O espaço da História

Capítulo VI - A comunidade romana no período dos reis

OS PATRÍCIOS.

 

A palavra deriva de pater, e o mais provável é que nos inícios fossem chamados patrícios os que descendiam de pais legítimos e que, por isso, podiam também ter filhos legítimos. Ou seja, os patrícios ter-se-ão regido pelos costumes do direito paterno (o patriarcado). Segundo esses costumes, a herança do nome e dos bens transmitia-se por via masculina e os laços de parentesco válidos eram apenas os que derivavam do pai.

Na família patrícia, o pai da família (pater familias) detinha uma autoridade absoluta sobre todos os familiares, tinha o direito de castigá-los e o direito de reduzi-los à escravatura. Tinha sobre eles o que os juristas romanos chamaram “o direito de vida e de morte” (jus vitae necisque).

 

As “gentes” patrícias terão sido 300, segundo a tradição. Distinguiam-se pelo nomen, comum a todos os membros de uma delas.

 

Em geral, os patrícios romanos usavam três nomes: o nome próprio, praenomen; o nome da gens; e o nome da família, cognomen. Exemplo: Lúcio (praenomen) Cornélio (nomen gentilicium) Sila (cognomen).

 

Os patrícios conservaram, por muito tempo, o direito de herança da gens: os bens do falecido não podiam sair da gens.

Tal instituição prova ter existido uma comunidade de bens entre os membros da gens, sobretudo no que respeita à terra. Aliás, a tradição afirma que as famílias patrícias dos tempos dos reis só possuíam em propriedade privada duas jugera de terra (jugerum = 2523 m2; plural: jugera), meio hectare. Tratar-se-ia de uma parcela adjacente (o horto ou jardim) à terra da gens, dado que a terra de pastoreio ou de cultivo era propriedade de toda a comunidade patrícia.

Sobre esta terra comum as diversas famílias tinham direitos de posse (o jus possessionis), não possuindo o direito de propriedade privada.

Há outros vestígios da antiga estrutura social da gens patrícia, no culto dos mortos e nas sepulturas. A tradição assinala que as gentes patrícias tinham, quanto a isso, usos diversos (vieram, pois, de comunidades de clã diferentes). Por exemplo, Cícero diz que a gens dos Cornélios enterrava os seus mortos sem os cremar.

As gentes patrícias eram também “exógamas”: aos seus membros não era permitido o matrimónio dentro da gens.

 

Segundo algumas das fontes, os patrícios dividiam-se nas três tribos de Ramnes, Tities e Luceres.

Durante muito tempo, considerou-se que estas 3 tribos eram compostas pelos elementos “originários”: uma tribo de sabinos, uma outra de latinos e uma terceira etrusca. Mas tal tese foi completamente posta de lado. Hoje tende-se para a hipótese delas terem resultado da divisão de uma única tribo.

Essa divisão em três núcleos também se encontra noutras tribos itálicas, como os úmbrios e os sabinos, e não é muito diferente da que se verificou entre dórios e jónios na Grécia (as phylai).

 

Sempre segundo a tradição, cada tribo dividia-se em 10 cúrias; cada cúria em 10 décadas (gentes); cada década em 10 famílias. Haveria assim, no total, 30 cúrias, 300 gentes e 3.000 famílias, o que leva a pensar que esta primeira divisão haja sido intencional, talvez com finalidade bélica.

 

As fontes referem as cúrias, e a sua existência é confirmada pelo mais antigo calendário romano. A atender às poucas denominações que nos chegaram, as cúrias teriam já um carácter territorial.

Cada cúria era dirigida por um ancião (curião) e reunia-se num edifício próprio. Não conhecemos as funções desempenhadas por estas reuniões.

 

OS CLIENTES.

 

A palavra “cliente” significa “pessoa obediente”, “dependente” e, com efeito, eles dependiam dos chefes das diversas gentes e famílias patrícias, a quem chamavam “patrões”, isto é, “protectores”, “defensores”.

Chamava-se clientela ou patronato ao vínculo que unia os patrões com os clientes. Na base jurídica do vínculo estava o princípio dos serviços recíprocos: o cliente recebia do patrão a terra e o gado, gozava do seu auxílio perante o tribunal; em troca, estava obrigado a servir na milícia do patrão e, em alguns casos, também a ajudá-lo financeiramente; cumpria ainda diversas tarefas que o patrão lhe exigia.

