12 - A consolidação das alianças
Situação internacional
Em 1907, a Europa estava dividida em dois blocos: a Tríplice Entente, formada pela França, Rússia e Reino Unido, e a Tríplice Aliança, formada pela Alemanha, Áustria-Hungria e Itália. Existiam outros acordos e alianças, como os Acordos do Mediterrâneo, a Aliança entre a Roménia e a Áustria-Hungria ou a aliança entre o Reino Unido e o Japão, mas era entre aqueles dois blocos que existiam focos de tensão perigosos para a paz na Europa e no Mundo. Existia um grande antagonismo entre a França e a Alemanha, tanto na Europa por causa da ocupação da Alsácia-Lorena na Guerra Franco-Prussiana de 1970-1971, como fora dela, por questões coloniais de que o exemplo mais recente era o caso de Marrocos (1905-1906). A rivalidade naval entre o Reino Unido e a Alemanha transformou-se numa corrida aos armamentos. A Áustria-Hungria e a Rússia procuravam atenuar os efeitos da sua rivalidade nos Balcãs, para o que estabeleceram alguns acordos. A Itália fazia parte da Tríplice Aliança, mas mostrava mais vontade de cooperar com a França do que com a Áustria-Hungria, com quem tinha fronteira e de quem ambicionava recuperar os territórios irredentos, Trentino e Trieste, entre outros.
Ao acompanhar a formação das alianças e acordos (ententes) encontramos nos seus textos um carácter defensivo e conciliatório. A Aliança Dual (7 Outubro 1879), tratado de aliança entre a Alemanha e a Áustria-Hungria, era nitidamente uma aliança defensiva. O tratado da Tríplice Aliança (20 Maio 1872) não alterou esse carácter. De forma idêntica, a aliança entre a França e a Rússia (18 Agosto 1892) foi firmada tendo como intenção a defesa destas Potências frente à Alemanha e à Áustria-Hungria. Quando o Reino Unido estabeleceu acordos com a França e a Rússia, em 1904 e 1907, o objectivo destas diligências diplomáticas era o de resolver questões de carácter colonial. No entanto, como vimos quando se tratou a questão da Primeira Crise de Marrocos, uma das consequências desta crise foi a de alterar o âmbito das relações entre a França e o Reino Unido, alargando-as ao nível dos respectivos estados-maiores, estudando a possibilidade de uma intervenção britânica em apoio da França. No caso do acordo com a Rússia não se chegou tão longe como aconteceu com a França. Os laços que uniam os membros da Tríplice Entente não eram tão fortes como os da Tríplice Aliança e, muito especialmente, da Aliança Dual.
São estes os actores e as ligações que os unem e opõem num contexto que ultrapassa o do Continente europeu. As chamadas Potências Centrais – Alemanha, Áustria-Hungria e Itália – que formavam a Tríplice Aliança encontravam-se perante um outro bloco, a Tríplice Entente, em que os seus membros se situam a ocidente e a oriente daquele. Convenhamos que é difícil negar aos Alemães, que tinham fronteira com a França e com a Rússia, alguma razão quando se referem ao sentimento de cerco. Patrícia Daehnhardt descreve esta ideia de cerco referindo a obra de Herfried Münkler, Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918: «Quanto às razões que levaram à eclosão da Guerra, Münkler refere uma «estratégia de duplo cerco»: por um lado, o «cerco da monarquia do Danúbio pela Liga dos Balcãs, sob protecção russa» e por outro, o «cerco da Alemanha pela França e pela Rússia, com a Inglaterra tendencialmente do lado franco-russo.»» [DAEHNHARDT, 1998] Por fim, em 1914 «quando a guerra é, enfim, decidida, o sentimento inevitável é de enorme alívio. […] quando a Alemanha declarou guerra à França, segundo o príncipe herdeiro, foi como um término bem-vindo à tensão sempre crescente, um fim ao pesadelo do cerco.» [Lloyd de MAUSE, 2014]. Perante esta ameaça de cerco, a Alemanha utilizou todos os incidentes para tentar criar a desunião entre os membros da Tríplice Entente.
Em 1907, quando os alinhamentos entre as Grandes Potências europeias ficaram definidos, é necessário contar com outras duas Grandes Potências não europeias: Estados Unidos da América e Japão. A América Latina encontrava-se “protegida” desde 1823 pela Doutrina Monroe, lançada por James Monroe, presidente dos Estados Unidos da América entre 1817 e 1825, que na mensagem dirigida ao Congresso, a 2 de Dezembro daquele ano, afirmava: «Julgarmos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afecta os direitos e interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como susceptíveis de colonização por nenhuma potência europeia.» [Texto em inglês em https://avalon.law.yale.edu/19th_century/monroe.asp, visto em 2020-01-21]. Na Ásia, a China estava dividida em zonas de influência das Grandes Potências e o Sul daquele grande continente estava em grande parte nas mãos dos Britânicos e também, em muito menor grau, dos Franceses. O continente africano estava praticamente todo ocupado. Os ganhos territoriais quase terminaram e as alterações ao status quo teriam de ser confirmadas pelo conjunto das Grandes Potências. Aliás, qualquer alteração dificilmente poderia ser posta em prática sem interferência nos interesses de outra Potência.
A Anexação da Bósnia
O Tratado de Berlim de 1878, que colocou um fim formal na Guerra Russo-Turca de 1877-1878, estabelecia no seu artigo 25º que «as Províncias da Bósnia e Herzegovina serão ocupadas e administradas pela Áustria-Hungria.» Isto significava que aquele território continuava sob soberania do Império Otomano, mas era administrado pelo Governo da Áustria-Hungria. Apesar disso, o Governo austro-húngaro administrou a área como se tratasse de território anexado e tomou medidas de longo prazo. Foi durante a ocupação austro-húngara que as duas províncias otomanas foram unidas numa única entidade administrativa, a Bósnia-Herzegovina.
[Texo do Tratado de Berlim, 1878 em https://www.jstor.org/stable/2212670?read-now=1&refreqid=excelsior%3A3d3a8a7b4069e3c93da6ea2222276c6b&seq=1#page_scan_tab_contents visto em 2020-01-21]
A ocupação da Bósnia e da Herzegovina seria a compensação atribuída à Áustria-Hungria pelos ganhos obtidos pela Rússia no sul da Bessarábia e pela criação de uma Bulgária independente sob grande influência russa. Contudo, na Áustria-Hungria, os liberais austríacos e muitos húngaros opunham-se a esta ocupação porque não desejavam que o Império englobasse mais eslavos, mas esta questão tinha de ser examinada tendo em conta as ambições de outros Estados. Se a Monarquia dos Habsburgo não assumisse o controlo da Bósnia e da Herzegovina, estas províncias acabariam por cair em poder da Sérvia que, assim, se tornaria uma Potência maior e uma forte atracção para os Eslavos do sul do Império Austro-Húngaro.
