Capítulo XX - O movimento dos Gracos
TIBÉRIO GRACO.
O movimento teve causas de natureza política e razões de ordem económica. No plano político, o movimento corporizou o novo partido democrático, desencadeando, contra a classe da nobreza, a luta pelo poder. No plano económico, expressou o arreigado apego à terra das massas camponesas romanas e itálicas, tentando deter o processo de concentração fundiária que as atirava para a miséria. Já com Caio, para além das reivindicações dos camponeses, outros interesses económicos entrarão em jogo.
A ideologia do movimento inspirou-se em boa parte nas concepções conservadoras e utópicas de uma fracção da nobreza. Esses nobiles propunham-se deter o processo de desenvolvimento do latifúndio esclavagista e renovar as camadas camponesas, que consideravam o esteio principal do poderio militar romano. Para alcançar tais objectivos, defendiam que se lançasse mão de uma reforma agrária.
Estas ideias, ainda que sob formas esvanecidas, já haviam sido enunciadas no “círculo dos Cipiões”: de Cipião Emiliano, Políbio, Lélio o Jovem, do estóico Panécio e outros. Mas este grupo não tomou qualquer iniciativa para as concretizar.
É um outro grupo de nobres, de início ligado aos Cipiões, o grupo dos Gracos, que irá tentar pôr em prática o “programa”.
Os Semprónios estavam entre as mais antigas estirpes nobres de origem plebeia. O pai, Tibério Semprónio Graco, fora tribuno da plebe, pretor, duas vezes cônsul, censor. Casara com Cornélia, filha de Cipião o Africano. Do matrimónio nasceram doze filhos, mas só Tibério, Caio e Semprónia (que casou com Cipião Emiliano) sobreviveram.
Cornélia enviuvou muito cedo; mas não voltou a casar, consagrando-se à educação dos filhos. Tibério e Caio receberam uma excelente instrução, tendo por mestres o reitor Diófanes de Mitilene e Blóssio de Cumas.
Ainda um jovem, Tibério participou na III guerra púnica, no séquito do seu cunhado (Emiliano), convivendo então com Caio Lélio e Políbio.
Tibério terá demonstrado grande valor frente a Cartago e ganho grande popularidade no seio do exército. Casa-se nesta época com a filha do princeps senatus, Ápio Cláudio.
Em 137 é questor no exército de Mancino, no cerco de Numância. O tratado com os numantinos, rejeitado depois pelo senado, terá sido de facto obra de Tibério. Este escapa à sorte de Mancino graças aos seus parentes e amigos (o senado ordenou que Mancino fosse entregue aos numantinos. Mas estes recusaram o “presente”, pois que aceitando-o estariam a reconhecer a quebra do tratado pelos romanos). Dá-se assim o primeiro choque entre Tibério e a oligarquia senatorial.
Plutarco (“Tibério Graco”, VIII) conta que na viagem para a Hispania, ao atravessar a Etrúria, Tibério deparou com uma região despovoada de camponeses, onde trabalhavam agora «estrangeiros e bárbaros» (os escravos).
No Verão de 134 apresenta a sua candidatura a tribuno da plebe para 133. As eleições decorreram no meio de uma agitada e apaixonada campanha pela reforma agrária. Diz Plutarco que as eleições foram dominadas pelas «aspirações e a vontade de agir do povo romano que, com inscrições sobre os pórticos, os muros e os monumentos, incitava Tibério a tirar aos ricos as terras do Estado para as redistribuir pelos pobres».
Tibério, que já há algum tempo se vinha pronunciando pelas reformas, é eleito por unanimidade (das trinta e cinco tribos).
Ao assumir o cargo, a 10 de Dezembro de 134, apresenta de imediato o seu projecto de reforma agrária. Era apoiado por um pequeno grupo de nobres, que incluía o sogro, Ápio Cláudio. Na redacção do projecto colaboraram os juristas então de maior nomeada, Públio Múcio Cévola e Públio Licínio Crasso.
Na defesa do seu projecto Tibério usou como principal argumento a “tese” do grupo dos Cipiões: a da necessidade de fazer renascer o antigo sustentáculo do poder militar romano. Apiano (“As guerras civis”, I, 2): «O objectivo de Graco, mais que fazer a felicidade dos pobres, era o de obter, nas suas pessoas, uma força bélica capaz para o Estado». O discurso que pronunciou antes da votação defendia, no essencial, essa tese conservadora.
