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Livro I - Das origens remotas ao fim da monarquia

Tradução da versão francesa, de M. Nisard (Paris, 1864), do livro I de Ab Urbecondita, de Tito Lívio, confrontando-a com a inglesa de Canon Roberts (Londres, 1905) e o próprio texto latino. Os títulos e subtítulos não pertencem à obra de Lívio, tendo sido introduzidos no propósito de lhe facilitar a consulta. Alterou-se a divisão em parágrafos, bem como alguns sinais de pontuação.

Geralmente, após um termo latino, por exemplo, Crustumerium, é dado no texto o seu correspondente português, Crustumério. E por vezes há vários nomes latinos para a “coisa” designada, verbi gratia, Crustumerium Crustuminum, que são designações da mesma cidade.

 

LIVRO I

DAS ORIGENS REMOTAS AO FIM DA MONARQUIA.

1. Prefácio.

(1) Poderei felicitar-me pelo que quis fazer, ao empreender escrever a história do povo Romano desde a sua origem? Ignoro-o; e se o soubesse, não o ousaria dizer, (2) sobretudo quando considero quanto os factos estão longe de nós e quão já eles são conhecidos, graças a essa multidão de escritores que não cessa de se reproduzir e que se gaba, ou de os apresentar com uma maior certeza, ou de fazer apagar, pela superioridade do seu estilo, a áspera simplicidade dos nossos primeiros historiadores. (3) Seja como for, terei tido ao menos o prazer de haver ajudado, por meu lado, a perpetuar a memória dos grandes feitos cumpridos pelo primeiro povo da terra; e se no meio de tantos escritores o meu nome se perder, o brilho e a grandeza daqueles que me houverem de eclipsar servir-me-ão de consolo. (4) É de resto esta uma obra imensa para aquele que, ao abarcar um período de mais de sete centenas de anos – tomando como ponto de partida os mais ténues começos de Roma –, a segue nos seus progressos até a esta última época em que ela começa a curvar-se sob o fardo da própria grandeza; temo também que as origens de Roma e os tempos mais vizinhos ao seu nascimento sejam pouco atractivos à maioria dos leitores, impacientes de chegar a estes últimos tempos onde essa potência desde há longa data soberana volta as suas próprias forças contra si mesma. (5) Para mim retirarei deste trabalho uma grande vantagem: a de me distrair por um instante do espectáculo dos males de que a nossa época há tanto é testemunha, com o meu espírito por inteiro ocupado no estudo desta velha história e liberto desses temores que, sem poderem desviar um escritor da verdade, não deixam de ser para ele fonte de inquietude.

(6) Os sucessos que precederam ou acompanharam a fundação de Roma apresentam-se bem mais enfeitados pelas ficções da poesia do que apoiados sobre o testemunho irrecusável da história: não desejo nem afirmá-los nem contestá-los. (7) Perdoe-se à antiguidade essa intervenção dos deuses nas coisas humanas que imprime à nascença das cidades um carácter mais augusto. Ora, se algum povo há que possa-se permitir tornar a sua origem mais sagrada, reportando-a aos deuses, esse será certamente o povo Romano; e quando ele quer fazer do deus Marte o pai do fundador de Roma, e de si, povo Romano, a sua glória nas armas é assaz grande para que o universo o sofra, como lhe sofreu a dominação. (8) De resto, quer se rejeite ou se acolha esta tradição, tal não tem, a meu ver, grande importância. (9) Pois o que importa, e sobretudo deve ocupar a atenção de cada um de nós, é conhecer a vida e os costumes dos primeiros Romanos, saber quem são os homens, quais são as artes, que tanto na paz como na guerra fundaram o nosso poderio e o engrandeceram; seguir, enfim, pelo pensamento, o paulatino enfraquecimento da disciplina e esse primeiro relaxamento dos costumes que, logo os arrastando por ladeira a cada dia mais inclinada, lhes precipitaram a queda nestes tempos derradeiros em que o remédio se tornou tão insuportável quanto o mal. (10) O principal e mais profícuo benefício da história é o de expor aos nossos olhos, num quadro luminoso, ensinamentos de toda a espécie, que parecem dizer-nos: eis o que tu deves fazer no teu interesse e no da república; eis o que deves evitar, porque há opróbrio em concebê-lo, ignomínia em levá-lo a termo. (11) Por fim, ou eu me engano quanto à minha obra ou jamais república alguma foi maior, mais santa e mais fecunda de bons exemplos, nenhuma se conservou durante tanto tempo imune ao luxo e à sede de riquezas e por tão longo tempo fiel ao culto da temperança e da pobreza, de tal modo ela sabia medir pela parca fortuna possuída os seus desejos: (12) foi somente nos nossos dias que as riquezas engendraram a avareza, os excessos dos prazeres e uma fúria, que não se entende, de buscar a própria perda e de arrastar consigo o Estado para o abismo do luxo e do deboche.

Mas críticas sempre serão mal acolhidas, quiçá, até quando houverem de ser necessárias; não comecemos, pois, por aí esta extensa obra. (13) Melhor conviria, se o historiador gozasse do privilégio do poeta, fazê-la começar sob os auspícios dos deuses e deusas, de modo a deles obter, à força de votos e preces, um feliz sucesso para tão vasta empresa.

 

2. A pré-história lavínia e albana até à fundação de Roma (livro I; capítulos 1 – 6, 2).

Eneias.

I – (1) É facto bem conhecido que, após a tomada de Tróia, a vingança dos Gregos, tendo sido exercida sobre o restante do povo troiano, não poupou senão a Eneias e a Antenor, fosse porque o direito duma antiga hospitalidade os protegesse, fosse porque os conselhos que sempre haviam dado – os de restituir Helena e fazer a paz – levassem o vencedor a poupá-los. (2) É também universalmente sabido que, após diversas aventuras, Antenor, à cabeça duma numerosa tropa de Hénetos (Heneti), que, expulsos da Paflagónia por uma sedição e privados de seu rei Pilémenes (Pylaemenes), morto sob os muros de Tróia, procuravam um chefe e um lugar de asilo, penetrou até ao fundo do golfo Adriático, (3) e que, repelindo diante de si os Eugâneos (Euganei), estabelecidos entre o mar e os Alpes, os Hénetos, reunidos aos Troianos, tomaram possessão do território daqueles. O lugar onde aportaram conservou o nome de Tróia, tal como o cantão que dele depende, e toda a nação por eles formada leva o nome de Vénetos.

4) Eneias, expulso da sua pátria pela mesma catástrofe, mas destinado pela sorte a bem mais altos feitos, arribou primeiro à Macedónia, passando depois à Sicília, donde, sempre em busca de uma pátria, veio aportar com a sua frota à costa de Laurentum (perto de Óstia e do Tibre), também designada pelo nome de Tróia. (5) Logo que desembarcam, os Troianos, aos quais a longa viagem pelos mares, onde por tantos anos haviam errado, apenas deixara as armas e embarcações, espalham-se pelos campos em busca de saque, enquanto o reiLatinus e os Aborígenes, que ocupavam a região, acorriam em armas da cidade e das redondezas para repelir a agressão daqueles estrangeiros. (6) Segundo uns, só após uma derrota Latinus firmou a paz e aliou-se a Eneias. (7) De acordo com outros, os exércitos encontravam-se frente a frente e estava prestes a dar-se o sinal de combate quando Latinus se adiantou, rodeado da elite dos seus, a convidar o chefe dos estrangeiros para uma entrevista. Perguntou-lhe qual era a sua nação, donde vinham, que desgraça os havia exilado de seu país e que propósitos os traziam às costas Laurentinas. (8) Quando lhe fizeram saber que eram Troianos, que o seu chefe era Eneias, filho de AnquisesVénus, e que, em fuga da sua pátria e das suas casas reduzidas a cinzas, buscavam um asilo e um lugar onde pudessem erguer uma cidade, então, pleno de admiração por esse povo glorioso e por aquele que os conduzia, e vendo, para mais, que tanto se dispunham a fazer a guerra como a acordar a paz, estendeu a sua mão a Eneias em penhor da futura amizade. (9) O tratado foi, pois, concertado entre os chefes e os exércitos confraternizaram; Eneias tornou-se hóspede de Latino, e, no seu palácio, em frente ao altar dos seus deuses penatesLatinus, para estreitar pelos laços familiares a união dos dois povos, deu-lhe a filha em casamento. (10) Esta aliança fortaleceu nos Troianos a esperança de encontrar, enfim, um estabelecimento seguro que lhes pudesse fixar o destino errante. Construíram uma cidade. Eneias chamou-lhe Lavinium, do nome da sua nova esposa. (11) Desse casamento cedo nasceu, tal como acontecera no primeiro matrimónio de Eneias, um filho que recebeu dos seus progenitores o nome de Ascanius.

II – (1) Os Aborígenes e os Troianos tiveram, juntos, de travar uma guerra.Turnus, rei dos Rutuli, a quem Lavínia fora prometida muito antes da vinda de Eneias, indignado porque o preteriam a um estrangeiro, declarou guerra quer a Latino quer a Eneias. (2) Mas nenhum dos dois exércitos pôde regozijar-se no final do combate: os Rútulos tinham sido vencidos, todavia a vitória custara aos Aborígenes e Troianos o seu chefe, Latinus. (3) Turno e os Rútulos, desafiando o infortúnio, procuraram então o apoio da florescente potência dos Etruscos e do seu rei, Mezentius. Este príncipe, que desde o início estabelecera a sede do seu império em Caere, cidade muito opulenta, vira com inquietude erguer-se a nova cidade: convencido de que bem cedo a segurança dos povos vizinhos seria ameaçada pelo rápido crescimento da colónia troiana, foi sem repugnância que associou as suas armas às dos Rútulos.

(4) Obrigado a enfrentar uma tão formidável liga, Eneias, para se assegurar, contra ela, da fidelidade dos Aborígenes, decidiu reunir sob o mesmo nome os dois povos já sujeitos às mesmas leis; confundiu-os sob a denominação comum de Latinos. (5) A partir desse momento os Aborígenes jamais ficaram aquém dos Troianos, fosse na fidelidade, fosse no seu zelo por Eneias; fortalecido por estas disposições, Eneias, com os dois povos cuja união se estreitava a cada dia, ousou desafiar a potência dos Etruscos, que atroavam então com o estrépito do seu nome a terra e o mar ao longo de toda a Itália, dos Alpes até ao fretum Siculum; e, se bem que houvesse podido enfrentar o inimigo ao abrigo das muralhas, fez sair as suas tropas e apresentou-lhe combate. (6) A vitória coube aos Latinos, mas também ali terminaram os trabalhos mortais de Eneias; seja qual for o nome por que se deva designá-lo, certo é ter sido ele inumado nas margens do Numicius; chamam-no de Jupiter Indiges.

 

Fundação de Alba-a-Longa; a série dos reis albanos.

III – (1) Ascânio, filho de Eneias, que não estava ainda em idade de reinar, todavia pôde alcançar a puberdade sem que o seu poder viesse a sofrer qualquer afronta. A tutela duma mulher (tal era a força do ânimo de Lavínia) bastou para conservar aos Latinos o seu poderio e a essa criança o reino de seu avô e seu pai. (2) De modo nenhum poderei afirmar (pois como verificar os sucessos de tão remota antiguidade?) se era bem de Ascânio (filho de Lavínia) que se tratava ou daquele outro menino, nascido de Creúsa antes da queda de Tróia, que acompanhou seu pai na fuga; daquele, enfim, que tomou o nome deIulus e ao qual a família Júlia liga a sua origem. (3) Este Ascânio, quaisquer que hajam sido a mãe e o lugar do seu nascimento – mas sendo certo que era filho de Eneias –, posteriormente, vendo que a população de Lavínio havia aumentado em excesso, entregou a cidade, já nessa época florescente e considerável, à sua mãe ou madrasta e partiu a fundar no sopé do monte Albano uma nova cidade, a qual, estendendo-se em lonjura sobre o flanco da montanha, tomou da sua posição o nome de Alba Longa. (4) Entre a fundação de Lavínio e o estabelecimento desta colónia, saída do seu seio, haviam-se passado cerca de trinta anos. E nesse intervalo de tempo o Estado alcançara tal acrescentamento, sobretudo em razão da derrota dos Etruscos, que mesmo à morte de Eneias e depois, durante a regência duma mulher e enquanto o seu jovem filho fazia a aprendizagem da arte de reinar, nem Mezêncio e os seus Etruscos nem qualquer outro povo vizinho se atreveram a atacá-lo. (5) O tratado de paz estabelecera o rio Albula, hoje, o Tibre, como limite entre os Etruscos e os Latinos.

(6) Ascânio teve por sucessor o seu filho Silvius, nascido, não sei por que acaso, na profundeza das florestas. (7) Foi pai de Eneias Sílvio, que teve por filho Latino Sílvio. Este fundou algumas colónias, as dos Antigos Latinos; (8) a partir de então Silvius foi o sobrenome comum a todos os reis de Alba. Sucederam-se, de pai para filho, AlbaAtysCapysCapetusTiberinus, que se afogou ao atravessar o rio Albula, dando-lhe assim o seu nome, na posteridade tão célebre. (9) Tiberino teve por filho Agripa, que lhe sucedeu e transmitiu o trono a Rómulo Sílvio. Romulus, fulminado pelo relâmpago, deixou o ceptro nas mãos de Aventinus. Este último, ao ser sepultado sobre a colina que hoje faz parte da cidade de Roma, legou-lhe o seu nome. (10) Procas, seu sucessor, pai deNumitor e de Amulius, deixou a Numitor, o mais velho, o antigo reino da estirpe dos Sílvios. Todavia a violência prevaleceu sobre a vontade de um pai e do respeito para com o direito de primogenitura. (11) Amúlio escorraçou o irmão e apoderou-se do trono; sustentando um crime por outro crime, mandou matar todos os filhos varões de seu irmão; e a pretexto de honrar Rhea Silvia, filha de Numitor, fez dela uma vestal, roubando-lhe, ao condená-la a uma eterna virgindade, a esperança de vir a ser mãe.

 

Rómulo e Remo : nascimento, infância, primeiras proezas.

IV – (1) Porém os destinos deviam seguramente ao mundo o nascimento desta grande cidade e a formação do seu império, o mais poderoso logo após aquele que aos deuses pertence. (2) Vindo a ser pela violência mãe de dois meninos, fosse por convicção ou porque desejasse enobrecer a sua falta com a cumplicidade de um deus, a Vestal atribui a Marte a duvidosa paternidade. (3) Mas nem os deuses nem os homens puderam livrar a mãe e os filhos da crueldade do rei: a sacerdotisa, carregada de ferros, é atirada para o cárcere, e ordena-se que as crianças sejam precipitadas nas águas do rio. (4) Por um maravilhoso acaso, sinal evidente da protecção divina, o Tibre, que ia cheio, galgara as suas margens, derramando-se em pântanos de languescidas águas que impediam o acesso ao seu leito ordinário; assim, apesar da pouca fundura e tranquilidade dessas águas ribeirinhas, os que executavam as ordens do rei julgaram-nas suficientemente profundas para que os meninos se afogassem. (5) Acreditando pois haver cumprido a comissão real, abandonaram-nos nos pauis, no local onde hoje encontramos a figueira Ruminal, que no passado, ao que se diz, chamavam “figueira de Rómulo”.

(6) Esses lugares não eram outrora senão uma vastidão desolada. A acreditar no que se conta, as águas, que mal cobriam o fundo do local, depuseram na margem o berço flutuante que transportava os dois meninos; uma loba sedenta, que descia das colinas circundantes, acorreu ao apelo dos seus vagidos e, dando-lhes as tetas, de tal modo esqueceu a ferocidade natural que, quando o intendente dos rebanhos do rei os veio a descobrir, encontrou-a acariciando com a língua as crianças que amamentava. Fáustulo (seria, ao que dizem, o nome desse homem) levou-os consigo (7) e confiou-os aos cuidados de sua mulher, Laurência. Segundo o que alguns também dizem, essa Larentia seria uma prostituta a quem os pastores haviam dado o nome de “Loba”. E neste facto residiria a origem dessa tradição fantástica. (8) Tais são os sucessos sobre o nascimento e a educação das duas crianças. Mal atingiram a idade da adolescência, desdenhando a ociosidade duma vida sedentária e a guarda dos rebanhos, a caça arrasta-os para as florestas das redondezas. (9) Mas, pondo à prova nessas fadigas a sua força e coragem, não se limitam a dar caça às bestas ferozes e atacam também os salteadores carregados de despojo roubado, partilhando o saque que tomam com os pastores. Uma multidão de jovens zagais, mais numerosa a cada dia, associa-se-lhes nos perigos e aventuras.