A Áustria-Hungria e a Rússia tinham estabelecido, em 1897 e em 1903, acordos sobre a manutenção do satus quo nos Balcãs e nesses acordos era admitida a anexação da Bósnia-Herzegovina, mas esta deveria ser sujeita a «especial escrutínio no tempo e lugares próprios.» [SCHMITT, 1945, p. 78] No entanto, verificaram-se importantes mudanças na Sérvia. Alexandre Obrenović (14 Agosto 1876 – 11 Junho 1903) reinou desde 1889 até à sua morte como Alexandre I da Sérvia e manteve um bom relacionamento com o Império Austro-Húngaro. Alexandre I foi assassinado e sucedeu-lhe o rei Pedro Karageorgovich que, ao contrário do seu antecessor, era pró-russo. As relações com a Áustria-Hungria deterioraram-se, chegando a desencadear-se uma guerra comercial que ficou conhecida como “Guerra dos Porcos”. Os Sérvios estabeleceram novos laços com a França e a Rússia. A possibilidade de a Sérvia desencadear acções tendentes a destabilizar as nações eslavas do sul do Império alarmou o Governo austro-húngaro. Algumas personalidades da Monarquia Dual, entre elas o Chefe do Estado-Maior General Conrad von Hötzendorff, defenderam a ideia de uma guerra preventiva contra a Sérvia.
O status quo nos Balcãs sofreu ainda as consequências de um outro acontecimento: a Revolução dos Jovens Turcos, em Julho de 1908. O objectivo dos revoltosos era o de restaurar a Constituição de 1876 no Império Otomano e iniciar um conjunto de reformas. Os Jovens Turcos pretendiam, entre outros objectivos territoriais, restabelecer o controlo sobre a Bósnia e a Herzegovina. O Império Otomano estava enfraquecido, mas a tentativa de recuperar o controlo sobre os territórios ocupados alertou e causou receios no Governo austro-húngaro. Neste Império, o ministro dos Negócios Estrangeiros Alois Lexa von Aehrenthal (1854-1912) encontrava-se em funções desde Outubro de 1906. Na Rússia, desde Maio de 2006 que esse cargo era ocupado por Alexander Petrovich Izvolsky (1856-1919). Aerenthal queria aproveitar as circunstâncias para anexar a Bósnia e a Herzegovina e, desta forma, colocar um fim nas aspirações sérvias. Izvolsky queria igualmente aproveitar as circunstâncias para alterar o status quo relativo aos Estreitos, abrindo-os aos navios de guerra russos. Aerenthal e Izvolsky reuniram-se em Buchlau (na actual República Checa), em Setembro de 1908. Neste encontro, os dois ministros chegaram a um acordo: «a Áustria prometia não se opor aos planos da Rússia relativamente aos Estreitos, ficando estabelecido que Constantinopla era deixada para a Turquia; a Rússia concordou com a anexação da Bósnia.» [SCHMITT, 1945, p. 78]
Por decreto de 5 de Outubro de 1908, o Governo da Áustria-Hungria anunciou a anexação da Bósnia-Herzegovina. Este anúncio teve de imediato a reacção negativa da Sérvia. A população dos territórios anexados era em grande parte de origem sérvia e este Reino aguardava que a ocupação e administração austro-húngara chegasse a um fim para então poder anexar aquelas províncias. Vendo os seus planos arruinados, a Sérvia exigiu que lhe fosse atribuída uma parte das províncias - uma faixa de território que lhe permitiria chegar ao Mar Adriático - e o seu exército manteve-se em estado de prontidão para a guerra que parecia avizinhar-se. Aerenthal recusou negociar qualquer compensação à Sérvia já que o principal objectivo era o de dar um golpe mortal na agitação dos povos eslavos, agitação que tinha origem naquele país. «Entre os súbditos eslavos dos Habsburgo, os mais inquietos eram os Eslavos do Sul cuja contiguidade com a Sérvia era a causa de aquele pequeno país assumir uma invulgar importância aos olhos do Governo austro-húngaro. […] Pašić, o líder radical e personalidade dominante da política da Sérvia, que era simultaneamente primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1904 falou do papel da Sérvia entre os Eslavos do Sul como comparável ao do Piemonte na formação da Itália.» Este conceito fez crescer no Império Austro-Húngaro uma facção que defendia a anexação da própria Sérvia. [ALBRECHT-CARRIÉ, 1958, pp. 260-261]
Quando a anexação da Bósnia-Herzegovina foi anunciada, Izvolsky encontrava-se a caminho de Paris a fim de obter o consentimento das Grandes Potências para os planos russos e austro-húngaros. Izvolsky foi surpreendido pelo anúncio da anexação e, por outro lado, deparou com a oposição do Reino Unido e da França à abertura dos Estreitos aos navios de guerra russos. A Áustria-Hungria tinha violado, unilateralmente, o Tratado de Berlim de 1878. Perante esta situação, o ministro russo retirou o seu apoio à anexação da Bósnia-Herzegovina e passou a apoiar a posição da Sérvia. Izvolsky defendeu que tinha concordado com o processo, mas tal não dispensava a consulta das Potências, sendo então necessário convocar uma conferência internacional. Aerenthal informou que só aceitaria a conferência se, em negociações prévias, fosse prevista a aprovação da anexação da Bósnia e da Herzegovina, isto é, se a anexação fosse considerada um fait accompli, o que significa, na terminologia das Relações Internacionais, «um acto unilateral, por um estado ou grupo de estados que rápida e dramaticamente altera o status quo. Normalmente engloba o elemento surpresa e tem o efeito de pôr fim a um impasse diplomático.» [EVANS, 1998, pp. 167-168] A situação tornou-se tensa entre a Rússia e a Áustria-Hungria e Conrad von Hötzendorff defendeu que esta era a oportunidade de assumir uma posição ofensiva contra a Sérvia com a finalidade de conter a agitação dos eslavos do sul do Império, mas não teve o apoio de Aerenthal. A Alemanha não desejava envolver-se num conflito nos Balcãs em consequência da sua aliança com a Áustria-Hungria. A Rússia estava na disposição de apoiar a Sérvia caso esta fosse atacada pela Áustria-Hungria e, de acordo com o Artigo 1º da Aliança Dual, se a Áustria-Hungria fosse atacada pela Rússia, «as Altas Partes Contratantes são obrigadas a prestar ajuda mútua com todo o potencial de guerra de seus impérios e de acordo com o objectivo de concluir a paz em conjunto e por mútuo acordo.»