O cliente entrava na gens do patrão na qualidade de membro “júnior”. Tomava parte no culto familiar e nas reuniões das cúrias.

Modo geral, os clientes provinham de grupos económica e socialmente mais débeis: estrangeiros, libertos, filhos emancipados da autoridade paterna, filhos ilegítimos.

 

No período dos reis e no primeiro período da República, a clientela foi uma sólida base de apoio social para os patrícios.

 

A Lei das 12 Tábuas refere-se-lhes: «Patronus si clienti fraudem fecerit, sacer esto» (patrão que engane o seu cliente, que seja execrado).

 

OS PLEBEUS.

 

Os termos plebeius, plebs, são em geral usados com o sentido de “massas”, “povo”. Diversamente, no período antigo, eles formavam um grupo da população que estava de fora da organização social dos patrícios e que, por isso, estava fora da comunidade romana.

Na última época da república, também aparecem entre os plebeus a família de tipo patriarcal, a organização em gens, o uso dos 3 nomes, etc. No período antigo nada disto se verifica.

 

Enquanto os patrícios viviam no sistema da propriedade social da terra, os plebeus viviam no sistema da propriedade privada, mas sem acesso à terra.

 

(Já vimos que no início não havia o direito de propriedade privada sobre a terra, apenas o direito de posse, o jus possessionis; e os plebeus, “proprietários privados”, não gozavam do jus possessionis. Esta situação de desfavorecimento social dos privados, no início da desagregação da comunidade primitiva, é comum.

A título de exemplo, veja-se “Os Argonautas do Pacífico” de Malinowski, sobre as ilhas Trobriand no Pacífico. Ali não há tipo mais desprezível do que o artesão/comerciante, segundo a opinião geral.)

 

A descendência dos plebeus era chamada incerta proles, o que significa que não se regiam pelas regras do direito paterno ou, pelo menos, que esse direito não lhes era oficialmente reconhecido.

 

Gozavam dos direitos civis, portanto, podiam ocupar-se do comércio e adquirir propriedades (jus commercii) (porém, não a terra “patrícia”). Mas não gozavam dos direitos políticos, não participavam nas reuniões das cúrias, não estavam representados no senado e não serviam nas milícias cidadãs (e, assim, não podiam deitar mão ao despojo de guerra).

Os matrimónios entre patrícios e plebeus foram ilegais até meados do século V ae.

Os plebeus tinham templos e santuários próprios.

 

AS ORIGENS DE PATRÍCIOS E PLEBEUS.

 

A tradição apresenta dois pontos de vista contraditórios sobre a origem destes grupos sociais. Segundo o primeiro, só os patrícios eram cidadãos, enquanto que os plebeus formavam a massa popular. No segundo, os patrícios são os “notáveis”, os “nobres”.

 

As contradições das fontes geraram numerosas teorias (Ou: à “confusão” das fontes juntou-se a “confusão” dos historiadores; porém, é da “confusão” que nasce a luz...às vezes). Estas teorias podem dividir-se em três grandes grupos.

 

O primeiro grupo teve por “pai” o historiador Niebuhr, nos princípios do século XIX. Os patrícios seriam o núcleo cidadão mais antigo. Já os plebeus eram habitantes de outras comunidades que se haviam transladado a Roma. Uns terão vindo voluntariamente, os outros, trazidos à força.

 

O segundo grupo dá particular atenção às características próprias de cada estrato, afirmando que patrícios e plebeus são originários de duas tribos distintas, uma tendo submetida a outra.

 

A terceira, a teoria mais difundida, supõe que a divisão terá surgido de processos económico-sociais. Ambas as classes teriam a mesma origem étnica. Os plebeus seriam cidadãos originários, tal como os patrícios.

 

Cada uma destas teorias “escolhe” entre as versões da tradição. Concentra a sua atenção numas, ignorando as outras. Mas as diversas fontes espelham diferentes estádios na formação destas classes. Por exemplo, a versão que afirma haverem sido os patrícios os cidadãos originários é mais antiga do que a versão que os designa como «notáveis».

 

TEORIA “TOTAL” SOBRE A ORIGEM DE PATRÍCIOS E PLEBEUS.

 

Tendo em conta o referido, e não “esquecendo” algumas das fontes, podemos tentar dar vida a uma teoria mais completa sobre a origem das classes romanas. Chamemos-lhe teoria total (diz Kovaliov).

