar pela entrega das melhores cabeças de gado e peças de roupa, pois que legalmente, de acordo com o “direito de mão morta”, os bens do defunto haviam passado a ser propriedade do feudal.

Qualquer acontecimento na vida familiar do senhor, como, por exemplo, o casamento ou maior idade do seu primogénito, obrigava o servo a pagar, de uma só vez, um tributo. Poderíamos ainda referir gravames na prestação da justiça, para a “manutenção” dos caminhos, na concessão do direito de mercado e outros, que o feudal, na sua qualidade de senhor da terra, extorquia ao camponês.

Além de pagar tudo isto, havia ainda que entregar o dízimo à Igreja. E com frequência, malgrado o seu nome, o valor do dízimo atingia muito mais que o décimo dos proventos do lavrador.

O desenvolvimento das cidades e do comércio tornou mais pesada a condição de vida das massas camponesas. Os feudais agora já não se contentam com as contribuições em espécie, como farinha, manteiga, carne, ovos, frutas, etc., e corvéias. Os seus “apetites” cresceram. Querem também poder comprar os produtos da cidade, de bem melhor qualidade que os fabricados pelos seus próprios artesãos de aldeia. Armas, vestimentas, calçado. Desejam as mercadorias que os comerciantes italianos trazem do ultramar. Tecidos orientais, vinhos, ornamentos e ricos objectos de uso doméstico. As necessidades dos senhores haviam-se tornado mais variadas. Aumentaram, pois, arbitrariamente, ano após ano, as exigências de todo o tipo que faziam aos seus camponeses.

No século XI já se haviam introduzido em diversas regiões os tributos em dinheiro, um gravame demasiado pesado para o camponês que vivia essencialmente duma economia natural.

Relata um documento do século XI do convento de São Miguel, na Lorena, que um tal conde Reinaldo, querendo extorquir dos lavradores que pertenciam ao convento uma “contribuição” em dinheiro (= talha), «recolhia a nossa gente nos calabouços e, por meio da tortura, exigia-lhes a entrega dos seus bens».

Segundo o documento, o próprio conde reconhecia que praticava tais actos de tirania «contrariando o direito».

São muitos os documentos dos séculos XI e XII que nos mostram os senhores feudais laicos e eclesiásticos a espoliar desalmadamente os seus camponeses, reclamando a cada passo mais e mais gravames.

As intermináveis guerras em diversas regiões da Europa do século XI também jogaram um papel importante para o grassar da miséria. Em França, tanto grandes como pequenos senhores se hostilizam constantemente. A Alemanha é acossada pela guerra entre os diversos agrupamentos feudais, na luta pelo poder entre imperadores e papas. Desapiedadas guerras entre os partidos feudais ocorrem também em Itália e noutros países.

O camponês era a primeira vítima desse infindável estado de guerra. Os senhores não poupavam as suas searas, o seu mísero património era sujeito ao roubo e à devastação, a sua casa incendiada. Muitas vezes as próprias colheitas foram destruídas.

Diz o cronista Orderico Vital (Ordericus Vitalis) sobre as lutas entre a nobreza normanda dos finais do século XI: «a sede de guerra dominava a tal ponto que os camponeses e os pacíficos habitantes das cidades não podiam permanecer em segurança nas suas casas».

Os documentos que se conservaram nos conventos oferecem-nos um quadro espantoso da ruína provocada pelas guerras feudais. Um de 1050, referente à Turena (Touraine): «em consequência das frequentes guerras, essa região foi transformada num deserto, e por quase sete anos ninguém a habitou». Um outro documento, datado de 1062, do Anjou: «os campos foram devastados e abandonados».

Assim, esmagados pelo jugo e pelas guerras feudais, os camponeses e as suas famílias eram obrigados a suportar uma existência miserável, padecendo mesmo a fome crónica.

Há que ter em conta que, à época, o trabalho do agricultor sujeitado era pouco produtivo. Apesar de um certo progresso nos cultivos, a técnica agrícola apresentava-se ainda muito primitiva. A terra trabalhava-se as mais das vezes manualmente, à pá ou à enxada, dado que o gado de labuta era escasso. Com frequência atrelavam ao pesado arado de madeira uma vaca, a que juntavam por meio de arreios até mesmo o gado miúdo. Pouco se adubava a terra, e quando usavam o estrume faziam-no de maneira insuficiente. Deste modo quase não se restabelecia a fertilidade dos solos, que rapidamente se esgotavam.

No decurso do século XI várias regiões da Europa sofreram a fome em virtude das más colheitas. Alguns historiadores atribuem essas desgraças às perturbações climáticas então ocorridas. Mas, se fenómenos como a seca, o granizo, as precipitações pluviais excessivas nesta ou naquela região tiveram um efeito pernicioso na vida das aldeias (e os cronistas do século XI muitas vezes referem-nos), é igualmente certo que a miséria camponesa foi também potenciada pelo carácter opressivo do regime social e pelo baixo nível da técnica agrícola.

Pode medir-se o espantoso volume da fome no século XI pelos numerosos relatos de casos de canibalismo. O cronista borgonhês Radulfo Glaber relata a ampla difusão do canibalismo por diversas regiões da França durante o período de fome que eclodiu em 1032 e se prolongou pelos três anos seguintes. Tal como muitos dos seus contemporâneos, Glaber pensava que a fome era devida à cólera de Deus, desencadeada como castigo pelos pecados dos homens. Eis o que ele nos diz: «As pessoas comiam carne humana. Os caminheiros e viajantes eram atacados pelos mais fortes, que os partiam em pedaços e comiam, depois de os haverem assado...em muitos lugares, os cadáveres, retirados à terra, eram usados para acalmar a fome...Foi tão comum o acto de consumir carne humana que houve quem a tenha exposto para venda, na localidade de Tournus, como se tratasse de carne de animais: detiveram-no, e não negou o seu crime; depois de o haverem atado, queimaram-no vivo. Mas a carne que ele vendia, e que enterraram, alguém a foi recuperar à noite e a comeu».

O que Glaber narra não foi caso único no século XI. Numerosos cronistas de então descrevem as misérias padecidas pelas populações nos anos de fome. O historiador francês Dareste de la Chavanne calculou que, no decurso do século XI em França, terão ocorrido 26 anos de perda de colheitas em várias regiões.

Sabemos que a fome nas aldeias se tornou comum no final desse século, quando a Europa Ocidental foi atingida por uma série consecutiva de “sete anos fracos” (1087-1095).

Perdas frequentes de colheitas, com mortandade do gado, a provocarem a fome. As pestes devastadoras acompanhando essas desgraças. Epidemias que se generalizavam nos anos de fome, aniquilando milhares e milhares de pessoas debilitadas pela falta de alimento tanto nas aldeias como nas cidades.

«Muitas aldeias ficaram sem lavradores», diz de forma lacónica um analista francês ao narrar a epidemia de peste bubónica de 1094. Segundo o relato de um outro contemporâneo, devido à epidemia, em apenas três meses morreram em Regensburgo mais de 8.500 pessoas.

E enquanto todos estes infortúnios se abatiam sobre os camponeses, ao invés de se atenuar, aumentavam em escala sempre maior as espoliações dos feudais.

Em algumas regiões estalam revoltas camponesas. Os analistas assinalam-nas na Bretanha, na Flandres, em Inglaterra. Também as houve em França, pouco antes do início da primeira cruzada. Dizem os analistas que o povo, esgotado pela fome e a miséria, incendiava, saqueava e devastava as propriedades dos ricos, praticando uma justiça sangrenta nos que, aproveitando-se da situação desesperada das massas, se enriqueciam pela usura, arrancando aos pobres o que restava do seu mísero património. «Os pobres martirizavam os ricos pelo roubo e os incêndios», diz com aflição o monge cronista Sigeberto de Gembloux.

O protesto espontâneo dos camponeses manifestou-se muitas vezes de modo passivo. Não vendo qualquer saída para a vida de miséria e de absoluta carência de direitos que levavam, muitos entregaram-se ao desespero. São conhecidos, na nona década do século XI, casos de suicídios em massa nas aldeias.

Outros procuravam fugir dos horrores da realidade feudal pela “emancipação espiritual”. Surgem assim no seio do povo doutrinas religiosas que repudiavam o regime feudal e predicavam a igualdade dos homens. A Igreja combateu-as como heresias e perseguiu implacavelmente esses “apóstatas” que juntavam à heresia religiosa o protesto das massas contra a exploração feudal.

Em França e Itália, esses hereges, tanto camponeses como habitantes das cidades, consideravam que o mundo terreno (o do feudalismo) havia sido engendrado pelo diabo, e chamavam à renúncia de tudo o que fosse prazer carnal ou bem material.

Datam precisamente do século XI as primeiras notícias que referem as novas heresias nesses países.

