Livro VII
LIVRO VII
I – Sabe por lá do assassínio (a 12 de Janeiro de 52) de Públio Clódio Pulcro e, havendo tido conhecimento do senatusconsultum que chamava às armas toda a juventude de Itália, decide fazer um alistamento em toda a Provincia.
As notícias depressa se espalham pela Gália Transalpina; circula o boato de que César fora retido pelas perturbações em Roma e impedido, por tão graves dissensões, de reunir-se ao exército; os que já mal podem sofrer a sujeição ao povo romano aproveitam o momento para fazer projectos de guerra com mais liberdade e audácia.
Os chefes da Gália, reunindo em locais afastados, no meio das florestas, lamentam-se pela sorte sofrida por Acão; esta sorte pode atingi-los a eles próprios, e deploram a comum infelicidade da Gália; por todos o género de promessas e de recompensas pedem que se comece a guerra e que, mesmo com perigo das suas vidas, se restitua a liberdade à Gália.
II – Os Carnutes declaram «que não existe perigo que não aceitem pela salvação comum e prometem serem os primeiros a pegar em armas; e uma vez que de momento não é possível a troca de reféns, para impedir a divulgação do segredo, pedem que se jure solenemente sobre os estandartes militares reunidos em feixe (cerimónia habitual entre eles para se unirem pelos laços mais sagrados) que ninguém desertará quando houverem começado a guerra». Então os que estão em redor felicitam os carnutos e, depois de terem marcado o dia da rebelião, terminam a assembleia.
III – Chegado o dia combinado, os Carnutes, sob a direcção de Gutruato e de Conconetodumno, correm a um sinal dado sobre Génabo (os manuscritos do livro VII usam sempre o termo “Genabum” e não “Cenabum”; porém a ortografia “Cénabo” é usada por outros autores e por uma inscrição encontrada em Orléans: os seus habitantes são os Cenabenses), massacram os cidadãos romanos ali estabelecidos para fazerem negócio, entre os quais Caio Fúfio Cita, respeitado cavaleiro romano a quem César entregara a intendência dos víveres, e põem os seus bens em pilhagem. A notícia depressa chega a todos os Estados da Gália: o que se tinha passado em Génabo ao nascer do Sol foi sabido antes da primeira vigília no país dos arvernos, que dali está afastado cerca de cento e sessenta mil passos (quando se dá um acontecimento importante ou notável, os gauleses anunciam-no de campo em campo e de região em região por um clamor que se recolhe e se transmite progressivamente).
IV – Ali, usando o mesmo processo, Vercingetorix, filho de Celtillus, arverno, homem jovem de grande força e cujo pai, que exercera o principado de toda a Gália, havia sido morto pelos seus próprios compatriotas, convoca os seus clientes e facilmente os entusiasma; logo correm às armas.
Gobanicião, seu tio, e outros chefes que eram contrários ao seu projecto, expulsam-no da praça-forte de Gergóvia (capital dos Arverni; no planalto isolado de Gergoy, comuna de Roche-Blanche, departamento de Puy-de-Dôme; a 6 km a sul de Clermont-Ferrand, comandava a planície de Limagne; ocupavam a actual Auvergne; na época de César, o limite setentrional do seu Estado confundia-se com o Puy-de-Dôme; no século II ae, existira um grande “império” arverno).
Vercingetorige não desanima e alista no campo gente destituída de tudo. Depois de ter reunido esta hoste, alia à sua causa todos os compatriotas que encontra, exortando-os a pegar em armas pela liberdade comum; e havendo reunido grandes forças, expulsa do Estado os adversários que pouco antes o haviam escorraçado.
Proclamado rei pelos seus partidários, envia embaixadas a todo o lado, suplicando que se mantenham na fé jurada.
Rapidamente une a si os Senones, os Parisii, os Pictones, os Cadurci (cadurcos; clientes dos arvernos; na região de Quercy; departamento do Lot e parte setentrional do Tarn-et-Garonne; transmitiram o seu nome à cidade de Cahors), os Turones, os Aulerci, os Lemovices (da Armórica, na região de Paimboeuf e de Clisson), os Andes e todos os povos que estão junto do Oceano. Por consentimento unânime é-lhe confiado o comando supremo.
Investido deste poder, exige reféns de todos os Estados; ordena que um determinado número de soldados lhe seja rapidamente trazido; fixa a quantidade de armas que cada Estado tem de fabricar num prazo marcado; presta especial cuidado à cavalaria.
Junta a uma extrema diligência uma extrema severidade no comando; obriga pelo exemplo do suplício os hesitantes: é assim que uma falta grave é punida pelo fogo e por todo o género de suplícios; que por uma falta ligeira manda o culpado para a sua terra, depois de lhe ter mandado cortar as orelhas ou vazar um olho, a fim de que sirva de exemplo e que a grandeza do castigo impressione os outros pelo terror.
V – Tendo reunido rapidamente um exército, envia aos Ruteni o cadurco Luctério, homem de uma extrema audácia, com uma parte das tropas. Vercingetorige marcha para os Bituriges.
Os bitúriges, à sua chegada, enviam deputados aos éduos, de quem eram clientes, pedindo-lhes socorro; os éduos enviam-lhes forças de cavalaria e de infantaria. Porém, quando chegam ao Liger(que separa os bitúriges dos éduos), essas tropas detêm-se ali alguns dias. Depois, não ousando atravessar o rio, voltam para o seu país, onde dizem aos nossos lugar-tenentes que foi o temor da traição dos Bituriges que os fez arrepiar caminho.
Após a partida dos éduos, os Bituriges logo se juntam aos Arverni.
VI – Quando estas notícias lhe chegaram à Itália (em Ravena), César, constatando que a situação da Cidade, graças à firmeza de Pompeu, havia melhorado, partiu para a Gália Transalpina. Ali chegado, viu-se em embaraços para alcançar o seu exército: se mandasse vir as legiões à Provincia, sabia que no trajecto elas seriam obrigadas a combater sem ele; se fosse ao seu encontro, sentia que, naquelas circunstâncias, não podia confiar a sua vida àqueles que pareciam pacificados.
VII – Entretanto o cadurco Luctério, enviado aos rutenos, ganha este Estado para os arvernos. Avança para os Nitiobriges e para os Gabali, recebe de um e de outro Estado reféns e, havendo reunido uma grande força, empreende invadir a Província, na direcção de Narbona.
A esta notícia, César pensou que antes de tudo devia dirigir-se para ali. Uma vez lá chegado, coloca guarnições nos Ruteni que dependiam da Província, nos Volcae Arecomici, nos Tolosates e em redor de Narbona, todas regiões limítrofes com o inimigo. Ordena a uma parte das tropas da Província e aos reforços que havia trazido de Itália que se reúnam nos Helvii, que estão próximos do país dos arvernos.
Os nitiobriges habitavam nas duas margens do Lot, na região vizinha de Agen.
Os gábalos, que eram clientes dos arvernos, ocupavam os Causses do Gévaudan, actual departamento de Lozère; a sua capital era Anderitum, hoje Anterrieux (segundo o Atlas Larousse: Javols).
Os volcas Arecomici, nos actuais departamentos do Hérault e do Gard, com Nemausus por capital; actual Nîmes. O rio Orb separava-os dos volcas Tectosages, vivendo nos actuais departamentos do Aude, dos Pirenéus Orientais, do Ariège e do Alto Garona; capital: Tolosa; hoje, Toulouse.
Os hélvios, na orla da Provincia, viviam no antigo Vivarais, actual departamento de Ardèche; os Cevenas separavam-nos a noroeste dos arvernos.
VIII – Tomadas estas disposições e havendo já detido e mesmo feito recuar Luctério, que achava perigoso deixar-se encerrar entre as nossas guarnições, César parte para os hélvios. Ainda que as montanhas dos Cevenas estivessem naquela estação, que é a mais rude do ano, cobertas por uma neve espessa que impedia a passagem, os soldados afastaram a neve numa profundidade de seis pés e, depois de terem assim rasgado caminhos à força de trabalho, o exército desembocou no país dos arvernos. A sua chegada inesperada deixou-os em assombro, porque se julgavam defendidos pelos Cevenas como por uma muralha.
César ordena então aos seus cavaleiros que vão o mais longe possível, e que lancem entre o inimigo o máximo de terror que puderem.
Rapidamente, pelo rumor e pelos correios, Vercingetorix é informado destes acontecimentos; levanta o acampamento e passa dos bitúriges para o país arverno.
IX – Mas César não fica mais que dois dias nestes lugares, porque havia previsto que Vercingetorige tomaria aquele partido e, a pretexto de reunir reforços e cavalaria, deixa o exército. À cabeça das tropas fica o jovem Bruto; recomenda-lhe que faça incursões de cavalaria a todo o lado; ele próprio terá o cuidado de não estar ausente do campo mais de três dias (na realidade não volta; mais tarde, deve ter dado ordem a Bruto para trazer as suas tropas de volta à Província).
Depois, contrariamente às expectativas dos que o acompanhavam, segue a grandes jornadas (por Yssingeaux e Annonay) para Vienna (actual Vienne), nos Allobroges. Na cidade encontra as unidades de cavalaria que para ali enviara uns dias antes; não interrompe a sua marcha nem de dia nem de noite e dirige-se, passando pelo país dos éduos, ao território dos língones, onde invernavam duas legiões (Dijon); queria, caso os éduos fossem até ao ponto de conspirar contra a sua vida, prevenir pela rapidez tais propósitos.
Ali chegado, envia ordens às outras legiões e concentra-as todas num único ponto, antes que os arvernos possam ter disso notícias.
Assim que Vercingetorix é avisado, de novo reconduz o seu exército para os bitúriges; depois, renunciando a esse território por Gorgóbina, cidade dos boios, decide cercar esta.
Os boios haviam-se instalado entre o Liger e o Elaver, em volta desta praça-forte de Gorgobina, na confluência do Allier e do Loire; hoje: talvez Saint-Parize-le-Châtel no Nièvre; talvez La Guerche no vale de Aubois, pequeno afluente da margem esquerda do Loire.
X – Estava-se em Fevereiro; se César, durante o resto do Inverno, mantivesse as suas legiões nos quartéis, um Estado tributário dos éduos (o dos boios) seria submetido pelos revoltosos, originando talvez a defecção de toda a Gália, pois que todos constatariam que os amigos dos romanos não podiam contar com o seu apoio.
Mas se as fizesse sair dos seus quartéis de Inverno demasiado cedo, receava que a dificuldade nos transportes prejudicasse o abastecimento.
Teve de arriscar, de contrário veria afastarem-se de si todos os seus aliados. Assim, compromete os éduos a mandarem-lhe víveres, e envia na dianteira uma deputação anunciando aos boios a sua chegada, para os exortar a manterem-se fiéis e a sustentar o ataque do inimigo.
Deixando em Agedincum duas legiões e as bagagens de todo o exército, parte então para o país dosBoii.
XI – No segundo dia, havendo chegado a Velaunoduno, cidade dos sénones, e não querendo deixar atrás de si inimigos que incomodassem o reabastecimento, resolveu fazer o cerco e terminou a circunvalação em dois dias.