 

Os patrícios formavam, de facto, o povo romano em pleno gozo dos seus direitos (o populus romanus). Na sua organização social, fundada na gens, ainda não se evidenciavam grandes diferenças de fortuna. Os patrícios possuíam a terra, viviam sob o direito patriarcal e, para resolver os seus problemas, reuniam-se em comícios curiais. Os clientes estavam na sua dependência directa.

 

Os plebeus, de um modo geral, distinguiam-se dos clientes, se bem que muitos deles viessem a tornar-se também clientes de famílias patriarcais.

A clientela era um vínculo de dependência privada (directa), enquanto que os plebeus, na expressão de um historiador, eram «os clientes do Estado» (dependência indirecta dos patrícios, pois que o Estado era destes).

Permanecendo os plebeus fora da organização social das gentes patrícias, não pertenciam ao populus romanus. Assim, não tinham direito ao jus possessionis no ager publicus (= “terras públicas”; “terras do Estado”) e estavam privados dos direitos políticos.

 

Os costumes familiares dos plebeus conservaram restos da consuetudo matriarcal (consuetudo = direito/uso consuetudinário; direito não escrito; o direito do costume, do uso). As suas mulheres gozavam, relativamente às patrícias, de uma maior liberdade.

 

O seu estatuto radicalmente diverso (do estatuto social de patrícios e clientes) leva-nos a supor que seriam, em parte, de uma origem étnica distinta do patriarcado sabino/latino.

 

Segundo Marr, os termos “plebeu”, “pelasgo” e “etrusco” tinham um significado equivalente.

 

(Mas Marr era um “criativo”; hoje em dia os criativos podem identificar-se como “belivados”. Quando ouvir na televisão, ler num livro, etc., etc., a expressão “I believe”, está certamente na presença de alguém com fé e imaginação. Exemplos: «Eu “belivo” que encontrei a múmia de Nefertiti»; «Eu “belivo” que Saddam tem armas de destruição maciça».)

 

É provável que na plebe, nos inícios, houvesse um grande número de emigrantes vindos da Etrúria. Aliás, a tradição refere precisamente isso.

 

(Nesta “teoria total” de Kovaliov falta sublinhar um facto comezinho: a capacidade do “homem patriarcal”de discriminar e maltratar os irmãos “bastardos”, “ilegítimos”. A título de exemplo,  as crianças-bomba contra os russos, no Afeganistão, eram órfãs.)

 

Com o decurso do tempo, os patrícios foram-se isolando socialmente, transformando-se num pequeno grupo fechado de nobres que enfrentava a massa crescente dos plebeus. Este processo teve lugar já nos alvores da República.

 

A DEMOCRACIA MILITAR.

 

A comunidade romana da época dos reis apresentava-se como uma cidade-estado primitiva. A assembleia das tribos por cúrias decidia sobre as questões mais importantes da vida da comunidade, declarava a guerra e, juntamente com o senado, elegia o rei ou, mais exactamente, conferia-lhe o poder supremo, o imperium; tratava também dos assuntos judiciais mais graves.

Cada cúria deliberava e decidia separadamente e tinha um voto. A decisão era adoptada pela maioria das cúrias.

 

O segundo órgão da democracia das tribos era o conselho de anciãos ou senado (a palavra deriva de senex). Os seus membros eram chamados “pais” (patres).

Segundo a tradição, Rómulo nomeou os primeiros 100 senadores. Tulo Hostílio acrescentou outra centena. Por fim Tarquínio o Antigo elevou o seu número para 300.

De qualquer modo, durante o período dos reis e nas épocas posteriores até Sila, o número de senadores será de 300.

Nos começos só eram membros do senado os chefes das famílias patrícias. É possível que, mais tarde, os novos senadores hajam passado a ser nomeados pelo rei.

No período entre a morte de um rei e a eleição do novo, a comunidade era dirigida, por turno, por um dos senadores (período chamado de interregnum).

O senado, formalmente, era um órgão consultivo do rei. Gozava porém de grande autoridade; em todas as questões importantes o rei devia ouvi-lo.

 

Ao rex (rei), há que o imaginar no tipo do basileus grego da época homérica, ou seja, bem longe de ser um monarca absoluto. Seria mais um chefe de tribo não hereditário, eleito vitaliciamente. Era o chefe militar e esta era a sua principal função. Era também o representante da comunidade ante os deuses. Detinha uma certa jurisdição, mas pouco sabemos sobre ela.