[Texto do tratado, em língua inglesa, em https://wwi.lib.byu.edu/index.php/The_Dual_Alliance_Between_Austria-Hungary_and_Germany, visto em 2020-01-21].
Izvolsky não conseguiu garantir por parte da França e do Reino Unido um apoio idêntico ao que a Áustria-Hungria obtinha por parte da Alemanha. A França era obrigada a agir com muito cuidado atendendo a problemas com a Alemanha em Marrocos, devido ao “Incidente de Casablanca” a 25 de Setembro de 1908. Além disso, a França tinha dúvidas sobre a política russa já que Izvolsky, na reunião com Aerenthal em Buchlau, tinha chegado a acordo sem o conhecimento dos franceses e, além disso, a situação não constituía uma ameaça para os interesses vitais da Rússia. A França não estava na disposição de ser arrastada para uma guerra nos Balcãs e, sem o apoio francês, a Rússia não tinha condições para enfrentar a Áustria-Hungria e a Alemanha. O Reino Unido não prometeu mais do que apoio diplomático.
Foram então iniciadas diligências diplomáticas no sentido de resolver a crise que tinha sido iniciada em consequência da anexação da Bósnia-Herzegovina. Em Março de 1909, a Alemanha pressionou os Russos para retirarem o seu apoio à Sérvia. As negociações com a Turquia levaram o Governo otomano a aceitar a anexação da Bósnia-Herzegovina em troca de uma compensação monetária no valor de 2.400.000 £. Através de uma troca de notas, as Potências aprovaram a anexação da Bósnia-Herzegovina. A Sérvia teve de declarar que aceitava a resolução das Potências e comprometeu-se a reatar as relações normais com a Áustria-Hungria o que implicava abandonar a propaganda e a agitação entre os Eslavos do Sul, o que nunca foi cumprido.
As Potências da Entente tiraram lições destes acontecimentos. Para os franceses ficou demonstrado que era necessário dar mais atenção às suas forças armadas a fim de restabelecer o equilíbrio que tinha sido deslocado a favor da Tríplice Aliança, ou melhor, da Aliança Dual. A Rússia, reconhecendo a sua incapacidade para resistir à Alemanha e desapontada com a falta de apoio por parte da França e do Reino Unido, acelerou a reorganização e expansão do seu exército. Os Britânicos expandiram o seu programa de construção naval por forma a manter o critério Two Power Standard. Acelerou-se a corrida aos armamentos. Do lado da Tríplice Aliança, os partidários da guerra contra a Sérvia ganharam força. Conrad von Hötzendorff, o Chefe do estado Maior General da Áustria-Hungria, tentou influenciar o Imperador contra a Sérvia ou, como ele afirmou, «contra aquele ninho de vespas.» [MILLER, 1997, p. 280] A Alemanha demonstrou à Rússia a sua fraqueza e Helmuth von Moltke, o chefe do Estado-Maior General alemão, deixou claro ao chefe do Estado-Maior General russo que «no momento em que a Rússia mobilizar, a Alemanha também mobilizará e mobilizará inquestionavelmente todo o seu exército.» [MILLER, 1997, 280]
Os interesses italianos nos Balcãs foram ignorados. Por causa disso, a Itália concordou em apoiar a Rússia nas suas ambições sobre os Estreitos enquanto a Rússia apoiaria a Itália nas suas ambições sobre Tripoli. Na Sérvia, a situação provocou um exacerbamento do nacionalismo. Após a anexação da Bósnia-Herzegovina, ainda em 1908, foi criado um grupo nacionalista chamado Narodna Odbrana (A Defesa do Povo) que durante as Guerras dos Balcãs (1912-1913) cometeram diversos crimes sobre a população não sérvia em territórios conquistados. Esta veio a ser uma organização de fachada para outra chamada “Unificação ou Morte”, também conhecida como “Mão Negra” sobre a qual caiu a responsabilidade pelo planeamento e execução do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria em Julho de 1914.
A crise provocada pela anexação da Bósnia-Herzegovina fortaleceu os laços entre a Alemanha e a Áustria-Hungria. O apoio dado pela Alemanha foi decisivo para o desfecho desta crise, ao contrário do que se verificou do lado da Entente. Ao contrário de Bismarck, que não desejava ver-se envolvido numa guerra por causa da política austro-húngara nos Balcãs - «Para nós, as questões dos Balcãs não podem em caso algum ser motivo para uma guerra.» – o actual chanceler alemão, Bernhard von Bülow (1849-1929), no Governo entre 16 de Outubro de 1900 e 16 de Julho de 1909, decidiu que a Alemanha seria parte activa na questão, mas deixou que a Áustria liderasse os acontecimentos. De qualquer forma, os respectivos Estados-Maiores, sob a liderança de Conrad von Hötzendorff e de Helmuth von Moltke, estudaram a possibilidade de desenvolvimento de operações militares para o caso de o conflito diplomático evoluir no sentido de um conflito militar. [ALBRECHT-CARRIÉ, 1858, p. 266]
No final, a anexação da Bósnia-Herzegovina pela Áustria-Hungria foi aceite como um fait accompli, mas as pretensões da Rússia relativamente aos Estreitos foram negadas pelas mesmas Potências que aceitaram a anexação.
A segunda crise de Marrocos
A Conferência de Algeciras, realizada entre 16 de Janeiro e 7 de Abril de 1906, na sequência da Primeira Crise de Marrocos (1905-1906), não resolveu as principais questões relativamente à intervenção das Potências eurpeias naquele território. Terá evitado um eventual confronto entre as Potências, e reforçou a posição francesa, mas não permitiu a imposição de um sistema de protectorado tal como era ambicionado pela França. Embora estivesse sempre presente uma certa desconfiança e um estado de alerta por parte da Alemanha e da França, estas duas Potências conseguiram resolver de forma pacífica alguns problemas que entretanto surgiram e até estudaram formas de cooperação no campo económico, em Marrocos. Para ilustrar esta afirmação podemos analizar os casos do "incidente de Casablanca" e da "Convenção de Marrocos de 1909". A questão verdadeiramente gravesurgiu quando a França teve de intervir na capital marroquina e a Alemanha decidiu aproveitar a situação para obter compensações coloniais em África.
O incidente de Casablanca
A cidade marroquina de Casablanca estava ocupada por forças da Legião Estrangeira Francesa. Esta força militar tinha sido criada por decreto de 9 de Março de 1831, «Il sera formé une légion compossé d’etrangers», quando era Ministro da Guerra de França (Secrétaire d’Etat au Département de la Guerre) o Marechal Nicolas Jean-de-Dieu Soult (1769-1851), o mesmo que comandou as tropas napoleónicas durante a Segunda Invasão Francesa de Portugal (1809). A Legião Estrangeira foi então formada por todos os corpos de tropas estrangeiras que serviam no Exétrcito Francês. O 4º Batalhão da Legião Estrangeira era formado por tropas portuguesas e espanholas.