Ao terceiro dia, a praça envia deputados para a rendição; César ordena que deponham as armas, tragam cavalos e entreguem 600 reféns. Deixa para concluir o assunto Caio Trebónio e marcha rapidamente para Génabo, dos carnutos.
Chega ali em dois dias e estabelece o seu campo em frente da praça; a hora já tardia fá-lo adiar o ataque para o dia seguinte.
Ordena aos seus soldados que façam os preparativos em uso neste caso; e como a cidade tinha uma ponte sobre o Liger, no receio de que a população se escape durante a noite, põe duas legiões de vigilância.
Os Genabenses, pouco antes da meia-noite, saem em silêncio da praça e começam a atravessar o rio. Avisado pelos seus batedores, César, tendo mandado deitar fogo às portas, introduz ali as legiões que haviam recebido ordem para estarem prontas e apodera-se da praça.
Só um bem pequeno número escapou, pois que a estreiteza da ponte e dos caminhos que aí conduziam impediram a fuga da multidão, que foi aprisionada. César saqueia e queima a praça, abandona o saque aos soldados; atravessa o Liger com o seu exército e chega ao país dos bitúriges.
XII – Vercingetorige levanta o cerco a Gorgobina e marcha ao seu encontro.
César entretanto cercava uma praça dos Bituriges situada no seu caminho, Noviodunum Biturigum(Neuvy-sur-Barangeon). Enviando-lhe a praça delegados a pedir perdão e que lhes fossem poupadas as vidas, desejoso de andar depressa, seguindo o método com que geralmente havia triunfado, ordena-lhes que entreguem as armas, que tragam cavalos e forneçam reféns.
Entregue já uma parte dos reféns, executava-se o resto do tratado sob a vigilância dos centuriões e de alguns soldados introduzidos na praça, quando se avistou ao longe a cavalaria dos inimigos, que precedia o seu exército.
Os sitiados, agora com a esperança de socorro, pegaram em armas, fecharam as portas e ocuparam as muralhas; os centuriões conseguiram sair da cidade, trazendo ilesos os seus homens.
XIII – César manda sair do campo a sua cavalaria e trava-se um combate equestre; como os seus estivessem em dificuldade, envia em seu socorro cerca de quatrocentos cavaleiros germanos, que tinha o costume, desde o começo da guerra, de conservar consigo. Os gauleses não puderam aguentar o embate e puseram-se em fuga.
Os sitiados, de novo a temer pelas suas vidas, prendem aqueles que passavam por haverem sublevado o povo, entregam-nos a César e rendem-se.
Terminado este caso, César parte para Avaricum, a maior e melhor fortificada praça do país bitúrige, situada numa região muito fértil. Contava que a conquista desta praça o tornaria senhor de todo o Estado dos bitúriges.
XIV – Vercingetorige convoca os seus a conselho. Explica-lhes que há que fazer a guerra de modo inteiramente diferente do passado e que, por todos os meios, têm de se aplicar a privar os romanos de forragem e de reabastecimento; possuem uma numerosa cavalaria e a estação favorece-os: não encontrando erva para ceifar, o inimigo é forçado a dispersar-se para procurar feno nas herdades, e a cada dia estes forrageadores podem ser exterminados pelos seus cavaleiros. Além disso, a salvação comum deve fazer esquecer os interesses particulares: é preciso incendiar as aldeias e as herdades em toda a área que os romanos podem percorrer para forragear.
No que lhes toca, tudo terão em abundância, reabastecidos pelos povos em cujo território se fará a guerra.
Também há que queimar as praças cujas fortificações ou posição natural não as ponham ao abrigo de todo o perigo, a fim de que não ofereçam aos romanos a oportunidade de obter víveres e fazer saque.
Se tais medidas parecem penosas e cruéis, ainda mais penoso será verem as suas mulheres e filhos levados para a escravatura e eles próprios, exterminados.
XV – Aprovam-no por unanimidade: num só dia, mais de vinte cidades dos Bituriges são incendiadas; o mesmo se faz nos Estados vizinhos; por todo o lado não se vê mais que incêndios.
Na assembleia discutira-se ainda a sorte de Avárico: convinha queimá-la ou defendê-la? Os bitúriges pedem aos outros gauleses que não os obriguem a lançar fogo por suas mãos a uma cidade que é talvez a mais bela de toda a Gália e o ornamento e a força do seu Estado; dizem que a defenderão facilmente pela sua própria posição, pois que é cercada quase de todos os lados por um rio e um pântano, e que só possui um único acesso e muito estreito. Vercingetorige, de início contrário, acaba por ceder às suas instâncias; a praça é dotada com uma forte guarnição.
XVI – Vercingetorix segue César em pequenas jornadas; e escolhe para seu campo uma posição defendida por lameiros e bosques (perto de Humbligny), a dezasseis mil passos de Avárico. Ali, por meio dos batedores, sabia a cada instante do dia o que se passava em frente da cidade; espiava todos os nossos destacamentos de forragem e de trigo e se estes, empurrados pela necessidade, avançavam demasiado, caía sobre os grupos dispersos e infligia-lhes grandes perdas, se bem que os nossos tomassem todas as precauções possíveis, só saindo a horas irregulares e por caminhos diferentes.
XVII – César estabelecera o seu campo voltado para a parte da cidade liberta do rio e do pântano, onde se situava aquele seu acesso muito estreito; levantou-se um aterro, avançaram-se manteletes e construíram-se duas torres; a natureza do local tornava uma circunvalação impossível.
Quanto ao trigo, não parou de o pedir aos éduos e aos boios; mas os primeiros não punham nisso zelo algum e os segundos, sem grandes recursos, porque o seu Estado era pequeno e fraco, rapidamente esgotaram o que tinham.
A falta de reabastecimento do trigo afectou o exército a tal ponto que, durante um grande número de dias, os soldados não o tiveram e, para escaparem aos rigores da fome, só tiveram o gado que era trazido de aldeias muito distantes.
Mas não lhes escapou nenhuma palavra indigna da majestade do povo romano e das suas precedentes vitórias. Mais ainda, como César, visitando os trabalhos, se dirigiu sucessivamente a cada uma das legiões a oferecer o levantar do assédio, se a penúria fosse demasiado penosa, todos lhe pediram que não o fizesse, dizendo que havia muitos anos que serviam sob as suas ordens sem suportar nenhuma afronta, sem partir deixando a tarefa por acabar. Faziam os mesmos protestos aos centuriões e aos tribunos militares, para que fossem relatados a César.
XVIII – Tinham-se já aproximado as torres da muralha quando César soube, por cativos, que Vercingetorige, depois de gasta a sua forragem, aproximara o seu campo de Avárico (na colina situada entre Aix e Rians); soube também que ele próprio, com a cavalaria e a infantaria ligeira que combatia entre os cavaleiros, partira para armar uma emboscada onde pensava que os nossos iriam no dia seguinte à forragem.
Aproveitando a sua ausência, César parte a meio da noite, em silêncio, e chega de manhã junto ao campo inimigo.
Avisados pelos seus batedores, escondem os seus carros e bagagens na espessura das florestas; e dispõem as suas tropas num local elevado e descoberto.
César, prevenido, ordenou imediatamente aos seus que juntassem os sacos e envergassem o equipamento de combate.
XIX – Uma colina se elevava em declive suave, um pântano difícil e cheio de obstáculos a rodeava quase por todos os lados; havia no máximo 50 pés de largo de passagem. Era nesta colina que, depois de haverem cortado as pontes, se mantinham os gauleses; dispostos para batalha, guardavam com postos seguros todos os vaus e todos os cerrados do pântano, prontos a carregar daquela elevação sobre os romanos, se estes tentassem transpor o paul.
César voltou para o seu campo naquele mesmo dia; tomando ali as últimas medidas que diziam respeito ao cerco da praça.
XX – (Diz César, a título de “consolo” e de diversão, que) Vercingetorix, de volta para junto dos seus, foi acusado de traição: por haver aproximado demasiado o seu campo das posições dos romanos; por ter partido com toda a cavalaria; por ter deixado forças tão importantes sem comandante; enfim, porque à sua partida os romanos haviam chegado com tanta oportunidade e rapidez. Vercingetorige teria respondido que, se «tinha deslocado o campo, era por causa da falta de forragem e, por outro lado, a próprias instâncias deles; fora levado a escolher aquele local pela vantagem da posição, que se defendia por si mesma, sem que a tivessem de fortificar; quanto à cavalaria, não se podia desejar o seu concurso em local pantanoso, e ela fora útil lá para onde a levara. O comando em chefe, deliberadamente, não o confiara a ninguém, pelo receio de que o novo chefe, cedendo ao desejo da multidão, fosse arrastado a combater».
«Podem ver um grande exército vitorioso quase esgotado pela fome, e, na sua fuga vergonhosa, reduzido, pela minha previsão, a não encontrar Estado algum que o acolha no seu território», disse ainda Vercingetorige.
XXI – Toda a multidão levanta um clamor e, segundo o seu costume, faz soar as suas armas; é a sua maneira de demonstrar que aprova um discurso: «Vercingetorix, diz ela, é um grande chefe; não se poderia por em dúvida a sua lealdade nem conduzir mais inteligentemente a guerra. Resolvem enviar em socorro da praça dez mil homens escolhidos entre todo o exército.
XXII – Aos nossos soldados, os gauleses opunham todo o género de invenções; porque é uma raça de extrema engenhosidade e que tem a maior aptidão para imitar e realizar quanto vê fazer...arruinavam o nosso aterro com minas subterrâneas, tanto mais sabedores desta arte quanto existem entre eles grandes minas de ferro e quanto todas as espécies de galerias subterrâneas lhes são conhecidas e familiares.
Por todo o lado haviam guarnecido a sua fortificação com torres unidas por um sobrado e recobertas por peles.
Noite e dia faziam frequentes surtidas e lançavam fogo ao aterro ou caíam sobre os nossos soldados ocupados a trabalhar; e, à medida que o trabalho quotidiano aumentava a altura das nossas torres, eles elevavam as suas em proporção; prejudicavam as nossas minas, lançando para as suas partes a descoberto estacas pontudas e endurecidas ao fogo, pez a ferver, pedras de peso considerável, e assim nos impediam de nos aproximar das muralhas.
XXIII – Eis qual é, mais ou menos, a forma de todas as muralhas gaulesas: traves perpendiculares (verticais), seguindo-se sem interrupção por todo o comprimento da muralha, são colocadas no solo a um intervalo uniforme de dois pés uma da outra. São ligadas umas às outras por dentro e recobertas por uma grande quantidade de terra; os intervalos de que acabamos de falar estão à frente guarnecidos de grandes pedras. Formada e consolidada esta primeira fileira, juntam-lhe uma segunda por cima, mantendo sempre o mesmo intervalo, de maneira a que os postes não se toquem e cada um assente na pedra exactamente intercalada entre cada fiada; e assim sucessivamente; toda a obra é continuada até que a muralha haja atingido a altura desejada.