Outros tentavam de um modo mais acomodado romper os laços que os uniam ao odiado mundo do mal, sem lutarem contra ele de forma activa. No decurso dos “sete anos fracos” aumenta o número dos que se dedicam à vida eremita e dos que ingressam nos conventos. Observam-se ainda outras manifestações de ascetismo, do desejo de “matar a carne”. Bernholdo (ou, aportuguesando, Bernoldo), cronista da Suábia, em narrativa que data de 1091, escreve que, na Alemanha, muitas moças camponesas repudiavam o matrimónio. Também se verificam muitos casos de renúncia à propriedade, fenómeno que chegou mesmo a gerar uma “espécie” de doutrina: «a propriedade é um fardo para o espírito».

Os historiadores ocidentais escreveram milhares e milhares de páginas sobre o “espírito de ascetismo” no Ocidente do século XI, sobre a expansão do sentimento e da ideia religiosa, procurando com isso explicar a origem das cruzadas.

Estes autores não vêem que o fortalecimento da disposição religiosa entre o povo teve origens perfeitamente materiais. Nas massas, esse sentimento foi provocado pelas condições insuportáveis da sua existência.

Já outros, como o bizantinista francês P. Lemerle, afirmam que por mais importante que haja sido o “factor religioso”, ele não pode explicar por si só, em toda a sua plenitude, a origem das cruzadas. Elas constituem, ainda segundo Lemerle, um fenómeno que se encontra «na prática e na sua essência frequentemente em contradição com a cristandade». Este historiador sublinha que a sedimentação do sentimento religioso se processa sobre «fundamentos positivos». «É para mim evidente que os motivos básicos das cruzadas foram de ordem económica e social»... «O problema das cruzadas» deve solucionar-se em primeiro termo pelo estudo da «história das relações agrárias em França» (“Bizâncio e a cruzada”, vol. III, págs. 615-616).

O servo da gleba e o camponês na miséria, agrilhoados pela sua dependência pessoal do senhor da terra, foram também injuriados pela sua própria ignorância e alienação mental. A Igreja fomentou-as por todos os meios ao seu dispor, enquanto, ao mesmo tempo, predicava aos que trabalhavam o campo a submissão, a resignação e o medo a Ocidente.

Sendo presas de fantásticas ideias religiosas que lhes turvavam o entendimento, esses camponeses olhavam para as desgraças que os afligiam através das névoas da sua ideologia e do seu modo de “ajuizar” religioso. As más colheitas, a fome, a peste ígnea (pestilentia ignearia) que lhes levou os filhos à sepultura não eram, na sua crença, senão resultados e manifestações da “ira divina”, o castigo do céu por haverem cometido um qualquer misterioso pecado capital. E para se libertarem do sofrimento da existência, o único meio “à sua disposição” seria o que houvesse de apaziguar e satisfazer essas enfastiadas “forças celestiais”.

[Nas Espanhas, a peste ígnea era chamada "Fogo de Santo António", uma enfermidade conhecida actualmente como ergotismo, que fazia a sua aparição sobretudo nas épocas de más colheitas e de escassez. A doença era produzida pela ingestão de alimentos preparados com farinha contaminada pelo cornelho (fungo parasita) do centeio.

Esta enfermidade apresentava-se de duas formas: convulsiva e gangrenosa. A convulsiva caracterizava-se por manifestações nervosas, tonturas, prurido e convulsões. A gangrenosa, pelo facto dos sintomas anteriores serem seguidos de gangrena seca nas extremidades dos membros, formas que na realidade eram o resultado dos diferentes graus da intoxicação.

Em 1089, muitas regiões da França, Alemanha, Lorena e Brabante foram atingidas pela horrível enfermidade.]

Com o cérebro “formatado” pelo desconchavo religioso, o camponês imaginava que o “todo-poderoso” metamorfosearia a sua ira em graça se ele, homem pecador, lhe demonstrasse a sua fé por meio de um acto de particular despojamento, de uma acção capaz de “resgatar os seus pecados”.

A Igreja encarregar-se-á de dar forma concreta a esse desejo de “expiação”, propondo-lhe o “martírio pela fé”.

Na ânsia de se libertarem dos grilhões da feudalidade e das suas miseráveis existências, o servo e o camponês dependente voltaram as suas esperanças para o sacrifício religioso. Um conteúdo, ou seja, a aspiração à liberdade das massas, assumiu a forma do movimento religioso.

O “espírito de ascetismo”, característico da mentalidade de amplas camadas populares do século XI, representou uma das múltiplas manifestações do protesto passivo do povo contra o abuso feudal.

Mas era a fuga o método mais comum da luta passiva contra a crescente espoliação. Aldeias inteiras empreendiam-na, a maioria das vezes ao acaso, sem saberem aonde se dirigir. Muitos refugiavam-se nas florestas. «Todos os habitantes da paróquia se puseram em fuga...os camponeses foram para os bosques e não querem regressar», diz uma concisa inscrição de 1059 registada nos livros do convento de São Maxêncio, na Vendéia.

Este fenómeno generalizou-se no século XI. Das fugas dos camponeses falam as crónicas, os anais, as “vidas dos santos” e outros monumentos literários e documentos da época. Fugiam tanto os servos dos senhores laicos como os dos feudais eclesiásticos. Aqueles «que nada tinham para comer», escreve um autor anónimo do século XI, referindo-se aos lavradores do convento de São Jorge de Schwarzwald, na Alemanha, que em 1092 decidiram abandonar o mosteiro.

Um alto dignitário eclesiástico, o abade Pedro o Venerável, diz numa das suas cartas dos começos do século XII que os servos foram obrigados a abandonar as suas terras e a fugir para países estranhos. O normando Orderico Vital menciona a fuga de «mui numerosos habitantes» nos tempos das guerras “civis” dos feudais normandos. Na queixa apresentada pelo convento loreno de São Miguel, afirma-se que os dependentes desse mosteiro, sendo-lhes já impossível suportar as extorsões e a perfídia do conde Reinaldo, «deixam as nossas terras completamente vazias e abandonadas».

 

AGUDIZAÇÃO DAS CONTRADIÇÕES NO SEIO DA CLASSE DOMINANTE.

Com as mudanças económicas, os “apetites” dos feudais foram crescendo no decurso do século XI, mas eram limitadas as possibilidades da sociedade de satisfazer essa gula em aumento. A economia camponesa, extenuada pela espoliação e ainda com uma técnica rudimentar, produzia pouco. E quanto maior era o desespero do lavrador, mais arriscado se tornava obrigá-lo a apertar a corda que, com frequência, lhe fazia as vezes de cinto.

Não lhes sendo suficiente ou não podendo roubar mais os camponeses, nas frequentes e intermináveis “faidas” ou guerras privadas os feudais pilhavam uns aos outros as suas terras e servos. O mais fútil pretexto as desencadeava. Contudo, as faidas ainda exasperavam mais o camponês.

Para ter êxito na guerra, o senhor tinha de manter numerosos vassalos que lhe prestassem o serviço das armas, compensando-os com a doação de terras. Porém, já não existiam mais terras livres em França, na Alemanha e em muitas outras regiões da Europa Ocidental. Todas as reservas haviam sido repartidas pelos vassalos.

Muitos dos grandes feudais belicosos encontravam-se, pois, numa situação sem saída. Precisavam de mais terras, mas a quem e onde ir roubá-las? Precisavam também de mais recursos financeiros, porém, como obtê-los se os camponeses já não os podiam fornecer, apesar de todas as manhas e crueldades usadas?

No decurso do século XI, um cada vez maior número de terras de pequenos e médios senhores vai passando para as mãos dos grandes feudais, quer por meio das faidas, quer através da cessão das propriedades aos grandes magnatas feudais e aos conventos, na mira de um dado benefício material ou “espiritual” (obter protecção, um cargo, a “absolvição dos pecados”, etc).

Forma-se no Ocidente uma numerosa camada de cavaleiros sem terras. A instituição, à época, do sistema do morgadio aumentou ainda mais o seu número. A herança deixa de ser repartida entre todos os filhos, passando em monopólio ao primogénito. Daqui vêm as alcunhas de «sem terra», «desafortunado», «sem roupa», «sem nada» de muitos dos cavaleiros participantes da primeira cruzada.

Reunidos em bandos, esses cavaleiros percorriam a França, a Flandres, a Lorena e outros países assaltando as aldeias e roubando quanto podiam aos camponeses; as suas parcas provisões de grãos e criação, a roupa e até os próprios instrumentos de trabalho. Assaltavam também os viajantes pelos caminhos (havia cavaleiros que o faziam de modo “solitário”, isto é, roubavam sozinhos).

Em 1096 o senhor Roberto de Peronne apresentou ao seu bispo (e senhor feudal) uma queixa contra um certo cavaleiro que o havia roubado e à sua gente quando levavam o vinho ao mercado da cidade. E o autor dos anais de Cambray apoda um dos castelos do bispo de “açoite” para os povoados e camponeses que viviam ao seu redor.

Muitos outros castelos feudais acoitavam verdadeiros ninhos de bandidos.