A Legião Estrangeira Francesa sofreu muitas alterações ao longo dos anos e das várias intervenções militares em que participou, em muitas partes do mundo. Em Marrocos, a Legião esteve presente desde 1907 até 1956, quando Marrocos readquiriu a sua independência. O primeiro corpo expedicionário da Legião desembarcou em Casablanca, a 7 de Agosto. Pouco tempo depois chegaram novas unidades daquele corpo de tropas. A sua missão era a de pacificar o território marroquino onde as lutas pelo poder se tinham agravado com a resistência à crescente presença francesa.
Na Legião Estrangeira, tal como na generalidade das forças militares, foram registadas deserções. No dia 25 de Setembro de 1908, seis desertores da Legião Estrangeira, três deles com a nacionalidade alemã, tentaram embarcar num navio alemão utilizando salvo-conductos emitidos pelo Consulado Alemão. Os desertores foram reconhecidos por funcionários franceses das instalações portuárias, tendo sido necessário utilizar meios violentos para conseguir a sua prisão, apesar de estarem acompanhados pelo Chanceler do Consulado.
Este acontecimento criou uma controvérsia entre a França e a Alemanha. Os Franceses alegaram que a Alemanha só podia oferecer protecção em Marrocos a pessoas de nacionalidade alemã. Com este argumento, os três desertores não alemães ficavam excluídos da protecção alemã. No entanto, os Franceses também alegaram que o território de Marrocos sob ocupação militar por parte da França estava sujeito exclusivamente à jurisdição francesa e, por esta razão, os três desertores alemães deviam prestar contas à Justiça francesa, não tendo a Alemanha nenhuma autoridade para os proteger.
A Alemanha entendia, por seu lado, que os tratados em vigor lhe permitiam exercer jurisdição extraterritorial em Marrocos e, sendo assim, os três desertores alemães encontravam-se sujeitos exclusivamente à jurisdição do Cônsul alemão em Casablanca. Também alegou que a pisão forçada e violenta dos desertores punha em causa a inviolabilidade dos agentes consulares. Com estes argumentos, a Alemanha exigia a libertação dos desertores de nacionalidade alemã.
Pouco mais de um mês após estes acontecimentos, a França e a Alemanha chegaram a um acordo e, a 10 de Novembro de 1908, os representantes de ambos os governos assinaram um protocolo segundo o qual ambas as partes concordavam em sujeitar esta questão a um processo de arbitragem, o que significava envolver uma terceira parte na resolução do problema. Recorreram então ao processo de arbitragem de acordo com o que se encontrava em vigor nas instâncias internacionais então existentes, o Tribunal Permanente de Arbitrgem.
A arbitragem é uma forma de resolução de conflitos que é praticada desde a Antiguidade e foi utilizada com frequência na Idade Média, mas caiu em desuso com o aparecimento dos Estados modernos e voltou a ser utilizada com mais frequência no final do século XIX e início do século XX. [EVANS & NEWNHAM, 1998, p. 32; BRIERLY, 1967, pp. 357-358]. Portugal recorreu ao processo de arbitragem para a resolução das questões de Bolama (em 1870), na actual Guiné-Bissau, e da Baía de Lourenço Marques, em Moçambique (1875). Em ambos os casos os árbitros eram ou tinham sido chefes de Estado: o general Ulysses S. Grant (1869-1877), presidente dos Estado Unidos da América, no caso de Bolama, e o Marechal Patrice de Mac Mahon (1808-1893), presidente da República Francesa, em 1875.
MARROCOS in http://www.africa-turismo.com/marrocos/imagens/mapa-fisico.jpg
A Conferência de Paz que tinham decorrido em Haia, em 1899, permitiu a criação do Tribunal Permanente de Arbitragem. Depois de escolhido o colectivo de personalidades (árbitros) que iria analizar o problema, as reuniões decorreram entre 1 e 19 de Maio de 1909 e a sua decisão foi conhecida a 22 de Maio. Em termos gerais, a decisão do Tribunal de Arbitragem dava razão à França e foi acatada pela Alemanha. Este acontecimento põe em avidência a possibilidade de, naquela época, recorrer a instituições internacionais para resolver este tipo de questões. Devemos ter em atenção, no entanto, que não se tratava de uma questão de ocupação ou anexação de algum território ou, de forma mais específica, não se tratava de atribuir território a uma dessas Potências europeias sem que, de alguma forma, fossem atribuídas compensações às demais Potências.
A convenção franco-alemã de 1909
A Acta de Algeciras (1906) atribuiu a várias Potências algumas tarefas em Marrocos. Foi o caso da criação de uma polícia internacional nos oito portos marroquinos abertos ao comércio externo, tarefa que foi atribuída à França e à Espanha. Uma outra criação importante foi a de um Banco de Marrocos (Banque d'Etat du Maroc) para o que várias Potências contribuíram através dos seus sistemas bancários, entre elas a França e a Alemanha. Existia assim, pelo menos uma área em que deviam agir em conjunto e, na realidade, essa cooperação funcionou bem.
Contudo, a França tinha conseguido ocupar posições chave em vários sectores da vida económica marroquina e a agitação que se verificava naquele reino justificou a oportunidade de para ali enviar mais forças militares. A ingerência francesa e espanhola em Marrocos era cada vez maior, o que não passou despercebido e não agradou aos Alemães. O Governo alemão decidiu desenvolver uma política construtiva em relação à França e foi nesse sentido que surgiu a Convenção Franco-Alemã de 8 de Fevereiro de 1909.
De acordo com esta Convenção, a Alemanha reconhecia que existiam interesses políticos especiais da França em Marrocos e declarava que não pretendia causar impedimento a esses interesses. No entanto, exigia algo em troca: a integridade e independência do Reino de Marrocos e a salvaguarda do princípio da igauldade económica, o que implicava não obstruir os interesses industriais e comerciais alemães naquele território. A Convenção estabelecia também que nenhuma das Potências deveria procurar obter ou encorajar outros a obterem privilégios económicos e, o que era muito importante, comprometiam-se a associar os seus nacionais ou as suas empresas em actividades em que uma delas conseguisse obter uma concessão.
Parecia que a Alemanha estava a ir mais longe do que tinha admitido na Conferência de Algeciras pois agora já aceitava a existência de interesses políticos especiais da França em Marrocos. A possibilidade de associação de franceses e alemães em actividades que tenham sido concessionadas a um deles era, para os Alemães, a questão mais importante desta Convenção e, a 2 de Junho de 1909, «propuseram estabelecer um condomínio económico de financiadores franceses e alemães» [ANDERSON & HERSHEY, 1918, p. 402].