 

É de sublinhar que o carácter e a competência dos vários órgãos da democracia militar romana são temas de grande controvérsia. Também a este respeito a tradição é muito obscura. E só podemos formular hipóteses gerais, fundadas sobretudo no estudo comparado do material histórico (gregos da época de Homero, germanos da época de Tácito).

 

A REFORMA DE SÉRVIO TÚLIO.

 

Sobre este tema as tradições são particularmente confusas e contraditórias. Contudo a lenda diz-nos que houve, à época, uma ou várias importantes reformas da organização política e militar da comunidade.

 

Em primeiro lugar, teria surgido a organização territorial das tribos. A tribo territorial é a nova unidade administrativa. As tribos territoriais substituem as três velhas tribos fundadas sobre as gentes. A tradição não nos diz, em qualquer das suas versões, quantas eram as novas tribos. Mas sabe-se que na cidade havia a Palatina, a Suburana, a Esquilina e a Colina. Para o exterior os números da tradição variarão entre as 16 e as 26 tribos já numa época mais avançada.

 

Em segundo lugar, Sérvio Túlio teria dividido toda a população, tanto patrícios como plebeus, em cinco categorias de possuidores ou classes.

Na primeira classe do censo estavam os que possuíam um património de 100.000 ou mais asses (um lote completo de terras; talvez de 20 jugera). Os mais ricos desta classe serviam a cavalo e, por isso, eram chamados “cavaleiros” (equites). Os equites formavam 18 centúrias (6 de patrícios e 12 plebeias; mas isto já muito mais tarde). Os restantes da primeira classe serviam a pé, com o pesado equipamento completo da infantaria: elmo, couraça, polainas, escudo, lança e espada. Formavam 80 centúrias de infantaria pesada.

Na segunda classe, os possuidores de 75.000 asses (15 jugera ou 3,75 hectares).

Na terceira classe, os que detinham 50.000 asses (meio lote, 10 jugera ou 2,5 hectares).

Os da segunda e terceira classe apresentavam-se com armaduras ligeiras, formando ao todo 40 centúrias (20 centúrias a cada classe).

Na quarta classe estavam os que possuíam um património de 25.000 asses (5 jugera ou 1,25 hectares). Constituíam 20 centúrias.

Da quinta classe, os de património não inferior a 12.500 asses (2,5 jugera), segundo Dionísio. Tito Lívio diz 11.000 asses. Eram 30 as suas centúrias.

Os da quarta e quinta classe não usavam armadura.

 

Em cada classe, cada um armava-se à sua própria custa e, precisamente por isso, o armamento diferia de classe para classe.

Em todas as classes, metade das centúrias eram compostas de seniores (homens dos 46 aos 60 anos), a outra metade por juniores (dos 17 aos 45 anos de idade). As centúrias de seniores normalmente prestavam serviço de guarnição.

 

Os restantes cidadãos constituíam a infra classem (“classe inferior” ou “os sem classe”). Eram chamados proletarii (da palavra proles), ou seja, “os que só possuíam os seus filhos”. Eram ainda chamados capiti censi (recenseados ou contados apenas por “cabeça”; cidadão que só conta no Estado pelo número de filhos que tem). Estavam excluídos do serviço militar. Apenas uma centúria era formada pelos proletários.

Havia ainda 4 centúrias de operários e músicos militares.

 

Admitindo os plebeus no exército, era forçoso conceder-lhes alguns direitos políticos. E Sérvio Túlio tê-lo-á feito pela criação de uma nova forma de assembleia popular, onde participariam patrícios e plebeus, os comitia centuriata.

Cada centúria contava como um voto. Os cidadãos votavam dentro da sua centúria e as decisões eram tomadas com a aprovação da maioria das centúrias.

 

Assim, era forçoso que o número de indivíduos em cada centúria variasse de classe para classe, havendo um menor número de pessoas nas centúrias dos mais ricos. Caso contrário, teríamos de admitir que em Roma havia mais rico do que pobres ou que os ricos eram mais numerosos que a classe média, pois que havia 98 centúrias da primeira classe contra as 95 centúrias de todas as outras classes.

 

Os comícios por centúrias acabaram por assumir as funções mais importantes dos comícios por cúrias (comitia curiata), na declaração da guerra, na eleição dos magistrados, etc.