V – (1) Já naqueles tempos se celebrava a festa das Lupercais (Lupercalia)sobre o monte Palatino, que primeiro se chamou Pallanteum, de Palanteu, cidade da Arcádia. (2) Fora ali que Evander (Evandro), um dos Árcades que em épocas remotas se haviam estabelecido na região, instituíra, segundo o costume do seu país, essa festa solene em que os jovens, tomados pela embriaguez duma alegria licenciosa, corriam completamente nus em honra de , protector dos rebanhos, a que os Romanos deram depois o nome de Inuus. (3) No decorrer destas festas, cuja celebração era anunciada, sendo surpreendidos pelos furiosos salteadores a quem haviam tomado o saque, Rómulo defende-se com todo o vigor e escapa-se-lhes, mas Remo é capturado. O prisioneiro, entregue a Amúlio, é perante este denegrido. (4) Acusam-no em particular de lançar razias, juntamente com o irmão, sobre as terras de Numitor, ali conduzindo a pilhar, como se de país inimigo se tratasse, o seu bando de jovens vagabundos. Remo foi por isso sujeito à vingança de Numitor.

(5) Desde o início destes sucessos, Faustulus sempre alimentara a esperança de que as crianças fossem de sangue real; a ordem que o rei havia dado – a de lançar às águas os recém-nascidos – era dele conhecida, e fora nessa mesma data que os tinha recolhido; mas ele não queria revelar o seu segredo antes do tempo, a menos que a ocasião ou a necessidade o obrigassem a falar: (6) a necessidade acabou por chegar em primeiro. Cedendo aos seus temores, desvenda a Rómulo o segredo do seu nascimento. Também o acaso quis que, por sua parte, Numitor, senhor da pessoa de Remo, viesse a saber que os dois irmãos eram gémeos, e que a sua idade e o seu nobre porte lhe despertassem no coração a recordação dos netos; e à força de questionar aproximou-se da verdade, pronto já a reconhecer Remo. (7) Assim de todos os lados uma trama se urdiu contra o rei. Rómulo, sem forças para agir a descoberto, bem que se guardou de vir à cabeça dos seus zagais, ordenando-lhes que se juntassem no palácio a uma hora combinada, mas tomando por diversos caminhos; ali caem sobre o rei; comandando as gentes de Numitor, Remo presta-lhes boa ajuda, eAmulius é massacrado.

VI – (1) Logo aos primeiros confrontos Numitor grita que o inimigo penetrou na cidade, que já assedia o palácio, e dali afasta a juventude albana, enviando-a a ocupar e a defender a cidadela; depois, ao ver que os jovens vencedores voltam em triunfo do inesperado ataque, convoca uma assembleia, recorda as injúrias do irmão contra a sua pessoa, as nobres origens de seus netos, o seu nascimento, como se haviam educado, os indícios que os fazem reconhecer, e anuncia a morte do tirano, declarando haver sido o seu autor. (2) Os jovens irmãos apresentam-se com o seu destacamento de zagais no meio da assembleia, proclamam rei a seu avô, confirmando-lhe a multidão entusiástica, por unânime aclamação, o título e a autoridade.

 

3. A fundação de Roma e o reino de Rómulo (I; 6, 3 - 16).

Fundação de Roma.

VI – (3) Reposto Numitor sobre o trono de Alba, Rómulo e Remo conceberam o projecto de fundarem uma cidade nos ermos que haviam testemunhado os seus primeiros perigos e os cuidados prodigalizados na sua infância. A multidão de habitantes que de Alba e do Latium regurgitou, mais engrossada ainda pela afluência dos pastores, levava a crer que a nova cidade depressa viria a eclipsar Alba e Lavínio. (4) Mas aos planos de assentamento veio misturar-se a sede do poder, um mal que lhes era hereditário, e uma discussão que começou por ser pacífica veio a acabar num terrível confronto. Como eram gémeos, entre eles não podia decidir a prerrogativa da idade: entregam, pois, às divindades tutelares desses lugares o cuidado de designar, através dos áugures, aquele que havia de dar o seu nome e as leis à nova cidade, e retiram-se, Rómulo para omonte Palatino, Remo ao Aventino, para ali traçarem a cerca augural.

VII – (1) O primeiro augúrio foi, ao que se diz, para Remo: eram seis abutres; mal acabavam de o anunciar quando Rómulo divisou o dobro desse número; cada um deles foi então aclamado rei pelos seus; uns reclamavam o seu direito da prioridade, os outros do número dos pássaros (2). Seguiu-se uma áspera querela que a ira fez degenerar em combate sangrento; ferido durante a rixa, Remo cai por terra, morto. De acordo com a tradição mais difundida, Remo, por escárnio, galgou de um salto os novos limites que o seu irmão traçara, e Rómulo, enfurecido, mata-o ao mesmo tempo que vocifera : "Assim perecerá todo aquele que venha a transpor as minhas muralhas." (3) Com Rómulo por único soberano, a nova cidade tomou o nome do seu fundador. O monte Palatino, o lugar onde havia sido criado, foi o primeiro que cuidou de fortificar. Em todos os sacrifícios que ofereceu aos deuses seguiu o rito albano; somente para Hércules seguiu os usos gregos, tal como Evandro os instituíra.

 

Hércules e Caco.

VII – (4) Foi para esta região que, ao que se diz, Hercules, vencedor de Geryon, trouxe um rebanho de uma extraordinária beleza; após atravessar o Tibre a nado, enxotando diante de si o gado, deteve-se sobre essa margem do rio em meio a férteis pastagens, de modo a que os seus bovinos pudessem descansar e recompor-se; e ele próprio, devido à fadiga da viagem, se deixou adormecer sobre a relva. (5) Ali, enquanto entorpecido pelo vinho e a comida dormia de um sono profundo, um pastor do cantão de nome Cacus, de uma força prodigiosa, seduzido pela beleza do gado, decide apoderar-se de tão rica presa. Porém, como temesse que ao guiar a manada os seus traços viessem a conduzir o dono à caverna que lhe servia de morada, quando este começasse a procurar pelos animais, resolveu escolher somente os mais belos, e depois, puxando-os pela cauda, arrastou-os às arrecuas para o seu covil.

(6) Hércules, despertando aos primeiros raios da aurora, olha para a sua manada e, apercebendo-se de que lhe faltam reses, vai direito à caverna vizinha, na crença de que os rastos para ali conduziriam. Mas todos se dirigiam no sentido contrário, nenhum deles seguindo em qualquer outra direcção. Assim, na confusão de espírito em que a incerteza o lançou, apressa-se a afastar o seu rebanho daquelas perigosas pastagens. (7) No momento da partida, algumas vitelas assinalaram com mugidos, como lhes é hábito fazer, a sua mágoa ao deixarem para trás as companheiras; aquelas que o antro encerrava responderam-lhes, atraindo a atenção de Hércules. Este corre à caverna: Caco esforça-se por lhe impedir a entrada, ao mesmo tempo que implora em vão o socorro dos restantes pastores, e acaba por tombar sob a temível massa.

(8) Evandro, tendo vindo, em busca de um asilo, do Peloponeso a estas novas regiões, governava-as mais por ascendente pessoal que por efeito duma real autoridade. Devia esse ascendente ao conhecimento da escrita, uma maravilhosa novidade para aquelas nações ignorantes das artes; e mais ainda à espalhada crença na sua mãe Carmenta, por todos olhada como uma divindade cujas predições, anteriores à chegada da Sibylla a Itália, enchiam de espanto estes povos. (9) Atraído pela turba dos pastores, reunidos tumultuosamente em torno do estrangeiro e que aos gritos o imputavam de homicida, toma simultaneamente conhecimento do crime e da causa que levou ao seu cometimento. Depois, impressionado pelos ares augustos do herói e pela majestade da sua figura, tão superior à dos homens, perguntou-lhe quem era. (10) Mal soube qual era o seu nome, o de seu pai e o da sua pátria, exclamou: “Filho de Júpiter, Hércules, eu te saúdo. Minha mãe, fiel intérprete dos deuses, predisse-me que tu havias de te acrescentar ao número dos habitantes doOlympus, e que nestes lugares se iria erguer em tua honra um santuário destinado a receber um dia, da nação mais possante do mundo, o nome deMuito Grande, altar a que tu mesmo havias de render culto.”

(11) Hercules, estendendo-lhe a mão, responde-lhe que se submete à profecia, e que para cumprir os destinos vai construir um altar e consagrá-lo. (12) Escolhe então a mais formosa vitela do seu rebanho para este primeiro sacrifício que a si próprio oferece. Os Potícios (Potitii) e os Pinários (Pinarii), as duas famílias mais consideradas da região, convidadas por Hércules a coadjuvarem no sacrifício, tomaram parte no banquete sagrado. (13) Quis o acaso que só os Potitii estivessem presentes no começo do festim e que lhes fossem servidas as entranhas da vítima, já inteiramente consumidas à chegada dos Pinarii, que participaram no resto do banquete: é esta a origem do uso, perpetuado até à extinção da família Pinarii, que lhes proibia as primícias das vítimas. (14) Os Potícios, instruídos por Evandro, mantiveram por vários séculos o ministério do culto (a Hércules), até ao momento em que, tendo abandonado aos seus escravos essa função hereditária da família, todos eles vieram a perecer em expiação do sacrilégio.

(15) De todos os cultos instituídos por Rómulo, este foi o único que se tomou dos estrangeiros. Com este culto se celebrava a apoteose da coragem, que os destinos também já preparavam em futura honra de Rómulo.

 

Organização de Roma e raptus virginum.

VIII – (1) Estabelecidas de modo regular as cerimónias religiosas, Rómulo reuniu em assembleia a mole a que só a força das leis podia dar um corpo de nação, e ditou-lhe as suas. (2) Certo de que, aos olhos daqueles homens rudes, o mais seguro meio de conferir às leis um carácter sagrado estaria em a si próprio se engrandecer com os signos exteriores do comando, entre outros sinais distintivos que lhe acrescentaram na dignidade, fez-se rodear por dozelictores. (3) Há quem pense que ele baseou esse número no dos doze abutres que lhe tinham pressagiado o império, mas eu partilho convictamente da opinião dos que, observando entre os Etruscos, nossos vizinhos, as origens dosapparitores e daquela espécie de oficiais públicos (os lictores), tal como acontece com os usos da cadeira curul e da toga pretexta, pensam que é ainda nos seus costumes que é preciso procurar a origem para o número dos lictores de Rómulo. Eles adoptaram esse costume porque cada um dos doze povos que concorriam à eleição do soberano fornecia um lictor ao seu cortejo.

(4) Entretanto a cidade crescia, alargando a cada dia a sua cerca, guiando-se mais pelas esperanças de uma população futura do que pelas necessidades dos habitantes de então. (5) Para dar alguma realidade a tais pretensões, Romulus, fiel a essa velha política dos fundadores das cidades que proclama que a terra lhes faz nascer os habitantes, institui um asilo no local, hoje encerrado por uma paliçada, que se encontra entre os dois pequenos bosques à descida doCapitólio. (6) Escravos ou homens livres, todos os que o amor da mudança anima ali vêm refugiar-se em multidão. Foi este o primeiro esteio da nossa nascente grandeza. (7) Satisfeito com as forças que havia acumulado, Rómulo submeteu-as a uma direcção permanente ao instituir cem senadores, fosse porque esse número lhe pareceu suficiente ou porque não houvesse encontrado outros mais que fossem dignos de tal honra. Já é no entanto seguro que, a partir de então, passaram a ser chamados patres, e que este nome se tornou o seu título honorífico. Os seus descendentes receberam o nome de patricii.

IX – (1) Roma era já assaz poderosa para não ter de temer qualquer das cidades vizinhas, porém escasseava de mulheres, e assim, numa só geração, todo o seu poder estaria condenado a desaparecer, porquanto, em desesperança de ganharem uma posteridade no seio da sua cidade, os Romanos também não usufruíam de nenhuma aliança com os povos vizinhos. (2) Foi então que, a conselho do senado, Romulus lhes enviou deputados, com a missão de lhes oferecer a aliança do novo povo através do sangue e dos tratados. (3) “As cidades, diziam eles, como todas as coisas deste mundo, são débeis à nascença; porém, de seguida, se a coragem e os deuses lhes acodem, ganham grande potência e nomeada. (4) Como bem sabeis, os deuses presidiram ao nascimento de Roma, e o valor romano não desmerecerá dessa celeste origem; não deveis, portanto, desdenhar de misturar a homens como eles o vosso sangue e a vossa raça." (5) Mas em parte alguma a deputação foi bem acolhida, tanto esses povos simultaneamente desprezavam e temiam, por si e pelos seus descendentes, o poder que se erguia ameaçante no seu meio. A maioria, ao despedi-los, perguntava aos deputados: “Porque é que não haviam também aberto um asilo para mulheres? Dado que esse era o único meio ao seu dispor para conseguirem casar com as que lhes eram iguais.”

(6) A juventude romana sofreu-se da injúria, e tudo nesse momento parecia pressagiar o recurso à violência. Todavia, tratando de arranjar uma circunstância e um local favoráveis, Rómulo dissimulou o ressentimento e fez preparar jogos solenes em honra de Neptuno Equestre, que chamou deConsualia. (7) Anunciou-se o espectáculo pelos cantões vizinhos e toda a pompa que o estado das artes e a potência romana comportavam foi posta ao serviço da festa, a fim de lhe dar brilho e suscitar a curiosidade. (8) Os espectadores acorrem em multidão, atraídos também pelo desejo de conhecer a nova cidade, sobretudo os povos das vizinhanças mais próximas, CaeninensesCrustumini,Antemnates. (9) Veio ainda toda a nação dos Sabinos, com as suas mulheres e crianças. A hospitalidade abriu-lhes as portas das casas dos Romanos e, à vista da cidade, da sua vantajosa situação, das suas muralhas, do grande número de casas que abrigava, os visitantes maravilham-se do seu rápido crescimento. (10) Chega o dia da celebração dos jogos. Enquanto o espectáculo cativava os olhos e os espíritos, o concertado projecto entra em execução: ao sinal combinado, a juventude romana de toda a parte se lança na captura das jovens. (11) A maioria tombou às mãos do primeiro sequestrador, mas algumas das mais belas, destinadas aos principais senadores, foram levadas às moradias destes por plebeus que disso haviam sido encarregues. (12) Uma delas, bem superior às suas companheiras em figura e beleza, era conduzida, ao que dizem, pelo bando de um senador de nome Thalassius; como não cessassem de lhes perguntar a quem a levavam, para a preservarem de toda a injúria os do bando gritavam pelo caminho: “a Thalassio!”. E será esta a origem do dito que se consagrou na cerimónia das núpcias.

(13) O pavor transforma a festa em tumulto, fogem os parentes das jovens; e quebrados pela dor, em brados contra uma tal incrível violação dos direitos da hospitalidade, invocam o deus cujo nome, atraindo-os à solenidade dos seus jogos, dera cobertura à pérfida e sacrílega cilada. (14) As vítimas do rapto partilham desse desespero e dessa indignação; mas é o próprio Rómulo, visitando-as uma após outra, a explicar-lhes “que a violência sofrida apenas devem imputá-la ao orgulho de seus pais e à sua recusa de aliança, através dos casamentos, com um povo vizinho; que é a título de esposas que vão partilhar com os Romanos a sua fortuna, a sua pátria, e unirem-se a eles, ao tornarem-se mães, pelo mais doce dos laços que pode ligar os mortais. (15) Devem pois afastar o seu ressentimento e dar os corações àqueles a quem a sorte quis que as suas pessoas fossem entregues. É frequente que o sentimento da injúria ceda lugar a uma terna afeição. E as garantias da sua felicidade doméstica são, de resto, ainda mais firmes, porquanto os seus esposos, não contentes em satisfazer os deveres que a esse título lhe são impostos, vão também esforçar-se por substituir junto delas a família e a pátria que acabavam de perder.” (16) A estas palavras juntavam-se as carícias dos sequestradores, que desculpavam a violência dos seus actos invocando a força da paixão, desculpa toda-poderosa no espírito das mulheres.

 

As guerras que se seguiram, em particular a que travaram com os Sabinos.

X – (1) Já elas se haviam esquecido do seu ressentimento quando os seus parentes, mais enraivecidos que nunca, as vestes sujas em sinal de luto, sublevaram as urbes com os seus lamentos e lágrimas. O seu desespero não se deixou encerrar pelos muros das cidades e de toda a parte vieram juntar-se aTitus Tatius, rei dos Sabini. O seu nome, objecto da mais elevada consideração naquelas regiões, atraiu-lhe os seus enviados. (2) Os Ceninenses, os Crustumérios e os Antemnates contavam-se entre os povos atingidos pelo ultraje. Como Tácio e os seus Sabinos lhes parecessem muito lentos a tomar partido, estes três povos unem-se no fito de travar guerra em comum. (3) Mas os Crustumínios e os Antemnates também eram demasiado lentos a erguer-se em armas no aviso dos Ceninenses e do seu incontido desejo de vingança; assim, apenas com as suas próprias forças, estes últimos invadem o território romano. (4) Enquanto pilham na maior desordem, Rómulo e o seu exército vêm-lhes ao encontro, e a fácil vitória que sobre eles alcançam ensina-lhes que a ira, sem a força, é sempre impotente. Rómulo penetra-lhes as fileiras, dispersa-os, persegue-os na derrota, mata com as próprias mãos o seu rei e apodera-se do seu despojo. E a morte do chefe inimigo entrega-lhe a sua cidade.