O Governo francês compreendeu então que a Covenção de 8 de Fevereiro abria a possibilidade de a Alemanha expandir as suas actividades em Marrocos colocando este território dependente do arbítrio das decisões alemãs. Tal facto não seria bem aceite pelo Reino Unido o que podia causar danos na Entente Cordiale. Durante os próximos dois anos, a França iria colocar todos os entraves possíveis à aplicação da Convenção de 1909. A França conseguiu desta forma salvaguardar muitos dos seus interesses, mas o processo causou danos nas relações franco-alemãs.
O incidente de Agadir
A Acta de Algeciras (1906) deu solução a várias questões relativas aos interesses das Potências que ali desnvolveram as suas actividades industriais e comerciais, mas não resolveu as questões políticas destas Potências no que respeitava a este território; criou a solução para algumas questões internas de Marrocos (polícia dos portos, Banco de Marrocos, etc.) todas elas ligadas a interesses das Potências presentes em Algeciras; não só não resolveu a generalidade dos problemas marroquinos como criou uma situação de grande instabilidade. Foi esta instabilidade que permitiu diversas intervenções militares francesas - em Oujda, junto à fronteira com a Argélia, em Julho de 1907, ou o bombardeamento de Casablanca nesse mesmo ano – resultando em novos acordos com o Sultão permitindo uma ingerência crescente dos Francese em Marrocos.
Quando foi assinada a Acta de Algeciras, em 1906, era sultão de Marrocos Muley Abd-el-Aziz (1878-1943) que, numa tentativa desajeitada de modernizar Marrocos, endividou ainda mais o país, tornando-o cada vez mais dependente dos interesses estrangeiros. Contra ele surgiram várias revoltas e Marrocos caiu num estado de anarquia. A mais importante dessas revoltas foi encabeçada por Mulei Abdal Hafide (1875-1937), irmão do sultão e que acabaria por conquistar o poder em 1909. Dois anos mais tarde, perante uma revolta que punha em perigo a sua posição como sultão, Mulai Hafid pediu ajuda aos Franceses.
Em resposta ao pedido de ajuda, os Franceses enviaram para Fez uma coluna de tropas que ocupou a cidade a 21 de Maio de 1911. Para os Alemães, este movimento dos Franceses começava a evidenciar uma tentativa de ocupar militarmente todo o território marroquino alterando os acordos anteriormente estabelecidos. O Governo alemão exigiu ao embaixador francês em Berlim que a França retirasse as suas tropas de Fez e cumprisse o estabelecido na Convenção de 1909. O Governo alemão também deixou claro que o passo dado pela França podia significar a reabertura de todo o processo de Marrocos, ou seja, o estatuto da França naquele território teria que ser revisto. Contudo, a situação interna de Marrocos não permitia que os Franceses saíssem de Fez e os Alemães estavam conscientes desse facto.
No dia 1 de Julho de 1911, o Governo alemão notoficou as Potências signatárias da Acta de Algeciras de que a canhoneira Panther tinha sido enviada para o porto de Agadir e de que a sua presença justificava-se para, em caso de necessidade, prestar assistência aos súbditos alemães e aos empregados dos estabelecimentos alemães ali existentes. Ora, o porto de Agadir não fazia parte da lista de portos abertos ao comércio estrangeiro e não existiam súbditos alemães na cidade. Ficava claro que o objectivo da intervenção alemã era reabrir a questão de Marrocos. O Governo alemão tinha decidido fazer uma demonstração de força para evitar uma maior penetração francesa em Marrocos e levar a França a negociar uma resolução para o problema. Poderiam até estar outras hipóteses em aberto: «é altamente provável que a Alemanha esperasse conseguir destruir a Tríplice Entente. Também é provável que, no início do incidente, a Alemanha esperasse obter parte de Marrocos para ela própria, contando com a conhecida fraqueza militar da França e a confusão em Inglaterra produzida pela luta no House of Lords para impedir uma oposição séria.» [ANDERSON & HERSHEY, 1918, p. 403]
Os Alemães esperaram uma resposta por parte dos Franceses. Inicialmente, estes estavam dispostos a enviar alguns dos seus navios de guerra para Agadir, mas, conscientes das implicações que esse gesto podia ter em Marrocos e na própria Europa, decidiram deixar o próximo movimento ao cuidado dos Alemães que, assim, se viram na obrigação de apresentar as suas propostas. Alfred von Kiderlen-Waechter (1852-1912), Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, transmitiu ao embaixador francês em Berlim que a Alemanha esperava receber o Congo Francês em troca da permissão para dar mão livre aos Franceses em Marrocos.
Os Franceses decidiram não aceitar a proposta apresentada por Kiderlen e, ao fazê-lo, deixaram aos Alemães a possibilidade de seguir dois caminhos: ou retiravam a proposta e retiravam as suas forças de Agadir ou seriam obrigados a utilizar a força a fim de manterem os seus objectivos. A persistência da recusa francesa em aceitar a proposta alemã conduziu a um crescimento da tensão entre as duas Potências , o que não foi favoirável a Kiderlen porque nem o Imperador, Guilherme II, nem o Chanceler, Theobald von Bethmann Hollweg (1856-1921) desejavam iniciar uma guerra e porque o Reino Unido decidiu clarificar a sua posição nesta crise.
O Reino Unido começou por esclarecer que não tencionava interferir e preferia apoiar um acordo razoável emtre a França e a Alemanha sobre os territórios africanos. Com o prolongamento das negociações sem que que se registassem progressos, Lloyd George (1863-1945), ministro das Finanças desde 1908, conhecido como um advogado das relações amigáveis entre o Reino Unido e a Alemanha, afirmou no seu discurso de 21 de Julho de 1911 em Mansion House, residência oficial do Lord Mayor of the City of London
[Texto do discurso, em língua inglesa, em https://wwi.lib.byu.edu/index.php/Agadir_Crisis:_Lloyd_George%27s_Mansion_House_Speech, visto em 2020-01-21]:
«Acredito que é essencial para os mais altos interesses, não apenas deste país, mas do mundo, que a Grã-Bretanha mantenha sempre o seu lugar e o seu prestígio entre as Grandes Potências do mundo. A sua poderosa influência já foi no passado e pode ainda ser no futuro, inestimável para a causa da liberdade humana. No passado, mais de uma vez resgatou nações continentais, que às vezes tendem a esquecer esse serviço, de desastres avassaladores e até de extinção nacional. Eu faria grandes sacrifícios para preservar a paz. Penso que nada justificaria uma perturbação da boa vontade internacional, exceto questões da maior importância nacional. Mas se formos forçados a uma situação em que a paz só possa ser preservada com a rendição da grande e benéfica posição que a Grã-Bretanha conquistou por séculos de heroísmo e conquista, permitindo que a Grã-Bretanha seja tratada, por forma a afectar os seus interesses vitais como se ela não fosse de nenhuma importância no concerto das nações, digo enfaticamente que a paz a esse preço seria uma humilhação intolerável para um grande país como o nosso. Honra nacional não é uma questão partidária. A segurança do nosso grande comércio internacional não é uma questão de nenhum partido; é muito mais provável que seja garantida a paz do mundo se todas as nações compreenderem perfeitamente quais devem ser as condições da paz.»