Este género de obra, com a alternância das suas traves e das suas pedras, tem grandes vantagens práticas na defesa das cidades, porque a pedra defende-as do fogo e a madeira, das devastações do aríete, que não pode quebrar nem desconjuntar uma armação em que as traves, presas umas às outras pelo interior, têm habitualmente secções de 40 pés sem interrupção.
XXIV – O assédio era prejudicado por muitos obstáculos; os soldados eram atrasados, além disso, por um frio persistente e por chuvas constantes (estava-se em Março); no entanto, com um esforço perseverante, superaram todas estas dificuldades e, ao cabo de vinte e cinco dias, levantaram um aterro de 330 pés de largo e de oitenta de altura. Quase tocava na muralha dos inimigos.
César, segundo o seu costume, passava a noite junto das obras, exortando os seus soldados, quando, pouco antes da terceira vigília, se viu fumo a sair do aterro: os inimigos haviam-lhe lançado fogo por uma mina.
Ao mesmo tempo, a todo o comprimento da muralha um clamor se elevava e os sitiados faziam uma surtida por duas portas, de cada um dos lados das nossas torres. Outros, do alto da muralha, atiravam para o nosso aterro tochas e lenha seca: outros ainda despejavam pez e outras substâncias próprias para activar o fogo; tão bem que só com dificuldade se podia dar conta de onde era preciso primeiro acudir e que perigo evitar.
Contudo, como era instituição de César que duas legiões estivessem sempre vigilantes em frente do campo, e que um maior número ainda, por turnos, se encontrassem nas obras, rapidamente se viu umas fazerem frente aos inimigos que saíam, outras reconduzir as torres e cortar o aterro; e toda a multidão dos soldado do acampamento acorrer a apagar o fogo.
XXV – Havia-se passado o resto da noite e ainda se combatia em todos os pontos. Os manteletes das nossas torres tinham sido destruídos pelo fogo; os nossos sofriam dificuldade para acudirem, a descoberto, em socorro dos seus companheiros; enquanto eles substituíam constantemente as suas tropas fatigadas por outras frescas.
Havia, em frente da porta da cidade, um gaulês que atirava para o fogo, na direcção da torre, bolas de sebo e pez que lhe passavam de mão em mão; um dardo de escorpião atingiu-o mortalmente no flanco direito e ele tombou sobe si mesmo; um dos seus vizinhos, passando por cima do seu cadáver, substitui-o no trabalho; pereceu do mesmo modo; um terceiro lhe sucedeu e ao terceiro, um quarto. A porta só foi evacuada pelos seus defensores quando o fogo do aterro foi apagado e quando a derrota dos inimigos, repelidos por todo o lado, pôs fim ao combate.
XXVI – No dia seguinte, a instâncias e de acordo com as ordens de Vercingetorige, os gauleses resolvem abandonar a praça no silêncio da noite, procurando limitar as perdas. O campo deVercingetorix não estava longe e o pântano formava uma barreira contínua entre eles e os romanos, o que atrasaria a sua perseguição.
Preparavam-se para partir em plena noite quando, de repente, as mães de família saem às praças, suplicando-lhes que não as entregassem, a elas e aos seus filhos, a quem a fraqueza do sexo ou da idade impedia a fuga, à crueldade do inimigo. Quando os viram persistir na sua decisão, puseram-se a soltar gritos, assinalando assim a sua fuga aos romanos. Os gauleses, assustados, temendo que a cavalaria dos romanos lhes cortasse o caminho, renunciaram à fuga.
XXVII – No dia seguinte (27º dia do cerco), quando César fazia avançar uma torre e construir as obras que empreendera, sobreveio uma chuva abundante; pareceu-lhe que esta circunstância não era desfavorável ao ataque, pois viu que as guardas estavam negligentemente distribuídas pelas muralhas.
Reúne secretamente as legiões em equipamento de combate, para cá das barracas, e exorta-os a colher, enfim, após tantas fadigas, o fruto da vitória; promete recompensas aos que primeiro escalarem a muralha e dá o sinal de ataque. De modo inesperado, os legionários lançam-se de todos os lados e rapidamente escalam a muralha.
XXVIII – Os inimigos, surpreendidos, assombrados, expulsos da sua muralha e das suas torres, formaram em cunha no forum e nos lugares mais abertos, com a intenção de dar batalha campal. Mas quando viram que os nossos, em vez de descerem, se espalhavam por todo o longo da muralha, o receio de verem perdida toda a esperança de fuga fê-los lançar fora as armas e fugir para a extremidade da praça; ali uma parte, empurrando-se em frente da saída estreita das portas, foi massacrada pelos nossos soldados; a outra, que já havia saído pelas portas, exterminada pelos nossos cavaleiros.
Ninguém pensou no saque; excitados pelas fadigas do assédio, não pouparam velhos nem mulheres nem crianças. Enfim, num total de cerca de quarenta mil homens, talvez nem oitocentos, que fugiram da praça aos primeiros gritos, chegaram são e salvos juntos de Vercingetorige.
XXIX – No dia seguinte, tendo convocado o conselho, consolou-os e exortou-os a não se deixarem abater nem perturbar por um revés: «não fora pelo seu valor e em batalha campal que os romanos os haviam vencido, mas graças a uma prática e a uma arte de assédio de que eles não tinham experiência; estava enganado quem só esperasse triunfos na guerra; ele nunca fora de opinião que se defendesse Avárico, e de tal os tomava como testemunhas...os Estados gauleses, até então separados uns dos outros iam, pelos seus cuidados, entrar em aliança, e ele faria de toda a Gália um só e mesmo feixe de vontades...entretanto a salvação comum exigia-lhes que se pusessem a fortificar o campo, para melhor poderem repelir os súbitos ataques do inimigo».
XXX – Este discurso não deixou de agradar aos gauleses: agradeceram-lhe sobretudo por não se ter deixado desencorajar com golpe tão rude. A sua previdência e a sua previsão ainda foram melhor reconhecidas, pois tivera a opinião, logo de início, que se abandonasse e queimasse Avárico.
Os gauleses puseram-se então, pela primeira vez, a fortificar o seu campo; e tal foi no seu espírito o efeito da adversidade que estes homens, pouco habituados a estes trabalhos, acharam que tinham de sofrer e de suportar tudo aquilo que lhes ordenassem.
XXXI – Vercingetorix não se esforçava menos por unir, como prometera, os outros Estados, e procurava ganhar os seus chefes com dádivas (mandara cunhar estateres de ouro, tendo: no anverso, a sua figura idealizada e, em enxergo, VERCINGETORIXIS; no reverso, um cavalo a galope e uma ânfora) e com promessas. Escolhia para esta missão agentes capazes de os seduzirem mais facilmente, ou por uma linguagem hábil ou pelas suas relações de amizade.
Encarregou-se de armar e de vestir os que haviam podido escapar aquando da tomada de Avárico.
Para completar os seus efectivos, pede aos Estados um certo número de homens, fixando a sua quantidade e a data em que quer que os tragam ao seu campo. Manda procurar e faz com que lhe enviem todos os archeiros, que eram muito numerosos na Gália. Com estas medidas repara rapidamente as perdas sofridas em Avárico.
Entretanto, Teutomatus, filho de Olovicon, rei dos nitiobriges, cujo pai recebera do nosso senado o título de amigo, veio unir-se a ele com numerosa cavalaria do seu pais e mercenários recrutados na Aquitânia.
XXXII – César fica vários dias (até meados de Abril) em Avárico, onde encontrou grande quantidade de trigo e de outros víveres, ali fazendo o exército repousar da fadiga e das privações. O Inverno ia já no seu fim e a estação convidava a entrar em campanha.
Chegam então os principais dos éduos em embaixada: «a situação era extremamente grave: ainda que, de acordo com o antigo uso, se nomeasse apenas um magistrado, que exercia durante um ano o poder real, dois homens estavam agora investidos nessa magistratura, cada um deles pretendendo haver sido legalmente nomeado. Um era Convictolitávis, homem jovem, rico e ilustre; o outro,Cotus, oriundo de uma família muito antiga, igualmente muito poderoso pela sua influência e pelo número das suas alianças; no ano anterior, seu irmão Valecíaco exercera este mesmo cargo. Todo o Estado estava em armas; o senado e o povo, divididos; cada um dos rivais havia mobilizado a sua clientela. Se a querela se prolongasse, ver-se-ia os dois partidos da nação entrarem em luta.»
XXXIII – César não ignorava os males que nascem das dissensões, e temia que um Estado tão poderoso e tão ligado ao povo romano, que ele próprio protegera e cumulara de honras, chegasse à violência das armas; e que o partido que estivesse menos confiante nas suas forças apelasse ao auxílio de Vercingetorige.
Resolveu prevenir este perigo. Como as leis dos éduos proibiam ao magistrado supremo sair do território, César, para não parecer que atentava contra a Constituição e as leis do país, decidiu partir para o território dos éduos; e convocou perante si, em Decetia (Decécia; hoje, Decize), todo o senado e os dois competidores.
Quase todo o Estado ali se encontrou reunido; soube que a eleição de Coto era obra de um punhado de homens clandestinamente convocados, sem que as formas legais para o lugar e o tempo houvessem sido observadas; que o irmão fora proclamado pelo irmão, quando as leis não só proibiam elevar à magistratura, como admitir até no senado, dois indivíduos de uma mesma família enquanto os dois fossem vivos.
Obrigou Coto a depor o poder, e convidou Convictolitávis, que fora nomeado por intermédio dos sacerdotes e na vaga da magistratura, segundo os usos do Estado, a tomar posse das suas prerrogativas.
XXXIV – Depois exortou os éduos a esquecer as suas controvérsias e discussões; a negligenciar todas essas discórdias para se dedicarem à guerra presente; que ele os recompensaria como mereciam depois da derrota da Gália. Convidou-os a enviarem-lhe, com rapidez, toda a sua cavalaria e 10.000 infantes, que distribuiria por diversos postos em defesa dos comboios de trigo.
Dividiu o exército em dois: quatro legiões a mando de Labieno marcharam contra os sénones e os parísios; César levou as outras seis para o país dos arvernos, em direcção a Gergovia, ao longo do rioElaver. Deu uma parte da cavalaria a Labieno e conservou a outra.
A esta notícia Vercingetorige, depois de haver cortado todas as pontes do Allier, pôs-se a subir o rio seguindo pela outra margem.
XXXV – Como os dois exércitos se viam um ao outro e acampavam geralmente frente a frente, os batedores gauleses impediam os romanos de construir uma ponte para fazer passar as suas tropas.
César temia ser assim retido durante a maior parte do Verão, pois que o Elaver não era habitualmente vadeável antes do Outono (erro de César: o Allier é vadeável no Verão; ou César foi intencionalmente induzido em erro pelos éduos ou está provavelmente a “justificar-se” pela artimanha de que se valeu).
Para evitar que assim acontecesse, estabeleceu o seu campo num local coberto pelos bosques, em frente de uma das pontes que os gauleses haviam destruído. No dia seguinte, ali se manteve escondido com duas legiões, enquanto o resto das suas tropas retomava a marcha com todas as suas bagagens: fraccionou algumas das coortes, a fim de que o número de legiões parecesse manter-se o mesmo. Ordenou-lhes que fossem tão longe quanto pudessem.