(5) À volta do seu vitorioso exército, Rómulo, que ao génio dos grandes feitos aliava a habilidade de os saber explorar, forma um troféu com os despojos do rei morto e sobe ao Capitólio. Ali os depõe ao pé de um carvalho que a veneração dos pastores consagrara, deles fazendo homenagem a Júpiter, e traça o recinto de um templo que dedica a esse deus sob um novo sobrenome: (6) “Jupiter Feretrius – exclamou ele –, é a ti que um rei vencedor oferta estas armas que pertenceram a um rei e consagra o templo a que em pensamento acaba de medir os limites. Lá serão depostos os opima spolia que os meus descendentes, vencedores a meu exemplo, arrancarão, junto com a vida, aos reis e chefes inimigos” (7) É esta a origem desse templo, o primeiro a que Roma assistiu à consagração. Nos tempos que depois vieram os deuses quiseram ratificar a predição do fundador do templo quando chamou os seus descendentes a imitá-lo; não permitiram, no entanto, que se viesse a estender em demasia, por medo de a aviltar. Pois que em tão longo número de anos, preenchidos por tantas guerras, apenas se referem por duas vezes os “despojos excelentes”, de tal modo a fortuna se mostrou avara de tão grande honra.

XI – (1) Enquanto os Romanos celebram as suas cerimónias religiosas, os Antemnates aproveitam a ocasião e invadem-lhes as desguarnecidas fronteiras. Uma legião depressa acorre, surpreendendo o inimigo que se dispersara pelos campos. (2) Ao primeiro ataque, ao primeiro brado de guerra, os Antemnates são postos em fuga; a sua cidade é tomada. É então que Hersília, mulher de Rómulo, dando voz às súplicas das suas companheiras sequestradas, aproveita o entusiasmo da dupla vitória para rogar ao vencedor que faça graça aos seus parentes e os receba na recém-nascida cidade: é o meio, diz ela, de pela concórdia lhe acrescentar no poderio. E com facilidade obtém o que pedira.

(3) Rómulo marcha de seguida contra os Crustumérios, que o vinham atacar; mas estes, já desencorajados pelos reveses dos aliados, ofereceram ainda menos resistência. (4) Enviaram-se colonos para os territórios de uns e outros. A maioria decidiu-se por Crustuminum, em virtude da fertilidade do país; entretanto, muitos emigrantes, pertencentes na sua maioria às famílias das mulheres raptadas, vieram desses lugares a engrossar a população romana.

(5) A derradeira guerra travou-se contra os Sabinos; foi também a mais perigosa, pois este povo agiu sem precipitação nem cólera: as suas ameaças não precederam a agressão, (6) e a sua prudência não rejeitou os conselhos da astúcia. Spurius Tarpeius comandava a cidadela de Roma. E a sua filha, ganha pelo ouro de Tácio, prometeu aos Sabinos entregar-lhes a cidadela. Ela encontrou-os por acaso ao ir buscar água fora da cidade para os sacrifícios. (7) Logo que ali se introduzem os Sabinos matam-na, esmagando-a sob os seus escudos, fosse porque quisessem fazer crer que apenas a força os havia tornado senhores da fortificação, fosse para mostrar que ninguém é obrigado a manter a palavra dada a um traidor. (8) Há quem acrescente que os Sabinos, que usavam no braço esquerdo braceletes de ouro de peso considerável, e anéis ricos em pedras preciosas, se comprometeram a dar-lhe, como preço da traição, os objectos que trouxessem nesse braço. Por isso esses escudos que em lugar dos anéis de ouro pagaram a jovem mulher, sepultando-a sob a sua massa. (9) Segundo o que contam outros, ao reclamar dos Sabinos os ornamentos das suas mãos esquerdas, Tarpeia estava a referir-se de facto às suas armas, porém os Sabinos, temendo uma armadilha, esmagaram-na sob o preço da própria traição.

XII – (1) Como quer que haja sido, eles fizeram-se senhores da cidadela. No dia seguinte o exército romano, ordenado em batalha, cobriu com as suas linhas o espaço compreendido entre o monte Palatino e o monte Capitolino. Ainda os Sabinos não tinham descido ao seu encontro e já, sob o transporte da cólera e no vivo desejo de retomar a praça-forte, eles se lançam sobre as alturas. (2) Duma parte e doutra os chefes animam os combatentes; Mettius Curtius entre os Sabinos; do lado dos Romanos, Hostus Hostilius. Este, presente nas primeiras fileiras, e malgrado a desvantagem da posição, sustentava os seus pela audácia e a coragem; (3) porém, mal ele tombou, o exército romano cedeu em toda a linha, sendo repelido até à velha porta do Palatino. Arrastado ele próprio pela multidão dos fugitivos, Rómulo ergue as suas armas para o céu: (4) “Júpiter – exclama ele –, foi para obedecer às tuas ordens, foi sob os teus auspícios sagrados que aqui, sobre o monte Palatino, lancei as fundações desta cidade. Já a cidadela, adquirida a preço de um crime, caiu em poder dos inimigos; já eles, cruzando o pequeno vale, avançam até aqui. (5) Mas tu, pai dos deuses e dos homens, repele-os ao menos destes lugares; dá coragem aos Romanos e suspende-lhes a vergonhosa fuga. (6) Aqui mesmo eu te faço voto, sob o nome de Jupiter Stator, de um templo, eterno monumento das graças de uma Roma salva pela tua poderosa protecção.”

(7) Ao dizê-lo, e como houvesse sentido que a sua prece era escutada: “Romanos – prosseguiu –, Júpiter muito bom e muito grande ordena que vos detenhais e que retorneis ao combate.” E eles com efeito detiveram-se, como que obedecendo à voz dos céus. Rómulo voa para as primeiras filas. (8) Mécio Cúrcio, à cabeça dos Sabinos, descera da cidadela e perseguia os Romanos em debandada ao longo de todo o forum. Já nas proximidades da porta do Palatino, grita aos seus: “derrotámo-los, a estes pérfidos hospedeiros, a estes inimigos cobardes! Eles sabem agora que uma coisa é raptar jovens raparigas, outra coisa ter de combater contra homens”. (9) A esta orgulhosa apóstrofe, Rómulo cai sobre Mécio com um destacamento formado pelos mais bravos dentre os jovens. Mettius combatia então a cavalo, e era por isso mais fácil de repelir. Perseguem-no, e o restante exército romano, inflamado pela audácia do seu rei, carrega por sua vez sobre os Sabinos. (10) Mettius, cujo cavalo se assustou no tumulto da perseguição, é atirado para um paul. O perigo que cerca tão importante personagem atrai a atenção dos Sabinos. Uns chamam-no e tratam de lhe dar confiança, outros procuram encorajá-lo e Mécio consegue por fim escapar. O combate recomeça a meio do pequeno vale, mas também aqui a vantagem pertence aos Romanos.

XIII – (1) É então que as Sabinas, cujo rapto acendera aquela guerra, superando no seu desespero a natural timidez do seu sexo, se lançam intrepidamente, cabelos desgrenhados, vestes em desordem, entre os dois exércitos e, no meio da saraivada dos dardos, fazem cessar as hostilidades; acalmando os furores e (2) dirigindo-se quer a seus pais, quer a seus esposos, conjuram-nos a não se sujarem com o sangue para eles sagrado de um sogro ou dum genro, e a não marcarem com os estigmas do parricídio as frontes das crianças que elas já conceberam, as frontes dos seus filhos e dos seus netos. (3) “Se essa parentela, de que nós somos os laços, se os nossos matrimónios vos são odiosos, voltai contra nós a vossa cólera; nós, a fonte desta guerra, nós, a causa das feridas e do massacre dos nossos esposos e dos nossos pais, preferimos perecer a viver, sem vós, como viúvas e órfãs.” (4) E todos esses homens, sejam chefes ou soldados, se comovem, de súbito se apaziguando e emudecendo. Os chefes avançam para concluírem um tratado onde não só se celebra a paz como também a fusão dos dois Estados num só. Os dois reis partilham o império cuja sede é estabelecida em Roma. (5) Deste modo foi duplicada a potência de Roma. Mas, para que também aos Sabinos seja acordado um qualquer privilégio, os Romanos tomam, da cidade de Cures, o sobrenome de Quirites. Em testemunho deste combate, o paul no qual Cúrcio quase fora engolido com o seu cavalo passou a ser chamado de lacus Curtius.

(6) Uma paz tão oportuna, sucedendo de imediato a guerra tão deplorável, fez as Sabinas mais caras aos olhos dos seus maridos, de seus pais e, em particular, de Rómulo. Por isso, quando ele repartiu o povo em trinta cúrias, designou-as com os nomes dessas mulheres. O número destas era sem dúvida superior ao das cúrias, mas a tradição não nos diz se foi a sua idade, a sua posição social ou a dos seus maridos ou, enfim, o acaso, que decidiu na escolha dos nomes. (8) Naquela mesma época se criaram três centúrias de cavaleiros, denominadas: a primeira, Rhamnenses, de Romulus; a segunda, Titienses, deTitus Tatius; ignora-se a etimologia de Luceres, o nome da terceira centúria. A partir de então a soberania não somente passou a ser comum aos dois reis como também foi por eles exercida em perfeita harmonia.

 

As derradeiras guerras de Rómulo (Lavinienses, Veientes, Fidenates).

XIV – (1) Alguns anos depois, tendo certos parentes do rei Tácio maltratado os deputados dos Laurentinos, este povo exigiu reparação, invocando o direito das gentes. Mas o crédito e as solicitações dos agressores puderam mais junto deTatius, (2) fazendo com que a punição lhe recaísse sobre a própria cabeça. Havendo-se dirigido a Lavínio à celebração dum sacrifício solene, Tácio ali foi morto no meio de um tumulto. (3) Rómulo não mostrou nesta circunstância, ao que dizem, toda a dor devida, fosse porque partilhasse o trono de má vontade, fosse porque a morte de Tácio se lhe afigurasse justa. Nem sequer se chegou a tomar as armas; aconteceu apenas, de modo a que o ultraje recebido pelos deputados fosse expiado, terem Roma e Lavínio renovado o seu tratado.

(4) Mas essa paz pouca confiança inspirava. E uma outra tormenta, bem mais ameaçadora, logo rebentou quase às portas de Roma. A vizinhança desta cidade, cujo poderio crescia a cada dia, inquietava os de Fidena: sem esperar que ela viesse a cumprir tudo o que o futuro lhe parecia prometer, começam a fazer-lhe guerra. Armam a sua juventude e põem-na em campanha, devastando o território que se situa entre Roma e Fidena. (5) Dali, inflectindo à sua esquerda, dado que sobre a direita o Tibre lhes opunha obstáculo, prosseguem a sua marcha, semeando diante de si o terror e a desolação. Os habitantes dos campos fogem espavoridos e é a sua precipitada retirada para Roma que ali traz a notícia da invasão.

(6) A iminência do perigo não admitia qualquer demora. Rómulo, alarmado, faz sair o seu exército, vindo montar campo a cerca de uma milha de Fidena. (7) Deixando uma pequena guarda no local, retoma com todas as suas forças a marcha. Coloca parte delas em emboscada numa zona coberta de matas e avança com a maior parte da sua infantaria e com toda a cavalaria. Esse movimento, operado em aparente bravata e desordem, e as incursões da cavalaria até às próprias portas da cidade, atraíram os inimigos, que era o que Rómulo queria. As cargas de cavalaria tornaram mais convincente a fuga que os infantes foram incumbidos de simular. (8) Com efeito, enquanto os cavaleiros executam as suas manobras, fingindo hesitar entre o desejo de fugir e a honra do combate, a infantaria recua; logo os Fidenates abrem as portas da cidade, afluem à planície e lançam-se em massa sobre o exército romano, rechaçando-o diante de si; e assim, levados pelo ardor da encarniçada perseguição, tombaram na emboscada. (9) Os soldados romanos em cilada mostram-se repentinamente, caem sobre eles e apanham-nos pelo flanco; os Fidenates acobardam-se, e a reserva do campo romano, ao entrar por sua vez na luta, ainda mais lhes fez crescer o pavor. O pânico, que por todo o lado os castiga, mal deu tempo a Rómulo e à sua cavalaria de fazer meia-volta antes que eles empreendessem a fuga; (10) e como esta fuga é real, retornam à cidade em bem maior desordem e precipitação do que as que haviam posto a perseguir aqueles que não fugiam senão por artifício, (11) mas nem assim conseguem escapar do inimigo. Os Romanos empurram-nos, castigando-os com a espada nos rins, e antes que tivessem tempo de fechar as portas, vencedores e vencidos por ali entram todos juntos, como se não formassem mais que um só exército.

XV – (1) Dos Fidenates, o fogo da guerra alastrou-se aos de Veii, que, descendendo tal como aqueles dos Etruscos, estavam ligados à sua causa pela comunidade de origem, assim como pela ira da sua derrota; acresce que viam com temor a mera proximidade duma cidade cujas armas podiam vir a ameaçar todos os vizinhos. Dirigiram-se pois às suas fronteiras, mais para ali se entregarem à pilhagem do que para fazer guerra em regra. (2) Por essa razão não se fortificam em nenhuma parte, não esperam o exército romano e, carregados do despojo, retornam a Veios. Os romanos, deparando com o terreno já livre, dispõem-se no entanto a provocar um combate decisivo; cruzam o Tibre e erguem o seu campo. (3) À notícia dos seus preparativos e de que marcham sobre a cidade, os Veientanus saem-lhes ao encontro. Pareceu-lhes preferível resolver a querela em batalha a terem de refugiar-se por detrás das muralhas, vendo-se desse modo obrigados a combater pelos seus próprios lares.

(4) Nestas circunstâncias, Rómulo, desdenhando do emprego da astúcia, venceu somente com a ajuda das suas tropas, já veteranas na arte da guerra. Perseguiu os batidos Veientes até junto das suas muralhas, mas não lhes tentou assediar a cidade, duplamente fortificada pela posição e pelos muros. Retornou sobre os seus passos e devastou o país, mas mais para deitar mão das represálias que pelo amor do saque. (5) Estas devastações, acrescentadas à derrota na batalha, completaram a ruína dos Veientanus. Enviam deputados a Roma a propor a paz e é-lhes acordada uma trégua de cem anos, mas a preço de uma parte do seu território.

 

A morte de Rómulo.

XV – (6) Estes foram, no essencial, os acontecimentos militares e políticos do reinado de Romulus. Eles são assaz conformes com a opinião que defende a divindade da origem deste rei e com o que foi escrito a propósito das milagrosas circunstâncias que se seguiram à sua morte. Nada desmente tal opinião, sobretudo se considerarmos os seus porfiados esforços na reposição de seu avô no trono, o seu portentoso desígnio de erguer a nova cidade e a sua habilidade em torná-la poderosa pelo partido que soube tirar tanto da paz como da guerra. (7) Essa força, que recebeu do seu fundador, Roma soube usá-la tão bem que após os seus primeiros progressos e pelo espaço de tempo de quarenta anos a sua tranquilidade jamais se viu perturbada. (8) Romulus foi no entanto mais querido do povo que do senado, sendo sobretudo admirado pelos soldados. Escolheu três centos, a que chamava Celeres, para sua guarda pessoal, e sempre os conservou consigo, tanto no decurso da paz como em tempos de guerra.

XVI – (1) Após estes imortais trabalhos, quando um dia assistia a uma assembleia para proceder ao recenseamento do exército, num local próximo do paul da Cabra, sobreveio de repente uma tempestade, acompanhada pelo estrondear dos trovões, e o rei, envolvido num vapor espesso, foi furtado ao olhar de todos. Depois disso não mais reapareceu sobre a terra. (2) Quando o assombro se esvaneceu, quando à obscuridade profunda sucedeu um dia tranquilo e límpido, o povo romano, ao ver deserto o lugar ocupado por Rómulo, mostrou-se pouco disposto a crer no testemunho dos senadores; estes, que se encontravam mais próximos do rei, afirmavam que durante a tempestade este fora levado para o céu. Entretanto, como a ideia de se ver para sempre privado do seu rei o enchesse de terror, o povo manteve por algum tempo um sombrio silêncio. (3) Mas por fim, arrastados pelo exemplo de alguns, todos em unânimes aclamações saúdam Rómulo como deus e filho de deus, rei e pai da urbe romana. Rogam-lhe e conjuram-no para que jamais deixe de lançar um olhar propício sobre a sua posteridade. (4) Suponho que não seriam então poucos os que em surdina acusavam os senadores de haverem despedaçado Rómulo com as suas próprias mãos; esse rumor espalhou-se, porém sem nunca adquirir grande consistência. A admiração que Rómulo inspirava e o assombro do momento acabariam por consagrar a versão fantástica daquela primeira tradição.