Estes bandos de cavaleiros também atacavam com frequência as grandes propriedades. Eram-lhes particularmente tentadoras as possessões da Igreja e dos conventos.

Muitos historiadores contemporâneos gastaram resmas de papel e litros de tinta a enaltecer a nobreza e a piedade dos “sem terra” e dos “sem roupa”, e no entanto um documento de meados do século XI diz-nos que não hesitavam em «atacar os clérigos desarmados, os frades e as monjas», nem tampouco em «roubar as propriedades dos cónegos..., também as terras e possessões da Igreja..., os clérigos, os frades e as monjas». Os documentos enumeram: roubavam os cavalos, os bois, as vacas, as ovelhas, as cabras; no sul de França queimavam os olivais.

O papa Leão IX descreve-os assim: «Vi essa gente tumultuosa, incrivelmente feroz, que pela sua impiedade supera os pagãos, que destrói em todas as partes as igrejas divinas, que persegue os cristãos, dando-lhes frequentemente a morte no meio de torturas horríveis...não perdoam nem às crianças, nem aos anciãos, nem às mulheres».

 

O QUADRO GERAL À ÉPOCA.

O desenvolvimento das contradições na sociedade feudal do Ocidente do século XI criara uma situação deveras alarmante.

Eram «tempos tumultuosos» de más colheitas, de fome e epidemias, de revoltas e de fugas dos camponeses, de banditismo dos cavaleiros sem património, de lutas entre os grandes senhores e os agrupamentos feudais.

As obras dos escritores e os documentos dos dignitários eclesiásticos da época abundam em queixas e comentários sobre a insegurança da vida social. O abade francês Guiberto de Nogent escreve sobre o «tumulto em todo o reino da França». O monge germano Eckehardo de Aura fala das numerosas «circunstâncias desfavoráveis» em que vivia a gente dos finais do século XI: a «discórdia pública» (as faidas e guerras feudais), a fome e a enorme mortandade causada pelas epidemias.

O papa Urbano II, mais tarde, no seu discurso no Concílio de Clermont, fará notar que «nem de dia nem de noite há segurança contra os ladrões e os bandidos», assinalando as depredações dos que «furtam os bens alheios» e dos que «infringem os direitos alheios», dos que incendeiam e dos «que lhes dão apoio» (o papa não se estava a referir, certamente, a “pilha-galinhas).

Os interesses imediatos das diversas camadas da classe dominante, dos «sem roupa» aos grandes senhores feudais, impunham a necessidade de se encontrar um meio que desse satisfação às suas crescentes reclamações de terras, servos da gleba, dinheiro e riquezas de toda a ordem. Deste modo, contentando-os, seria simultaneamente possível modificar o alarmante estado de coisas da sociedade da época, ameaçador da própria existência da classe dominante, tanto pelo ódio que gerava no seio dos camponeses como pelas lutas intestinas entre os próprios feudais.

Este equacionar da situação, assim como a solução encontrada, foram obra da Igreja católica.

 

A IGREJA CATÓLICA COMO BALUARTE DO REGIME FEUDAL. A POLÍTICA PAPAL E OS PRIMEIROS PASSOS NA EXPANSÃO FEUDAL DO OCIDENTE.

A Igreja católica era então o maior proprietário feudal. Os seus altos dignitários, papas, cardeais, arcebispos, bispos e abades pertenciam na sua totalidade à nobreza feudal.

Igrejas e conventos ampliavam as suas possessões de modo permanente e ininterrupto. Enquanto que as propriedades dos feudais laicos estavam sujeitas a redução, fosse pelas doações aos vassalos, em paga dos seus serviços, ou por outra via, já as terras dos feudais eclesiásticos não podiam deixar de aumentar incessantemente em consequência de doações e legados.

Os feudais em veste eclesiástica haviam espalhado na sociedade a crença segundo a qual, pelo meio das dádivas aos auto-proclamados “concessionários” de Deus na Terra, se podia alcançar o “perdão dos pecados”.

[O cristianismo, no seu início, entre outras mudanças na forma dos cultos, abolira os sacrifícios ao “deus de estimação”, tornando bem mais barato prestar-lhe graças. Passados alguns séculos, uns “senhores” que resolveram auto-intitular-se à força pastores do rebanho cristão, os padres e os bispos, reinstituíram o sacrifício, não em “estimação” ao deus, mas em abono dos seus vigários.]

Obrigando-se a orar pela salvação das suas almas, os feudais eclesiásticos iam arrecadando, com gulosa satisfação, as copiosas dádivas dos reis, príncipes e cavaleiros feudais.

Muitos conventos como, por exemplo, os do sul da França, já participavam do comércio. Os superiores e os abades não desdenhavam dos benefícios que lhes proporcionava a venda de vinhos, cereais e outros produtos obtidos pelo trabalho dos seus servos.

Esses proventos em moeda sonante que alcançavam no mercado estimularam os eclesiásticos a procurar tirar o maior proveito possível do labor dos seus camponeses. Se por um lado isso significou inovação técnica e melhorias nas culturas, por outro, também levou a que se intensificasse a espoliação do lavrador.

A Igreja católica não foi apenas o maior proprietário feudal. Ela era o grande zelador do próprio sistema dos senhores. Predicava que a ordem terrena (feudal) fora instituída por deus e que, por isso, não podia ser modificada, ajudando assim pela palavra (isto é, pela “formatação” das cabeças) a totalidade da classe feudal a manter na submissão as massas de laboratores.

Era pois o grande baluarte da então classe dominante ou, como dizia Frederico Engels (“As guerras camponesas na Alemanha”), «o suporte máximo da ordem feudal existente».

Esse papel de defensora dos opressores feudais não o exercia a Igreja católica em apenas alguns países. Era a toda a Europa Ocidental que ela fornecia e impunha a ideologia do sistema, “embrulhando-a” numa forma religiosa.

A Igreja assumia-se então como o «mais importante centro internacional do sistema feudal» (Frederico Engels).

A política da Igreja era a de defesa activa do regime social, determinada tanto pelos interesses imediatos dos eclesiásticos, na sua condição de ricos proprietários feudais, como pelas necessidades sociais e políticas de carácter geral de toda a classe dominante do Ocidente.

Durante o século XI, quase não podemos falar de poder central estatal em cada um dos países da Europa, dada a suma debilidade dos monarcas. Porém, estendendo-se por toda a parte, a Igreja católica compensava de algum modo essa falha nas coesões “nacionais”. Não só ajudou os senhores laicos a manter em sujeição as massas de servos, em França como na Alemanha, na Inglaterra ou na Itália, como prestava à classe dominante, na sua totalidade, bem mais amplos serviços, de toda a ordem e pelos mais diversos meios. Por exemplo, ajudando-a a ampliar os limites territoriais sob o seu controle [primeiro os pagãos recebiam a cruz, depois o senhor feudal cristão de espada à cinta. Veja-se o que sucedeu aos saxões com Carlos Magno. Uma variante moderna dessa “técnica” foi aplicada pelos norte-americanos na conquista do Havai].

Quando, nos séculos X e XI, se iniciam os “tumultos” na ordem feudal, a Igreja católica começou por temer, antes do mais, pela sorte dos seus próprios bens e procurou protegê-los. Porém, com o agravar da crise, os chefes eclesiásticos compreenderam ser necessário encontrar uma solução de fundo.

Os mosteiros eram a instituição eclesiástica mais poderosa a nível económico, bem como os mais activos “criadores” da ideologia religiosa.

Já no século X, são eles a tomar a iniciativa, introduzindo toda uma série de modificações no interior da Igreja católica, na mira do fortalecimento do seu ascendente moral sobre as massas populares e da sua posição material, aperfeiçoando-lhe a organização e aumentando-lhe o poderio.

O mosteiro borgonhês de Cluny, fundado em 910, iniciou essa reorganização, e por isso se chamou “movimento de Cluny” a esse processo de reforma eclesiástica que se desenrolou no Ocidente no decurso dos séculos X e XI.

Criou-se uma organização centralizada de mosteiros, denominada Ordem de Cluny. Gradualmente, centenas de mosteiros de diversos países vão ingressar nessa congregação.

O chefe superior da Ordem era o papa, que passa a receber uma parte das enormes riquezas geradas nos latifúndios dos conventos da congregação.

As regras da vida monacal tornam-se mais rigorosas e institucionaliza-se o celibato, entre outras reformas, tratando de fortalecer o prestígio da Igreja. Simultaneamente, os dirigentes do movimento de Cluny procuram sujeitar os movimentos de “rebeldia” surgidos na massa camponesa, bem como os senhores que, tratando de satisfazer a sua avidez, punham abertamente em risco a própria ordem feudal geral.

Para apaziguar a “aldeia”, e tentando conter de algum modo as anárquicas e destruidoras acções guerreiras dos barões e cavaleiros, a partir dos finais do século X, a Ordem de Cluny dá alento à celebração das assembleias da “paz de Deus” (Pax Dei) e da “trégua de Deus” (Treuga Dei) nas regiões mais martirizadas pelas faidas e guerras feudais.