Se bem que as cúrias tenham continuado a existir, elas perderam a sua antiga importância.

 

Esta foi, segundo a tradição, a reforma de Sérvio Túlio. Muito do que nela é referido não é digno de crédito ou pertence a épocas posteriores. Por exemplo, o censo mediante a avaliação em asses do património. O asse (como lingote) não apareceu antes do século IV, o que leva a maioria dos historiadores a supor que o censo com base numa quantidade de dinheiro (não confundir dinheiro com moeda; lingotes de metal já são dinheiro) tenha sido introduzido por Ápio Cláudio, em 312.

 

E, segundo Diakov, só mais tarde, no decurso do século III, tendo sofrido uma apreciável desvalorização, o asse passou a ser moeda. De um lingote maciço de uma libra de cobre, é reduzido a uma ínfima parte desse peso, e será só então que o lote de 20 jugera passou a ser avaliado em 100.000 asses.

 

De início, o censo há-de ter-se baseado na terra possuída (e no gado, pelo menos). A divisão em cinco classes é pouco verosímil no século VI. Mas é provável que então os cidadãos tenham sido divididos em duas classes.

Aliás, é de estranhar a semelhança entre a reforma de Sérvio Túlio e as de Sólon e de Clístenes, o que faz supor ter havido uma “reelaboração” do passado pelos analistas. “Reelaboração” feita com base na historiografia grega.

 

Em todo o caso, a organização por centúrias (como unidade administrativa e não como unidade militar táctica, que nunca foi), tal como é descrita pela tradição, não existiu antes dos finais do século IV.

 

(A centúria nunca foi unidade táctica do exército. Muito mais tarde, foi uma subdivisão da unidade táctica: o manípulo. Centúria administrativa era uma “coisa”; centúria que veio a ser a metade de um manípulo “é outra coisa”.)

 

O que é de admitir: Nos finais do período dos reis, sob o reinado de Sérvio Túlio, os plebeus terão sido admitidos no exército (militia). Terá sido feita a divisão dos cidadãos com base na sua riqueza, sendo criadas, provavelmente, duas categorias. Isto levou a que as velhas unidades sociais gentílicas (que excluíam os plebeus) fossem substituídas por novas unidades territoriais, originando as novas tribos, segundo os quatro antigos distritos da cidade.

 

Engels: «Antes de ter sido suprimido em Roma o cargo de rex, foi suprimida a antiga ordem social, fundada nos laços do sangue, e foi substituída por uma verdadeira Constituição do Estado, baseada na divisão territorial e nas diferenças de fortuna. A força pública consistia, aqui, no conjunto dos cidadãos sujeitos ao serviço militar, não apenas contrapostos aos escravos mas também à classe proletária, excluída do serviço militar e do porte de armas.»

 

Tito Lívio (livro I, 36) diz que já Tarquínio o Antigo queria «acrescentar novas centúrias às dos cavaleiros recrutadas por Rómulo e denominá-las pelo seu próprio nome». Mas o áugure Attus Navius declarou que «nesse assunto não eram possíveis inovações sem o consentimento dos deuses».

Ou seja, já Tarquínio tentara a reforma, sendo obrigado pelos patrícios a renunciar a tal. O seu sucessor, Sérvio, terá conseguido realizá-la.

 

Mas, diz Lívio, os “pais” estavam descontentes por a terra tomada ao inimigo ser repartida com os plebeus, e este descontentamento terá sido aproveitado pelo último Tarquínio contra Sérvio Túlio (Lívio, I, 47): «Protegeu os da classe inferior, a que ele próprio pertencia (dizia Tarquínio aos senadores), e invejando a posição honorável dos outros, dividiu pelas pessoas mais desprezíveis as terras tomadas aos primeiros homens do Estado. Impôs aos nobres as obrigações que sempre haviam sido comuns a todos (só se pode entender como obrigações que antes eram de todos e que passaram a ser apenas exigidas aos “notáveis”). Ordenou o censo para que se conheça a situação dos ricos e se suscite a inveja, e para ter à mão a fonte a que recorrer em caso de necessidade, para satisfazer aos ávidos.»

 

(Vejamos o que diz sobre o assunto Diakov:) 

 

Diakov defende a hipótese de, na época calcolítica e no princípio da idade do bronze, na época da civilização dos “terramares”, os itálicos estarem ainda no estádio do matriarcado, isto porque a sua economia rudimentar de caça, pesca, pastoreio do gado miúdo e de agricultura à enxada, praticada sobretudo pelas mulheres, não poderia originar ainda um direito patriarcal.