Por outro lado, Sir Edward Grey, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros insistiu em que o Reino Unido deveria ser consultado em quaisquer acordos sobre Marrocos. Arthur James Balfour (1848-1930), líder do Partido Conservador, declarou o apoio da oposição ao Governo nesta matéria. Os políticos da época tiveram também em conta a opinião pública francesa, das diversas tendências, que exigia uma atitude firme do seu Governo. Provavelmente houve alguma pressão por parte da Rússia embora a sua reação tenha sido idêntica à da França quando se deu a Crise de 1908, por causa da Bósnia-Herzegovina, isto é, não estavam em jogo interesses vitais da França que pudessem vir a justificar uma intervenção russa ao abrigo da aliança de 1902. Contudo, com esta situação de instabilidade, a Bolsa de Berlim teve grandes quebras o que levou o Governo alemão a agir de forma mais prudente e a declarar que não tinha quaisquer pretenções sobre o território de Marrocos e que desejava chegar a acordo com o Governo francês.
Poucos tempo depois, a 18 de Agosto de 1911, as negociações foram interrompidas sem que houvesse algum progresso significativo. Os Governos foram, no entanto, pressionados, interna e externamente, para retomarem as negociações, o que aconteceu a 4 de Setembro. Cinco dias mais tarde, a 9 de Setembro, verificou-se outra grande descida nos valores da Bolsa de Berlim e surgiram mais rumores sobre preparativos militares e navais que estariam a ser feitos por cada uma das partes. Apesar disso, os negociadores francês e alemão conseguiram delinear uma convenção que dava à França o protectorado de facto sobre Marrocos, embora este termo não fosse usado nos textos. Em troca, seria estabelecido de forma muito clara o princípio de “porta aberta” naquele território. A Alemanha recebeu partes do território francês no Congo e cedeu à França algum território na região do Lago Chade.
No dia 4 de Novembro de 1911, em Berlim, foram assinadas as convenções relativas a Marrocos e ao Congo. À Convenção sobre Marrocos foi anexada uma declaração do Ministro alemão dos Negócios Estrangeiros em que reconhecia o direito da França criar um protectorado em Marrocos. Os acordos alcançados foram considerados um triunfo para a França e foram obtidos, internamente, com o apoio da opinião pública francesa e, externamente, com o apoio diplomático do Reino Unido. Na Alemanha registaram-se inúmeras críticas à diplomacia do Governo e a opinião pública, em grande parte canalizada pela imprensa ligada ao Governo, virou-se contra o Reino Unido que foi, do ponto de vista alemão, a Potência responsável pela sua derrota diplomática frente à França.
Os líderes alemães compreenderam que a Tríplice Entente era mais coesa do que o tipo de ligação entre os seus membros – entente - podia fazer crer e que, do ponto de vista diplomático tornava-se, assim, mais forte do que a Tríplice Aliança. O Governo alemão também teve ocasião de registar que, tanto por parte dos Governos como da opinião pública, a simpatia era geralmente dirigida a favor da França. Mas a fraqueza diplomática da Alemanha deu mais evidência às conclusões de Tirpitz, o que significava aumentar a dimensão da marinha alemã. Com a oposição de Bethmann, mas com o apoio do Imperador, em 1912 foi aprovada uma nova Lei Naval que acrescentava mais meios aos previstos nas leis anteriores.
A invasão da “Líbia”
O território que hoje constitui a Líbia esteve dividido durante muito tempo em duas prvíncias:
- Tripolitânia, ao longo da costa ocidental, com a capital em Tripoli;
- Cirenaica, ao longo da costa oriental, com a capital em Bengazi.
Estes eram territórios costeiros. O interior, maioritariamente deserto, era conhecido como Fazzan e, até ao século XX fugiu fugiu ao controlo administrativo de Tripoli, a capital de todo este conjunto (actual capital da Líbia). As guarnições militares otomanas que no início do século XX ainda existiam na região estavam localizadas ao longo da costa.
Este território tinha sido capturado pelos Otomanos em meados do século XVI. Quando o Egipto passou a ser controlado pelos Britânicos, a Líbia ficou isolada do resto do Império. No final do século XIX, o território foi objecto de competição dos interesses franceses e italianos, tal como acontecera com a Tunísia que, em 1881, foi ocupada pelos Franceses. Com a ocupação da Tunísia, muitos italianos estabeleceram-se na Líbia e ali fizeram os seus investimentos. Tratavam-se, pois, de investimentos feitos por uma Potência europeia - a Itália – num território que, embora gozasse de uma grande autonomia, pertencia ao Império otomano.
As relações entre o Reino de Itália e o Império Otomano começaram a deteorar-se quando os italianos que viviam em Tripoli recusaram aceitar a soberania judicial otomana. Noutras regiões, por exemplo no Egipto ou em Marrocos, os cidadãos europeus ali residentes estavam sujeitos a um tratamento jurisdicional diferenciado dos naturais da região. Em algumas regiões otomanas onde a presença europeia era mais antiga e mais desenvolvida existia o sistema das capitulações que, para além de várias vantagens a nível económico, atribuía aos cidadãos europeus a faculdade de se manterem sob a jurisdição dos respectivos consulados.
A Itália já tinha sondado as outras Grandes Potências europeias sobre a possibilidade de se apoderar da Líbia. Não houve oposição às ambições territoriais da Itália, mas a Alemanha, aliada da Itália na Tríplice Aliança, desejava uma aproximação ao Governo Otomano e a invasão da Líbia pelos Italianos poderia pôr em causa este objectivo. No entanto, a relação entre a Alemanha e o Império Otomano sofreu uma quebra quando, em 1908, se deu a Revolução dos Jovens Turcos. O novo Governo turco não desejava que os interesses italianos se expandissem mais na região e impediu os colonos italianos de adquirirem mais territórios na região.