Com a Pax Dei pretendia-se proibir: o roubo das igrejas e as agressões aos “homens de Deus que não usassem armas”, a pilhagem dos poucos animais que os camponeses possuíam, bem como o incêndio das suas choupanas, a chacina de crianças e mulheres. Mais tarde, os comerciantes e os seus bens serão arrolados à lista dos protegidos. A Treuga Dei, na sua forma mais comum, “interditava” os actos de guerra desde a tarde de quarta-feira até à manhã de segunda-feira, ademais das datas sagradas (Páscoa, Natal, etc).

Mas essas iniciativas pias, com excomunhões por sanção e forma voluntária (contratual), não puderam alcançar a almejada paz. Os chefes da Igreja falhavam assim no seu intento de aparecer aos olhos do povo como fautores de ordem e segurança.

Como a violência feudal não cessou, a Pax et Treuga Dei era periodicamente reafirmada. Na primeira metade do século XI, em França, essas resoluções foram readoptadas, sem qualquer efeito, a cada dez anos.

Um peculiar “arremedo de solução” para as fugas em massa de servos e camponeses foi praticado por muitos mosteiros e bispos cujas possessões bordejavam território não colonizado ou “pagão” (por exemplo, na Alemanha). Os monges davam guarida a uma parte dos fugitivos, a que os documentos chamam “hóspedes”, e estes, em troca, desbravavam os terrenos ainda virgens, ampliando assim os domínios dessas abadias.

Como é evidente, este “fazer saltar o camponês do fogo para a frigideira” não veio minorar o desespero das massas populares.

A Igreja católica viu-se, pois, na necessidade de procurar outros meios para defender a ordem feudal. Havia que encontrar um modo de deter os abusos de guerra contra os camponeses, de abrir uma “válvula” ao desespero popular que a sobreexploração acicatava, de acabar com os ataques dos cavaleiros bandidos “sem terra” e “sem roupa” às grandes propriedades de feudais laicos e eclesiásticos, dando simultaneamente satisfação às reclamações desses nobres deserdados.

Em suma, uma solução que conciliasse os interesses dos “sem roupa” com os dos grandes feudais e que permitisse conter o descontentamento popular. Uma solução de (e para a) ordem feudal.

O problema era como e à custa de quem o fazer. Para onde poderia a Igreja encaminhar as massas de camponeses ansiosas por terra e liberdade sem que isso prejudicasse, antes pelo contrário, fosse vantajoso tanto para a Igreja quanto para os demais senhores? Aonde lançar as “alcateias” dos “sem terra”? Que territórios podia a Igreja “oferecer” a toda a chusma de pequenos e grandes feudais ávidos de terra e riqueza, uns porque não as possuíam, outros porque cobiçavam ampliá-las?

A solução não surgiu num repente, mas foi amadurecendo paulatinamente no decurso de alguns decénios.

Na sua elaboração, os chefes da Igreja, com o papado a servir de centro coordenador, tiveram em conta os mais variados factores de carácter nacional e internacional. Por outro lado, o desejado “abre-te Sésamo” não foi revelado apenas aos cérebros eclesiásticos, fazendo a sua aparição, simultaneamente, nas cabeças de alguns círculos da nobreza laica.

O panorama histórico da segunda metade do século XI conduziu, uns e outros, no mesmo rumo.

A partir do século XI, os cavaleiros franceses vão participar nas guerras de conquista dos territórios dominados pelos muçulmanos na Hispania. Grandes contingentes de cavaleiros e barões da Normandia e da França meridional cruzaram então os Pirinéus, atraídos pela perspectiva de ganhar terras e de se enriquecerem na pilhagem das ricas cidades árabes.

Os primeiros a fazê-lo eram cavaleiros oriundos do ducado da Aquitânia e do condado de Toulouse, que em 1063-64 marcham em direcção ao Ebro, num grande exército encabeçado pelo duque Guilherme VIII da Aquitânia.

As narrativas daqueles que regressaram a França carregados de despojo atiçaram a cobiça de muitos outros e novos destacamentos se dirigiram à Hispania.

Em 1073, um exército francês, sob a condução de um senhor da Champagne, o conde Ebles II de Roucy, com a bênção de Gregório VII, resolve guerrear por sua conta e risco e sofre uma derrota.

Pouco depois, por volta de 1078, é a vez de senhores e cavaleiros de Borgonha levarem a cabo uma incursão no nordeste da Hispania. Em 1085, na tomada de Toledo por Afonso VI, também participaram cavaleiros franceses e alemães.

Em 1087, após a derrota de Afonso VI frente ao exército do almorávida Iúçufe ibne Taxefine (Yusuf ibn Tashfin; na batalha de Zalaca, em Outubro de 1086), um novo exército feudal francês acorre, comandado pelo duque Eudes da Borgonha e o conde Raimundo de Toulouse (que vai participar na primeira cruzada).

[Os almorávidas eram tribos nómadas berberes do norte de África. A partir de meados do século XI, essas tribos expandem o seu domínio, conseguindo chegar até ao actual Senegal.

O almorávida Iúçufe, na segunda metade do século XI, dominava o território do actual Marrocos e uma parte da Argélia. A partir de 1086 intervém na Hispania árabe, o Andaluz, de que acabará por se tornar senhor.

Sobre a intervenção dos feudais franceses na chamada “reconquista”, é interessante a consulta de “Les français en Espagne au XI et XII siècles”, de Marcelin Défourneaux, Paris, PUF, 1949.]

Já antes, a partir de 1016, aventureiros normandos haviam-se lançado à conquista das férteis terras da Itália meridional. Expulsando os árabes e os bizantinos, ali fundarão uma série de principados feudais.

Em 1066 a Inglaterra é conquistada e devastada pelas tropas normandas de Guilherme o Bastardo.

Por volta de 1071, os normandos (do sul de Itália) conquistam a Sicília.

Assim, todo o século XI abunda, não apenas em faidas e guerras feudais de carácter local, mas também em empresas de banditismo e conquista internacional. Onde quer que um conflito se desencadeasse, a qualquer aventura de um príncipe ou barão feudal, logo acorriam em multidão os cavaleiros que tinham a espada por único meio de vida, e também gente do povo, que lhes formava a peonagem.

Os monges borgonheses de Cluny foram os mais enérgicos propagandistas da intervenção dos feudais franceses na “reconquista” da Hispania, contando com o apoio do papado. As guerras contra os muçulmanos na península Ibérica são declaradas sagradas. O papa Alexandre II, que abendiçoou a campanha de 1063-64, proclama a absolvição dos pecados de todos os que viessem a lutar pela “causa da cruz”. Gregório VII (Hildebrando), uma semana após a sua eleição como papa, nos finais de Abril de 1073, incita os feudais franceses a desencadear uma expedição à Hispania, outorgando-lhes de antemão a posse das terras que viessem a conquistar aos muçulmanos, desde que reconhecessem a soberania da sede apostólica sobre esses territórios. Na carta que enviou aos senhores que então se dirigiam à Ibéria, Hildebrando declarava que «o reino da Hispania, ainda que esteja actualmente ocupado por pagãos, pertence unicamente à sede apostólica», e outorgava a absolvição dos pecados a todos os que caíssem combatendo contra os “infiéis”, conclamando-os a realizar façanhas e a sacrificarem-se “pela glória de Deus”.

[Não é, pois, de admirar que essa expedição de 1073 haja terminado num fracasso. Gregório VII, com “mais olhos que barriga”, pretendia-se o suserano da Hispania. Os feudais “autóctones”, defendendo os seus interesses, não deram qualquer apoio aos “cavaleiros do papa”, deixando-os serem derrotados.]

Estas expedições dos príncipes, barões e cavaleiros franceses, em que participaram muitos camponeses (como peonagem de guerra e colonos), foram de facto “cruzadas anteriores às cruzadas”. Já Carlos Marx, nos seus “Apontamentos Cronológicos”, via na campanha de Afonso VI contra Toledo, em 1085, «uma introdução à primeira cruzada».

Foi também pela bênção de um papa, Nicolau II, que os príncipes normandos se metamorfosearam em senhores ”legítimos” da Itália bizantina (Itália meridional). Roberto Guiscard, chefe dos conquistadores normandos, assumindo o título de duque da Apúlia e da Calábria, reconhece em 1059 o papa como seu suserano, obrigando-se a pagar-lhe um tributo anual e a prestar-lhe apoio militar. Como vassalo do trono papal, Guiscard declara-se também no dever de defender o novo método de eleição do papa, introduzido nesse ano de 1059.

(Até essa data a eleição papal era feita com a intervenção directa dos imperadores do Sacro Império Romano e de outros senhores feudais. O concílio de Latrão de 1059, convocado por Nicolau II, papa de Cluny, estabeleceu o método de eleição do papa pelo colégio de cardeais, eliminando o voto directo do imperador e dos feudais laicos.)