(5) Acresce que o anúncio de uma revelação veio ajudar a fortalecer esta crença. Enquanto a inquieta Roma deplorava a morte do rei e deixava transparecer a sua ira contra os senadores, Proculus Julius, de autoridade muito respeitada, ao que dizem, mesmo no que concerne a facto de tão extraordinária natureza, avançou até ao centro da assembleia e disse: (6) “Romanos, o pai desta cidade, Romulus, descendo subitamente dos céus, manifestou-se-me esta manhã ao levantar do dia. Estarrecido pelo terror e o respeito, deixei-me ficar imóvel, dele tentando obter, pelas minhas preces, que me fosse permitida a contemplação do seu rosto: (7) «Vai, disse ele, anunciar aos teus concidadãos que esta cidade por mim fundada, a minha Roma, será a rainha do mundo; tal é a vontade do céu. Que os Romanos se entreguem pois por inteiro à ciência da guerra; que eles saibam, e depois deles os seus descendentes, que nenhuma potência humana jamais poderá resistir às armas de Roma.” E a estas palavras – prosseguiu Próculo – elevou-se nos ares. (8) É espantoso que tão facilmente se tenha dado fé a semelhante discurso, e também quanto a convicção na imortalidade de Romulus foi capaz de atenuar o pesar do povo e do exército.

 

4. Numa Pompílio (I; 17-21).

O primeiro interregnum e o advento de Numa Pompilius.

XVII – (1) Entretanto o senado agitava-se na ambição do trono e nas rivalidades. Ninguém dentre este novo povo gozava então duma reconhecida superioridade: as pretensões ainda não se haviam conseguido sobrelevar do seio dos cidadãos. A questão punha-se entre as duas raças do povo. (2) Os Sabinos de origem, que após a morte de Tácio não haviam tido rei da sua nação, e que, nessa sociedade fundada sobre a igualdade de direitos, temiam vir a perder a parte deles que concernia ao imperium, exigiam que o rei fosse eleito no corpo dos Sabinos. Os velhos Romanos, por seu lado, repeliam a ideia dum rei que lhes fosse estranho. (3) No entanto este conflito de vontades não impedia os cidadãos de continuarem a querer unanimemente o governo monárquico; ignorava-se então a doçura da liberdade. (4) Mas esta cidade sem governo, este exército sem chefe, rodeados por uma multidão de pequenos Estados em permanente fermentação, faziam temer aos senadores o ataque imprevisto de um qualquer povo estrangeiro. Sentiam a necessidade de um chefe, nenhum deles todavia se dispondo a ceder.

(5) Por fim foi convencionado que os senadores, em número de cem, se repartiriam em dez decúrias, cada uma delas devendo conferir a um dos seus membros o exercício da autoridade. O poder dos dez era colectivo, mas só um levava as insígnias do imperium e caminhava precedido pelos lictores. (6) Alternando-se, cada indivíduo permanecia no cargo por cinco dias. A realeza foi assim suspensa por um ano e deu-se a essa vacatura o nome de interregnum, ainda hoje em uso. (7) O povo, então, lastimava-se vivamente por lhe haverem agravado a servidão, e de em lugar dum senhor ter agora cem. Mostrava-se decidido a não mais ser governado senão por um rei, e um que fosse da sua própria escolha. (8) Perante as disposições do ânimo popular, os senadores acharam por bem resignar voluntariamente dos poderes que lhes estavam prestes a ser arrancados. (9) Mas, ao abandonarem ao povo o poder soberano, retiraram-lhe de facto mais do que aquilo que lhe concediam, pois subordinaram a eleição do rei pelo povo à ratificação do senado. Essa usurpada prerrogativa foi perpetuada pelo senado até aos nossos dias, quer na sanção das leis, quer nas nomeações para os cargos da magistratura; porém, na actualidade, não passa duma vã formalidade: pois antes que o povo vá a votos já o senado ratificou a decisão dos comícios, qualquer que ela venha a ser.

(10) Mas, voltando àquela época, o interrex convocou a assembleia, e disse: “Romanos, em nome da glória, do bem-estar e da prosperidade de Roma, nomeai vós mesmos o vosso rei: tal é o voto do senado. Nós, de seguida, se derdes a Romulus um sucessor que seja dele digno, ratificaremos a vossa escolha.” (11) O povo, tão encantado se sentiu com a atitude complacente dos senadores que, para não lhes ficar atrás na generosidade, contentou-se em ordenar que a eleição fosse deferida ao senado.

XVIII – (1) Naqueles tempos viveu Numa Pompílio, famoso pela sua justiça e piedade. Residia em Cures, entre os Sabinos. Para o seu século, era um homem muito versado no conhecimento da moral divina e humana. (2) É erradamente que lhe atribuem por mestre Pythagoras de Samos. Em geral aceita-se que foi nos tempos do reinado de Servius Tullius, mais de cem anos depois de Numa, que Pitágoras veio à extrema da Itália, nas vizinhanças de Metapontum, deHeraclea e de Croton, a fim de orientar uma escola para jovens, devotada ao culto das suas teorias. (3) E mesmo admitindo que ele haja sido contemporâneo de Numa, em que lugares poderia ele então aliciar homens que fossem animados da paixão por se instruírem ? Por qual via a fama do seu nome haveria chegado até aos Sabinos ? Que idioma lhe servia à comunicação? E como, enfim, um homem só poderia ter cruzado tantas nações, tão diversas em costumes e linguagens? (4) Diversamente, eu penso que Numa há-de ter extraído de si mesmo os princípios da virtude que lhe regulavam a alma, e que o complemento da sua educação terá sido menos resultado de estudos em escolas filosóficas estrangeiras que da disciplina varonil e rigorosa dos Sabinos, a mais austera nação da antiguidade.

(5) Proposto o nome de Numa, e se bem que a eleição de um rei dentre a nação Sabina pudesse vir dar a preeminência a esse povo, ninguém dentre os senadores romanos ousou preferir-lhe o de outrem, nem o seu nem o de um qualquer outro de seu partido, fosse ele senador ou cidadão, e todos, sem excepção, outorgaram a coroa a Numa Pompilius. (6) Chamado a Roma, quis, a exemplo de Rómulo – que não lançara as fundações da cidade nem iniciara o seu reinado sem antes consultar os áugures –, interrogar os deuses sobre a sua eleição. Um áugure, que ficou devendo a tão elevada honra o privilégio de conservar o sacerdócio público em perpetuidade, conduziu Numa ao monte Capitolino. Ali, o áugure fez o novo rei sentar-se sobre uma pedra, com a face virada para sul, (7) e ele próprio, de cabeça velada e tendo na mão um bastão recurvado, sem nós, chamado lituus, tomou o lugar à sua esquerda. Então, espraiando o seu olhar pela cidade e os campos em redor, dirigiu aos deuses as suas preces; traçou em pensamento limites imaginários ao espaço compreendido entre o oriente e o ocidente, com a sua direita a sul e a esquerda a norte; (8) depois, tão longe quanto a vista se podia estender, designou, à sua frente, um ponto imaginário. Por fim, tomando o lituus na mão esquerda e colocando a direita sobre a cabeça de Numa, pronunciou esta prece: (9) “Grande Júpiter, se é da vontade divina que Numa, a quem eu toco a testa, reine sobre os Romanos, faz-nos conhecê-lo por sinais não equívocos no espaço que acabo de demarcar.” (10) Definiu de seguida a natureza dos auspícios que solicitava e, logo que eles se manifestaram, Numa, já declarado rei, deixou então otemplum.

 

A obra de Numa.

XIX – (1) Doravante senhor do trono, Numa quis que a nascente cidade, fundada pela violência e as armas, o fosse de novo na justiça, pelas leis e a santidade dos costumes. (2) E como lhe parecesse impossível obter, em meio a perpétuas guerras, que a nova ordem das coisas pudesse ser aceite por espíritos a quem o ofício das armas tanto alimentara a ferocidade, achou que devia começar por adoçar esse instinto feroz, privando-o gradualmente do seu costumeiro alimento. Com tal propósito se ergueu o templo de Janus. Este templo, construído na parte baixa do Argiletum, tornou-se o símbolo da paz e da guerra. Se aberto, significava que os cidadãos podiam ser chamados a pegar em armas; quando encerrado, anunciava que a paz reinava entre todas as nações vizinhas. (3) Após o reinado de Numa, por duas vezes permaneceu encerrado: a primeira, no consulado de Titus Manlius, a seguir à primeira guerra púnica; a segunda, sob César Augusto, quando em resultado da magnanimidade dos deuses podemos ver, após a batalha de Actium, a paz reinar sobre o mundo, quer na terra quer no mar.

(4) Quando, pois, Numa o encerrou, quando por tratados e alianças consumou a união entre Roma e os povos circunvizinhos, quando foram dissipadas as inquietudes a respeito do hipotético retorno de um qualquer perigo exterior, teve então de recear a perniciosa influência da ociosidade em homens que o temor do inimigo e os hábitos da guerra até ali haviam contido no dever. Logo lhe acudiu à ideia que o processo mais fácil de amenizar os rudes costumes da multidão, e de lhe dissipar a ignorância, haveria de passar por versar-lhes nas almas o profundo sentimento do temor aos deuses. (5) Mas um tal propósito não podia ser alcançado sem uma intervenção miraculosa. Numa fingiu por isso manter encontros nocturnos com a deusa Egeria. Afirmava, de seguida, que era em obediência às ordens da deusa que instituía aquelas cerimónias religiosas mais ao agrado dos deuses, bem como um sacerdócio particular a cada um deles.

(6) Antes do mais, Numa dividiu o ano segundo os cursos da lua em doze meses; mas porque cada revolução lunar não se apresenta na regularidade de trinta dias, e como em consequência o ano solar ficasse incompleto, supriu essa lacuna pela interposição de meses intercalares; e dispô-los de modo a que todos os vinte e quatro anos, encontrando-se o sol no mesmo ponto donde havia partido, cada lacuna anual fosse preenchida. (7) Estabeleceu ainda os diasfastosnefastos, porque já pressentisse ser por vezes conveniente suspender a vida política.

XX – (1) Tratou depois de instituir os sacerdócios, e se bem que ele próprio se houvesse encarregue de exercer a maioria das funções de que hoje em dia se ocupa o flâmine de Júpiter, (2) prevendo porém que esta belicosa cidade haveria de contar mais príncipes semelhantes a Rómulo do que a Numa, príncipes que fazem a guerra e a conduzem com as suas próprias pessoas, e também por receio de que as funções de rei viessem a perturbar os seus deveres de sacerdote, criou um flamen, dando-lhe por missão que jamais abandonasse os altares de Júpiter, revestiu-o de insígnias augustas e conferiu-lhe a cadeira curul, idêntica àquela que pertence aos reis. Somou a este dois outros flâmines, um consagrado a Marte e o outro a Quirino. (3) Fundou de seguida o colégio das Vestais, sacerdócio tomado dos Albanos e de modo algum estranho à família do fundador de Roma. Atribuiu-lhes um rendimento estatal, a fim de as ligar para sempre e de um modo exclusivo às necessidades do seu ministério; o voto de virgindade e outras distinções honoríficas vieram completar o carácter venerável e sagrado do seu estatuto. (4) Instituiu ainda, em honra de Mars Gradivusdoze sacerdotes, com o nome de Salii; deu-lhes por insígnias a túnica bordada e recoberta, no peito, com uma couraça de bronze; tinham por funções o transporte dos escudos sagrados a que chamamosancilia, e de correr pela cidade cantando versos e executando danças e movimentos do corpo dedicados a essa particular solenidade. (5) Nomeoupontífice máximo Numa Marcius, filho de Marcus, senador, cofiando-lhe a tutela de tudo o que respeitava à religião. Por meio de regulamentação consignada em documentos especiais, Numa conferiu-lhe as prerrogativas de dirigir as cerimónias religiosas, de determinar a natureza das vítimas, a que dias e em que templos elas deviam ser imoladas, quais os fundos que haviam de suportar todas essas despesas (6) e, por fim, a jurisdição sobre todos os sacrifícios celebrados, fossem-no publicamente ou na intimidade das famílias. Deste modo o povo sabia onde colher a luz, e a religião não corria o risco de se ver ofendida pelo esquecimento dos ritos nacionais e a introdução de rituais estrangeiros. (7) O grande pontífice não regulava apenas os sacrifícios aos deuses do céu, mas também os que se faziam aos deuses manes, e as cerimónias fúnebres, e distinguia ainda, dentre os prodígios anunciados pelo relâmpago e por outros fenómenos, aqueles que era necessário expiar. Para obter dos deuses o conhecimento de tais segredos, Numa dedicou, sobre o monte Aventino, um altar a Jupiter Elicius, e consultava o deus, através dos áugures, a respeito dos prodígios que fossem dignos de atenção.

XXI – (1) Essas expiações, essa íntima aproximação entre o povo e os ministros da religião, essa nova tendência dos espíritos para os exercícios piedosos, levaram a que a multidão abandonasse os hábitos da violência e as armas; e a constante solicitude dos deuses, que pareciam intervir na direcção dos destinos humanos, penetrou os corações duma tão viva piedade que a fé e a religião dos juramentos, na falta do temor das leis e das punições, haveriam sido bastantes para manter na disciplina os cidadãos de Roma. (2) Todos, de resto, regiam os seus costumes pelos que viam a uso em Numa, que tomavam por seu único exemplo; também os povos vizinhos, que até ali haviam olhado Roma, não como uma cidade, mas como um acampamento militar que viera encravar-se no seu seio para lhes turvar a tranquilidade geral, sentiram-se pouco a pouco tomados por ela duma tal veneração que teriam considerado como um sacrilégio a mínima hostilidade contra essa cidade por inteiro dedicada ao serviço dos deuses.

(3) Em mais de uma ocasião, sem qualquer testemunha, e como que se ali se dirigisse a conferenciar com a deusa, Numa retirava-se para um bosque, atravessado por uma nascente de águas inexauríveis brotando do fundo duma obscura gruta. Esse bosque foi por ele consagrado às Camenae, porque ali tinham conselho com a sua esposa Egéria. (4) A Boa Fé também teve um templo a ela exclusivamente consagrado. Numa ordenou que os sacerdotes deste templo aí fossem transportados num carro coberto, tirado por dois cavalos, e que eles usassem, durante as cerimónias, a mão coberta até aos dedos, querendo com isso significar que a boa fé deve ser protegida e que a mão é dela o símbolo e a sede. (5) Instituiu ainda muitos outros sacrifícios, e os locais destinados à sua celebração receberam dos sacerdotes o nome de Argei. Mas a mais formosa, a maior das suas obras, foi a de haver conseguido manter, ao longo de todo o seu reinado, a paz e a solidez das suas instituições. (6) Assim estes dois reis engrandeceram sucessivamente a urbe romana, um pela guerra, o outro pela paz. Rómulo reinara durante trinta e sete anos, Numa por quarenta e três. Roma era agora poderosa e as artes de que ela era simultaneamente devedora, as da paz e as da guerra, haviam-lhe aperfeiçoado a civilização.

 

5. Tulo Hostílio (I; 22-31).

Advento de Tullus Hostilius. A declaração de guerra a Alba.

XXII – (1) À morte de Numa sucedeu-se um interregnum. Mas depois o povo elegeu rei Tullus Hostilius, neto daquele Hostílio que se ilustrara contra os Sabinos, no combate junto à cidadela. E o senado ratificou-lhe a eleição. (2) Este princeps, longe de apresentar qualquer semelhança com o seu predecessor, era de natureza ainda mais belicosa que Rómulo. A sua juventude, o seu vigor e a glória de seu avô estimulavam-lhe os ânimos. Convencido de que um Estado se enfraquece na inacção, por todos os meios procurou o pretexto para a guerra.