À hora em que as legiões em marcha presumivelmente se terão detido para erguerem o seu acampamento, pôs-se a reconstruir a ponte (a de Moulins) sobre os velhos pilares, cuja parte inferior continuava intacta. Tendo rapidamente terminado a obra, fez passar as suas legiões, escolheu um lugar favorável para o seu campo e chamou o resto das tropas.
Vercingetorix, temendo agora ser forçado a combater a seu mau grado, passou a precedê-lo a grandes jornadas.
XXXVI – César, uma vez transposto o Elaver, chegou a Gergóvia em cinco dias; no mesmo dia, depois de uma ligeira escaramuça de cavalaria, reconheceu a praça; e vendo-a situada numa montanha muito alta, em que todos os acessos eram difíceis, desesperou de a conquistar pela força; quanto ao assédio, resolveu nem sequer pensar em tal sem haver providenciado ao abastecimento de trigo.
Vercingetorige estabelecera o seu campo perto da cidade, na elevação, e dispusera à sua volta as forças de cada Estado, não as separando senão por um fraco intervalo; todos os cumes desta serra que a vista descobria estavam ocupados petas suas tropas.
Os chefes dos Estados, os que tinha escolhido para formar o seu conselho, eram convocados por ele todos os dias à primeira hora, quer para as comunicações a fazer quer para as medidas a tomar; e quase não se passava um dia sem que ele experimentasse, num combate de cavalaria com archeiros pelo meio, o entusiasmo e o valor dos seus.
Em frente da praça (do lado do vale do Auzon), mesmo ao pé da montanha, havia uma colina bem fortificada e escarpada de todos os lados; ocupando-a, privaríamos o inimigo de grande parte da sua água e da liberdade no abastecimento de feno. Pela calada da noite, César saiu do seu campo e expulsou a guarnição da colina antes que da praça a pudessem socorrer: Colocou ali duas legiões e abriu, do acampamento grande a este pequeno campo, um duplo fosso de 12 pés de largura, a fim de que, mesmo isolados, pudessem ir de um ao outro ao abrigo de qualquer ataque súbito.
XXXVII – Entretanto o éduo Convictolitávis, seduzido pelo dinheiro dos arvernos, conspirava com um grupo de jovens à cabeça dos quais estavam Litávico e seus irmãos, oriundos de uma muito grande família: «Só existe o Estado éduo para atrasar a vitória da Gália; a sua autoridade retém os outros Estados; se (os éduos) mudarem de partido, os romanos não poderão conservar-se na Gália». Decidem que Litávico tomaria o comando dos 10.000 homens a enviar a César, enquanto que os seus irmãos lhe tomariam a dianteira.
XXXVIII – Litávico não estava a mais que cerca 30.000 passos de Gergovia (em direcção a Gannat, depois de ter atravessado o Elaver em Moulins) quando, reunindo os soldados... «onde vamos nós, soldados? Toda a nossa cavalaria, toda a nossa nobreza pereceu; os nossos principais concidadãos,Eporedorix e Viridomarus, acusados de traição pelos romanos, foram mortos sem mais. Escutem aqueles que escaparam ao massacre, pois a mim, depois de ter perdido os meus irmãos e todos os meus parentes chegados, a dor impede-me de fazer o relato»...e manda avançar os homens com que combinara este ardil...os éduos erguem um clamor e conjuram Litávico a indicar-lhes que partido tomar... «mas que há para deliberar? Que outra coisa temos a fazer senão ir a Gergóvia e juntarmo-nos aos Arverni? Podemos ter dúvidas que, depois de crime tão ímpio, os romanos não acorrem já para nos matarem?» Aponta-lhes os cidadãos romanos que estavam com ele, entrega à pilhagem grande quantidade de víveres e de trigo que comboiavam e fá-los morrer em cruéis torturas.
Envia mensageiros por todo o Estado dos éduos, tratando de os amotinar com as mesmas imposturas e exortando-os a vingar as injúrias tal como ele o fez.
XXXIX – O éduo Eporédorix, homem novo de muito grande família e muito poderoso no seu país, e com ele, Viridómaro, da mesma idade e do mesmo crédito, mas de menor nascimento, que César, por recomendação de Divicíaco, elevara de uma condição obscura, tinham ido para junto da cavalaria a sua convocação especial. Disputavam entre si o primeiro lugar e, no recente conflito dos dois magistrados supremos, haviam combatido, um por Convictolitávis, o outro por Coto.
Eporedorix, informado do plano de Litávico, veio pelo meio da noite avisar César... «se tantos milhares de homens se juntarem ao inimigo, a sua sorte não poderia ser indiferente aos seus próximos, e o próprio Estado não poderia deixar de dar importância ao facto».
XL – Vivamente afectado por esta notícia, César, sem hesitar, faz sair do campo quatro legiões sem bagagens e toda a cavalaria, deixando Caio Fábio com duas legiões para a guarda do campo. Ordena que prendam os irmãos de Litávico, mas informam-no que já haviam fugido para o inimigo.
Tendo avançado, numa só marcha, até à distância de cerca de 25.000 passos (na direcção de Aigueperse), avista o exército dos éduos, lança a cavalaria para lhes atrasar e impedir a marcha, mas proíbe a todos que matem quem quer que seja. Ordena a Eporédorix e a Viridómaro que se deixem ver entre os cavaleiros e que chamem pelos seus; reconhecem-nos, descobrindo o embuste de Litávico; os éduos estendem as mãos, fazem sinal de se renderem e, lançando ao chão as armas, imploram o seu perdão. Litávico foge para Gergovia com os seus clientes.
XLI – César envia ao Estado dos éduos mensageiros. Depois de, nessa noite, ter concedido três horas ao seu exército para repousar, levanta o acampamento de volta a Gergóvia.
A cerca de meio do caminho, cavaleiros enviados por Caio Fábio avisam-no do perigo a que o campo se encontrava exposto; explicam-lhe que foi atacado por forças consideráveis: enquanto tropas frescas sem cessar se sucediam no ataque, os nossos esgotavam-se numa luta sem descanso, por causa da extensão do campo (a rigor, os campos eram dois), que obrigava os homens a permanecer na paliçada; um grande número havia sido ferido pelas saraivadas de flechas e dardos. As nossas obras haviam sido muito úteis para aguentar aquele ataque. Após a partida de César, Fábio mandara tapar todas as portas, à excepção de duas, e guarnecera a paliçada com manteletes. Esperava para o dia seguinte um assalto semelhante.
A estas notícias, César tratou de apressar a marcha e chegou ao campo antes do nascer do Sol.
XLII – Entretanto os Haedui, às primeiras notícias que recebem de Litávico, não perdem tempo sequer a verificá-las; a cupidez empurra uns, outros deixam-se arrebatar pela cólera e pela leviandade. Pilham os bens dos cidadãos romanos, entregam-se a massacres, lançam pessoas na escravatura. Convictolitávis favorece esta revolta, e excita o furor do povo.
Marco Arístio, tribuno militar, ia a caminho da sua legião; prometendo-lhe que poderia partir em segurança, fazem-no sair de Cavilono (hoje, Chalon-sur-Saône); expulsam da cidade também aqueles que o comércio ali chamara. Mal se tinham posto a caminho, eis que os atacam e despojam de todas as suas bagagens; resistem, mas serão assaltados durante um dia e uma noite; havendo numerosas perdas de um e de outro lado, os assaltantes chamam às armas uma multidão maior.
XLIII – Quando lhes chega a notícia de que os seus soldados estão em poder de César, acorrem junto de Arístio, dizendo-lhe que tudo não passou de um motim, sem o assentimento da sua assembleia e dos magistrados; que estão a proceder a um inquérito a respeito dos bens pilhados. Os bens de Litávico e dos seus irmãos são confiscados. Enviam também deputados a César, para se desculparem.
Agiam assim com a finalidade de recuperarem as suas tropas; porém, põem-se secretamente a fazer projectos de guerra e a solicitar os outros Estados por embaixadas.
César, ainda que instruído desses conluios, fala com toda a doçura possível ao deputado éduo.
Entretanto, como esperava uma maior extensão da rebelião na Gália e como receava ser envolvido pelas forças de todos os Estados, tenta encontrar uma maneira de se afastar de Gergóvia e de reunir de novo todo o seu exército.
XLIV – Apresenta-se-lhe então uma ocasião que parece ser favorável: tendo ido ao pequeno acampamento para vigiar os trabalhos, apercebe-se que uma colina ocupada pelo inimigo se encontra bem mais desguarnecida do que é habitual (uma colina de 692 metros de altura entre Risolles e Gergóvia); o lado oposto desta colina era quase plano, estreitando-se numa garganta coberta de bosque (a garganta de Goules) no acesso desse lado (oeste) à praça; os inimigos temiam muito aquele ponto, pois que, se os romanos, já senhores de uma das colinas (a do pequeno campo), tomassem também aquela, ficariam quase bloqueados e impedidos de sair para recolher forragem; para os trabalhos de fortificação desta posição, Vercingetorige havia chamado grande parte das suas tropas (informações prestadas pelos trânsfugas e os batedores).
XLV – Para lá envia, a meio da noite, numerosos esquadrões; ordena-lhes que batam toda a região, provocando o maior alvoroço. Ao romper do dia faz sair do campo, ordenando que dêem a volta às colinas (as do sul do Auzon) grande número de bagagens e de machos, a que se tiram as albardas; os arrieiros levam capacetes na cabeça, para que tenham ar de cavaleiros; juntam-se-lhes alguns cavaleiros, espalhados pela coluna.
Todos estes movimentos eram avistados de Gergovia, pois que dali a vista se estendia sobre o campo; porém, demasiado longe para que se pudesse distinguir alguma coisa de forma precisa.
Envia pelo mesmo caminho (da coluna das bagagens) uma legião, mandando-a avançar um pouco para depois fazer alto num fundo e esconder-se nas florestas (da margem esquerda do Auzon).
As suspeitas dos gauleses fazem-nos levar àquele lado ainda mais homens, para os trabalhos de entrincheiramento.
Com o campo inimigo desguarnecido, escondendo as insígnias militares, os soldados passam em pequenos grupos do acampamento grande ao pequeno, de maneira a que não sejam notados da praça.
Ao dar o sinal de ataque, simultaneamente, César faz os éduos subir pela direita, por um outro caminho.
XLVI – A muralha da praça-forte, em linha recta e sem (ter em conta) as curvas, distava 200 passos do local aonde, na planície, começava a subida; mas as voltas do caminho aumentavam essa distância. A cerca de meia colina e a todo o seu comprimento, tanto quanto o permitia a natureza do solo, os gauleses haviam construído uma muralha de grandes pedras, com 6 pés de altura.
Deixando vazia a parte baixa, ocupavam com acampamentos muito compactos toda a parte superior da colina, até à muralha do oppidum.
Os nossos soldados, ao sinal dado, depressa chegaram à fortificação (de 6 pés), transpõem-na e assenhoreiam-se de três campos. A rapidez do ataque foi tal que Teutomato, dos nitiobriges, surpreendido na sua tenda, onde dormia a sesta, foge de peito nu, fica com o cavalo ferido e por pouco escapa às mãos dos soldados.