Roberto prestou vassalagem ao papa não apenas das regiões da Itália meridional em seu poder, mas também sobre a Sicília, que se propunha conquistar.

Assim, por antecipado, apoiou o papado a agressão à Sicília, tal como do mesmo modo deu a sua bênção aos cavaleiros normandos de Guilherme o Bastardo que, em 1066, se apoderaram da Inglaterra.

A Ordem de Cluny e os seus papas procuravam canalizar em prol do domínio da Igreja católica, como suserana no mundo feudal, dando-lhes um rumo “conveniente”, tanto a agressividade dos grandes feudais como a dos cavaleiros “sem terra” e “sem roupa”. Ao mesmo tempo, estavam também a indicar um caminho à “fuga” dos camponeses e aos seus movimentos de “resgate dos pecados pelo sacrifício e o martírio”, neutralizando-lhes o conteúdo anti-feudal.

Entretanto intensificava-se um movimento de heterogénea composição social, o das peregrinações, desde a Europa Ocidental, a Jerusalém.

É comum, na historiografia, afirmar-se que essas peregrinações tiveram um carácter exclusivamente religioso. Assim o historiador inglês St. Runciman, na primeira parte da sua “História das cruzadas” (Cambridge, 1951), em três volumes, dedica todo um capítulo ao “peregrinos do Cristo”, aliás, numa completa sintonia com o francês Michaud: um só desejo conduziria esses peregrinos, o de pisar a terra onde havia nascido, sofrera e morrera o Cristo (= o Ungido); eles apenas pretenderiam contemplar as relíquias sagradas... e entrar em contacto místico com Deus (pai e filho) e os seus santos.

Nos finais do século XI as peregrinações à ”cidade santa” tornam-se frequentes. Nelas participaram grandes senhores feudais de França, Hispania, Inglaterra e outros países, por exemplo, os condes de Toulouse, do Anjou e de Barcelona, Conrado de Luxemburgo em 1085, Roberto de Flandres em 1088, os condes de Holanda, de Kent, o duque da Normandia. Se os motivos religiosos tiveram grande importância na mentalidade desses grandes feudais, também os impulsionou o desejo de adquirirem os magníficos objectos que, à época, só no Oriente se conseguiam. Jerusalém era então um grande centro comercial entre o Ocidente e o Oriente.

Também numerosos cavaleiros faziam a viagem, em busca de fortuna e, simultaneamente, tratando de “obter perdão” para os crimes que haviam cometido nos seus países. Consideráveis multidões de camponeses e de gente mais pobre das cidades e vilas também meteu os pés ao “caminho do Senhor”, num acto de sacrifício para “expiar os pecados” e numa tentativa de fuga à ordem feudal.

Diz o cronista borgonhês Radulfo Glaber: «De início dirigiam-se a Jerusalém os pobres; logo depois as pessoas de posição mediana e, por fim, os ricos e os reis».

Houve peregrinações de centenas e, mais raramente, de milhares de pessoas.

A mais importante teve lugar em 1064-65, quando 7.000 peregrinos se encaminharam para Jerusalém (algumas fontes referem 13.000 pessoas), alemães e ingleses conduzidos pelo arcebispo Sigfrido de Magúncia (ou Mogúncia) e por Ingulfo, que viria depois a ser abade de Croyland. O historiador francês Yves Le Febvre qualificou essa peregrinação como um “prólogo da cruzada” (“Pierre l`Ermite et la croisade”, págs. 31-33, Amiens, 1946). A grande maioria desses milhares de peregrinos pereceu pelo caminho.

O papado não podia ignorar este movimento que se processava sob as bandeiras da religião e em que participaram altos dignitários católicos. No decurso do século XI, viajam até Jerusalém bispos italianos e franceses, como Thierry de Verdun e Pibon de Toul, alemães e escandinavos (em 1086, o bispo de Roskilde), também prelados ingleses.

Se os intentos de Gregório VII de suserania na Hispania estavam condenados ao fracasso devido à hostilidade dos senhores feudais locais, a súbita alteração do panorama internacional na segunda metade do século XI irá dar alento, noutra direcção, à “guerra sagrada”.

 

O PROGRAMA PAPAL PARA A CRIAÇÃO DE UMA MONARQUIA TEOCRÁTICA. OS PRIMEIROS ESQUISSOS DO PLANO DA CRUZADA.

A constituição da congregação de Cluny, encabeçada pelos papas, e as reformas eclesiásticas fortaleceram o papado, convertendo a cúria romana no único centro político capaz de organizar e unificar as dispersas forças feudais. A partir de Gregório VII (papa de 1073 a 1085), o papado afirmará com insistência a sua pretensão de supremacia, não apenas sobre a igreja cristã, procurando um acrescento às posições já alcançadas com o movimento de Cluny, como também em relação aos próprios príncipes laicos.

É Gregório VII quem formula esse plano sui generis que pretendia o domínio “universal” dos papas. Defendia Hildebrando que os reis e os príncipes seriam meros vassalos do trono pontifício. Que o papa tinha direito a dispor-lhes das coroas, designando não apenas os bispos, mas ainda duques, reis e imperadores. Todo o poder seria legítimo contanto que procedesse do chefe da Igreja, porque Deus «deu poder a São Pedro para condenar e absolver tanto nos céus como na terra», escrevia o orgulhoso papa em 1076 ao arcebispo Hermann de Metz.

Pretendia um Estado “mundial” que fosse encabeçado pelo papa na qualidade de soberano ilimitado. Uma monarquia teocrática que integrasse a totalidade dos países cristãos. Possesso dessa ideia, Hildebrando não se limitou a formulações teológicas de ordem teórica e abstracta.

A Guilherme o Conquistador, que tenazmente procurou convencer a submeter-se à sede apostólica, comunicou em missiva: «Deves obedecer-me sem vacilação alguma, para poderes herdar também o reino dos céus».

Exigiu a Filipe I de França que se abstivesse de intervir nos assuntos da Igreja. Só o papa, pelo seu poder, podia designar os bispos no reino. Caso Filipe se recusasse a obedecer-lhe, «os franceses, alcançados pela espada de Satanás, negarão dali em diante obediência ao rei».

A Geza I, rei da Hungria, afirmava que «o reino húngaro pertence à Santa Sé». Na Polónia excomungou Boleslavo II. E já vimos que considerava a Hispania como um feudo de São Pedro.

Até na longínqua russa Gregório VII procurou estabelecer o domínio do “representante divino” de Roma. Em 1075, aproveitando as lutas entre os príncipes de Kiev, “outorga” o poder sobre a Rússia ao príncipe Iziaslavo, que havia sido expulso daquele país. Iziaslavo reconheceu-se vassalo papal, comprometendo-se, no caso de retomar o trono, a converter o país em feudo da sede apostólica.

Contra o rumo do desenvolvimento histórico (o processo de centralização do poder real, que em grande parte se apoiou sobre as comunas burguesas), Hildebrando acreditava ser possível obrigar todos os reis e príncipes cristãos a prestar-lhe juramento de vassalagem, pagando um tributo anual ao tesouro romano.

O choque mais duradouro e tenso deu-se entre os papas e os imperadores do Sacro Império Romano, tomando a forma de um longo conflito entre os diversos agrupamentos feudais da Alemanha e Itália. É comummente designado de “luta do papado conta o Império” ou ainda, como a “querela das investiduras”. Essa luta por uma ilusória hegemonia sobre o mundo feudal foi prosseguida pelos sucessores de Gregório VII.

Diz o historiador alemão W. Norden (“O Papado e Bizâncio”, pág. 56, Berlim, 1903) que os papas surgidos do movimento de Cluny actuavam, no século XI, como «Césares vestidos com o hábito de sumo-sacerdote».

Contudo, a tentativa de criar uma teocracia papal de carácter “universal” não era o resultado da ambição pessoal ou da ânsia de poder deste ou daquele papa. Foi, sim, uma consequência da importância política que a Igreja e o seu centro representativo, a cúria romana, haviam adquirido na Europa em crise do século XI. A Igreja católica era então a organização feudal politicamente mais poderosa e centralizada, dispondo ao mesmo tempo de vastíssimas fontes de riqueza.

Directamente interessada no reforço do regime feudal, a Igreja e o seu papado propuseram-se organizar as dispersas e anárquicas forças feudais, e é então que se manifestam as pretensões ao domínio “mundial” de “São Pedro”, não um objectivo em si mesmo, mas concebido como meio de defesa e reforço do regime e da propriedade feudal face à “entropia” em crescendo na sociedade.

Como componente essencial do seu plano, o papado alentava o desígnio de eliminar a independência da Igreja oriental (a Igreja greco-ortodoxa).