(3) Quis o acaso que os camponeses de Roma e Alba se entregassem, alternadamente, a depredações recíprocas. (4) Alba era então governada porCaius Cluilius. Cada um dos dois partidos enviou, quase em simultâneo, embaixadores a exigir reparação. Tullus ordenara aos seus que, antes do mais, tratassem de expor as suas reclamações; esperava uma recusa da parte dos Albanos, o que lhe forneceria um legítimo pretexto para a guerra. (5) Os Albanos foram mais lentos na negociação. Acolhidos por Tullus, recebidos à sua mesa, entretiveram-se a rivalizar com o princeps em delicadeza e cortesia. Enquanto isso, os deputados romanos apresentavam as suas reclamações, e, perante a recusa dos Albanos, declaravam-lhes a guerra para o ulterior trigésimo dia. Túlio é disso informado. (6) Convoca de seguida a uma conferência os deputados de Alba e pede-lhes que se expliquem sobre a razão da sua viagem. Estes, não conhecendo ainda o que se havia passado, e no intuito de ganharem tempo, alegam algumas escusas vãs: “Que é bem contra a sua vontade que se expõem ao desagrado de Tullus, mas que, porém, se vêm obrigados a submeter-se ao império das instruções recebidas. Vêm reclamar a restituição do que lhes foi tomado, e, não o obtendo, têm ordens para declarar a guerra.” (7) A isto Túlio respondeu : "Anunciai então ao vosso rei que o rei dos Romanos atesta, perante os deuses, que aquele dos dois povos que houver sido o primeiro a desdenhar satisfação às petições dos deputados da contraparte será o responsável pelas funestas consequências desta guerra.”

XXIII – (1) Os Albanos levaram aos seus esta resposta. Dos dois lados se preparam com ardor para a guerra. O conflito tinha todo o carácter duma guerra civil, pois que punha frente a frente, por assim dizer, os pais e os filhos. Os dois povos eram de sangue troiano; Lavínio recebera a sua origem de Tróia; Alba, deLavinium; e os Romanos descendiam dos reis de Alba. (2) Contudo o desfecho da guerra fez menos injuriosa a querela. Não se chegou a combater em ordem de batalha; apenas se destruíram as habitações de uma das duas cidades, e a fusão operou-se entre os dois povos.

(3) Os Albanos foram os primeiros a invadir, com um formidável exército, o território de Roma. O seu acampamento não distava da cidade cinco milhas; haviam-no rodeado com um fosso, o qual por vários séculos foi chamado pelo nome do seu chefe, “o fosso de Cluílio”, até que o tempo veio a fazer desaparecer tanto a coisa designada como o nomen. (4) Havendo Cluílio ali morrido, os Albanos nomearam ditador Mettius Fuffetius. Mas o fogoso Tulo, cuja audácia se acrescentara com a morte de Cluilius, por toda a parte anuncia que a vingança dos deuses, após primeiramente se ter manifestado sobre a pessoa do chefe, já ameaça punir, pelo crime dessa guerra ímpia, todo aquele que possua o nome Albano. Depois, a favor da noite, rodeando o campo inimigo, invade por sua vez o território de Alba. (5) Este golpe inesperado fez com que Métio saísse do seu reduto. Aproximando-se o mais possível do inimigo, envia aTullus um emissário, instruindo-o para que explique ao rei quão benéfica lhes seria a realização duma entrevista antes do desencadear de qualquer acção; que se acordar em concedê-la, ele, Mettius, lhe apresentará propostas de interesse para ambas as partes, Roma e Alba. (6) Tulo não se recusou ao encontro, se bem que dele pouco esperasse, e dispôs o seu exército em batalha. O mesmo movimento se efectua entre os Albanos.

O general albano toma então a palavra : (7) "Os ataques iníquos – diz ele – e o despojo tomado contra a fé dos tratados, reclamado e não devolvido, são as causas desta guerra. São estas, pelo menos, as que eu ouvi enumerar a nosso rei Cluílio, e aquelas que, sem dúvida, tu próprio reproduzirás, ó Tulo! Mas, sem recorrer a enganosas razões, e para aqui declarar a verdade, eu digo que apenas a cupidez armou, um contra o outro, dois povos vizinhos, dois povos unidos pelos laços do sangue. (8) Se fazemos bem ou mal, é assunto que não quero decidir; é cuidado que diz respeito aos autores da querela. Mas quanto a esta guerra, como chefe dos Albanos, devo sustentá-la. Desejo todavia, Tullus, submeter a teu juízo uma simples opinião. Estamos rodeados, tu tal como os meus, pela nação etrusca; o perigo é grande para todos, até mesmo maior para vocês; e vós sabei-lo tão bem quanto lhe sois mais vizinhos. Os Etruscos são todo-poderosos em terra e mais ainda no mar. (9) Lembra-te que na hora em que deres o sinal de combate, esse povo, de olhos postos nos dois exércitos, apenas terá de esperar pelo momento em que estivermos ambos desgastados e enfraquecidos para de seguida atacar, ao mesmo tempo, vencedor e vencido. Dado que em lugar de nos contentarmos com uma assegurada liberdade, queremos correr os riscos da servidão ao ambicionar a conquista duma dominação incerta, então, em nome dos deuses, encontremos um meio que, sem sério dano para os dois povos, e sem efusão de sangue, possa enfim decidir qual deles há-de comandar o outro.” (10) Tullus, malgrado a esperança de vitória o tornar quase intratável, no entanto anuiu à proposta. E aconteceu que, enquanto os dois chefes buscavam aquele tal meio para a resolução da contenda, a sorte tomou sobre si o encargo de o fornecer.

 

A conclusão do primeiro tratado e o combate entre HoratiiCuriatii.

XXIV – (1) Quis o acaso que houvesse, em cada um dos dois exércitos, três irmãos gémeos, quase da mesma robustez e idade. Eram eles os Horácios e os Curiáceos. Que eram estes os seus nomes é em geral reconhecido, e, nos relatos dos anais da antiguidade, poucos serão os feitos tão ilustres capazes de se lhes igualar. Contudo, nem mesmo essa fama pôde prevalecer contra certa incerteza que ainda hoje subsiste, a de saber qual a nação dos Horácios, qual aquela a que pertenciam os Curiáceos. Sobre este assunto os autores variam. Todavia encontro um maior número a fazer dos Horácios Romanos; e eu também me inclino para esta opinião. (2) Cada um dos dois reis encarrega, pois, três irmãos gémeos de combater pela respectiva pátria. A quem pertencer a vitória, pertencerá também o império. Essa condição é aceite e convenciona-se a data e o local do combate. (3) Previamente, um tratado, contendo aquela cláusula principal, fora concluído entre Romanos e Albanos: aquele que dos dois povos saísse vencedor haveria de exercer sobre o vencido um império brando e moderado.

Em todos os tratados, se as condições variam, a fórmula é todavia a mesma. (4) Dou de seguida o mais antigo registo que nos há sido transmitido de um acto dessa espécie. O fetialis, dirigindo-se a Tulo, disse-lhe: “Rei, ordenas-me tu que conclua um tratado com o pater patratus do povo albano?” E como o rei lhe respondesse afirmativamente, acrescentou: “Peço-te a erva sagrada.” “Toma-a pura”, retorquiu-lhe Tulo. (5) Após o que o fecial trouxe da cidadela a erva pura e, voltando a dirigir-se a Tullus, lhe perguntou: “Rei, nomeias-me tu intérprete da tua real vontade e da que é a do povo romano, os Quirites? Concedes-me tu os vasos sagrados e os homens que me acompanham?” “Sim – respondeu o rei –, sem prejuízo do meu direito e do que é do povo romano.”

(6) O fecial era Marcus Valerius; ele fez de Spurius Fusius o pater patratus, ao tocar-lhe na cabeça e nos cabelos com a verbena. O pater patratus prestou o juramento e sancionou o tratado. Empregou, para o efeito, uma longa série de fórmulas consagradas, que é inútil reproduzir aqui. (7) Lidas as condições do convénio, o fecial continuou: “Escuta, ó Júpiter, escuta, pater patratus do povo albano, e escuta também tu, ó povo albano. O povo romano jamais será o primeiro a violar estas cláusulas e as leis. As condições inscritas nestas tabuinhas e sobre esta cera acabaram de vos ser lidas, da primeira à última delas sem astúcia nem mentira. Elas tornam-se, a partir de hoje, bem conhecidas de todos. Ora, não será o povo romano quem primeiro delas se afaste. (8) Porém, se vier a acontecer que, por deliberação pública ou por infames subterfúgios, ele em primeiro lugar as infrinja, nesse caso, ó grande Júpiter, fere o povo romano como eu vou ferir hoje este porco; e fere-o com tanto mais rigor quão maior é a tua potência e a tua força.” (9) Findando ali a sua imprecação, feriu depois o porco com um seixo. Por sua vez, os Albanos, através do seu ditador e dos seus sacerdotes, repetiram aquelas mesmas fórmulas e pronunciaram um idêntico juramento.

XXV – (1) Concluído o tratado, os três irmãos de cada um dos campos tomam as suas armas, conforme o que fora convencionado. Os brados dos seus concidadãos animam-nos. Os deuses da pátria, a própria pátria, todos os cidadãos que a cidade e o exército comportam têm os olhos fixos ora nas suas armas, ora nos seus braços. Já inflamados pela natural coragem, e inebriados pelo clamor de tantas vozes que os exortam, eles avançam de entre os dois exércitos. (2) Estes haviam-se postado junto dos seus acampamentos, ao abrigo do perigo, porém não do medo. Pois que se tratava de decidir o império, entregando-o à coragem e à fortuna de um bem pequeno número de combatentes. Todos, de espírito carregado e como que em suspenso, esperam ansiosamente pelo início de um espectáculo que pouco agradável lhes é de ver. (3) O sinal é dado. Os seis campeões lançam-se na batalha com todo o ímpeto de um exército, de gládios desembainhados, transportando no coração a bravura de duas grandes nações. Todos os seis, indiferentes ao perigo da própria vida, não têm diante dos olhos senão o triunfo ou a servidão, que este há-de ser o futuro da sua pátria, cuja fortuna será aquela que eles lhe venham a alcançar.

(4) Ao primeiro choque entre os guerreiros, ao primeiro tinido de armas, desde que se viram cintilar as espadas, um profundo horror tomou conta dos espectadores. De uma parte e doutra, a incerteza gelou as vozes e fez suster as respirações. (5) Um instante, e já os combatentes se confundem; já não é o movimento dos corpos, não é mais a agitação das armas nem já os golpes equívocos, mas os ferimentos, mas sim o sangue a espantar os olhares. Dos três Romanos, um após o outro, dois tombam mortos; os três Albanos estão feridos. (6) À queda dos dois Horácios, o exército albano lança gritos de júbilo; e os Romanos, perdida a esperança, mas não o desassossego, fixam o seu consternado olhar sobre o derradeiro Horácio, que os três Curiáceos rodeiam.

(7) Por um feliz acaso ele não fora ferido. Em demasia fraco contra os três inimigos reunidos, mas, no entanto, ainda mais temível para cada um deles em combate de homem a homem, empreende a fuga para lhes dividir o ataque, convencido de que hão-de vir no seu encalço com o grau de ardor que os ferimentos a cada um permitam. (8) Afastara-se um pouco do local do combate, quando, virando a cabeça, viu, com efeito, que os adversários o perseguiam a distâncias muito desiguais, e que um só o acossava de perto. Volta-se então e cai em fúria sobre este. (9) O exército albano brada aos Curiáceos que acudam a seu irmão; mas, já vencedor, Horácio corre a um segundo combate. Então um grito, tal como o que uma inesperada felicidade pode arrancar, parte das fileiras do exército romano; o guerreiro anima-se a esse grito, precipita-se no combate (10) e, sem dar ao terceiro Curiáceo tempo de se aproximar, acaba com o segundo.

(11) Restavam apenas dois, iguais nas sortes do combate, mas não na confiança nem pelas forças. Um, sem feridas e orgulhoso da dupla vitória, marcha seguro de si ao terceiro combate; o outro, esgotado pelo seu ferimento, cansado da corrida, mal se consegue arrastar, e, vencido de avanço pela morte dos irmãos, estende a garganta ao gládio do vencedor. Não foi sequer um combate. (12) Transportado de júbilo, o Romano exclama: “Acabo de imolar dois aos manesdos meus irmãos; este, é à causa desta guerra, é, enfim, para que Roma comande os Albanos, que eu o sacrifico.” Curiáceo mal podia suster as suas armas. Horácio mergulha-lhe a espada na garganta, derruba-o e despoja-o.

(13) Os romanos acolhem o vencedor e rodeiam-no em triunfo, com tanto maior júbilo quanto haviam sido os que mais haviam tido a temer. Cada um dos dois povos tratou em seguida de enterrar os seus mortos, mas com sentimentos bem díspares. Um conquistava o imperium, o outro passava a ter de sofrer a dominação estrangeira. (14) Ainda hoje se podem ver os túmulos destes guerreiros, no local onde cada um tombou; os dois Romanos, juntos, e mais próximos de Alba; os três Albanos, do lado de Roma, com alguma distância entre si, tal como haviam combatido.

XXVI – (1) Mas antes que se separassem, Mettius, nos termos do tratado, pergunta a Tullus o que este ordena. “Que tu tenhas a juventude albana prestes em armas – respondeu Tulo –, usá-la-ei contra os Veientanus, se com eles tiver guerra.” De seguida os dois exércitos retiraram-se.

 

Horácia e o processo de perduellio.

XXVI – (2) Horácio, carregado com o seu triplo troféu, marchava à cabeça dos Romanos. Sua irmã, que era noiva de um dos Curiáceos, encontra-o à sua passagem, perto da porta Capena; e reconhece, aos ombros do irmão, a cota de armas de seu amado, que ela própria por suas mãos tecera; então, arrancando os cabelos, ela reclama por seu noivo e chama-o com a voz sufocada pelos soluços. (3) Indignado por ver as lágrimas duma irmã a insultar o seu triunfo e turvar a alegria de Roma, Horácio puxa da sua espada e trespassa com ela a jovem, ao mesmo tempo que a cobre de imprecações: (4) “Vai – diz-lhe ele – com o teu néscio amor juntar-te ao teu prometido, tu que esqueces os teus irmãos mortos e aquele que te resta, e a tua pátria. Pereça assim toda a Romana que ouse chorar a morte de um inimigo.”

(5) Este assassinato revoltou o povo e o senado. No entanto o brilho da vitória de Horácio mostrou-se capaz de lhe atenuar o horror. Não obstante, Horácio foi levado perante o rei e acusado. Este, receando assumir pessoalmente a responsabilidade por um julgamento cujo rigor haveria de sublevar a multidão, e temendo ainda mais provocar o suplício que se havia de seguir ao julgamento, convoca a assembleia do povo: “nomeio – disse –, em conformidade à lei,duumviri para julgar o crime de Horácio.” (6) A lei era duma horrível severidade: “Que os duúnviros julguem o crime – prescrevia ela –; se houver apelo do julgamento, que haja pronúncia sobre o apelo. Se a sentença for confirmada, que a cabeça do culpado seja velada, que o suspendam da infeliciarbori e que o fustiguem com as vergastas no recinto ou fora do recinto das muralhas." (7) Os duúnviros, de acordo com a fórmula da lei, não se sentiam sequer com poderes para absolver um inocente, pela lei de antemão condenado. “Publius Horatius, diz um deles, eu declaro que tu hás merecido a morte. Vai, lictor, e ata-lhe as mãos.” (8) O lictor avança; e já ele lhe faz correr a corda pelas mãos, quando, a conselho de Tullus, intérprete clemente da lei, Horácio exclama: “Eu faço apelo!”

A causa é então deferida ao povo. (9) Todos se haviam comovido, sobretudo após ouvirem o velho Horácio clamar que a morte da filha fora justa; que doutro modo haveria sido ele próprio, em virtude da autoridade paternal, o primeiro a atentar contra seu filho; e suplicava aos Romanos, que ainda na véspera o haviam visto pai de uma tão bela família, que não o privassem de todas as suas crianças. (10) Depois, abraçando o filho e mostrando ao povo os despojos dos Curiáceos, suspensos no local que ainda hoje se chama o “Pilar de Horácio”: “Romanos – disse –, aquele que vós ainda há pouco víeis com admiração caminhar no vosso meio, triunfante e paramentado de ilustres despojos, sereis capazes de o ver amarrado a um infame poste, batido pelas vergastas e supliciado? Quando nem mesmo os próprios Albanos haveriam de suportar tão pavoroso espectáculo!? (11) Vai, lictor, ata essas mãos que acabam de nos dar o império; vai, cobre dum véu a cabeça do libertador de Roma; suspende-o da árvore fatal; fere-o, na cidade se assim o desejas, contanto que o faças diante desses troféus e desses despojos; fora da cidade, desde que seja por entre os túmulos dos Curiáceos. A que lugar podereis vós conduzi-lo onde os monumentos da sua glória não se ergam contra o horror do seu suplício?”

(12) Os cidadãos, vencidos pelas lágrimas do pai e pela intrepidez do filho, que mostrava a todos os perigos uma igual indiferença, pronunciaram-se pela absolvição do culpado; mas essa graça foi-lhes arrancada mais pela admiração que a sua coragem inspirava do que pela bondade da sua causa. Entretanto, para que um crime tão notório não ficasse sem expiação, obrigaram o pai a resgatar o filho com o pagamento de uma multa. (13) Após alguns sacrifícios expiatórios, de que a família dos Horácios guardou desde aí a tradição, o ancião fez atravessar na rua um esteio, espécie de jugo sob o qual fez passar o filho com a cabeça velada. Esse esteio, conservado e entregue em perpetuidade aos cuidados da república, ainda hoje existe. Chamam-lhe o “Esteio da Irmã”. A Horácia, foi-lhe erguido um túmulo em pedra talhada, no sítio onde lhe desferiram o golpe mortal.