XLVII – César, havendo alcançado o objectivo a que se propusera, ordena que se toque a retirar(muito provavelmente César estará a tergiversar); à X legião, com a qual estava, mandou fazer alto. Os soldados das outras legiões não ouviram o toque da trombeta, separados como estavam por um vale bastante largo. Exaltados pela esperança de uma vitória rápida e pela fuga do inimigo, só cessaram a perseguição quando já próximos da muralha e das portas da cidade.
Lúcio Fábio, centurião da VIII legião, que dissera nesse dia aos seus que não deixaria a ninguém a escalada da muralha antes dele, chamou três dos seus soldados, fez-se içar por eles e trepou à muralha; depois, por sua vez puxando-os, fê-los subir um a um.
XLVIII – Os gauleses que se ocupavam dos trabalhos de defesa no outro lado da praça, ouvindo o clamor do ataque, enviam os seus cavaleiros na dianteira e seguem-nos em passo de corrida. À medida que iam chegando, aglomerando-se junto à muralha, aumentava o número dos seus combatentes, obrigando os romanos a travar uma luta que não era igual nem pela posição nem pelo número; além disso, haviam-se já esgotado pela corrida na subida da colina e pela duração do combate, tendo de enfrentar tropas frescas.
XLIX – César, vendo a desvantagem da sua posição no combate e o aumento das forças do inimigo, temeu pelos seus. Enviou a Tito Sêxtio, que deixara de guarda ao acampamento pequeno, ordem para sair prontamente com as coortes e para as colocar no sopé da colina, à direita do inimigo, a fim de que, se vissem os nossos expulsos da sua posição, intimidassem e prejudicassem a perseguição do inimigo.Quanto a ele, tendo avançado um pouco mais com a X legião (as reservas), esperou ali o resultado do combate.
L – Enquanto se travava um corpo a corpo encarniçado – os inimigos fiando-se na sua posição e no seu número, os nossos, no seu valor – aparecem de súbito, no nosso flanco descoberto, os éduos que César havia enviado pela direita, em manobra de diversão. A semelhança das suas armas com as do inimigo assustou os nossos, ainda que (os éduos) tivessem o ombro direito descoberto, que era o sinal combinado a usar. Ao mesmo tempo, o centurião Lúcio Fábio e aqueles que haviam escalado a muralha com ele eram envolvidos, massacrados e precipitados lá do alto. Marco Petrónio, centurião da mesma legião, que tentara despedaçar as portas, também é morto, acossado pelo número.
LI – Os nossos, sendo carregados por todos os lados, foram expulsos da sua posição, depois de terem perdido quarenta e seis centuriões; mas a X legião, colocada num terreno um pouco menos desvantajoso, atrasou a perseguição dos gauleses; foi por sua vez apoiada pelas coortes da XIII legião, que o legado Tito Sêxtio fizera sair do pequeno acampamento e que haviam ocupado uma posição mais elevada.
As legiões, assim que chegaram à planície (entre Donnezat, a montanha de Marmant, a Roche-Blanche e Gergóvia), pararam e fizeram frente ao inimigo.
Vercingetorix reconduziu então as suas tropas do sopé da colina para o interior do entrincheiramento. Este dia custou-nos um pouco menos de 700 homens.
LII – No dia seguinte César reuniu as suas tropas e repreendeu a temeridade e o ardor dos seus soldados, censurando-os «por terem considerado, eles próprios, quanto ao lugar até onde lhes conviria avançar e quanto ao que deveriam fazer, sem pararem quando o sinal de retirada fora dado, sem se deixarem deter pelos tribunos militares e pelos legados». Explicou-lhes todo o perigo que uma posição desfavorável apresenta...por muito que admirasse a coragem deles, que não pudera ser detida pelos entrincheiramentos do campo nem pela altura da montanha, igualmente reprovava a sua insubordinação e a sua presunção.
LIII – Tendo assim falado, terminou o seu discurso a reanimar a coragem dos seus soldados: «que não se deixassem desencorajar e não atribuíssem ao valor do inimigo um desaire causado pela desvantagem da posição»; manteve depois o seu projecto de partida.
Mandou sair as suas legiões do campo e dispô-las em linha de batalha num terreno favorável. Como Vercingetorige não descesse à planície, após uma ligeira escaramuça de cavalaria, reconduziu as tropas para o campo.
No dia seguinte renovou a manobra. Depois, pensando ter feito o suficiente para abater a jactância gaulesa e reforçar o moral dos seus soldados, levantou o campo e seguiu para o país dos éduos. O inimigo, mesmo então, não o perseguiu. Pelo terceiro dia chegou às margens do Elaver, onde faz reconstruir as pontes (em Vichy ou em Varennes) e passa o seu exército para a outra margem.
LIV – Ali Viridómaro e Eporédorix informam-no que Litávico, com a cavalaria, partira a sublevar o país; pedem a César que não os retenha, de modo a que possam contra-arrestar a defecção do seu Estado. César, com receio de os injuriar e de revelar inquietação, deixa-os ir.
LV – Noviodunum (Haeduorum; Nogent, uma aldeia da comuna de Lamenay, 2 km acima de Decize, na margem esquerda do Loire) era uma praça dos éduos situada nas margens do Liger, numa posição vantajosa. César reunira ali todos os reféns da Gália, trigo, dinheiro dos cofres públicos, boa parte das suas bagagens e as do exército; para lá enviara grande número de cavalos comprados na Itália e em Espanha.
Chegados a esta praça, Eporédorix e Viridómaro tomaram conhecimento do estado do país: souberam que Litávico fora recebido pelos éduos em Bibracte; que Convictolitávis e grande parte do senado se lhe haviam juntado; que tinham enviado deputados a Vercingetorige a solicitarem um tratado de paz e de aliança. Massacram então os guardas deixados em Novioduno, bem como todos os mercadores que lá se encontravam, e partilham entre si o dinheiro e os cavalos; aos reféns, encaminham-nos para o seu magistrado supremo, em Bibracte. Incendeiam depois a cidade, não se julgando em condições de a conservar, a fim de que não pudesse servir aos romanos. Levaram nos barcos todo o trigo que puderam carregar e lançaram no rio e ao fogo o restante. Alistaram tropas nas regiões vizinhas, estabeleceram guarnições e fortes nas margens do Liger e fizeram aparecer em todo o lado a sua cavalaria, para semear o terror, na esperança de cortar o abastecimento aos romanos e forçá-los pela fome a abandonar o país.
O Liger, engrossado pelo degelo das neves (esta cheia verifica-se nos fins de Maio, começos de Junho), parecia-lhes não ser vadeável em ponto algum, o que os encorajava nas suas esperanças.
LVI – Informado disto, César achou que devia apressar-se: tinha de fazer construir pontes, correndo o risco de um ataque; era melhor a tal proceder de imediato, antes que se reunissem naquela região forças inimigas consideráveis. Em três longas marchas, de dia e de noite, alcançou o Loire.
Os seus cavaleiros encontraram um vau (na direcção de Nevers) onde não se podia ter de fora da água senão os braços e os ombros. Dispôs a sua cavalaria de modo a cortar a corrente, e todo o exército passou o rio, sem qualquer perda.
Nos campos encontrou trigo e muito gado; reabasteceu o exército e pôs-se em marcha para o país dosSenones.
LVII – Labieno, deixando em Agedinco os recrutas recentemente chegados de Itália, havia partido com as suas quatro legiões para Lutécia, dos parísios, situada no meio do Sequana.
Reuniram-se contra ele forças consideráveis, vindas dos Estados vizinhos. O comando supremo foi entregue ao aulerco Camulógeno, quase extenuado pela idade, mas chamado àquela honra pelo seu singular conhecimento da arte militar. Este, havendo observado que havia um pântano contínuo que desembocava no Sena (o vale do Essonne), ali se estabeleceu, empreendendo barrar a passagem aos nossos.
LVIII – Labieno fez avançar os manteletes e tratou de encher o pântano de faxinas e de entulhos, procurando construir um caminho. Mas, perante as grandes dificuldades da empresa, abandona o seu campo em silêncio, à terceira vigília, dirigindo-se para Metiosedum, pelo mesmo caminho por onde viera; é uma praça dos sénones, também situada numa ilha do Sena.
Labieno apossa-se de cerca de cinquenta navios, enche-os de soldados e conquista a praça sem resistência (uma parte dos seus habitantes partira para a guerra). Restabelece a ponte (entre a ilha e a margem direita) que os inimigos haviam derrubado algum tempo antes, faz por ela passar o exército e põe-se a caminho de Lutécia, seguindo o curso do rio.
Avisado por aqueles que haviam fugido, o inimigo incendeia Lutécia e destrói as pontes (sem dúvida por altura das actuais pontes de Arcole e Notre-Dame). Haviam abandonado as suas posições no pântano (no Essonne) para se estabelecerem nas margens do Sena, em frente a Lutécia, voltados para o acampamento de Labieno (que seria em Saint-Germain-l’Auxerrois; o dos gauleses, em Saint-Germain-des-Prés).
LIX – Sabia-se que César deixara Gergóvia; e já circulavam rumores da defecção dos éduos e do feliz sucesso da sublevação da Gália...corria que César, com as suas comunicações cortadas, e não podendo atravessar o Liger, fora forçado pela falta de trigo a dirigir-se à Província.
Os belóvacos, já antes pouco seguros, mal souberam da defecção dos éduos logo se puseram a recrutar tropas e a preparar abertamente a guerra.
Então Labieno, perante tamanha alteração da situação, já só pensava em como conduzir sem perdas o exército a Agedinco.
LX – Pela tarde, convocou um conselho e exortou todos a executar as suas ordens com cuidado e perícia.
Confia cada um dos navios a um cavaleiro romano e ordena que desçam o rio no fim da primeira vigília, até a uma distância de quatro mil passos e que esperem aí. Deixa de guarda ao campo as cinco coortes que considera menos aptas para combater e ordena às outras cinco da mesma legião que subam o rio a meio da noite, com todas as bagagens, fazendo muito barulho. Também requisita barcas; envia-as, com grande barulho de remos, na mesma direcção. Sai pouco depois em silêncio, com três legiões, e chega ao local para onde ordenara que levassem os barcos.
LXI – Havendo ali chegado, o exército e a cavalaria são rapidamente transportados pelos barcos para a outra margem.
Quase ao mesmo tempo, pela madrugada, os batedores inimigos informam que reina uma grande agitação no acampamento romano; que uma coluna considerável de tropas sobe o rio; que, na mesma direcção, se ouve distintamente o barulho de remos; que um pouco mais abaixo no rio são transportados soldados em barcos. Pensando que as legiões se haviam dividido em três corpos de tropas e que atravessavam o rio, também eles se distribuem em três contingentes: deixam um deles em frente ao campo romano e enviam uma pequena força para Metiosedum, com ordens de avançar tanto quanto o fizessem os “barcos” (as barcaças); conduzem o restante das suas forças ao encontro de Labieno.