A separação definitiva das Igrejas (o “cisma”) dera-se em 1054, com a formação da Igreja católica apostólica romana e da Igreja católica apostólica ortodoxa, uma “separação de águas” que expressava as diversas condições políticas e sociais dos países do Ocidente e Oriente cristão. As diferenças dogmáticas e rituais entre a Igreja “latina” e a “grega”, motivo de exasperadas polémicas entre teólogos e eclesiásticos “romanos” e “bizantinos”, tinham por trás de si reais disputas de natureza política e económica entre a sociedade feudal do Ocidente e a de Bizâncio. Um desses factores de conflito foi a luta pela hegemonia sobre os países eslavos do sul e do oeste.

É na mira da subordinação da Igreja ortodoxa que Gregório VII vai conceber e propor o seu primeiro esboço de uma campanha de conquista no Oriente. A submissão dos ortodoxos à sede romana constituía o objectivo imediato, devendo abrir caminho a uma posterior vassalagem à “Santa Sé” do próprio Império Bizantino.

As mudanças ocorridas no panorama internacional nos inícios da sétima década do século XI vão colocar Bizâncio numa situação extremamente desfavorável e levarão à perda de grande parte das suas possessões, dando alento àqueles propósitos da cúria romana.

Os Balcãs e a Ásia Menor formavam a base territorial do Império Bizantino nos inícios do século XI. Essas possessões são sujeitas, no decurso desse século, a crescentes ameaças. No entanto, apesar dos ataques, as cidades bizantinas continuarão a desempenhar um importante papel no comércio mediterrânico, Constantinopla em particular.

Por volta de meados de século XI os domínios bizantinos são atacados pelos pechenegas, tribos nómadas turcas que se haviam apoderado de um enorme território na Europa Oriental, desde as margens do Baixo Danúbio até a leste do rio Dnieper (ou Dniepre).

A partir de 1048 os khans pechenegas incursionam com frequência no território bizantino. Devastam a Bulgária, a Macedónia e a Trácia, chegando até Andrinopla (Hadrianopolis) e ameaçando a própria capital, Constantinopla.

Bizâncio consegue afastá-los, já nos inícios da década seguinte, para lá dos limites da Trácia e da Macedónia, mas outras tribos nómadas turcas atacam, os oghuz e os polovets (ou cumanos).

Vindos da Ásia Central, os seldjúcidas, também tribos nómadas turcas, haviam-se apoderado no decurso da quarta década do século XI das regiões a sul do mar Cáspio, do Irão Ocidental e Central. Em 1055, após conquistarem a Mesopotâmia, ocupam Bagdade, a capital do que antes fora o poderoso califado dos Abássidas.

Durante o reinado do sultão Alp Arslan (1063-72), invadem a Arménia, então na maior parte sob domínio bizantino, e incursionam na Geórgia, assim como nas províncias imperiais da Capadócia e da Frígia, na Ásia Menor.

Em Bizâncio, face à gravidade do perigo, o “partido militar” dos aristocratas feudais da Ásia Menor ganha a preponderância na luta pelo poder. Sobe ao trono um experiente chefe militar Roman IV Diógenes (1068-71), que procura deter o avanço seldjúcida.

Porém, nem mesmo nesse momento crítico as facções em luta pelo poder foram capazes de se unir, com a traição a campear na corte imperial.

Em 1071 Roman IV inicia nova campanha, mas boa parte dos chefes militares está desmoralizada ou pretende trai-lo, a indisciplina reina entre os heterogéneos contingentes de tropas e os batedores do exército comunicam informações falsas sobre a situação do inimigo.

Em Agosto desse ano, ao norte do lago Van, em território da então Arménia (hoje, na Turquia), os bizantinos são derrotados na batalha de Mantzikert, caindo Roman IV prisioneiro de Alp Arslan.

Em Constantinopla, a burocracia imperial aproveita a oportunidade para dar a coroa imperial ao seu candidato, Miguel VII Ducas.

Os bizantinos negaram-se a pagar resgate pelo imperador cativo, que no entanto foi libertado, sob compromisso de honra, por Alp Arslan.

No regresso a Bizâncio Roman IV é preso pelos partidários do novo imperador e, seguindo o costume bizantino, cegam-no. Morrerá pouco depois no calabouço.

Em consequência da derrota, Bizâncio perde nessa década de 1070 as ricas províncias da Ásia Menor, apenas conservando algumas cidades costeiras no oeste.

Na expressão de um historiador, das janelas do palácio imperial podiam ver-se, a leste, as montanhas que agora já não eram pertença do Império.

Para os camponeses servos da Ásia Menor o domínio seldjúcida apresentou-se bem menos gravoso que o dos feudais bizantinos, a que se sobrepunha ainda o do imperador, com os seus pesados impostos estatais. Aliás, essa foi uma das razões da rápida queda da Ásia Menor às mãos dos conquistadores turcos.

Perdida quase toda a metade asiática do Império, na outra metade, a europeia, imperou um estado de absoluta anarquia política. Em apoio aos seus candidatos ao trono imperial, a nobreza feudal organizou frequentes sublevações contra o poder em Constantinopla. De facto, o Estado bizantino fraccionara-se em domínios feudais semi-independentes.

Nestas circunstâncias, aos olhos de Gregório VII, o Império bizantino apresentava-se como uma presa fácil.

De início Hildebrando recorre aos meios diplomáticos. Em 1073 inicia negociações com Miguel VII Ducas, para «renovar a antiga concórdia, estabelecida por Deus mesmo, e a amizade entre as igrejas de Roma e de Constantinopla», escrevia ele no Verão desse ano ao imperador bizantino.

Sempre desmedido nas suas pretensões, o papa desejava a reunião das duas Igrejas com a total submissão dos eclesiásticos gregos a Roma, provocando com isso, em Constantinopla, uma viva oposição ao seu projecto.

É então que lhe surge a ideia de levar a cabo os seus intentos por meio da força armada, organizando uma expedição para subjugar Bizâncio, mas ocultando esse desígnio sob os lemas da defesa da fé cristã e da ajuda aos gregos na sua luta contra os seldjúcidas muçulmanos.

Porque não tentar no leste, com manifestos benefícios para o papado, o que não fora possível alcançar no oeste, em Hispania? Assim, poucos meses depois do começo das conversações diplomáticas com os gregos, em 1074, Hildebrando envia missivas ao conde Guilherme I da Borgonha, ao imperador Henrique IV (seu posterior inimigo acérrimo), à condessa Matilde da Toscana, e faz o chamamento «a todos os fiéis de São Pedro», convidando-os a tomar parte na projectada guerra “em ajuda” da Igreja católica ortodoxa: «Lutai com valentia, para encontrar a glória celestial que superará todas as vossas expectativas. Oferece-se-vos a oportunidade de conseguir a felicidade eterna mediante um bem pequeno sacrifício».

Nos finais de 1074, Gregório VII assegurava a Henrique IV estar já em condições de reunir um exército de mais de 50.000 homens (italianos e franceses) na sua “empresa conta os pagãos”. E é bem provável que vários magnatas feudais da França meridional e de Itália lhe hajam manifestado o seu apoio. Por exemplo, os condes Guilherme de Borgonha e Raimundo de Toulouse, que já em 1067 haviam jurado ao papa Nicolau II acudir com todas as suas forças a «defender a causa de São Pedro».

Em várias das suas cartas, o papa manifestava a sua intenção de encabeçar o exército dos cristãos ocidentais, acompanhando-o “ao ultramar”. Os propósitos de Hildebrando estender-se-iam mesmo para além de Bizâncio, porquanto chega a escrever a Henrique IV ser sua intenção intervir «com a mão armada contra os inimigos do Senhor e chegar, sob a própria condução de Deus, até ao Santo Sepulcro».

O papa acreditava (e nisso não se enganava) na facilidade de mobilizar os feudais para a aventura. A massa camponesa forneceria a peonagem. Escreveu assim a Matilde da Toscana: «Eu creio que nesta causa numerosos cavaleiros nos prestarão o seu apoio».

Na correspondência do político eclesiástico que Hildebrando foi, encontramos uma “curiosa” missiva acerca dos “pagãos infiéis inimigos do Senhor”. Em 1076, numa carta dirigida a Al Nasir, senhor de Argel, o papa revela quão “esclarecido” sabia ser nos casos em que tal lhe fosse politicamente conveniente: «Tanto nós como vós cremos no mesmo Deus, ainda que de um modo distinto, todos nós adoramos igualmente a Deus e diariamente glorificamos o criador celestial e o condutor deste mundo».

São, manifestamente, interessantes comentários sobre a religião muçulmana saídos da pena de...um “assanhado” predicador da Cruzada.

Na execução do ambicioso projecto político papal a questão do dinheiro não vinha em último lugar. Hildebrando vinculara-se com os usurários e cambistas romanos. Em 1074 intervém energicamente em defesa dos mercadores italianos que Filipe I, rei de França, havia despojado na feira de Saint Denis. Dois anos depois, presta protecção aos “homens de negócios” romanos que se dirigiam a Bougie, nos domínios do norte de África de Al Nasir (R. S. Lopez, “Le facteur économique dans la politique africaine des papes”, Revue Historique, 1947).