 

A guerra contra Veii e a traição de Mettius Fuffetius.

XXVII – (1) A paz com os Albanos não foi de longa dura. O ditador não teve firmeza bastante para resistir à ira do povo, que o censurava por haver abandonado a apenas três guerreiros a sorte do Estado; como este sucesso lhe houvesse defraudado os bons intentos, recorreu então à perfídia para recuperar o favor do povo. (2) Tal como havia procurado a paz na guerra, agora procurava a guerra na paz. Vendo nos seus mais coragem que poderio, fez apelo aos outros povos; incentiva-os a declararem guerra a Roma e a que a façam abertamente. Para si e para os seus reserva o recurso da traição, mantendo-a sempre dissimulada sob as aparências de aliança sincera. (3) Os Fidenates, colónia romana, associam os Veientes à conspiração e, encorajados pelas garantias de Mécio, que lhes prometera apoio, tomam as armas e preparam-se para a guerra.

(4) Quando a revolta estala, Tullus ordena a Mettius que venha juntar-se-lhe com as suas tropas; marcha em seguida ao encontro dos inimigos, atravessa oAnio e monta o acampamento na confluência deste rio com o Tibre. OsVeientanus haviam passado o Tibre entre esse local e a cidade de Fidena. (5) As suas linhas formavam a ala direita, desdobrando-se sobre a margem do rio; a ala esquerda, mais próxima das montanhas, compunham-na os Fidenates. Tulo conduz os seus soldados contra os de Veios e opõe os Albanos ao corpo de exército de Fidena. Mécio, que tinha tanto de bravo quanto de fiel, não ousando nem guardar a posição que lhe estava confiada nem passar abertamente para o inimigo, foi-se insensivelmente aproximando das montanhas. (6) Quando se crê já suficientemente afastado dos Romanos, comanda às tropas que façam alto; depois, não sabendo mais o que fazer, e para ganhar tempo, desdobra-as em colunas. O seu desígnio era o de levar as suas forças à facção a que a fortuna acorresse.

(7) Os Romanos, que se mantinham nas suas posições, espantam-se de início com esse movimento que lhes deixa a descoberto o flanco; mas depressa um cavaleiro acorre a toda a brida a informar Tulo de que os Albanos retiram.Tullus, assustado, faz ali o voto de consagrar a Mars doze sacerdotes Sálios e de erguer um templo à “Palidez” e ao “Medo”. (8) Ordena de seguida ao cavaleiro, numa voz ameaçadora e assaz alta para ser escutada pelo inimigo, que retorne ao combate sem nenhum alarme, acrescentando que o movimento dos Albanos se executa a sua ordem para tomar pelas costas os Fidenates. Comanda-lhe também que dê ordem aos cavaleiros de manter ao alto as suas lanças. (9) Esta hábil manobra escondeu à maior parte da infantaria romana a retirada dos Albanos. Quanto àqueles que dela se aperceberam, enganados pelas palavras do rei, que acreditavam sinceras, combateram ainda com maior ardor. O terror apossa-se dos Fidenates. Também eles haviam escutado a resposta do rei, compreendendo-a, porquanto na sua maioria, tendo sido destacados de Roma para fundar aquela colónia, conheciam a língua latina. (10) Temendo que os Albanos, descendo bruscamente das alturas, lhes cortassem o caminho de regresso a Fidena, abandonam as fileiras e viram costas à luta. Tulo acossa-os, põe em fuga desordenada o corpo de exército dos Fidenates e volta-se, ainda com maior audácia, contra os Veientes já aturdidos pela derrota dos aliados. Os de Veii não conseguem suportar o choque, debandam e põem-se em fuga. Mas o rio, que corre na sua retaguarda, obriga-os a deter-se. (11) Chegando junto à margem, uns, abandonando cobardemente as armas, lançam-se às cegas na torrente, os outros, hesitando entre a fuga e o combate, são degolados em meio à irresolução. Em nenhuma outra batalha os Romanos haviam vertido ainda tanto sangue inimigo.

 

O esquartejamento de Mettius Fuffetius.

XXVIII – (1) Então o exército albano, que havia-se deixado ficar a ver o combate, desce à planície. Mécio felicita o rei pela vitória; Tullus de bom ânimo agradece-lho. E para garantir os venturosos resultados daquela jornada, ordena aos Albanos que juntem o seu campo ao dos Romanos, e que se prepare, para o dia seguinte, um sacrifício lustral.

(2) Logo que surge o dia e que tudo está prestes, convoca os dois exércitos, segundo o costume, a uma assembleia. Os arautos, começando a chamada pelas últimas filas, fazem primeiro avançar os Albanos. Estes, curiosos de ver o que se iria passar e de ouvir a arenga do rei dos Romanos, postam-se mesmo à sua beira. (3) A legião romana, seguindo as ordens de Tulo, dispôs-se ordenadamente, e completamente em armas, em redor dos Albanos. Os centuriões haviam recebido a ordem de executar com prontidão tudo o que lhes viesse a ser comandado. (4) Tulo começa então, nestes termos:

"Romanos, se alguma vez, numa qualquer guerra, vós tivestes de dar graças, em primeiro lugar, aos deuses imortais, e, de seguida, à vossa coragem, tal foi certamente no combate de ontem. Com efeito, fostes obrigados a defender-vos não apenas das armas dos vossos inimigos, mas, e coisa bem mais perigosa, também da traição e da perfídia dos vossos aliados; (5) porque já é tempo que saibais, a fim de não permanecerdes mais no erro, que eu de modo nenhum ordenei aos Albanos para se dirigirem às montanhas. É verdade que fingi ter dado essa ordem, mas fi-lo por prudência e para não vos desencorajar ao revelar-vos a deserção de Mécio; e também para amedrontar os inimigos e os pôr em desordem, fazendo-os crer que iam ser cercados. (6) Eu não acuso todos os Albanos; eles seguiram o seu chefe, como vós me haveríeis seguido se eu houvesse querido mudar os meus intuitos. Unicamente Mécio dirigiu tal manobra; Mécio, o maquinador desta guerra, Mécio, o violador do tratado jurado pelas duas nações. Mas que eu queira doravante que lhe imitem o exemplo se não for capaz de dar, hoje mesmo e na sua pessoa, uma notável lição aos mortais."

(7) Nesse instante os centuriões armados rodeiam Mécio, e Tulo continuou: "Para a felicidade, glória e prosperidade do povo romano, e também de vós, os de Alba, tomei a resolução de transferir a Roma todos os habitantes da vossa urbe, dando o direito de cidade ao povo e aos grandes o direito de assento no senado; numa palavra, de não fazer de ambas senão uma só cidade, um só Estado. Alba foi outrora dividida em dois povos. Pois bem! Que ela se reúna agora num só.”

(8) A estas palavras os Albanos, sem armas, rodeados por aquela tropa armada, são agitados por sentimentos bem diversos; porém, como o terror os contivesse, guardaram o silêncio. (9) Tulo prosseguiu: “Mettius Fuffetius, se tu ainda pudesses aprender a guardar a fé dos tratados, deixar-te-ia viver, para de mim receberes essa lição; mas a perfídia é um mal incurável; que o teu suplício ensine por isso os homens a crer na santidade das leis que tu violaste. Tal como tu dividiste o teu coração entre Roma e Fidena, do mesmo modo o teu corpo será dividido e os seus pedaços dispersos.” (10) De seguida fizeram aproximar dois carros atrelados de quatro cavalos, e Tulo a eles fez atar Mécio. Os cavalos, lançados em sentidos contrários, arrastam atrás de cada um dos carros os membros dilacerados e sangrentos de Mécio. (11) E todos os olhares se desviam daquele medonho espectáculo. Foi este o primeiro e também derradeiro exemplo entre os Romanos de um suplício em que as leis humanas tivessem sido ignoradas. Ao invés, e é até um dos títulos de glória de Roma, que ela sempre viesse a preferir as punições mais moderadas.

 

A destruição de Alba e as suas incidências para Roma.

XXIX – (1) Entretanto fora já destacada a cavalaria para trazer a Roma todos os habitantes de Alba. As legiões seguiram-na com a missão de destruir a cidade. (2) À sua entrada, não se assistiu nem ao alvoroço nem ao terror que de ordinário flagelam as cidades conquistadas logo que os portões são quebrados, as muralhas se desmoronam aos golpes do aríete e a cidadela é tomada de assalto; quando o inimigo invasor, espalhando-se em corrida pelas ruas, a soltar brados de morte, tudo arrasa a ferro e fogo. (3) Uma tristeza sombria e silenciosa oprimia a todos o coração. Não sabiam o que deviam de deixar para trás, o que haviam de levar consigo; o medo roubara-lhes o discernimento. Interrogavam-se uns aos outros sobre o que fazer; uns deixavam-se ficar parados à soleira das portas; outros erravam ao acaso, mesmo no interior das suas próprias casas, revendo-as por uma derradeira vez. (4) Mas quando as vozes ameaçadoras dos cavaleiros lhes ordenaram a saída, quando o estrondo das casas derrubadas se fez ouvir por todas as extremas da cidade, quando a poeira, erguendo-se por toda a parte do meio das ruínas, envolveu o espaço numa nuvem espessa, cada um pegou precipitadamente no que pôde e afastou-se, deixando para trás os seus lares, os seus penates, o tecto sob o qual havia nascido, sob o qual crescera.

(5) Longas filas de emigrantes enchiam as ruas, o espectáculo da sua comum miséria a renovar-lhes as lágrimas a cada instante; e escutavam-se lastimosos gritos, os que as mulheres soltavam, as mais das vezes quando viam, pelo caminho, os templos dos deuses ocupados pelos soldados, e os próprios deuses que elas abandonavam, por assim dizer, em cativeiro. (6) Depois que os Albanos partiram, edifícios públicos e residências privadas, tudo foi indistintamente arrasado. Alba existia há quatrocentos anos; uma hora bastou para a sua devastação e ruína. Contudo pouparam-se os templos dos deuses;Tullus assim o havia ordenado.

XXX – (1) Assim Roma se engrandeceu com os destroços da rival, dobrando em número de habitantes. O monte Célio foi acrescentado à cidade, e, para lhe atrair população, Tulo ali fez erguer um palácio e fixou residência. (2) Querendo que também o senado houvesse a sua parte no engrandecimento do Estado, abre as portas desse augusto conselho aos Tullii, aos ServiliiQuinctiiGeganii,CuriatiiCloelii. Para os membros do senado, tornados assim mais numerosos, Tulo fez construir um edifício que lhes destinou às assembleias e que ainda hoje é denominado os “paços de Hostílio”. (3) Enfim, para que a incorporação do novo povo viesse a aproveitar a todas as ordens do Estado, criou dez companhias de cavaleiros, todos escolhidos dentre os Albanos. De igual modo completou as suas antigas legiões e formou novas, fazendo-as sair do seio desta mesma população.

 

A guerra contra os Sabinos.

XXX – (4) É então que Tulo, plenamente confiante das suas forças, declara a guerra aos Sabinos, à época a nação mais numerosa e, após os Etruscos, também a mais belicosa. Os dois povos queixavam-se de algumas injúrias recíprocas, pelas quais, de uma parte e outra, inutilmente se havia pedido reparação. (5) Tulo alegava que, junto do templo de Feronia, mercadores romanos tinham sido presos em pleno mercado; os Sabinos, que lhes retinham em Roma, como prisioneiros, alguns dos seus concidadãos, não obstante eles, antes da prisão, se haverem refugiado no bosque sagrado. Foram estes os pretextos da guerra. (6) Os Sabinos, que não esqueciam que Tatius levara a Roma uma parte das suas forças, e que a potência romana ainda mais acabava de se acrescentar com reunião dos Albanos, procuraram à sua volta por socorros estrangeiros.

(7) Os Sabinos, vizinhos da Etrúria, confinavam com o território dos Veientes; estes, dominados pelo ressentimento das passadas derrotas, eram naturalmente inclinados ao conflito. Porém os Sabinos deles só puderam alcançar voluntários, trazendo-lhes o dinheiro ainda alguns mercenários dentre a classe mais baixa do povo. Mas a cidade, como tal, não lhes forneceu qualquer socorro (coisa bem menos surpreendente da parte dos outros povos das vizinhanças), porque o respeito pela trégua concluída com Rómulo deteve os Veientes.

(8) Faziam-se, pois, de parte e doutra, os maiores preparativos. Mas, dado que o sucesso em muito dependia da rapidez de antecipação ao inimigo, Tulo foi o primeiro a invadir o território contrário. (9) Um combate sangrento teve lugar junto à floresta Malitiosa. A excelência da sua infantaria e, sobretudo, o recente reforço da cavalaria, prestaram um poderoso serviço aos Romanos. (10) A cavalaria, carregando subitamente, pôs em desordem os Sabinos, que não foram capazes nem de sustentar o choque nem de se reagrupar, nem de abrir-se um caminho de fuga, e a carnagem foi imensa.

 

A morte de Tullus Hostilius.

XXXI – (1) Roma já saboreava os frutos desta vitória, tão gloriosa para o reinado de Tullus e para o Estado tão fecunda, quando foi anunciado ao rei e aos senadores que uma chuva de pedras tombara sobre o monte Albano. (2) Como tal prodígio fosse difícil de crer, para se certificarem, enviaram gente ao local. E os que disso foram encarregues viram com efeito cair do céu uma grande quantidade de pedras, tão céleres como o granizo quando o vento o leva a abater-se sobre a terra. (3) Acreditaram até ouvir, saída dum bosque sagrado ao cimo da montanha, uma voz ribombante, ordenando aos Albanos que cumprissem sacrifícios segundo o rito do seu país: porque esse dever fora negligenciado, como se, ao terem abandonado a pátria, os Albanos houvessem também esquecido os seus deuses, fosse para adoptar os dos Romanos, fosse em desprezo para com toda a religião, que é o efeito ordinário de um desgosto provocado por uma malfazeja fortuna. (4) Os Romanos, por sua parte, em expiação deste prodígio, celebraram sacrifícios públicos por nove dias; e, ou porque a voz celeste do monte Albano, como o quer a tradição, houvesse prescrito tal costume, ou porque os arúspices o hajam aconselhado, o certo é que ele se manteve, sucedendo-se as festas por nove dias sempre que o prodígio se repetiu.

(5) Pouco tempo depois Roma foi devastada por uma moléstia pestilencial, o que levou a que os seus habitantes se desinteressassem por completo da guerra. No entanto o belicoso Tulo não lhes dava nenhum repouso. Estimava a frequência dos campos mais propícia que a das cidades à manutenção do corpo em saúde. Mas, por fim, também ele se ressentiu das investidas do flagelo. (6) A prostração aniquilou-lhe o espírito turbulento, e este princeps, que achara ser indigno de um rei ocupar-se de religião, entregou-se, de súbito, mesmo às mais frívolas das superstições, enchendo a cidade de cerimónias religiosas. (7) A seu exemplo, os Romanos, voltando aos hábitos que haviam assinalado o reinado de Numa, acreditaram que o único remédio para os seus males consistiria no apaziguamento e no perdão dos deuses. (8) Diz-se até que Tulo, tendo descoberto, ao folhear os livros de Numa, a descrição de certos sacrifícios secretos instituídos em honra de Jupiter Elicius, entrou em recolhimento para se entregar a essas misteriosas cerimónias; mas porque houvesse negligenciado, fosse nos preparativos ou na celebração, alguns ritos essenciais, não foi capaz de evocar o fantasma de nenhuma divindade; e que Júpiter, bem ao invés, enfurecido por semelhantes profanações, golpeou com o seu raio princeps e palácio, a ambos consumindo. Tulo reinou por trinta e dois anos, deixando em sua memória uma gloriosa reputação militar.

 

6. Ancus Marcius (I; 32-34).

Advento de Anco Márcio; declaração de guerra e operações contra os Latinos.

XXXII – (1) Após a morte de Tullus, seguindo o costume, a autoridade retornou às mãos dos senadores, que nomearam um interrex. Reunidos os comícios,Ancus Marcius foi eleito rei pelo povo; e o senado ratificou a eleição. Esteprinceps, por parte da mãe, era neto de Numa.