No dia 23 de Setembro de 1911, o Governo italiano enviou ao Governo otomano um protesto formal referindo perseguições aos italianos residentes na Líbia. Os Otomanos conheciam os objectivos italianos e ofereceram a possibilidade de abrir novas concessões económicas e a garantia de segurança dos cidadãos italianos residentes na Líbia. Contudo, paralelamente às diligências diplomáticas, o Governo otomano enviou recursos militares para a Líbia. A Itália não aceitou a resposta otomana e declarou guerra ao Império Otomano a 29 de Setembro de 1911. Rapidamente as forças italianas desembarcaram na Líbia e ocuparam as cidades costeiras.
As poucas tropas otomanas existentes na Líbia não conseguiram impedir a invasão italiana do território e retiraram para o interior a partir de onde desenvolveram acções de resistência a uma maior penetração italiana. A situação alterou-se quando os Sanusis, uma tribo da Líbia e da região do Sudão, se juntou aos Otomanos na luta contra os Italianos. Depressa as tropas italianas ficaram confinadas a algumas posições costeiras onde dispunham do apoio de fogos dos navios de guerra italianos. Contudo, não conseguindo resolver a situação na Líbia e enfrentando problemas internos, o Governo italianos começou a agir contra outros territórios otomanos: Beirute, no actual Líbano, foi bombardeada em Fevereiro de 1912; vários fortes que defendiam a entrada do Estreito de Dardanelos foram também bombardeados em Maio desse ano; as ilhas actualmente conhecidas como Dodecaneso, no Mar Egeu, foram ocupadas por tropas italianas; os portos otomanos do Mar Vermelho foram bloqueados; uma flotilha de cinco torpedeiros italianos forçou a entrada no Estreito de Dardanelos, em Julho de 1912. As acções militares poderiam ter sido prolongadas, mas o início da Primeira Guerra Balcânica no Outono de 1912 levou o Império Otomano a aceitar que não tinha condições para continuar a defender os seus territórios africanos.
No dia 18 de Outubro de 1912, no palácio de Ouchy, Lausanne, Suíça, foi assinado um tratado entre a Itália e o Império Otomano, com onze artigos dos quais interessa destacar – de forma resumida os três primeiros: o artigo 1 tratava da cessação imediata das hostilidades; o artigo 2 tratava da retirada das tropas e pessoal civil otomano da Líbia e retirada das tropas e pessoal civil italiano das ilhas Dodecaneso; o artigo 3 referia-se à troca de prisioneiros de guerra.
["Treaty of Peace Between Italy and Turkey." The American Journal of International Law 7, no. 1 (1913): 58-62. https://www.jstor.org/stable/2212446?seq=1#metadata_info_tab_contents Visto em 2020 Janeiro 20]
Quando as tropas turcas deixaram a Líbia, deixaram para trás não apenas as armas, mas também muitos homens e asseguraram aos Sanussi que, enquanto resistissem aos Italianos, iriam continuar a receber apoio da Turquia. Os Italianos, por sua vez, não abandonaram as ilhas Dodecaneso. Como a guerra se prolongou pelos anos seguintes, os Italianos empenharam tropas africanas da Eritreia, então uma colónia italiana. Apesar dos esforços feitos, só depois da Primeira Guerra Mundial a Itália conseguiu dominar a maior parte do território.
A Rússia mostrou simpatia pela acção italiana porque, tendo em vista a possibilidade de vir a controlar os Estreitos, o enfraquecimento do Império Otomano contribuía para esse objectivo. A França manteve uma atitude reservada porque, embora emergindo reforçada da Segunda Crise de Marrocos, ainda não tinha estabelecido o protectorado sobre aquela região. O Reino Unido, signatário dos Acordos do Mediterrâneo (12 Fevereiro 1887) segundo os quais aceitava que a Tripolitana pertencia à esfera de influência da Itália enquanto esta apoiaria os Britânicos no Egipto, não desejavam antagonizar a Itália pelo que se mantiveram em silêncio sobre o assunto.
A Alemanha também não desejava antagonizar a Itália, sua parceira na Tríplice Aliança e com a contribuição de quem contava nos seus planos para um possível conflito na Europa. No entanto, os seus interesses no Império Otomano estavam em crescimento e estava em execução uma estratégia para exercer ali uma crescente influência económica e militar. Nesta situação, o conflito entre a Itália e o Império Otomano era encarado com apreensão. A Áustria-Hungria não desejava ver a Itália envolvida na questão dos Balcãs e quando as ilhas Dodecaneso foram ocupadas e a Itália ameaçou levar a guerra ainda mais longe, na Península Balcânica, o Chefe do Estado-Maior General austríaco, Conrad von Hötzendorf, chegou a propor uma guerra contra a Itália. No entanto, terá sido a possibilidade de uma intervenção militar da Itália nos Balcãs, quando se iniciava a Primeira Guerra Balcânica, que levou os Turcos à mesa de negociações [GERWARTH & MANELA, 2014, p. 38].
A consolidação dos sistemas de alianças
Entre 1912 e o Verão de 1914, a coesão da Tríplice Entente foi posta à prova várias vezes, não apenas por causa dos conflitos que então se verificaram, as Guerras Balcânicas em 1912-1913 (ver o texto «Breve História dos Balcãs até 1914» em http://www.oespacodahistoria.com/index.php/200-primeira-guerra-mundial-nos-balcas-ate-1914), mas também porque foram tomadas iniciativas diplomáticas nesse sentido. Aliás, estas últimas foram determinantes para o reforço dos laços da Entente enquanto aqueles conflitos foram mantidos como regionais.
Das crises anteriores – Bósnia (1908), Marrocos (1911-1912) e Líbia (1911-1912, as Potências da Entente extraíram as suas conclusões. Em 1908, o apoio da França à Rússia não foi mais que simbólico. Na crise de 1911-1912, a principal intervenção da Rússia foi no sentido de pressionar a França a aceitar um compromisso com a Alemanha. Já a invasão da Líbia pela Itália não teve repercussões tão graves como as crises anteriores. Em Fevereiro de 1912, o Governo russo propôs ao Governo francês uma reunião com a finalidade de serem esclarecidas as posições a tomar por ambas as partes em caso de nova crise. Raymond Poincaré (1860-1934), primeiro-ministro de França de 14 de Janeiro de 1912 a 21 de Janeiro de 1913, sabia que, se surgisse outra crise idêntica à de Marrocos (1911-1912) e tendo em conta que qualquer crise deste género podia rapidamente levar a um conflito com a Alemanha na Europa, iria necessitar do apoio claro da Rússia, isto é, da certeza da execução das medidas previas na aliança franco-russa de 1892. Só desta forma, a França estaria em condições de fazer frente à Alemanha.