O comércio com o Oriente também interessava vivamente à Igreja. Nos séculos X e XI aumentara em muito o esplendor do culto católico romano, com Roma a fazer consideráveis encomendas de mercadorias orientais, dado que a indústria da Europa Ocidental ainda pouco se desenvolvera e não podia então satisfazer as crescentes exigências da Igreja: alfaias religiosas, peças de arte, unguentos, perfumes, incenso, etc.

Em virtude dos seus conflitos com Henrique IV, o papa não pôde levar avante o seu plano de expedição militar no Oriente. No entanto, ainda tentará por diversas vezes alcançar a sujeição de Bizâncio, por via diplomática ou pela força das armas.

Após a abdicação de Miguel VII Ducas em 1078, o Império oriental de novo é palco da luta entre as facções feudais. No Verão de 1080, com a bênção de Gregório VII, Roberto Guiscard aproveita a situação para desencadear a guerra a Bizâncio. O papa exigiu do clero da Itália meridional que conclamasse à participação dos cavaleiros na campanha de Guiscard, e prometeu aos que o fizessem a “absolvição dos seus pecados”.

Em 1081 os normandos atacam na península balcânica. Sitiam e tomam a fortaleza marítima de Durazzo (actual Albânia) no Epiro, penetrando depois no interior do país.

Em cada povoado conquistado, aos habitantes é imposta, à força, a conversão ao catolicismo romano. Gregório VII aplaudiu os êxitos dos seus vassalos normandos e felicitou Guiscard, sem esquecer de lhe recordar que a vitória seria devida, sobretudo, à “protecção de São Pedro”.

Contemporaneamente à conquista da Ásia Menor, os seldjúcidas também se apossam de outros territórios no oeste do Próximo Oriente.

Já em 1071 haviam tomado Jerusalém, então sob o domínio do califado egípcio dos Fatímidas. Em 1084, o chefe seldjúcida Suleiman conquista aos bizantinos Antioquia (cidade estratégica da costa oriental do Mediterrâneo). Também se haviam apoderado de Damasco e de outras cidades sírias.

Assim, durante o reinado do sultão Malik Shah (1072-92), a maior parte da Síria e da Palestina é incorporada nos domínios seldjúcidas.

Os seldjúcidas haviam conquistado um enorme território, todavia não criaram ali um Estado centralizado. O domínio do sultão sobre o conjunto dos chefes seldjúcidas é apenas nominal. De facto, o “Estado seldjúcida” não passa de um conglomerado de principados semi-independentes, muito debilmente unido.

O mais importante principado seldjúcida da Ásia Menor foi o sultanato de Roum, com centro, primeiro, em Niceia e, logo depois, em Konya (Iconium).

Os seus sultões pretendiam ser “herdeiros” do Império Romano do Oriente (daí o nome “Roum”).

Enquanto Malik Shah foi vivo, a “confederação” de principados manteve uma relativa unidade política, porém, após a sua morte (1092), desencadeia-se toda uma série de guerras intestinas entre pequenos e grandes príncipes, o que levou à dissolução da força ofensiva seldjúcida.

Muitos anos depois do início da primeira cruzada, os escritores eclesiásticos ocidentais e bizantinos inventarão toda uma “bateria” de narrativas quiméricas sobre pretensas perseguições aos cristãos nos países dominados pelos seldjúcidas. Criam-se então “estórias” sobre a profanação pelos “pagãos” dos santuários cristãos, de violências cometidas contra os peregrinos que se dirigiam a Jerusalém, etc, etc, procurando dar “carne concreta” à falácia papal, de Gregório VII e Urbano II, do “martírio dos irmãos cristãos orientais às mãos da tribo persa dos turcos”.

A título de exemplo, pela “prodigiosa imaginação” e a extraordinária quantidade de invencionices, cite-se a “História” escrita dezenas de anos depois por Guilherme de Tiro, bispo e cronista que predicou a terceira cruzada.

Os historiadores das épocas posteriores repetiram esse acervo de falsificações, adornando-as com mais alguns “detalhes” da sua própria lavra.

Deste modo, durante nove séculos e meio, os numerosos autores de “estórias” das cruzadas salmodiaram, um após outro, que a conquista do Próximo Oriente pelos seldjúcidas foi a razão para a “peregrinação armada” do Ocidente a Jerusalém, porquanto esses turcos representavam uma ameaça para a “cristandade”, o que obrigou à intervenção, sob a batuta do papado, dos “piedosos” guerreiros católicos.

Essas “narrativas de vigários” ainda hoje continuam a ser propaladas e papagueadas por “respeitáveis eruditos”.

As investigações dos especialistas contemporâneos foram permitindo levantar o véu dessa grande e fantástica mentira. Por exemplo, o orientalista francês Claude Cahen demonstrou que os seldjúcidas (tal como os seus antecessores no domínio daqueles territórios, os árabes) não praticavam uma política de intolerância e fanatismo religioso, e que a situação das populações cristãs da Síria, Palestina e Ásia Menor, após a conquista turca, não piorou a nível religioso.

Relativamente às outras crenças (que não a sua), os seldjúcidas mantiveram a mesma atitude de tolerância que os árabes já haviam instituído.

O patriarca ortodoxo de Antioquia sempre manteve ali a sua sede. E o outro patriarca da região, o de Jerusalém, tinha permissão para residir nesta cidade.

Não houve atitudes assinaláveis de opressão por motivos religiosos. Bem pelo contrário, a conquista seldjúcida pôs cobro às perseguições de ordem religiosa e fiscal que a Igreja bizantina havia praticado sobre a maioria das populações cristãs dessas regiões, professando crenças monofisistas, nestorianas, coptas, etc (Claude Cahen, “Notes sur l`histoire des croisades et de l`Orient latin”, Bulletin de la Faculté des Lettres de l`Université de Strasbourg, 1950, nº 2, pág.121.

O facto é que os habitantes desses países jamais procuraram protecção contra uma qualquer alegada perseguição religiosa por parte dos seldjúcidas, nunca se havendo dirigido ao Ocidente ou a Bizâncio em busca de tal ajuda.

Nenhuma crónica desses tempos faz menção alguma ao desejo dessas populações de se “libertarem” dos “pagãos, opressores da fé cristã».

Sob os governadores seldjúcidas, como dantes, os peregrinos do Ocidente continuaram a poder visitar Jerusalém. Para isso, apenas tinham de pagar um determinado tributo. Tributo similar era cobrado pelas autoridades bizantinas, em Constantinopla, a todos os peregrinos.

Os italianos de Amalfi mantiveram em Jerusalém as suas duas pousadas destinadas a abrigar os “viajantes da fé católica”.

Também fora preservado intacto e resguardado o local a que os cristãos chamam o Santo Sepulcro.

A única mudança a que os peregrinos se viram “forçados” foi a da troca do caminho por terra pela via marítima, dada a anarquia reinante na Ásia Menor.

Também não houve quebras no comércio entre as cidades italianas e aquela região do Mediterrâneo oriental. Sabemos que os comerciantes de Veneza e de Amalfi continuaram a traficar com as cidades costeiras da Síria e da Palestina de que os seldjúcidas se apoderaram.

 

A PREPARAÇÃO DA PRIMEIRA CRUZADA.

Os propósitos de Gregório VII foram ressuscitados e integrados num horizonte mais vasto pelo seu segundo sucessor, o papa Urbano II. Agora, na mira do papado, não está apenas Bizâncio, mas toda a costa oriental do Mediterrâneo.

Os normandos de Roberto Guiscard haviam prosseguido a conquista das províncias europeias de Bizâncio. Tendo penetrado no interior do Epiro (actual Albânia), cruzam as montanhas e aproximam-se de Tessalónica, desencadeando o pânico em Constantinopla.

O novo imperador bizantino Aleixo I Comneno (1081-1118), apoiado pela nobreza militar, pôs em acção todos os meios ao seu alcance, tanto o poder das armas quanto a engenhosa e eficaz diplomacia bizantina, para acabar com a ameaça normanda.

Assegura-se do apoio do imperador Henrique IV, que invade a Itália. Simultaneamente, conta, no combate aos normandos, com a ajuda da República de Veneza, que vira serem cortadas as suas rotas comerciais no Adriático. Recorre também ao suborno dos próprios nobres normandos, sobretudo na Itália meridional.

Ameaçado por um ataque germânico aos seus domínios italianos, Roberto Guiscard detém a sua campanha contra Bizâncio. Após a sua morte (em 1085), todas as terras que havia conquistado nos Balcãs, assim como as ilhas e portos no Adriático, são reconquistadas por Bizâncio com o apoio da frota veneziana.