(2) Mal começara a reinar, cioso da glória de seu avô e vendo quão o precedente reinado, não obstante todo o seu brilho, havia comportado de desgraças, fosse por causa da indiferença de Tulo para com as cerimónias religiosas, fosse pelas alterações que lhes fizera sofrer, considerou que era seu primeiro dever devolvê-las à pureza da primitiva instituição, e ordenou ao grande sacerdote que lhes transcrevesse os preceitos sobre tabuinhas brancas, conformando-se sempre aos textos de Numa, e que as expusesse aos olhos do público. Este começo fez crer aos cidadãos, ávidos de repouso, e aos Estados vizinhos que o novo rei haveria de imitar os costumes e o governo de seu avô. (3) Assim também o acreditaram os Latinos, que se tinham ligado a Tulo por tratado; estes, retomada a coragem, resolveram sair da sua inactividade. Lançam-se então em incursões sobre as terras de Roma, respondendo depois com arrogância aos deputados enviados em demanda de reparação; isto porque haviam-se imaginado um indolente Ancus a passar a vida no interior dos templos e ao pé dos altares. (4) Porém Anco unia o carácter de Rómulo ao que era de Numa, bem entendendo que, se a paz fora necessária a seu avô para civilizar uma nação nova e de costumes ferozes, dificilmente podia aspirar a idêntico resultado sem ter de suportar injúria. Começavam por lhe experimentar a paciência, acabariam por desprezá-la. Tais circunstâncias reclamavam, pois, mais que um Numa, um Tullus.

(5) Como Numa apenas houvesse fundado instituições religiosas para os tempos de paz, Anco criou-as também para a guerra. Quis que um rito particular lhe fosse consagrado, tanto nas formas de a conduzir como de lhe declarar as hostilidades. Tomou dos Aequicoli, antigo povo de Itália, muitos dos seus costumes, que são os mesmos que ainda hoje os feciais observam nas reclamações. (6) O fecial, chegando às fronteiras do povo agressor, cobre a cabeça com uma mantilha de lã e diz: "Escuta, ó Júpiter; escutai, habitantes destas fronteiras (e nomeia o povo ao qual elas pertencem); escuta tu também, ó Justiça: eu sou o arauto do povo romano; fui por ele encarregado duma missão justa e pia; que se preste fé às minhas palavras.” Expõe de seguida os seus agravos; (7) depois, invocando Júpiter, continua: "Se eu, o arauto do povo romano, faço ultraje às leis da justiça e da religião ao pedir a restituição destes homens e destas coisas, que tu não me permitas jamais rever a minha pátria.” (8) Esta fórmula di-la ele ao transpor a fronteira, e repete-a ao primeiro homem que encontra, di-la de novo ao entrar na cidade inimiga, e também quando chega ali à praça pública, mas fazendo ligeiras modificações quer no ritmo, quer nos termos da fórmula jurada. (9) Se não obtém satisfação, após trinta e três dias, o prazo prescrito pelo costume sagrado, declara deste modo a guerra : "Escuta, ó Júpiter, e tu, Janus Quirinus, e vós todos, deuses do céu, da terra e do inferno escutai: (10) Eu vos tomo para testemunho da injustiça deste povo (que nomeia) e da sua recusa a restituir aquilo que não é seu. No que toca ao resto, os anciãos da minha pátria deliberarão quanto aos meios de fazermos valer os nossos direitos.”

O arauto logo retornava a Roma para a deliberação, (11) e o rei de imediato comunicava, mais ou menos nestes termos, o assunto aos senadores : "Os objectos, agravos e causas que o pater patratus do povo Romano dos Quirites reclamou, expôs, debateu junto do pater patratus e do povo dos Antigos Latinos, e dos quais atendia a restituição, a reparação e a solução, não foram nem restituídos, nem reparados, nem resolvidos; diz-me, pois – perguntava ele àquele a que em primeiro lugar se dirigia –, o que pensas tu sobre isto.” (12) Este então respondia: "Eu penso que para fazer valer os nossos direitos a guerra é justa e legítima, em consequência dou-lhe o meu pleno e inteiro consentimento.” Assim, interrogando cada um, na sua vez, e sendo a maioria de tal aviso, se decidia a guerra.

O uso era, à época, que o fecial levasse um dardo ferrado ou um pau de cornizo endurecido ao fogo até à fronteira do povo inimigo. Ali, na presença de, no mínimo, três adultos, dizia : (13) "Porque os povos dos Antigos Latinos ou os cidadãos dos Antigos Latinos atentaram contra o povo Romano dos Quirites e não lhe deram qualquer reparação, o povo romano dos Quirites ordenou a guerra contra os Antigos Latinos; o senado do povo romano dos Quirites propô-la, decretou-a, sentenciou-a e eu e o povo romano declaramo-la aos Antigos Latinos, povos e cidadãos, dando eu aqui início às hostilidades." (14) E, ao dizer estas palavras, lançava o seu dardo no território inimigo. Tais eram, nesses tempos, as formalidades a que se fazia recurso nas reclamações dirigidas aos Latinos e na declaração de guerra. Tal costume, desde então, foi sempre observado.

XXXIII – (1) Anco, deixando aos flâmines e aos restantes sacerdotes o cuidado dos sacrifícios, marcha à cabeça dum recém recrutado exército contraPolitorium, cidade dos Latinos, que toma de assalto. A exemplo dos reis seus predecessores que haviam engrandecido o Estado pela concessão do direito de cidade aos inimigos vencidos, fez transferir a Roma todos os seus habitantes. (2) E como os antigos Romanos já se houvessem estabelecido em torno do monte Palatino, os Sabinos no Capitólio e na cidadela, os Albanos no monte Célio, atribuiu aos recém-vindos o monte Aventino. Também ali assentaram morada os cidadãos de Tellenae e de Ficana, depois que os Romanos conquistaram estas cidades.

(3) Mas depressa os Romanos se viram obrigados a atacar pela segunda vez Politório, da qual os Antigos Latinos se haviam reapoderado após o abandono dos seus habitantes, e arrasaram-na, temendo que ainda pudesse servir de refúgio aos inimigos. (4) A guerra chegou por fim diante de Medullia, as sortes dos combatentes, por algum tempo, ali se balanceando, e a vitória indecisa, porquanto a praça estava bem fortificada, era abundantemente provida de víveres e dispunha de numerosa guarnição; acresce que o exército latino, acampado na planície, lançava frequentes sortidas contra os Romanos. (5) Contudo Ancus, juntando todas as suas tropas, faz uma derradeira investida e, numa batalha em regra, vence os Latinos.

Senhor de um imenso despojo, Ancus retorna a Roma, onde admite na classe dos cidadãos vários milhares de Latinos. Estabeleceu-os perto do templo deVenus Murcia, de modo a fazer junção entre os montes do Palatino e do Aventino. (6) O Janiculum também foi incluído nos limites da cidade, não porque nela faltassem terrenos para edificar, mas para a garantir daquele lado contra ataques de surpresa. Cumpriu-se esse propósito não apenas com um muro, que se prolongava até às habitações junto ao rio, mas ainda, facilitando a passagem duma margem à outra, com uma ponte de madeira, a primeira que se levantou sobre o Tibre. (7) O “fosso dos Quirites”, que interditou em muito o acesso pela planície, foi igualmente obra de Anco.

(8) Após esse prodigioso crescimento de Roma, tornou-se bem difícil distinguir, em meio a tão grande multidão, os bons dos maus cidadãos, e os crimes por desvendar multiplicaram-se. Para deter os progressos à perversidade e lhe imprimir terror, Ancus fez construir uma prisão no centro da cidade, dominando sobre o forum. (9) Sob o seu reinado, também o território de Roma e as suas fronteiras se acrescentaram, tanto quanto a própria urbe. Tomou-se dos Veientes a floresta Maesia; o imperium avançou até ao mar, com a fundação deOstia na embocadura do Tibre e a abertura das salinas em redor dessa cidade; e o templo de Júpiter Ferétrio foi acrescentado, em prova de reconhecimento por estes últimos sucessos.

XXXIV – (1) Durante o reinado de Ancus chegou a Roma um estrangeiro, homem enérgico e opulento, de nome Lucumo. Aqui veio na ambição e esperança de obter as honras que lhe recusavam em Tarquinii, cidade onde a sua família era igualmente estrangeira. (2) Demaratus, seu pai, obrigado a fugir da sua pátria, Corinthus, em consequência das lutas civis, havia, errando ao acaso, encontrado refúgio em Tarquínios. Ali se casou e viu nascer os seus dois filhos, LucumoArruns. Lucumão sobreviveu a seu pai, do qual recolheu sozinho a herança; Arruns morrera antes, deixando a esposa grávida. (3) Demarato, que o seguiu de perto na morte, ignorante da gravidez da nora, não fez qualquer menção ao neto no seu testamento; de tal sorte que o menino, sendo nado após a morte do avô, não teve parte alguma na sucessão, e foi deixado em tal estado de miséria que lhe deram o nome de Egerius (de egeo = ser pobre, indigente).

(4) Diversamente, como herdeiro das riquezas paternas, Lucumão concebeu um orgulho que sua mulher, Tanaquil, ainda tratou de mais exacerbar. Filha de um alto nascimento, Tanaquil não estava de modo nenhum disposta a descer na escala social ao aceitar uma aliança matrimonial que a diminuía. (5) O desprezo dos Etruscos para com Lucumão, o filho de um estrangeiro, dum proscrito, era uma afronta que não podia suportar; e, mais sensível à honra de seu marido do que ao amor pela pátria, resolveu abandonar Tarquinii. (6) Estabelecerem-se em Roma pareceu-lhe ser o mais conveniente. Ela calculou que entre um povo jovem, onde a nobreza datava dum dia e era fruto apenas do mérito pessoal, um homem corajoso e empreendedor como Lucumão depressa havia de encontrar o seu lugar. TatiusNuma, ambos estrangeiros, haviam reinado em Roma; tinham até ido a Cures oferecer tal honra a Numa; Anco era filho duma Sabina e não tinha por título de nobreza senão a fama do próprio Numa. (7) Não lhe foi difícil disto persuadir o ambicioso Lucumão, bem pouco preso de resto à sua pátria, à qual só a mãe o ligava. Dirigiram-se portanto a Roma, levando consigo a sua fortuna.

(8) Quando chegaram ao Janículo, Lucumão no seu carro com Tanaquil a seu lado, uma águia, voando suavemente, arrancou-lhe da cabeça o barrete que a cobria; depois, retomando o voo e planando em redor do carro, ao mesmo tempo que soltava grandes guinchos, de novo desceu, para, como se de tal houvesse sido encarregue pelos deuses, vir repor o barrete sobre a cabeça do estrangeiro; a ave perdeu-se de seguida entre as nuvens. (9) Tanaquil, sábia como todos os Etruscos na arte de explicar os prodígios celestes, ao que se diz, recebeu esse presságio com grandes transportes de alegria. Abraça o esposo e quer que este se entregue às mais arrebatadas esperanças; que ele atente na espécie da ave, na região do céu donde desceu, no deus de que ela é a mensageira; e acrescenta que o prodígio se cumpriu sobre a parte mais elevada do corpo; que o ornato com que os homens cobrem a cabeça não lhe fora senão por um instante furtado, e somente para, segundo a vontade dos deuses, logo ali ser reposto.

(10) Todos enlevados nestes pensamentos, chegam a Roma e aqui compram casa. Lucumon tomou então o nome de Lucius Tarquinius Priscus. (11) A sua qualidade de estrangeiro e as suas riquezas bem depressa o fizeram distinguir entre os Romanos; ele próprio ajudava à sua fortuna, conciliando-se o favor geral pela sua afabilidade, por uma generosa hospitalidade e pelas mercês com que a todos procurava cativar. E, por fim, o seu nome chegou até aos ouvidos do rei. (12) Uma vez em contacto com o príncipe, não tardou a ganhar-lhe a amizade pelos modos liberais e pela habilidade de que deu mostra no cumprimento das tarefas que lhe foram confiadas; pertencia a todos os conselhos, públicos e privados, e consultavam-no sobre a guerra e a paz. Após havê-lo testado em todas as coisas, o rei acabou por o nomear, em testamento, tutor dos seus filhos.

 

7. Tarquínio o Antigo (I; 35-40).

Tarquinius Priscus faz-se eleger rei. Primeiras realizações.

XXXV – (1) Ancus havia reinado por vinte e quatro anos, com tamanha glória quanto a que coubera, fosse na paz fosse na guerra, a qualquer um dos seus predecessores. Os seus filhos estavam prestes a atingir então a puberdade, o que levava Tarquínio a insistir ainda com maior veemência na necessidade de eleger um novo rei. (2) E quando se convocaram os comícios, ele já de avanço soubera afastar, a pretexto duma caçada, os jovens príncipes. Foi o primeiro, ao que se diz, que ousou lutar pública e abertamente pelo trono, arengando ao povo para lhe ganhar os sufrágios. (3) “O seu pedido não era sem exemplo – dizia – e ele não era o primeiro, se bem que a todos tal pudesse causar perplexidade e indignação, mas o terceiro dos estrangeiros a pretender a coroa.Tatius não lhes era apenas estranho, fora até um inimigo, e, no entanto, haviam-no eleito rei. Numa não conhecia Roma senão de nome, e contudo ali o haviam chamado para reinar, sem que sequer houvesse pensado pedi-lo. (4) Quanto a ele, assim que pudera dispor da sua vontade, viera a Roma com a esposa e toda a sua fortuna; e, desde que atingira a idade em que um homem pode ser útil ao Estado, mais tempo servira em Roma do que na antiga pátria. (5) Na paz e na guerra formara-se nas lições dum assaz grande mestre, o próprio Anco; a ele devia o conhecimento das leis e do culto de Roma. Rivalizara com todos os outros cidadãos na dedicação e no respeito para com o rei e, no que ao rei concernia, na generosidade para com todos os cidadãos.” (6) Como nada dissesse que não fosse verdade, o povo, num consentimento unânime, entregou-lhe o trono.

Este homem, em tudo o resto notável, levou consigo para o trono aquele mesmo génio ambicioso que já lhe havia aberto o caminho. Tão preocupado em consolidar a sua autoridade quanto em estender os limites do seu reino, nomeou cem novos senadores, depois designados sob o nome de patres minorumgentium (“pais de gentes menores”). Criava-se assim, ostensivamente, um novo partido, a ele ligado pelas honras concedidas.

(7) A sua primeira guerra foi contra os Latinos; tomou de assalto a cidade deApiolae, trazendo desta expedição riquezas bem mais consideráveis do que se poderia esperar de conquista de tão pouca monta. Empregou-as na celebração de jogos, com maior pompa e magnificência que os dos reis seus predecessores. (8) Foi então que traçou o recinto do que hoje chamamos Circus Maximus. Destinou locais particulares aos senadores e cavaleiros, para que cada um ali fizesse construir camarotes (9) sustentados sobre andaimes de doze pés de altura, a que se deu o nome de Fori. Estes jogos eram preenchidos com corridas de cavalos e combates de atletas, uns e outros vindos, na sua maioria, da Etrúria. Depois os jogos tornaram-se anuais; chamou-se-lhes indiferenciadamente os “Grandes Jogos” ou “Jogos Romanos”. (10) Tarquínio também distribuiu a particulares o terreno que rodeia o forum, a fim de que ali erguessem arcadas e lojas.

XXXVI – (1) Dispunha-se ainda a rodear a cidade duma muralha de pedra quando a guerra com os Sabinos veio-se-lhe atravessar no caminho. O ataque destes foi tão rápido que já o Ânio era cruzado antes que o exército romano pudesse ir-lhes ao encontro e detê-los. (2) O pânico ganhou Roma. À primeira batalha, sendo grande a mortandade de um lado e doutro, a vitória ficou por decidir. Mas como os inimigos se houvessem recolhido ao seu campo, deram aos Romanos tempo de levantar novas tropas.

 

O episódio de Attus Navius.

XXXVI – (2) Tarquinius viu que a fraqueza do seu exército estava na insuficiência de cavalaria; resolveu, por isso, acrescentar novas centúrias, honrando-as com o seu nome, às três já formadas por Rómulo, as dos Ramnes, Ticienses e Lúceras. (3) Como Romulus houvesse consultado os áugures antes de organizar esta milícia, Attus Navius, à época o mais célebre dentre eles, teve a audácia de afirmar que, nesta matéria, nada se podia mudar nem acrescentar sem obter a sanção dos auspícios. (4) O rei sentiu-se agastado com a ousadia do sacerdote; e relatam que, em escárnio pela sua ciência, lhe disse: “Olha lá, adivinho, consulta então os teus presságios e diz-me se o que eu agora estou a pensar é possível de ser feito.” O adivinho interrogou o omen e respondeu-lhe que sim. “Muito bem! – exclama o rei – Pensei eu que tu havias de cortar esta pedra com uma navalha. Pega pois nela e faz o que essas aves te declaram ser possível.” Então, sem sequer hesitar, Navius, ao que dizem, cortou a pedra. (5) A estátua deste Attus, representando-o de cabeça coberta, erguia-se noComitium naquele mesmo local onde o sucesso se deu, sobre os degraus, à esquerda, da cúria do senado. Diz-se que também a pedra ali foi colocada, na intenção de perpetuamente consagrar a memória deste prodígio.