Mas o movimento popular de massas que se desencadeia arrastá-lo-á, fazendo-o ir bem mais longe.
Plutarco dá-nos parte de um dos seus discursos em defesa dos deserdados (ibidem, IX): «Até as feras da selva têm o seu covil e as cavernas aonde se podem abrigar; mas os homens que lutam e morrem pela Itália nada possuem além do ar e da luz do dia. Privados de um tecto, erram de terra em terra com a mulher e os filhos. Os comandantes enganam os soldados quando nos campos de batalha os incitam ao combate para defender dos inimigos os seus sepulcros e os seus lares; mentem, porque a maioria dos romanos não tem nem altar paterno nem sepulcro dos antepassados. Só têm o nome de amos do mundo, mas para morrer pelo luxo dos outros sem poder chamar seu a um pedaço de terra».
O seu projecto de lei não nos chegou textualmente, no entanto podemos estabelecer-lhe o conteúdo nas suas linhas gerais.
No primeiro artigo reeditava a velha lei de Licinio e Séxtio, ampliando-lhe os limites. A cada proprietário era permitido deter 500 jugera no ager publicus. Tendo descendência, eram-lhe ainda concedidos mais 250 jugera por cada filho, até ao limite de 1.000 jugera de terras públicas por família.
O segundo ponto do projecto prescrevia que a restante terra estatal seria reintegrada no domínio público (indemnizando os possuidores pelas benfeitorias feitas), para ser redistribuída pelos cidadãos pobres em pequenas parcelas (provavelmente, de 30 jugera), dadas em arrendamento hereditário. Diz Apiano (I, 10) que essas parcelas não podiam ser vendidas, de maneira a impedir a sua reaquisição pelos ricos proprietários.
Por fim o projecto previa a formação de uma comissão de três membros com plenos poderes para dar execução à reforma (triumviri agris judicandis adsignandis). Eleitos pela assembleia popular com um ano de mandato, era-lhes facultado recandidatarem-se a sucessivos mandatos.
Plutarco diz (ibidem, X) que o projecto teve duas redacções, sendo a primeira mais favorável aos grandes proprietários.
Não se sabe qual a extensão do ager publicus compreendida pela lei: se o era numa parte ou no seu todo. Também nos é impossível dizer quais as camadas da população a beneficiar, se somente os cidadãos romanos ou se também sectores dos socii itálicos.
A esmagadora maioria do senado opôs-se à rogatio.
Marco Octávio, um dos tribunos da plebe e amigo de Tibério, era um grande proprietário fundiário, possuindo uma extensão considerável de terras estaduais. A nobreza tratou de o ganhar para a sua causa, transformando-o em instrumento de boicote à reforma. Após algumas indecisões, Octávio opõe o seu veto ao projecto de lei. Tibério tentou convencê-lo, mas não o conseguiu demover.
Então, usando os seus poderes de tribuno, Graco começa por interditar aos magistrados o normal exercício das suas funções. A interdição seria levantada no dia em que a rogatio fosse posta à votação.
Mas Tibério não podia fazer acatar uma tal medida. Vendo que desse modo não alcançaria o efeito visado, manda colocar sentinelas no templo de Saturno, onde era guardado o Tesouro estatal, conseguindo com isso paralisar toda a máquina governativa (alguns historiadores contemporâneos consideram este episódio inverosímil; tratar-se-ia de mera invenção da tradição hostil aos Gracos).
A tensão agrava-se e Tibério, que temia um atentado, começa a sair armado.
Quando os comícios tribais são convocados, Octávio reafirma o seu veto, tornando iminente o confronto.
Procurando ainda uma resolução pacífica do conflito, os tribunos da plebe dirigem-se ao senado, então em sessão. Mas só ali receberão escárnio e insultos.
Tibério dirige-se então ao povo, convocando para o dia seguinte novos comícios, e anuncia que será perguntado (Apiano, I, 12) se «um tribuno da plebe que não se conduzisse de acordo com os interesses do povo devia continuar no seu posto».
Graco estava deste modo a abandonar os métodos legais de luta e a entrar na via revolucionária.