Subsistiram traços do totemismo nos nomes de certos povos itálicos e no culto de animais considerados sagrados. Em Roma, serpentes, gansos e lobos.

 

Dá-se gradualmente a passagem para uma economia de pastorícia de gado graúdo e de agricultura a arado. Dadas as características favoráveis de solo e clima, o patriarcado ter-se-á constituído cedo em Itália, no apogeu da idade do bronze.

 

No Lácio os trabalhos de drenagem haviam sido abandonados, os pântanos haviam ganho terreno. Os protolatinos constroem lugares de refúgio nas colinas escarpadas. Segundo a tradição, esses locais eram em número de 30, com os seus cantões dependentes. O principal era Alba a Longa, um centro religioso, onde os habitantes dos 30 cantões se reuniam na festa comum do Júpiter latino.

 

Os protolatinos viviam no alto dessas colinas, em cabanas miseráveis, dedicando-se sobretudo à pastorícia e a uma agricultura primitiva nos vales mais secos.

 

Segundo a tradição, sete aldeias de pastores, dispersas no meio de uma densa floresta e de pântanos lodosos, cedo fundaram a sua confederação das “sete colinas”, com a sua cidadela comum no alto do Palatino.

Na colina mais próxima do Palatino, a de Vélia, ergueram o santuário dos antepassados comuns (os penates) e do “lar” público, o templo circular de Vesta, onde as virgens vestais mantinham perpetuamente aceso o fogo sagrado.

 

No Aventino terá existido um povoado lígure, que teria sido tomado pela força ainda antes do ataque a Albalonga (já vimos que há uma tese diferente).

Após a destruição de Albalonga, a festa de Júpiter latino passou a Roma.

Segundo alguns historiadores, Roma estaria então inscrita na lista dos confederados latinos com o nome de Vélia.

 

Desde tempos remotos, sobre o Tibre, na Salaria via, havia sido construída uma ponte de madeira sob pilares, confiada à guarda dos “pontífices”. Será esta a origem do colégio religioso homónimo.

 

O CLÃ ROMANO. PATRÍCIOS E CLIENTES. PLEBEUS.

 

Desde tempos imemoriais, o povo romano foi uma associação de clãs (gentes). Viviam economicamente em vaso fechado, isto é, em comunidades que se dedicavam sobretudo à pastorícia. O solo era considerado propriedade comum do clã, o seu património ou “pátria” (patria).

No início da época patriarcal a propriedade privada limitar-se-ia ao gado, às armas, jóias, utensílios domésticos e a pequenas hortas de 2 jugera.

 

A terra que não estava no domínio das gentes era considerada como pertencendo a todo o povo (ager publicus). Os membros de qualquer gens podiam fazer occupatio de terras do ager publicus, para as cultivarem. Desta forma tomavam delas possessio.

 

Todos os membros da gens em condições de pegar em armas tomavam parte na guerra, que assumia a forma de razias nas terras vizinhas, com o objectivo de recolher saque, gado sobretudo. Havia igualmente que repelir as incursões inimigas do mesmo tipo. A vendetta era também uma das funções das milícias dos clãs.

 

No clã patriarcal vigorava o princípio da fraternidade de todos os descendentes de um antepassado comum. O seu túmulo, geralmente mítico, era um lugar sagrado para a gens, o centro da necrópole do clã e do culto dos antepassados.

Assinalando a sua origem, todos os membros do clã usavam o nome comum, derivado do nome do antepassado. Os Julii eram os descendentes de Julo, os Claudii de Clausus, etc.

 

O pater familias, nos tempos mais remotos, aceitava os recém-nascidos na gens, vendia as filhas para se casarem, bania, dispunha a seu arbítrio dos bens e do trabalho comuns.

 

O casamento efectuava-se então por rapto ou compra da noiva. As mulheres casadas, como estrangeiras ao clã, mantinham o nome da sua gens originária e não gozavam de qualquer direito.

 

Foi-se dando uma diferenciação de fortunas e de prestígio entre as gentes, sendo umas qualificadas de “maiores” (100, segundo a tradição), as outras como “menores” (no século V haveria já 160 gentes menores).