(6) O que é certo é que a partir de então os áugures adquiriram um tal crédito, e o seu sacerdócio tanta consideração, que nada mais se ousou empreender, nem na guerra nem na paz, sem previamente consultá-los. As assembleias do povo, as levas de tropas, até as deliberações mais graves, tudo era suspenso e adiado caso as aves não o aprovassem. (7) Tarquínio não pôde fazer qualquer outra mudança nas companhias das centúrias senão dobrar-lhes o número, passando as três centúrias a formar doravante um corpo de dezoito centenas de homens. (8) Para designar os cavaleiros recém-incorporados em cada uma das centúrias, acrescentou-se-lhes a palavra “posteriores” à antiga denominação; hoje, porque entretanto foram duplicadas, chamamos-lhes “as seis centúrias”.

 

Segunda guerra contra os Sabinos. A fórmula da deditio.

XXXVII – (1) Com a cavalaria assim reforçada, Tarquinius oferece pela segunda vez batalha aos Sabinos. Mas não querendo valer-se apenas das novas forças, recorre também à astúcia, e manda que se ateie o fogo a uma grande quantidade de lenha amontoada sobre as margens do Ânio, e que a lancem a arder no rio. O vento favorece o incêndio e os madeiros, ligados pela maior parte ao modo de jangadas, vêm prender-se à estacaria da ponte, abrasando-a. (2) Um tal incidente, em pleno combate, lança o pânico entre os Sabinos e converte-se num obstáculo à sua fuga logo que encetam a retirada. Grande número deles, procurando escapar ao ferro dos Romanos, veio a perecer no rio; e os seus escudos, levados até Roma pelas águas do Tibre, anunciaram à cidade a brilhante vitória de Tarquínio antes mesmo que chegasse o mensageiro encarregue de trazer a boa-nova. (3) As honras da jornada couberam quase todas à cavalaria. Postada nas duas alas, e vendo que o centro da infantaria romana começara a debandar, caiu com um tal ímpeto sobre o flanco das legiões sabinas que não somente lhes travou o ardor da perseguição como bem depressa as forçou a fugir. (4) Os fugitivos correram em direcção às montanhas, mas poucos conseguiram ali chegar; os restantes, como já dissemos, foram repelidos pela cavalaria para o rio.

(5) Tarquínio, afoitando-se em explorar o terror dos vencidos, envia célere o saque e os prisioneiros a Roma e, cumprindo um voto feito a Vulcano, manda lançar fogo aos despojos do inimigo amontoados numa vasta pilha, para logo de seguida entrar no território dos Sabinos. (6) Estes, apesar da derrota e da desesperança no futuro, não lhes havendo sido deixado sequer tempo para deliberar, marcharam ao encontro dos Romanos com tropas recrutadas ao acaso e à pressa. Uma segunda derrota, ao aniquilar-lhes quase todas as reservas, obrigou-os a solicitar a paz.

XXXVIII – (1) Os Sabinos perderam Collatia com todo o seu território. O governo desta cidade foi entregue a Egério, o sobrinho de Tarquínio. Eis como os habitantes se renderam, e a fórmula usada nesta circunstância. (2) O rei, dirigindo-se aos deputados, perguntou-lhes:

“ - Sois vós os deputados e os oradores enviados pelo povo colatino, para virdes-vos pôr, a vós e ao povo de Colácia, sob o meu poder?

- Sim.

- O povo colatino é livre de dispor de si mesmo?

- Sim.

- Sujeitais-vos a mim e ao povo romano, vós, o povo de Colácia, com a cidade, os campos, as águas, as fronteiras, os templos, as propriedades mobiliárias, enfim, todas as coisas divinas e humanas?

- Sim.

- Pois que assim seja! Eu o aceito em meu nome e no do povo romano.”

 

Outras realizações de Tarquínio.

XXXVIII – (3) Terminada a guerra com os Sabinos, Tarquínio reentrou triunfalmente em Roma. Em seguida virou as suas armas contra os Antigos Latinos. (4) Jamais lhes dando ensejo a uma batalha decisiva, ao atacar separadamente as suas cidades subjugou todos os que soíam usar o nome Latino. Tomou CorniculumFicúlea a VelhaCameriaCrustumeriumAmeriola,MedulliaNomentum, cidades que sempre tinham pertencido ou que haviam-se dado aos Latinos.

(5) Concluída a paz, iniciaram-se no interior da cidade importantes trabalhos e a estes se entregou Tarquínio, com uma ainda maior energia do que aquela que pusera nas guerras acabadas de travar. (6) Os do povo, reentrando nos seus lares, não tiveram mais descanso que em campanha. Com efeito, Tarquínio prosseguiu a construção da muralha de pedra que a guerra com os Sabinos viera interromper, fortificando a cidade por toda aquela parte em que era ainda aberta. E como as águas escoassem-se com dificuldade dos bairros baixos da urbe em torno do forum, e também dos outros vales entre as colinas, para drená-las, fez construir esgotos que as recolhiam nestes diversos pontos e conduziam, tal como às águas provenientes das alturas da cidade, até ao Tibre. (7) Depois traçou o recinto do templo que, no decurso da guerra contra os Sabinos, votara a Júpiter Capitolino, obra de que o traçado das fundações já preanunciava a majestade futura.

 

As origens de Servius Tullius.

XXXIX – (1) Por esse tempo, um prodígio, tão extraordinário em si mesmo como nos sucessos que se lhe seguiram, manifestou-se no palácio. Uma chama envolveu, ao que dizem, os cabelos de um menino que dormia; o seu nome, Sérvio Túlio. (2) Um tal milagre fez os gritos de espanto soar por todo o palácio, atraindo a atenção do rei e da sua família. Como um dos servidores, apressado, acartasse a água que havia de apagar a chama, a rainha deteve-o; e, fazendo cessar o tumulto, a todos proibiu de tocarem na criança até que por ela própria despertasse. Depressa a chama se esvaiu, tal como o sono da criança. (3) Então Tanaquil, levando o marido para o interior do palácio, disse-lhe: “vês tu esta criança que nós educamos numa condição tão humilde? Pois sabe que ele há-de vir a ser a luz que um dia reavivará as nossas esperanças prestes a extinguirem-se e que nos há-de amparar no nosso trono abalado. Portanto cinjamos com todo o nosso cuidado e carinho a esta promessa, que é feita a Roma e a nós próprios, de uma imensa glória vindoura.”

(4) Desde então trataram Sérvio como se fora seu filho, tudo lhe dando a aprender sobre o que anima os espíritos e os leva a ambicionar um alto destino. Os desígnios dos deuses não podiam deixar de se cumprir. Assim, desta criança, as qualidades que são próprias dum rei vieram a desenvolver-se no decurso da juventude; e quando Tarquínio procurou um genro, como dentre os jovens Romanos ninguém fosse capaz de comparar-se a Túlio, é a este que entrega a sua filha. (5) Tão insigne honra, qualquer que haja sido a causa, não nos permite pensar que Servius Tullius pudesse ter nascido duma escrava, ou que ele próprio o fosse na sua infância. Eu tomo de bem melhor grado a opinião que se segue: à conquista de Cornículo, Servius Tullius, chefe deste Estado, veio a perecer, deixando a sua viúva grávida; que, descoberta entre os outros cativos, essa mulher, unicamente em consideração pelo seu alto nascimento, obteve da rainha que lhe restituíssem a liberdade, sendo alojada em Roma, no palácio de Tarquínio o Antigo; que ali deu à luz Sérvio, (6) e que o reconhecimento pela generosa hospitalidade recebida veio a gerar, entre as duas mulheres, uma estreita intimidade; que o menino, nado e educado no palácio, de todos recebeu carinho e a respeitosa atenção; e que, enfim, a sorte da mãe, caída em poder do inimigo após a tomada da pátria, terá levado a crer que ele nascera duma escrava.

 

O assassinato de Tarquínio o Antigo.

XL – (1) Tarquínio estava quase no trigésimo oitavo ano do seu reinado e Sérvio Túlio gozava da mais alta estima, não apenas junto do rei, mas também entre os senadores e o povo. (2) Os dois filhos de Ancus, não perdoando a perfídia de seu tutor, que os escorraçara do trono paternal, nem a dominação dum rei que, não sendo cidadão natural de Roma, nem sequer de origem italiana era, ainda mais vivamente ressentiram a afronta ao anteverem que o ceptro, após Tarquínio, não só havia de continuar a escapar-se-lhes das mãos como iria cair, infamado, nas dum escravo; (3) que desse modo esta cidade, onde um século antes reinara Rómulo, filho de deus e ele próprio um deus, por todo o tempo que durara a sua estadia na terra, teria de obedecer agora, cem anos passados, ao filho duma escrava, que, também ele, deveria ter sido destinado à escravatura. Consideraram a desonra para o nome romano, e a da sua própria casa, máxime, se em vida dos filhos de Anco o trono houvesse de ser deixado a estrangeiros, a escravos. (4) E concluíram que só pelo ferro poderiam impedir tal injúria.

Porém o ressentimento mais os animava contra Tarquinius que contra Servius. O rei, sobrevivendo a seu genro, havia de tirar desse assassinato vingança bem mais terrível do que a que cobraria um simples particular, e mais, morto Sérvio, Tarquínio não deixaria de garantir a posse do trono ao novo genro que se aprouvesse de escolher. (5) É pois contra o rei que eles congeminam dirigir os seus golpes. Elegem, para a execução da conjura, dois pastores feros e decididos. Estes homens, munidos dos seus utensílios usuais, penetram no vestíbulo do palácio e ali iniciam, fazendo o máximo de ruído possível, uma simulada querela que atrai a atenção dos guardas. Dado que ambos imploravam a justiça do príncipe e como as suas vozes, ressoando pelo palácio, chegassem aos ouvidos de Tarquínio, este fê-los vir à sua presença. (6) Começam por falar os dois ao mesmo tempo, sem que um queira dar ao outro a oportunidade de se explicar. Mas o lictor, impondo-lhes o silêncio, ordena-lhes que falem cada um na sua vez. Cessam então de se interromper e um deles começa a expor a pretensa querela, conforme o que previamente tinham combinado. (7) Enquanto o rei, virado para esse homem, o ouvia atentamente, o assassino, levantando a sua machada, desfere-lhe um golpe na cabeça; para logo, deixando o ferro cravado na ferida, se escapar com o seu cúmplice.

 

8. Servius Tullius (I; 41-48).

O advento de Servius Tullius.

XLI – (1) Tarquínio tomba moribundo nos braços dos que o rodeiam; sendo os homicidas em fuga capturados pelos lictores. Ouvem-se gritos; o povo acorre e questiona, estupefacto, do que se passa. Em meio ao tumulto, Tanaquil ordena que cerrem as portas do palácio e afasta os que presenciaram a cena. Ao mesmo tempo prescreve os socorros que o ferimento do marido reclama, como se ainda esperasse salvá-lo, porém, já se faz valer doutros recursos, caso as suas esperanças venham a ser defraudadas. (2) Chama Servius, mostra-lhe Tarquínio prestes a expirar e, tomando-lhe a mão, conjura-o a vingar a morte do sogro e a não suportar que sua sogra se converta num joguete às mãos dos inimigos. (3) “Se tu és um homem, Sérvio – prosseguiu ela –, o trono é teu e não daqueles que recorreram às mãos de outrem para consumar o mais atroz dos crimes. Ergue-te, obedece aos deuses que te destinaram à potência real, tu a quem eles anunciaram um alto destino pela chama celeste que outrora brilhou em redor da tua cabeça. Que hoje essa chama te anime; que comece agora o teu despertar. Pois que também nós, embora estrangeiros, não havemos nós reinado? Atenta em quem tu és e não a donde vieste. E se o inesperado destes sucessos te tolhe a resolução, ao menos deixa que seja eu a conduzir-te.”

(4) Entretanto redobravam os gritos da multidão, com o tumulto prestes a tornar-se incontrolável. Então, duma janela alta que dominava a rua Nova(porque o rei morava perto do templo de Jupiter Stator), Tanaquil pôs-se a arengar ao povo, (5) exortando-o à calma. "A surpresa do golpe aturdiu o rei – diz –, mas a ferida não é profunda; ele retomou os sentidos; o ferimento foi examinado, o sangue estancado e o príncipe está fora de perigo. Assegura-lhes que dentro em pouco tempo, já restabelecido, o poderão ver por seus próprios olhos. Entretanto o rei ordena-lhes que obedeçam a Sérvio Túlio. É Tullius quem prestará a justiça e se ocupará das outras funções reais.” (6) E é nesse momento que Sérvio, fazendo-se preceder dos lictores e revestindo a trabea, faz a sua aparição e toma assento sobre o trono, pronunciando-se sobre alguns assuntos e fingindo, quanto a outros, pretender consultar o rei. Assim, poucos dias depois, Tarquínio cessou de viver e Sérvio, escondendo-lhe o falecimento, consolidou o seu próprio poder a pretexto de exercer o alheio. Por último, a verdade foi dada a conhecer e, em meio das lamentações que ecoavam pelo palácio, Servius, rodeado duma guarda segura, assenhoreou-se do imperiumreal. Pela primeira vez um rei fora nomeado apenas pelo senado, sem a participação do povo. (7) Os filhos de Ancus, à notícia de que os assassinos haviam sido presos, que o rei vivia e que a autoridade de Servius nunca havia sido tão sólida, partiram para um exílio voluntário em Suessa Pometia.

 

Casamentos; constituição serviana, census e grandes trabalhos.

XLII – (1) Sérvio, após colocar o poder ao abrigo de toda e qualquer oposição por parte do povo, quis ainda preservá-lo das disputas familiares; e para não ser tratado pela prole do falecido rei como este o fora pelos filhos de Anco, fez casar as duas filhas com os dois jovens Tarquínios, LuciusArruns. (2) Mas a prudência do homem foi frustrada pela inflexível lei do destino, e a sede de reinar fez brotar por toda a parte, em pleno seio da casa real, inimigos e traidores. Afortunadamente para a estabilidade do trono de Sérvio, terminou nesse conturbado momento a trégua com os Veientes e os outros povos da Etrúria, recomeçando a guerra. (3) Nesta refrega, a boa estrela de Serviusbrilhou tanto quanto a sua coragem. Talhou em pedaços os inimigos, apesar do seu número, e retornou a Roma como rei doravante por todos reconhecido, tivesse ele de se dirigir aos senadores ou de apelar ao povo.

(4) É então que, no lazer da paz, ele empreende uma obra de imenso alcance; e, se Numa foi o fundador das nossas instituições religiosas, já a posteridade atribui a Sérvio a glória de haver introduzido, no Estado, a ordem que distingue a posição social, as fortunas e as dignidades ao estabelecer o censo, a mais salutar das instituições para um povo destinado a um tão grande império. (5) Esse regulamento impunha a cada um a obrigação de prover às necessidades do Estado, fosse na paz, fosse na guerra, não por impostos individuais e comuns, como dantes, mas na proporção do seu rendimento. Sérvio formou de seguida as diversas classes de cidadãos e as centúrias, bem como esta sua ordenação fundada no próprio censo, e tão admirável na paz quanto na guerra, que passo a expor.

XLIII – (1) A primeira classe era composta pelos que possuíam um census (em latim, a palavra também significa “propriedade”, “fortuna”) de 100.000 ou maisasses; estava dividida em oitenta centúrias, quarenta de jovens e quarenta de homens maduros. (2) A estes últimos competia guardar a cidade, àqueles fazer no exterior a guerra. Tinham por armas defensivas, todas elas em bronze, o capacete, o escudo, as grevas e a couraça; por armas ofensivas, a lança e a espada. (3) A esta primeira classe Sérvio juntou duas centúrias de operários, que serviam sem levar armas e deviam preparar as máquinas de guerra. (4) A segunda classe compreendia aqueles cujo census, estando abaixo dos 100.000 asses, ia até aos 75.000, e compunha-se de vinte centúrias de cidadãos, divididas pela metade em juniores e seniores. As armas eram iguais às que usavam os da primeira classe, exceptuando o escudo mais longo e não levarem couraça. (5) O censo exigido para a terceira classe era de 50.000 asses; o número de centúrias, a divisão de idades, o equipamento de guerra, salvo as grevas, que Sérvio suprimiu, em tudo eram iguais aos da segunda classe. (6) O censo da quarta classe era de 25.000 asses e o número de centúrias o mesmo que na precedente, mas diferiam as armas: a quarta classe apenas usava a lança e o dardo. (7) A quinta classe, mais numerosa, compunha-se de trinta centúrias; estava armada de fundas e pedras, e incluía ainda os corneteiros e os trombetas, repartidos em duas centúrias. O censo desta classe era de 11.000 asses. (8) O resto do povo miúdo, cujo census não chegava aos onze mil asses, foi reunido numa única centúria isenta do serviço militar.