A ideia da superioridade do povo, que Tibério invocava, não era de todo estranha à constituição romana. No entanto, na prática, tal princípio quase nunca se aplicou. A Tibério cabe o mérito de ter sido o primeiro a fazê-lo (a teoria da soberania popular é por ele exposta num discurso que Plutarco recolheu; “Tibério Graco”, XV).
(A assembleia popular já havia decidido contra o senado no caso da aliança com os Mamertinos, no início da I guerra púnica; mas a ratificação de tratados e a declaração da guerra eram uma competência normal dos comitia centuriates. Caso mais controverso é o episódio da eleição pela assembleia popular de Cunctator, como ditador, e do seu magister equitum, bem assim como o episódio de então dos “dois ditadores”. Neste caso pode-se falar de uma “convulsão” da soberania popular; porém, nessa altura, nem o senado se opôs nem essas nomeações assumiram carácter revolucionário.)
Quando as tribos se voltam a reunir no dia seguinte, Graco tenta uma vez mais convencer Octávio a retirar o seu veto e de novo este se recusa a fazê-lo. A questão é posta a votação e as trinta e cinco tribos decidem-se, unânimes, pela destituição de Octávio. Uma outra pessoa é eleita em sua substituição. Os comícios votam de seguida a rogatio da reforma agrária, que é aprovada, adquirindo força de lei (lex Sempronia). São eleitos como triúnviros, Tibério, Ápio Cláudio e Caio Graco (então no cerco de Numância).
Muitas das terras do ager publicus já se haviam “dissolvido” em propriedade privada. Convictos de que o Estado nunca lhes questionaria os direitos, os seus possuidores tinham invertido nelas os seus capitais; haviam-nas transmitido por herança; cercado de muros e praticado inúmeros outros actos como proprietários plenos. Era já praticamente impossível recuperar para o Estado essas terras.
Acresce que todos tentavam provar, por qualquer meio, serem as “suas” terras não de possessio, mas de sua propriedade plena.
Não obstante tudo isso, a comissão trabalhou com energia, sustentada pelo apoio popular e lançando mão dos seus poderes ditatoriais.
A lei agrária apenas referia a entrega de terra aos cidadãos pobres. Contudo estes necessitavam em absoluto de sementes, instrumentos de lavoura e de provisões que lhes permitissem sobreviver até ás colheitas. Ora a lei não previa qualquer subsídio estatal nesse sentido. Se esta dificuldade não fosse resolvida, a reforma agrária soçobraria inevitavelmente.
É então, no Verão desse ano de 133, que vem a público o testamento de Átalo de Pérgamo. O senado, seguindo o que já era consuetudo constitucional, pretendia que lhe fosse confiada a administração da nova possessão do povo romano, mas Tibério opõe-se. Propõe à assembleia popular que os tesouros de Átalo III sejam usados para subsidiar os novos proprietários e, ao mesmo tempo, declara que competia ao povo, não ao senado, decidir sobre a sorte das cidades do reino de Pérgamo.
A oposição dos círculos reaccionários atinge o paroxismo. Acusam Tibério de aspirar a ser proclamado rei e recorrem às atoardas mais néscias; por exemplo, a de que lhe seria trazido de Pérgamo o manto de púrpura e o diadema de Átalo, como homenagem ao futuro rei de Roma.
Enquanto isso, Tibério teria lançado novos projectos de reforma: diminuição do tempo de serviço militar; direito de apelar ao povo das sentenças judiciais; inclusão dos cavaleiros nos colégios judiciais em paridade numérica com os senadores; talvez, também a concessão dos direitos de cidadania aos latinos e aos aliados.
Todos estes projectos, que Tibério não pôde levar a cabo, serão retomados e realizados em parte por Caio.
Aproximava-se a data das eleições para os tribunos da plebe de 132. No Verão de 133 Tibério apresenta a recandidatura. A nobreza, decidida a eliminá-lo, recrudesce nas acusações de que ambicionaria a tirania.
Com uma multidão dos seus clientes, os nobres apresentam-se em força nos comícios e, pela balbúrdia, conseguem fazê-los adiar para o dia seguinte.