 

Também no interior da gens se vai verificando diferenciação. Os seus chefes (patres), os seus irmãos e filhos, começam a formar uma “aristocracia de berço”. A sua descendência toma o nome de patrícios (filhos de patres). Aproveitando a sua posição privilegiada no seio da gens, apropriam-se de terras até então comuns, bem como dos santuários das gentes. Reduzem os outros membros da gens ao estado de “clientes”.

 

Os clientes recebem o seu lote de terra das mãos dos patrícios, que consideram como “patrões” (“os que recebem do pai”). Fazem a guerra sob o seu comando. Ajudam-nos a pagar resgate se são feitos prisioneiros. Contribuem para o dote das suas filhas (portanto, agora já não se compra a noiva).

 

(Muito do que Diakov afirma é tomado na História Comparada. Ele “interpreta” a tradição nessa base.)

 

Os historiadores divergem de opinião quanto à origem e condição dos plebeus. Ao que parece, a maioria da plebe terá sido formada pela antiga população do Lácio, que foi subjugada (uma das três teses que já conhecemos). A ela ter-se-ão juntado colonos vindos de diversos pontos de Itália.

 

Os plebeus não tinham organização de clã, não viviam em regime comunitário, mas sob o regime da economia privada familiar.

Não praticavam o culto dos antepassados. A sua divindade principal era Ceres, deusa da fecundidade, cujo templo se erguia no Aventino, fora das muralhas da cidade.

 

Na sua maioria, os plebeus “sem antepassados” eram pequenos agricultores. Alguns exerciam ofícios artesanais ou entregavam-se ao comércio miúdo.

Sem acesso às pastagens e às terras aráveis das gentes, por não lhes pertencerem, só podiam arrendar aos patrícios as terras do ager publicus, pois os patrícios eram os únicos que a elas tinham acesso (esta tese está em confronto com uma outra, já enunciada: a de que os plebeus receberiam as suas terras do Estado; eles seriam”clientes do Estado”). Por vezes às terras era adicionada uma “ajuda” em grãos e gado, que o plebeu tinha de reembolsar.

Não servindo nas milícias, não partilhavam do despojo de guerra.

Muitas vezes reduzido à situação de devedor insolvente, o plebeu era convertido, em virtude do direito antigo, em escravo do seu credor. Havendo vários credores, diz a Lei das XII Tábuas (III, 6), «poderão partilhar entre si o seu corpo; cortem-no mais ou menos, que tal não terá consequências legais». 

 

AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS E A CIVILIZAÇÃO DA ROMA PRIMITIVA.

 

O rex comandava as milícias reunidas dos clãs. Julgaria também as desavenças, para evitar as vendettas (mais uma vez, história comparada. Diakov não tem nada na tradição que lhe permita fazer uma afirmação destas). Eram os grão-sacerdotes das divindades comuns, cujo culto se relacionava com os fenómenos naturais.

 

Segundo a tradição, os reis governaram em Roma até 510. Os quatro primeiros reis serão apenas do domínio do mito e a história dos seus reinados pertence à lenda (opinião contrária a de  Kovaliov). Já não assim a partir de Tarquínio o Antigo.

 

Os comitia curiata seriam convocados pelo rex. Aí se decidiam as questões da paz e da guerra, se adoptavam as leis, admitiam-se novas gentes, etc.

 

No essencial, na Roma primitiva a gestão dos negócios públicos tinha ainda um carácter patriarcal, comunitário e pré-estadual. Mas já começam a surgir formas embrionárias de governo, dirigido contra os plebeus e os clientes.

 

A cultura dos romanos e dos latinos primitivos estava ainda num nível muito baixo. As suas povoações compunham-se de cabanas redondas, feitas de toros e ramos, com as paredes revestidas de terra amassada. Ignoravam o uso do torno de oleiro. Vestiam-se, de início, com peles de animais. Depois apareceram as túnicas e as togas de lã, de fabrico doméstico. O leite e outros produtos do pastoreio eram a base da sua alimentação.

Na religião dominava o animismo, a crença em inúmeros espíritos. Havia, por exemplo, Janus, o espírito da porta. Potina, o espírito da bebida. Terminus, o espírito do marco agrário.

Havia as almas dos antepassados falecidos: lares, manes, penates. Havia bruxos, os demónios malfazejos e arteiros, os fantasmas, etc.