Se a França esperava obter um claro apoio da Rússia numa futura crise, então devia estar preparada para proceder de igual forma em relação à sua aliada, o que implicava apoiar a política da Rússia no Médio Oriente. A política seguida pelo Governo francês criou um clima de confiança entre este e o Governo russo. Alexandre Izvolsky, que tinha desempenhado o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros russo de 1906 a 1910, era agora embaixador russo em Paris e, em Setembro de 1912, informou o seu Governo que «se a Rússia se visse envolvida numa guerra com a Áustria como resultado de um ataque da Áustria à Sérvia, e se isso levasse então à intervenção da Alemanha, a França reconheceria o casus fœderis». Contudo, o Governo de Poincaré estava empenhado em evitar que a Rússia agisse por forma a envolver-se num conflito nos Balcãs ou no Médio Oriente. Mais de uma vez, a França pressionou a Rússia e a Sérvia para evitar uma guerra com a Áustria [SCHMITT, 1945, pp. 94-95].
Apesar da prudência mostrada pela França, a aliança franco-russa perdia o seu carácter passivo e os respectivos estados-maiores reuniram-se anualmente para reverem os seus planos de acção comum em caso de guerra. No Verão de 1912, as duas Potências assinaram uma convenção naval. Pelo seu lado, o Reino Unido também agiu por forma a estreitar os laços com os seus parceiros da Tríplice Entente. Antes, porém, o Secretário de Estado da Guerra britânico, Richard Burned Haldane (1856-1928) explorou a possibilidade de um acordo com a Alemanha em conversações que manteve com os governantes alemães, em Berlim, em 1912. Os Alemães estariam dispostos a abrandar o seu programa de construção naval se o Reino Unido estabelecesse um acordo em que garantia a neutralidade no caso de a Alemanha se envolver numa guerra, o que a acontecer seria contra a França e a Rússia. O Almirantado Britânico concluiu que as concessões que os Alemães estavam a oferecer não eram suficientes e, por outro lado, a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros não desejava comprometer-se com uma neutralidade que implicaria sacrificar a Entente com a França ou com a Rússia.
O Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros britânico, Sir Edward Grey, apresentou uma proposta de acordo segundo a qual o Governo do Reino Unido declarava que nunca tomaria a iniciativa nem se juntaria a um ataque lançado contra a Alemanha sem provocação desta. «A agressão à Alemanha não é o objectivo nem faz parte de qualquer tratado, acordo ou combinação da qual o Reino Unido faz parte actualmente, nem o Reino Unido se tornará parte de algo que tenha esse objectivo.» [SCHMITT, 1945, p. 90]. Os governantes alemães consideraram insuficientes estas garantias e as conversações (a Missão Haldane) foram dadas por terminadas. O Governo alemão prosseguiu com o seu programa naval e os Britânicos transferiram os seus navios do mediterrâneo para o Mar do Norte a fim de manter a supremacia naquela região. Em compensação, a França reforçou a sua força naval no Mediterrâneo com a frota sediada em Brest, na Bretanha. Desta forma evitava-se a supremacia das forças navais da Tríplice Aliança na região – Itália e Áustria-Hungria. Para estas disposições poderem ser aplicadas em segurança, o Governo britânico deveria comprometer-se a defender as costas norte da França. Nesse sentido foi trocada correspondência e, embora concordando com os argumentos franceses, o Governo britânico não foi além de um acordo de princípios que não impunha aos britânicos mais que a obrigação de decidir em conformidade com as circunstâncias.
As relações do Reino Unido com a Rússia não eram tão estreitas como as que tinha desenvolvido com a França. Durante as Guerras dos Balcãs (1912-1913), a diplomacia britânica tentou sempre conciliar os interesses russos e austríacos. Da mesma forma, no Médio Oriente, Sir Edward Grey não apoiou os protestos russos quando, no Inverno 1913-1914, os Alemães enviaram uma missão militar para a Turquia. Por estas razões, na Primavera de 1914, Sazonov sugeriu que a Tríplice Entente fosse transformada numa aliança formal. Embora o Governo britânico não estivesse na disposição de dar esse passo por questões de política interna, concordou em estreitar o relacionamento entre as duas Potências e foram iniciadas conversações entre os almirantados britânico e russo. Da parte do Reino Unido, houve sempre grandes desconfianças em relação à Rússia. Uma minuta de 20 de Julho de 1914, da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros britânica, afirmava: «A Rússia é uma Potência formidável e tornar-se-á cada vez mais forte. Esperemos que as nossas relações com ela continuem a ser amigáveis.» [SCHMITT, 1945, p. 99]
Apesar de algumas desconfianças e de o Reino Unido insistir em não transformar os acordos com a França e a Rússia num sistema de alianças, as Potências da Entente chegaram a Julho de 1914 mais unidas que nunca. Era possível ver a mesma tendência entre as Potências da Tríplice Aliança. Apesar dos conselhos de moderação, da Alemanha para a Áustria-Hungria, esta não deixou de receber garantias de que, em caso de guerra contra a Sérvia teriam o apoio da Alemanha. A Tríplice Aliança foi renovada em 1912 e a Itália colocou-se ao lado da Áustria-Hungria em oposição às pretensões da Sérvia em obter uma saída para o Adriático. As Potências da Tríplice Aliança negociaram uma convenção naval, em vigor desde 1 de Novembro de 1913, com vista a derrotarem as frotas inimigas e obterem o controlo naval do Mediterrâneo. Em Março de 1914, a Itália e a Alemanha estabeleceram um acordo segundo o qual, em caso de guerra com a França, a Itália enviaria para a Alemanha três Corpos de Exército e duas Divisões de Cavalaria. Com a corrida aos armamentos que se verificou no início do século XX, os exércitos das Potências da Tríplice Aliança estavam mais fortes, muito em especial o da Alemanha.
A Europa estava assim dividida em dois blocos rivais, militarmente mais fortes a cada ano que passava. Apesar de se encontrarem em blocos diferentes, as Potências não deixaram de continuar a tentar acordos para a redução de armamentos ou de cooperar para evitar o alastramento de conflitos. Tal foi o caso das Guerras Balcânicas em que a Alemanha e o Reino Unido agiram por forma a moderar as intenções da Áustria e da Rússia. A Alemanha e o Reino Unido estabeleceram também acordos no que respeita às colónias em África e ao Caminho de Ferro de Bagdad. Com a França, a Alemanha chegou a acordo, em Fevereiro de 1914 sobre as respectivas esferas de influência económica na Turquia. Os Franceses não tinham esquecido a Alsácia-Lorena, mas os tempos tinham mudado. O embaixador alemão em Paris escrevia, em Fevereiro de 1914: «A ferida de 1871 ainda arde no coração de todos os Franceses, mas nenhum está disposto a arriscar o seu pescoço ou o dos seus filhos pela questão da Alsácia-Lorena.» [SCHMITT, 1945, p. 102]
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