Logo pela manhã, os partidários de Graco começam a encher a praça do Capitólio, onde os comícios se iriam desenrolar. Os nobres de novo tentam impedir a reunião. Dão-se confrontos e os nobres são expulsos da praça.
Simultaneamente, também no Capitólio, no templo da deusa Fides (a “Boa Fé”), o senado reunia-se. Os nobres expulsos da assembleia “informam-no” de que Tibério teria pedido na assembleia, para si, a coroa de rei. Então o pontífice máximo Cipião Nasica e os senadores, acompanhados pelos seus clientes, dirigem-se aos comícios e atacam os democráticos.
Tibério e 300 dos seus partidários são mortos no recontro. De noite, os seus cadáveres serão lançados ao Tibre.
REACÇÃO E RESSURGIMENTO DO MOVIMENTO.
O poder caiu nas mãos dos extremistas reaccionários, ávidos de vingança, com o senado a constituir comissões especiais para a repressão dos democráticos: alguns são condenados ao exílio, outros executados; entre estes últimos estava o reitor Diófanes de Mitilene.
Contudo não se atreveram a revogar a lei agrária e a comissão de triúnviros prosseguiu o seu trabalho. Para o lugar de Tibério foi eleito Públio Licínio Crasso, sogro de Caio Graco e partidário da reforma. Em 131 Crasso será eleito cônsul e enviado a Pérgamo, a reprimir a revolta de Aristonico.
Cipião Emiliano também se apresentara às eleições para o consulado, como rival de Licínio Crasso, mas apenas obteve os votos de duas tribos. Essa hostilidade do povo para com o seu antigo favorito advinha do “qui pro quo” de Cipião na questão agrária: antigo partidário da reforma, convertera-se num dos seus inimigos quando ela começou a ser executada.
Segundo Plutarco (ib, XXI), quando Cipião, então em Numância, soube da morte de Tibério, terá citado, de Homero: «Que assim morra quem faça uma semelhante coisa». No entanto, posteriormente, nos comícios, Emiliano elogiou a acção do falecido cunhado.
O povo enfureceu-se de tal modo com o assassínio de Tibério que Cipião Nasica foi obrigado a abandonar Roma. Morre pouco depois na Ásia, onde se havia radicado.
Já foi dito que Crasso morreu na luta contra Aristonico. Mais ou menos na mesma época, também Ápio Cláudio falece. Para os seus lugares são eleitos os democráticos Marco Fúlvio Flaco e Caio Papírio Carbão. Caio Graco manteve-se como terceiro membro da comissão.
Haveria já poucas terras públicas para distribuir e, das que restavam, a maioria teria o título jurídico em discussão. O descontentamento e a oposição dos possuidores iam em crescendo; ao mesmo tempo, a comissão enredava-se mais e mais em casos duvidosos, que geravam intermináveis discussões.
Dificuldade particular se apresentava nos casos em que os possuidores eram aliados itálicos, ligados a Roma por tratados especiais. O confisco das suas terras, em muitos casos, podia infringir tais acordos.
Em 129, Cipião Emiliano, intervindo a favor dos proprietários itálicos, consegue que o senado exclua das competências dos triúnviros a decisão dos casos em que a pertença das terras ao domínio público houvesse sido contestada. Esses casos passaram a ser decididos por um dos cônsules, Caio Semprónio Tuditano. Pouco tempo depois este partirá para uma campanha na Ilíria. Cipião, a pretexto da ausência de Tuditano, faz cessar o exame dos processos de confisco em litígio, obstruindo desse modo toda a acção dos triúnviros.
Este é o relato tradicional dos sucessos do ano de 129, baseado exclusivamente em Apiano (I, 19), a única fonte disponível. Porém, é difícil de entender como é que os casos em litígio, da competência dos triúnviros por decisão da assembleia popular, lhes foram retirados por simples decisão do senado.
Também aquela outra afirmação de Apiano, a de que a comissão interrompeu os seus trabalhos, entra em contradição com os dados que se conhecem. Segundo Lívio (fragmentos dos livros LIX e LX), entre os anos de 131 e 125, o número de cidadãos romanos inscritos nas listas do censo aumentou de 318.823 para 394.736. Ora como teria sido isso possível se os triúnviros houvessem cessado de facto a sua actividade em 129?