Veneza cobrou-se bem caro. Ganha o direito de comerciar, sem pagar qualquer imposto, em todas as cidades bizantinas. Estende o seu controlo aduaneiro nos portos gregos. Os barcos venezianos gozam do direito de livre navegação nos mares e estreitos bizantinos. O tesouro de Bizâncio passa a pagar uma renda ao Dux veneziano. Além de tudo isto, é cedido aos venezianos um bairro enclave em Constantinopla dotado de três ancoradouros, com a “capitulação” da soberania bizantina sobre os seus habitantes (a lei que regia nesse bairro especial era a de Veneza).

Apesar da vitória sobre os normandos, novas ameaças pairam sobre o Império Oriental.

No norte, em protesto contra as exacções fiscais, sublevam-se as populações eslavas da Bulgária, que chamam em seu auxílio os pechenegas. Os exércitos bizantinos sofrem derrota atrás de derrota e os pechenegas penetram na Trácia. Aleixo Comneno é duramente derrotado no ano de 1088 em Silistra. Os pechenegas avançam para Andrinopla e Filipópolis, chegando até às próprias muralhas de Constantinopla, a capital.

Nesse preciso momento, o emir seldjúcida Tchaka (usualmente designado “Çaka” nos textos em língua inglesa), que se havia estabelecido em Smyrna, na Jónia (Esmirna, na actual Turquia), e tomado algumas ilhas do Egeu (as mais importantes: Quio, Samos, Lesbos e Rodes), coliga-se com os pechenegas e lança a sua frota à conquista de Constantinopla.

A capital bizantina viu-se praticamente isolada do mundo exterior. Diz a historiadora Ana Comneno (filha de Aleixo I) que os assuntos do Império «tanto no mar como em terra, se encontravam numa situação crítica e, agravando-a ainda mais, o cruel Inverno de 1090-91 havia encerrado todas as passagens, com as grandes quedas de neve a impedirem até a abertura das portas das casas».

Tal como já o fizera quinze anos antes, na época de Gregório VII, o papado de novo tentará aproveitar-se das ameaças que se abatiam sobre Bizâncio.

Os embaixadores de Urbano II, em Constantinopla desde começos de 1088, protestam junto de Aleixo I pelo facto dos “latinos” (os católicos romanos) serem obrigados a oficiar os serviços religiosos em conformidade com o rito ortodoxo grego. Aleixo Comneno responde de forma conciliadora, dispondo-se aparentemente a entrar em concessões. É fixado um prazo para a convocação de um concílio eclesiástico em Constantinopla, no propósito de regulamentar as diferenças de dogma e de rito entre as Igrejas romana e ortodoxa. Iniciam-se também negociações com vista à unificação das duas Igrejas.

Com Bizâncio literalmente invadida pelos pechenegas e os seldjúcidas, Aleixo I Comneno buscava aliados no Ocidente (e também na Rússia), o que explica a sua atitude “diplomática” para com os eclesiásticos de Roma.

Em 1090 e 1091, o imperador bizantino dirige-se aos reis e príncipes do Ocidente, solicitando-lhes ajuda militar. Envia também embaixadores ao papa.

O Ocidente era um “tradicional” fornecedor de tropas mercenárias a Bizâncio. Normandos, escandinavos, anglo-saxões, etc., já haviam combatido sob as bandeiras do Império Oriental. E, mais que nunca, Aleixo necessitava de grandes contingentes de mercenários.

Enquanto prosseguia as negociações com Roma sobre a unificação das Igrejas e procurava seduzir os feudais ocidentais com a perspectiva da pilhagem das ricas regiões dominadas pelos muçulmanos, Bizâncio tratava de encontrar outros meios para romper a coligação de pechenegas e seldjúcidas.

Em finais de Abril de 1091, os pechenegas são atacados e completamente derrotados pelos polovets (ou cumanos), agora aliados de Aleixo Comneno. A frota do emir Tchaka não conseguiu acorrer-lhes a tempo, e o seldjúcida será por sua vez derrotado.

Assim, ora recorrendo à força militar ora à intriga política e ao suborno, Aleixo I Comneno conseguiu libertar-se da ameaça a Constantinopla e recuperar o controle sobre as costas do mar de Mármara e dos Dardanelos.

Entretanto as negociações com Roma não chegavam a nenhum resultado. O projectado concílio não se realizou e não foi feita qualquer concessão ao papado, o que irritou sobremaneira Urbano II.

Face ao impasse “diplomático”, o papa decide fazer uso do pedido de ajuda que os bizantinos haviam endereçado ao Ocidente, não para lhes enviar mercenários, mas organizando a cruzada.

Para os cavaleiros ocidentais sem fortuna e os belicosos príncipes feudais, que desde há décadas se dirigiam em expedições de pilhagem a Espanha, à Itália meridional, Sicília e, algumas vezes, também aos Balcãs, o Oriente, economicamente mais desenvolvido, oferecia-se aos seus olhos ávidos como uma região de imensas riquezas e de um luxo jamais visto.

Dali chegavam à Europa as mais variadas e valiosas mercadorias. As narrativas dos peregrinos regressados de Jerusalém e Constantinopla falavam dos magníficos palácios e templos das cidades orientais, do luxo em que viviam as classes abastadas bizantinas e árabes. As maravilhas desses países deram origem a lendas que trovadores e jograis se encarregaram de difundir pelos castelos feudais do Ocidente.

Uma tal presa havia já sido particularmente tentadora para os normandos estabelecidos na Itália meridional e na Sicília. Estreitamente vinculados a Bizâncio desde há décadas, como guerreiros mercenários ou comerciantes-piratas, quem melhor que eles poderia avaliar as riquezas do Oriente? Agora, face ao perigo turco e aos “apelos de Bizâncio”, muitos outros príncipes e cavaleiros ocidentais, cobiçosos de despojo e terras, estão dispostos a partir.

Ao mesmo tempo, as contradições sociais agudizavam-se no Ocidente. A miséria camponesa alastrara ao cabo dos “sete anos fracos”. Os cavaleiros “sem terra” e “sem roupa” dedicavam-se ao banditismo com maior desenfreio. Assim, o apelo de Bizâncio veio em “boa hora”.

O caminho a seguir para o Oriente já fora aberto pelos peregrinos, que seguiam habitualmente pela rota do Reno e do Danúbio, cruzando no final a Hungria e o território bizantino até Constantinopla. E a debilidade demonstrada nas últimas décadas por Bizâncio, bem como a dissolução do grande sultanato seldjúcida em diversos principados a guerrearem-se entre si, auguravam uma presa fácil.

Em 1092 iniciam-se as “conversações” entre os feudais do Ocidente com vista à cruzada para a “salvação do Império da Grécia”.

Conservou-se, desta época, o texto de uma pretensa carta (em latim) de Aleixo I Comneno a Roberto de Flandres: «Entregamo-nos nas vossas mãos...melhor será vós outros possuirdes Constantinopla que não os turcos ou os pechenegas; Constantinopla contém os sagrados tesouros do Senhor; os ricos adornos das suas igrejas são bastantes para ornamentar todas as igrejas do mundo. E nem há que falar dos incalculáveis tesouros guardados nos sótãos dos antigos imperadores e dos poderosos nobres da Grécia...»

Se Aleixo I Comneno tivesse redigido tal carta, então estaria a convidar os feudais ocidentais à pilhagem de Constantinopla. Trata-se, pois, de uma falsificação. Alguns historiadores consideram que ela ter-se-á “baseado” num original perdido da carta autêntica do imperador bizantino, pois é certo ter Bizâncio pedido ajuda aos príncipes ocidentais em 1090-91.

Porém, os príncipes feudais laicos, divididos e dispersos, não foram capazes de concretizar os “planos de ajuda”. Colmatando essa falha, prontamente vai intervir a Igreja católica romana, assumindo-se como centro internacional dos interesses feudais do Ocidente.

“Vingando-se” do fracasso das tentativas de unificação das Igrejas romana e ortodoxa por meios diplomáticos, Urbano II resolve seguir o caminho aberto por Gregório VII, retomando-lhe os planos de hegemonia sobre o Oriente, a pretexto de uma aparente ajuda aos bizantinos nas guerras contra os “infiéis”.

Os ardores bélicos dos senhores feudais do Ocidente poderiam ser usados de modo a constituir, enfim, o “grande feudo de São Pedro”, dando assim um gigantesco passo em direcção à sonhada monarquia teocrática “universal”. Satisfazendo à custa alheia (de bizantinos e seldjúcidas) a avidez de riquezas e poderio dos feudais ocidentais, o papado pensava poder, simultaneamente, materializar os seus ambiciosos planos.

O papa toma então a iniciativa de organizar essa expedição em grande escala ao Oriente. A Igreja católica romana vai difundir amplamente o projecto nos círculos feudais do Ocidente, formulando a partir de 1095 um vasto programa de união dos cavaleiros da Europa Ocidental, na mira da conquista dos países orientais, sob o lema da “libertação do sepulcro do Senhor”.

Ganham, assim, forma definitiva as ideias da cruzada.