 

O PROGRESSO ECONÓMICO E SOCIAL NO LATIUM E EM ROMA. AS PRIMEIRAS INFLUÊNCIAS GREGAS.  

 

A partir do século VII a Itália entra na Segunda Idade do Ferro. O uso do ferro irá tornar-se dominante. Ao mesmo tempo difundir-se-á a olaria, sinal de que o artesanato começa a diferenciar-se da agricultura. 

 

Um novo tipo de habitação, implantada no solo, de forma quadrada, atesta a passagem para a economia agrícola sedentária.

 

O inventário dos objectos encontrados nas sepulturas sugere o desenvolvimento das trocas. Foram descobertos objectos em âmbar e marfim, esmaltes e vidrilhos fenícios.

 

Um novo estalão de troca, lingotes de cobre de certo peso (as libralis), substitui o gado nas funções de dinheiro (O termo pecunia (dinheiro) deriva de pecus (gado)).

 

O clã patriarcal perde em importância face à economia familiar.

 

Nos séculos VIII e VII, todo o litoral oeste e o sul da península cobrem-se de uma rede de colónias gregas. Cumas (Cumae), Régio (Regium), Síbares (Sybaris), Heracleia (Heraclea), Tarento (Tarentum), entre outras.

Na costa oriental e meridional da Sicília essa rede apresentava-se ainda mais densa. Siracusa era a cidade mais importante da ilha.

 

Na Itália central, muito cedo se fez sentir a influência da colónia calcídica de Cumas, onde os Etruscos e, através destes, os latinos, foram buscar o seu alfabeto (que é apenas uma variante do alfabeto de Cálcis).

 

A julgar pela presença de numerosos fragmentos de cerâmica ática nos sítios arqueológicos, no século V Atenas há-de ter estado em relação comercial com o Latium e Roma.

 

No início do século V é construído no Aventino o primeiro templo romano de estilo grego, o templo de Ceres. Na mesma época, provavelmente, os artistas de Cumas terão fundido para o Capitólio a célebre loba (segundo uma outra tese, a obra será de origem etrusca).

 

ROMA SOB O DOMÍNIO DOS REIS CONQUISTADORES ETRUSCOS.

 

(Diakov é defensor desta tese que, escusado seria dizer, continua a ser discutida.)

 

Os achados da etruscologia moderna e os trabalhos dos arqueólogos italianos contemporâneos, Ducati, Pallotino, etc., estabeleceram que, no século VII, os etruscos dominaram uma vasta zona, englobando o Latium e uma parte considerável da Campânia.

As antigas aldeias das “sete colinas”, agora em poder dos etruscos, são convertidas numa cidade de tipo etrusco, que se torna a capital da “província” latina da Etrúria.

Sob a influência dos vencedores, ter-se-á tornado um centro artesanal e comercial. Foi rodeada de muralhas e construíram-lhe esgotos. No Capitólio é edificado, em estilo etrusco, um imponente templo consagrado a Jupiter Optimus Maximus, que foi o principal santuário romano.

Surge um arado mais aperfeiçoado. Surgem também as técnicas dos ofícios e da construção. E um novo tipo de casa, com átrio. Os lingotes de cobre como dinheiro. O alfabeto. Começa a usar-se em mais larga escala o trabalho escravo.

 

Sobre a reforma de Sérvio Túlio: de cinco em cinco anos (lustrum), procedia-se ao recenseamento do povo e do seu património (census), repartindo-o pelas classes de cidadãos. Provavelmente, os homens dos ofícios e os comerciantes, não possuindo terra, seriam também capiti censi, tal como os proletários. O censo, ao que parece, servia também como base para a percepção de impostos (tributum). Anciãos especialmente designados em cada tribo encarregavam-se da arrecadação do tributum e do arrolamento das milícias, com base nas “classes”.

 

É possível que já nesta época tenha surgido o germe do que mais tarde vieram a ser os comitia centuriata. No início não teriam o carácter de assembleias do povo, seriam apenas convocações e revistas militares.

 

A QUEDA DO DOMÍNIO ETRUSCO E O FIM DO PODER REAL.

 

Não restam dúvidas de que os etruscos foram expulsos de Roma por volta do ano 500. A secessão das cidades do Latium, com o auxílio das colónias gregas (Cumas sobretudo), terá sido seguida de uma sublevação popular em Roma, encabeçada pelos patrícios.

 

(Volta-se aos textos-base:)