LXII – Ao romper do dia, todos os nossos haviam sido transportados para lá do rio e via-se já a linha inimiga (em Grenelle-Vaugirard).
Labieno, após exortar os seus soldados, dá o sinal de combate. Ao primeiro embate, na ala direita, onde a VII legião tomara lugar, o inimigo é batido e põe-se em fuga; na ala esquerda, onde estava a XII legião, ainda que as primeiras linhas do inimigo houvessem tombado sobre os nossos dardos, os outros opõem porém uma encarniçada resistência; o próprio Camulógeno ali se encontrava, encorajando os seus.
Com a refrega ainda incerta, os tribunos da VII legião, informados do que se passava na ala esquerda, fazem a sua legião surgir nas costas do inimigo e carregam sobre ele. Mesmo assim nenhum arredou pé, mas foram todos envolvidos e mortos.
O corpo de tropas que ficara em frente ao acampamento romano, avisado de que os seus estavam em dificuldades, marcha em seu socorro e toma uma colina (talvez Montparnasse); mas não puderam aguentar o choque dos nossos soldados, já vencedores, e fugiram; aqueles que os bosques e as colinas (talvez as de Vanves e de Clamart) não foram capazes de acolher foram massacrados pela nossa cavalaria.
Labieno volta então a Agedinco. Dali, com as suas bagagens e todas as suas tropas, marchou ao encontro de César (na direcção de Joigny).
LXIII – À notícia da defecção dos éduos a guerra alargara-se: embaixadas são enviadas a todo o lado; influência, autoridade, dinheiro, tudo os éduos põem em acção para ganhar Estados. Senhores dos reféns que César deixara entre eles, ameaçam com o seu suplício os hesitantes. Pedem aVercingetorix que venha procurá-los e concertar com eles quanto aos meios para sustentar a guerra. Tendo este consentido, pretendem chamar a si o comando supremo e, como a questão degenerava em disputa, convoca-se uma assembleia de toda a Gália em Bibracte. Para ali partem de todos os lados em multidão. A questão é submetida aos sufrágios do povo: todos, sem excepção, confirmam a escolha de Vercingetorix como general em chefe. Os Remi, os Lingones e os Treveri não tomaram parte na assembleia; os primeiros porque continuavam fiéis aos romanos; os tréveros, porque estavam muito longe e também porque os germanos os acossavam, o que foi a causa de não terem tomado parte alguma na guerra.
Os éduos sofreram grande desgosto ao verem-se afastados da primazia, mas não ousaram separar-se da causa comum.
LXIV – Vercingetorige exige reféns aos outros Estados e fixa o dia da entrega. Dá ordem a todos os cavaleiros, em número de 15.000, para que se reúnam rapidamente (em Bibracte). Declara que se contentará com a infantaria que tinha até ali (cerca de 80.000 homens); que não tentará experimentar a fortuna travando batalha campal; «mas, uma vez que dispõe de numerosa cavalaria, nada é mais fácil que impedir os romanos de se abastecerem de trigo e de forragem; que os gauleses consintam apenas em destruir o seu trigo e em incendiar as suas granjas, e não vejam nestas perdas domésticas mais do que um meio de obterem para sempre a soberania e a liberdade». Tomadas estas medidas, exige dos éduos e dos segusiavos (clientes dos éduos) 10.000 cavaleiros; junta-lhes outros 800, dá o comando destas forças ao irmão de Eporédorix e ordena-lhe que leve a guerra ao país dos alóbrogos. Do outro lado, lança os gábalos e os mais próximos cantões dos arvernos contra os hélvios; envia ainda os rutenos e os cadurcos a devastar o país dos Volcae Arecomici.
Não cessa de solicitar os alóbrogos por correios secretos e embaixadas, esperando que os ressentimentos da última guerra não estejam ainda extintos nos seus corações; promete grandes quantias em dinheiro aos seus chefes; ao seu Estado, a soberania sobre toda a Provincia.
LXV – Para fazer frente a todos estes perigos havia-se preparado um exército de vinte e duas coortes, alistadas pelo lugar-tenente Lúcio César na própria Provincia, que por todo o lado se opuseram aos invasores.
Lúcio Júlio César, filho do cônsul de 90 do mesmo nome e irmão de Júlia, mãe de Marco António, fora cônsul em 64; é legado de César na Gália em 52; prefeito de Roma em 47. Após a morte de César, afastou-se do partido de António e só escapou às proscrições do segundo triunvirato graças à protecção da sua irmã, Júlia.
Os hélvios dão batalha aos seus vizinhos e são repelidos; perdem o chefe do seu Estado, Caio Valério Domnotauro, filho de Caburo, e muitos outros; são obrigados a refugiarem-se nas suas praças-fortes.
Os alóbrogos estabelecem ao longo do Ródano numerosos postos, tratando de defender as suas fronteiras.
César, vendo o inimigo superior em cavalaria, todos os caminhos fechados e, por consequência, nenhuma maneira de obter recursos da Província e da Itália, dirige-se, além Reno, aos Estados que submetera no ano anterior (os úbios), e deles obtém cavaleiros e soldados de infantaria ligeira habituados a combater entre os cavaleiros. À sua chegada, não achando os seus cavalos suficientes, toma os dos tribunos militares, dos outros cavaleiros romanos e dos evocati (corpo de soldados veteranos alistados a convite dos generais) e distribui-os pelos germanos.
LXVI – Entretanto, as forças inimigas que se encontravam no país dos arvernos e os cavaleiros, vindos de toda a Gália, reúnem-se. Formando assim um numeroso exército, Vercingetorige – enquanto César ia a caminho do país dos Sequani (entre o Saône, o Ródano, Jura, o Reno e os Vosges; departamentos do Jura, Doubs, Alto-Saône e parte do Alto-Reno), cruzando os extremos confins dos Lingones (no sudeste do território destes; por Langres e Dijon), para levar socorro à Província – veio assentar três acampamentos (colinas de Hauteville, Ahuy e Vantoux) a cerca de 10.000 passos dos romanos.
Convoca os chefes e mostra-lhes que chegou o momento da vitória: «os romanos fogem para a sua Província e abandonam a Gália; o que é suficiente para garantir a liberdade de momento, mas muito pouco para a paz e o repouso no futuro, pois que eles voltarão com maiores forças e a guerra não terá fim. É preciso atacá-los no embaraço da sua marcha».
LXVII – A sua proposta é aprovada. No dia seguinte, dividem a cavalaria em três corpos: dois apresentam-se contra os nossos flancos; o terceiro faz frente à nossa coluna para lhe barrar o caminho.
César forma igualmente três divisões com a sua cavalaria e envia-as contra o inimigo.
Entra-se em combate em todo o lado ao mesmo tempo; a coluna, que é atacada, pára; as bagagens são colocadas entre as legiões.
Em toda a parte os nossos (cavaleiros) pareciam ceder ou estar muito acossados; César mandava avançar para os pontos mais ameaçados as insígnias, fazendo para aí marchar as coortes. Por fim, os germanos, na ala direita, descobrindo uma elevação dominante (o marco de Asnières, a 356 metros de altitude), expulsam dali os inimigos, perseguem-nos até ao rio (o ribeiro de Buzon, no sopé da colina de Vantoux, onde Vercingetorige se posicionara com as suas forças de infantaria) e matam-nos em grande número. Vendo isto, os outros (cavaleiros rebeldes), que temem ser envolvidos, entram em fuga; por toda a parte os massacram.
Três éduos do mais nobre nascimento são feitos prisioneiros e levados a César: Coto, chefe da cavalaria; Cavarilo, comandante da infantaria depois da defecção de Litávico; e Eporédorix (um outro de mesmo nome), que os éduos haviam tido por chefe na sua guerra contra os séquanos, antes da chegada de César à Gália.
LXVIII – Vendo toda a sua cavalaria em derrota, Vercingetorige logo faz as suas tropas bater em retirada, tomando o caminho de Alesia, praça dos Mandubii; as bagagens do seu exército seguem-no.
César mandou levar as suas (bagagens) para a colina mais próxima, à guarda de duas legiões, e perseguiu o inimigo tanto quanto a duração do dia o permitiu, matando-lhe cerca de 3.000 homens na retaguarda.
No dia seguinte acampou em frente de Alésia. Dando-se conta da posição (geográfica) da cidade e vendo que a principal força do exército inimigo, a sua cavalaria, fora batida, exortou os seus soldados ao trabalho e pôs-se a cercar Alésia.
Os mandúbios eram um pequeno povo cliente dos éduos, ocupando, entre os Lingones e osHaedui, a antiga região de Auxerrois, actual departamento de Côte-d’Or. Alésia era a sua capital.
LXIX – A praça (anteriormente chamada “Palesia” = “Rocha”, “falésia”; a oeste de Dijon) ficava no cume de uma colina, numa posição muito escarpada (a uma altitude de 418 metros, no monte Auxois; hoje, Alise-Sainte-Reine), de tal modo que não podia ser tomada senão por assédio. No sopé da colina, dos dois lados, corriam dois rios (o Ose e o Oserain). Em frente da praça estendia-se uma planície de cerca de três milhas de comprimento (a planície de Laumes). Em todos os outros pontos a praça estava cercada por colinas (montes de Flavigny, de Pennevelle, de Bussy e de Réa), pouco distantes entre si e de igual altura.
Junto à muralha, toda a parte voltada para oriente da colina estava coberta de tropas gaulesas; na sua frente, haviam aberto um fosso e levantado uma muralha de pedra de seis pés de altura.
As fortificações dos romanos estendiam-se por um circuito de onze mil passos. Os campos foram erguidos em posições vantajosas e dispunham de vinte e três portas fortificadas. Para essas portas eram destacados durante o dia corpos de guarda, de modo a impedir qualquer ataque; à noite defendiam-nas as guardas nocturnas e fortes guarnições.
LXX – os trabalhos mal haviam começado quando um combate de cavalaria se travou na planície. Os nossos cederam e os germanos são enviados em seu socorro; também as legiões se dispõem em batalha à frente do campo, para suster qualquer súbito ataque da infantaria inimiga. O reforço das legiões encoraja os nossos; os inimigos entram em fuga, eles próprios se embaraçam pelo número e se empurram nas (suas) portas demasiado estreitas; os germanos perseguem-nos então com vigor até às suas fortificações; um grande massacre se dá; alguns (dos gauleses), abandonando os seus cavalos, tentam atravessar o fosso e transpor a muralha. César manda avançar um pouco as legiões que colocara na frente do entrincheiramento. Vercingetorige manda fechar as portas. Depois de haverem morto muitos inimigos e capturado um grande número de cavalos, os germanos retiram.
LXXI – Vercingetorix resolve afastar toda a sua cavalaria, antes que os romanos terminem as fortificações. À partida dos seus cavaleiros, dá-lhes por missão que cada um vá ao seu país e lá reúna para a guerra todos aqueles que estão em idade de pegar em armas...faz-lhes ver que, em caso de negligência, 80.000 homens de elite perecerão com ele; de acordo com os seus cálculos, tem trigo para trinta dias; poupando-o, poderá aguentar um pouco mais. Após estas instruções, manda partir a sua cavalaria em silêncio, à segunda vigília, pelo intervalo que as nossas linhas ainda deixam.
Manda que lhe tragam todo o trigo; decreta a pena de morte contra aqueles que não obedecerem; distribui por cada homem o gado de que os mandúbios haviam recolhido grande quantidade; decide medir o trigo parcimoniosamente e só o dar a pouco e pouco: manda entrar na praça todas as tropas que na frente dela dispusera. Tais são as medidas pelas quais se prepara para esperar os socorros da Gália e conduzir a guerra.
LXXII – Instruído destas disposições pelos trânsfugas e pelos prisioneiros, César iniciou as seguintes fortificações: abriu um fosso de vinte pés de largo, cuidando de que a largura do fundo fosse igual à distância dos bordos; deixou entre este fosso e todas as outras fortificações uma distância de quatrocentos pés, para que os inimigos não pudessem atacar de repente, durante a noite, nem lançar durante o dia uma chuva de dardos sobre as nossas tropas que tinham de prosseguir com os trabalhos (havendo sido obrigados a abarcar tão vasto espaço, os nossos soldados não podiam fazer guarnição a toda a obra). No intervalo assim preparado (entre o primeiro fosso e as fortificações), abriu dois fossos de quinze pés de largo, ambos com a mesma profundidade; o que era interior, cavado nas partes baixas da planície, foi cheio com água vinda do rio (Oserain); atrás destes fossos, ergueu um aterro com paliçada de doze pés de altura; acrescentou-lhe um parapeito e seteiras; e, na junção do aterro e do parapeito, uma paliçada de enormes peças de madeira em forquilha, para atrasar a escalada do inimigo. Flanqueou toda a obra com torres, colocadas a oitenta pés de distância umas das outras.
LXXIII – Era preciso, ao mesmo tempo, procurar materiais, trigo e fazer estas enormes fortificações com os nossos efectivos fortemente diminuídos, dado que os destacamentos eram obrigados a deslocar-se a grandes distâncias do campo. Também os gauleses tentavam atacar as nossas obras, fazendo súbitas surtidas por várias portas.
Assim, César achou necessário reforçar ainda mais estas obras, de modo a que um menor número de soldados fosse capaz de defender as fortificações.
Cortaram-se troncos de árvores e as ramadas mais grossas, despojaram-nas da casca e aguçaram-nas nas pontas; depois abriram-se fossos contínuos de cinco pés de profundidade; ali se enterravam estas estacas, prendendo-as por baixo, de maneira a que não pudessem ser arrancadas, e não se deixava de fora mais que os ramos; havia cinco fileiras, ligadas juntas e entrelaçadas; os que por ali se metiam acabavam empalados; chamava-se-lhes “cipos”.
À frente foram cavados, em fileiras oblíquas e formando quincôncio (quatro em quadrado e um no centro), poços de três pés de profundidade, que se estreitavam pouco a pouco até à base; ali se enterravam estacas lisas, da grossura da coxa, talhadas em ponta na extremidade e endurecidas ao fogo, que não saíam do solo (no fundo do poço) senão quatro dedos; para as fixar solidamente, enchia-se o baixo dos poços com terra que se calcava na altura de um pé; o restante era coberto de espinheiros e silvados, a fim de esconder a armadilha; havia oito filas desta espécie, a três pés de distância umas das outras, a que se chamava “lírios” por causa da sua semelhança com esta flor.
Em frente destes poços, estavam inteiramente enterradas na terra estacas de um pé de comprimento armadas com pontas de ferro; espalhavam-se por toda a parte e em pequenos intervalos; era-lhes dado o nome de “aguilhões”.
LXXIV – Terminados estes trabalhos, César, acompanhando tanto quanto o terreno lhe permitia a linha mais favorável, fez num circuito de 14.000 passos fortificações do mesmo género, mas em sentido oposto, contra o inimigo que viesse de fora.
Deu ordem a todos os seus soldados para que arranjassem forragem e trigo para trinta dias.
LXXV – Enquanto estas coisas se passavam em frente de Alésia, os gauleses, havendo convocado uma assembleia de chefes, decidem, não como queria Vercingetorige – chamar às armas todos aqueles que estivessem em condições de as empunhar –, mas exigir a cada Estado um determinado número de homens.
Pedem aos éduos e aos seus clientes, Segusiavi, Ambivareti (ambivaretos; a nordeste dos arvernos, ocupando uma parte do actual departamento do Allier), Aulerci Brannovices (os aulercos branóvices eram uma fracção isolada do povo aulerco, que alguns localizam entre o Saône e o Loire, no actual departamento do Saône-et-Loire), Blannovii (os blanóvios habitavam a norte dos aulercos branóvices, numa parte do antigo Nivernais; actual departamento do Nièvre): 35.000 homens.
Um número igual aos Arverni, aos quais se juntam os Eleutheri (ou Eleuteti; seriam uma parte dos cadurcos), os Cadurci, os Gabali e os Vellavii (ou Velauni; os velávios ocupavam o velho Velay; actual departamento do Alto-Loire), que estão desde há muito sob o domínio dos primeiros.
Dos Sequani, Senones, Bituriges, Santones, Ruteni e Carnutes: 12.000 por Estado. Aos Bellovaci, 10.000 homens. Aos Pictones, Turones, Parisii e Helvetii: 8.000 por nação.
Suessiones, Ambiani, Mediomatrici, Petrocorii (os petrocórios habitavam o antigo Périgord; actual departamento da Dordogne), Nervii, Morini e Nitiobriges: 5.000 homens por Estado. AosAulerci Cenomani outro tanto.
Aos Atrebates, 4.000. Veliocassi, Lemovices (actual Limousin), Aulerci Eburovices: 3.000 a cada povo.Rauraci e Boii: 2.000, idem.
Ao conjunto dos Estados que orlam o Oceano e que a si mesmos dão o nome de Aremoricae civitates:Curiosolites, Redones, Ambibarii (os ambibários, como o seu nome indica, teriam o seu território nas duas margens de um rio; ao norte dos rédones, ocupariam o sul do actual departamento da Mancha e o norte do de Ille-et-Vilaine), Caletes, Osismi, Lexovii e Unelli, 20.000.
Os belóvacos não forneceram o seu contingente, porque pretendiam fazer a guerra aos romanos em seu nome e à sua maneira e não obedecer às ordens de ninguém; no entanto, a pedido de Cómio e em favor aos laços de hospitalidade que a ele os uniam, enviaram dois mil homens.
LXXVI – Este Cómio servira César fiel e utilmente na Bretanha nos anos anteriores; reconhecendo os seus méritos, César libertara de impostos o seu Estado, restituíra-lhe as suas leis e as suas instituições e submetera os mórinos a Cómio. No entanto, tal era então a unanimidade de toda a Gália no reclamar da sua liberdade que nem o reconhecimento nem as recordações da amizade os influenciaram e todos, de todo o coração e com todos os seus recursos se lançaram na guerra, reunindo 8.000 cavaleiros e cerca de 240.000 infantes. Estas tropas foram passadas em revista no território dos éduos; fez-se o seu recenseamento e foram nomeados chefes. O comando supremo foi confiado a Cómio, o atrébate, aos éduos Viridómaro e Eporédorix e ao arverno Vercassivelauno, primo de Vercingetorige. Juntaram-lhes delegados dos Estados, formando um conselho encarregado da condução da guerra. Partem todos para Alésia alegres e cheios de confiança: nenhum deles acreditava que fosse possível aguentar sequer o olhar perante tão grande multidão, sobretudo num combate em duas frentes, pois que os sitiados farão surtida, enquanto chegam de fora tão grandes forças.
LXXVII – Mas aqueles que estavam sitiados em Alésia, uma vez passado o dia em que esperavam a chegada dos socorros, uma vez gasto todo o seu trigo, ignorando o que se passava entre os éduos, haviam convocado um conselho e deliberavam quanto ao desenlace da sua sorte.
O discurso do arverno Critognato: «Mais facilmente se encontram pessoas para enfrentar a morte que para suportar pacientemente a dor...Quando 80.000 homens houverem perecido num mesmo local, qual será, imaginem, a coragem dos nossos pais e dos nossos próximos se forem forçados a baterem-se quase sobre os nossos cadáveres? Não privem do vosso socorro aqueles que se esquecem de si próprios para vos salvar, não queiram, pela vossa estupidez e pela vossa cegueira, ou por falta de coragem, humilhar a Gália inteira e entregá-la a uma servidão eterna. Ou então, porque não chegaram no dia marcado, vão duvidar da sua fé e da sua constância? Pois então pensam que os romanos trabalham todos os dias, sem uma razão, nas suas fortificações exteriores? Se as suas mensagens não vos podem confirmar a sua chegada, por todo o acesso vos estar fechado, tomem por testemunhas os próprios romanos, que, assustados com este temor, trabalham noite e dia nas suas fortificações. Qual é então a minha opinião? Fazer o que fizeram os nossos antepassados na guerra...dos cimbros e dos teutões: empurrados para as suas praças-fortes e acossados como nós pela fome, sustentaram a sua existência com os corpos daqueles que a idade parecia tornar inúteis para a guerra, e não se renderam ao inimigo...Os cimbros puderam devastar a Gália e nela desencadear uma grande calamidade; era realmente imperioso que saíssem um dia do nosso país e alcançassem outras terras; porém, deixaram-nos as nossas leis, as nossas instituições, os nossos campos, a nossa liberdade. Mas os romanos, que pedem eles ou que querem eles que não seja...instalar-se nos campos e nos Estados...e acorrentá-los a um jugo eterno? Nunca eles fizeram guerra de outra maneira. Se ignoram o que se passa nas nações longínquas, vejam a Gália vizinha, que reduzida a Província, havendo perdido as suas leis e as suas instituições, submissa aos machados, está oprimida numa perpétua servidão».
LXXVIII – Expressas as opiniões, resolveu-se que aqueles que a doença ou a idade tornavam inúteis para a guerra sairiam da praça; e que, se os socorros tardarem, tudo se tentará em lugar de suportar as condições da rendição. Os mandúbios, que os haviam recebido na sua praça, são obrigados a sair com os filhos e as mulheres. Tendo-se aproximado das linhas dos romanos, pediam, entre lágrimas e súplicas de todo o género, que os quisessem aceitar em escravatura e dar-lhes de comer. Mas César proibiu que os acolhessem.
LXXIX – Entretanto, Cómio e os outros chefes a quem fora confiado o comando supremo chegam diante de Alésia com todas as suas forças e, depois de ocuparem uma colina exterior, estabelecem-se a mil passos, quando muito, das nossas linhas. No dia seguinte fazem sair do campo a sua cavalaria e cobrem toda a planície (de Laumes); estabelecem a infantaria um pouco atrás, nas elevações. De Alésia a vista alongava-se pela planície; ao verem as tropas de socorro abraçam-se, congratulam-se, todos os corações saltam de alegria; amontoam faxinas e enchem de terra o fosso mais próximo, preparando-se para fazer surtida e para quanto fosse preciso.
LXXX – César alinha todo o seu exército nas duas circunvalações, a fim de cada um conheça o lugar que vai ocupar na batalha; depois manda sair do campo a sua cavalaria e ordena que se trave combate.
De todos os acampamentos, que de todos os lados ocupavam os cumes das montanhas, a vista estendia-se sob a planície, e todos os soldados, atentos, esperavam o desfecho da batalha. Os gauleses misturaram com os seus cavaleiros pequenos grupos de archeiros e de infantes com armadura ligeira, para socorrer os seus, se cedessem, e deter o choque dos nossos cavaleiros. Muito dos nossos, feridos por eles, retiraram-se do combate.
Combatera-se desde o meio-dia quase até quase ao pôr-do-sol, sem que a batalha se tivesse ainda decidido, quando os germanos, juntos num único ponto em esquadrões cerrados, carregaram sobre o inimigo e o repeliram; na derrota, os archeiros foram envolvidos e massacrados. De todos os outros lados, os nossos, por sua vez, perseguindo os fugitivos até ao seu campo, não lhes deram tempo de se reagruparem. Então aqueles que haviam saído de Alésia, acabrunhados e quase desesperando da vitória, regressaram à praça.
LXXXI – Apenas ao cabo de um dia, os gauleses, que haviam empregue este tempo no fazer de um grande número de caniçados, de escadas e de arpões, saem a meio da noite, em silêncio, e aproximam-se das nossas fortificações na planície. De súbito, soltando um clamor para avisar os sitiados da sua aproximação, preparam-se para atirar os seus caniçados, para empurrar os nossos do seu entrincheiramento a golpes de funda, de flechas e a tudo dispor para um assalto em regra. Ao mesmo tempo, ouvindo o clamor, Vercingetorige dá aos seus o sinal da trombeta e leva-os para fora da praça.
Os nossos ocupam nas linhas os postos que foram confiados a cada um nos dias anteriores. Com as fundas, as maças e os chuços que haviam colocado no entrincheiramento, atemorizam os gauleses e repelem-nos. Impedindo as trevas de ver, houve quer de um lado como do outro muitos feridos; as máquinas lançavam uma grande quantidade de dardos. Os lugar-tenentes Marco António e Caio Trebónio, aos quais incumbia a defesa destes pontos, onde viam que os nossos estavam a ser vivamente carregados, logo enviavam para lá incessantes reforços, que retiravam dos fortes mais afastados.
Marco António, o futuro triúnviro, neto do orador António e filho de Marco António, que fizera a guerra em Creta, era parente de César por sua mãe, Júlia; é legado de César na Gália em 52; questor em 51; em 50 será eleito áugure.
LXXXII – Enquanto os gauleses se encontravam ainda afastados dos entrincheiramentos, conseguiam progredir, mas ao aproximarem-se, enterravam-se nos estrepes ou empalavam-se ao cair nos poços ou tombavam trespassados pelos dardos que lhes atiravam do alto do entrincheiramento e das torres.
Depois de terem sido duramente castigados em todo o lado, sem conseguirem romper as nossas linhas, vendo aproximar-se o dia, recearam um ataque de flanco a partir do campo que dominava a planície e retiraram.
Quanto aos assediados, ocupados em fazer avançar os engenhos que Vercingetorix havia preparado para a surtida, enchiam os primeiros fossos; como este trabalho lhes tomou muito tempo, souberam da retirada dos seus antes de terem podido aproximar-se do entrincheiramento. Assim fracassados na sua empresa, voltaram à praça.
LXXXIII – Duas vezes repelidos com grandes perdas, os gauleses deliberam quanto ao que há a fazer; consultam as pessoas que conhecem o país e, sobretudo, as características dos pontos dominantes e as suas possibilidades de defesa. Ao norte havia uma colina (o monte Réa) que os nossos não haviam podido abarcar nas suas linhas por causa da sua extensão, o que os forçara a estabelecer o campo num terreno quase desfavorável, ligeiramente em declive. Os lugar-tenentes Caio Antístio Regino e Caio Canínio Rebilo comandavam ali duas legiões.
Depois de terem mandado reconhecer os locais pelos seus batedores, os chefes inimigos escolhem 60.000 homens de elite; assentam entre eles secretamente o objectivo e o plano de acção, marcam a hora de ataque para o momento em que se veja que é meio-dia; põem à cabeça destas tropas Vercassivelauno. Este sai do campo à primeira vigília e, acabando de dispor as suas tropas quase ao romper do dia, esconde-se atrás da montanha e deixa repousar os seus soldados das fadigas da noite. Quando viu que o meio-dia estava próximo, dirigiu-se para o campo no monte Réa; simultaneamente, a cavalaria aproxima-se das fortificações da planície e o resto das tropas inimigas alinha em frente a elas.
LXXXIV – Vercingetorix, avistando os seus do alto da cidadela de Alésia, sai da praça: manda transportar para a frente do campo as faxinas, as varas, os tectos de protecção, as “foices” e tudo o que preparara para a surtida. Um vivo combate se trava ao mesmo tempo em toda a parte, e tentam forçar todas as obras de cerco; se um ponto lhes parece particularmente fraco, apressam-se a atacá-lo. A extensão das linhas impede as nossas tropas de fazer frente convenientemente aos ataques simultâneos; o clamor que se eleva dos outros combates (dos combates “ao lado”) em muito contribui para assustar (todos) os nossos: porque sabem que a sua sorte depende da salvação de outrem – muitas vezes o perigo que não se vê é o que mais perturba.
LXXXV – César, que escolheu um posto de observação favorável (na montanha de Flavigny), observa o que se passa em cada lugar e envia reforços às tropas que cedem, os dois lados têm consciência de que chegou o instante do esforço supremo: os galeses vêem-se perdidos, se não atravessam as nossas linhas; os romanos esperam o fim de todas as suas misérias de um triunfo decisivo (César diz isto nas vésperas de mais uma guerra civil!!!). O esforço recai sobretudo nas cotas superiores, onde ataca Vercassivelauno; a inclinação desfavorável do terreno tem nisso grande importância: uns atiram-nos dardos, outros aproximam-se, fazendo a tartaruga; tropas frescas dos inimigos rendem constantemente os seus soldados fatigados. A terra que todos os gauleses lançam sobre as nossas fortificações permite-lhes transpô-las, cobrindo as armadilhas que havíamos dissimulado no terreno – já os nossos não têm armas nem forças.
LXXXVI – Quando o sabe, César envia Labieno com seis coortes em socorro das tropas em perigo; dá-lhe ordem, se não puder aguentar, de reunir as restantes coortes (de reserva) e de fazer uma surtida, mas apenas em último extremo.
Os assediados, desesperando de forçar as fortificações da planície, por causa da sua extensão, tentam escalar as elevações (da montanha de Flavigny); para lá transportam quanto haviam preparado; expulsam com uma saraivada de frechas os que combatiam no alto das torres; enchem os fossos com terra e faxinas; cortam com as “gadanhas” (=”foices”) a paliçada e o parapeito.
LXXXVII – São para ali enviadas seis coortes de reforços sob o comando do jovem Bruto; depois, o legado Caio Fábio, com mais sete. Por fim, tornando-se o combate ainda mais encarniçado, é o próprio César a encabeçar um terceiro reforço com tropas frescas; o inimigo é repelido.
César dirige-se então à posição de Labieno; retira quatro coortes do forte mais próximo e ordena a uma parte dos cavaleiros que o siga; aos outros (cavaleiros), que dêem a volta pelas linhas exteriores e que apanhem o inimigo pelas costas.
Labieno, vendo que nem o aterro nem as torres podiam deter ataque do inimigo, reúne trinta e nove coortes que pôde de retirar dos postos mais próximos e, por mensageiros, informa César da sua decisão.
LXXXVIII – César apressa-se a tomar parte no combate . A sua chegada faz-se conhecer pela cor do seu vestuário: o manto de general que era hábito seu usar nas batalhas .
Os nossos soldados, renunciando ao dardo, combatem com o gládio; de súbito a nossa cavalaria aparece na retaguarda do inimigo; outras coortes se aproximam. Os gauleses lançam-se na fuga, com os nossos cavaleiros a cortarem-lhes a retirada; a carnificina é grande.
Sedúlio, chefe e primeiro cidadão dos Lemovices, é morto; o arverno Vercassivelauno é apanhado vivo quando se preparava para fugir; setenta e quatro insígnias militares são levadas a César; daquele tão grande número de homens (os gauleses), bem poucos voltaram ao seu campo sem ferimentos.
Avistando da sua praça-forte o massacre e a fuga dos seus compatriotas, desesperando da salvação, os sitiados mandam regressar as tropas que atacavam os nossos entrincheiramentos.
A essa notícia, os gauleses no exterior logo abandonam o seu campo. Se os nossos soldados não estivessem exaustos de tão árdua refrega e de toda a fadiga do dia, todas as forças do inimigo poderiam ter sido destruídas. Um pouco depois da meia-noite, a cavalaria, lançada em sua perseguição, alcança-lhes a retaguarda, aprisionando e massacrando uma boa parte deles; os outros, conseguindo fugir, dispersam-se pelos seus Estados.
LXXXIX – No dia seguinte Vercingetorix convoca a assembleia; declara que empreendeu esta guerra pela liberdade comum e que, uma vez que tem de ceder à fortuna, a eles se oferece, deixando-lhes a escolha de apaziguarem os romanos pela sua morte ou de pela sua entrega vivo.
Acerca deste assunto enviam deputados a César. Ele ordena a deposição das armas, a entrega dos chefes. Instala-se no entrincheiramento à frente do campo (circunvalação interior); ali, lhe trazem os chefes; entregam-lhe Vercingetorige; lançam as armas a seus pés. César reserva os prisioneiros éduos e arvernos, para tentar, através deles, ganhar de novo os seus Estados, e distribui o resto dos prisioneiros, por cabeça, a cada soldado, a título de saque.
XC – Parte para os éduos e recebe a submissão do seu Estado. Deputados enviados pelos arvernos ali o encontram, prometendo que executarão as suas ordens; exige-lhes um grande número de reféns.
Envia depois a suas legiões para os seus quartéis de Inverno, e restitui aos éduos e aos arvernos cerca de 20.000 prisioneiros. Tito Labieno parte com duas legiões e a cavalaria para o país dos Sequani; junta-se-lhe Marco Semprónio Rutílio (provavelmente, prefeito da cavalaria). Caio Fábio e Lúcio Minúcio Básilo, com duas legiões, são enviados aos Remi, para que nada tenham a temer dos belóvacos. Caio Antístio é enviado aos Ambivareti; Tito Sêxtio aos Bituriges; Caio Canínio Rebilo para os Ruteni, cada um destes com uma legião.Quinto Túlio Cícero e Públio Sulpício invernam em Cavilono e Matiscão (Matisco; hoje, Mâcon), entre os éduos, sobre o Arar, para garantir o abastecimento de trigo. César decide passar o Inverno em Bibracte.
Quando, por uma carta de César, estes acontecimentos foram conhecidos em Roma, celebraram-se orações de agradecimento aos deuses por vinte dias.