A hipótese mais plausível será a seguinte: o senado tinha o direito de intervir nos casos de confiscos de terras a aliados, porquanto se tratava de uma questão de respeito pelos tratados, um problema de relações “internacionais”, na esfera das suas competências. Assim, devem ter sido transferidos para o cônsul apenas os casos em litígio respeitantes aos socii, tendo os triúnviros continuado a ocupar-se dos contenciosos com cidadãos romanos e prosseguido com a distribuição de terras. Contudo, as dificuldades da comissão hão-de ter-se avolumado.
Pouco tempo depois destes sucessos, Cipião é encontrado morto no leito. No dia anterior, aparentando perfeita saúde, preparara o discurso que iria pronunciar nos comícios. No entanto não foi encontrado no seu cadáver qualquer indício de violência. Esta morte misteriosa gerou os mais diversos boatos: uns acusavam os democráticos; outros diziam que a esposa, Semprónia, com quem andava de más relações, o teria envenenado com a ajuda de Cornélia; outros ainda admitiam a morte natural. Plutarco (“Caio Graco”, X) diz que as investigações foram interrompidas porque o povo temia que democráticos influentes estivessem envolvidos na sua morte, Caio Graco em particular. Mas é provável que a morte se tenha dado naturalmente, dado que Cipião já não era nenhum jovem.
À questão da reforma agrária ligava-se uma outra, a da concessão dos direitos de cidadania aos itálicos. Por um lado, havia que ser cidadão para se beneficiar das distribuições de terras; portanto, os socii pobres não devem ter delas participado. Mas por outro, para atenuarem os protestos dos proprietários itálicos contra os confiscos de terras, concediam-lhes os direitos de cidadania (Apiano, I, 21).
Nas comunidades itálicas os ânimos iam agitados. Em Roma, com a aproximação do período do censo de 125, vão-se concentrando muitos cidadãos. Correm entre eles rumores quanto a uma hipotética extensão dos direitos de cidadania.
O senado e uma parte considerável dos cives romani eram contrários a qualquer concessão.
Em 125 chega ao consulado Fúlvio Flaco, membro da comissão agrária e um dos chefes do partido democrático. Propõe, sem êxito, que sejam concedidos aos itálicos os direitos de cidadania e, para os que não desejassem por qualquer motivo tornar-se cidadãos romanos, o direito de apelar perante a assembleia popular contra actos dos magistrados. Opôs-se a isso o senado e, provavelmente, também a assembleia popular.
O fracasso do projecto de Flaco provocou indignação nas comunidades latinas e aliadas. A florescente colónia latina de Fregellae, no vale do Liri, revolta-se. O senado reage de imediato, tratando de impedir o alastrar da rebelião, com Fregelas a ser tomada e destruída pelas forças do pretor Lúcio Opímio.
CAIO GRACO.
É então que Caio faz a sua entrada na cena política central. Nove anos mais novo que o irmão, até 124 apenas interviera politicamente na sua qualidade de membro da comissão agrária (à data da morte de Tibério, Caio não se encontrava em Roma).
Em 126 estava na Sardenha, como questor, ali permanecendo dois anos. Procurando mantê-lo afastado de Roma, o senado queria deixá-lo na ilha por mais um ano. Porém Caio volta a Roma, onde os censores o sujeitam a juízo. Consegue livrar-se da acusação (ter retornado à cidade sem autorização do senado), mas os seus inimigos não desarmam, acusando-o de fomentar a revolta entre os aliados. Também esta acusação é repelida e, ainda em 124, apresenta a sua candidatura a tribuno da plebe para 123. Gozava então de uma enorme popularidade.
Plutarco (“Caio Graco, III) diz que para as eleições se reuniu uma enorme multidão em Roma, vinda de toda a Itália; muitos não conseguiram encontrar alojamento na cidade e, no dia da votação, o forum não pôde comportar todos os eleitores. Mas não estiveram presentes apenas partidários de Caio, porquanto, pelo número de votos que recebeu, apenas foi eleito em quarto lugar.
Recebera uma magnífica instrução e foi um excelente orador. Decidido, possuidor de uma vontade firme, era capaz de impor a si próprio uma disciplina férrea. Pela sua multiforme actividade, dirigida às questões mais importantes do seu tempo, Caio foi um dos maiores estadistas da Antiguidade.
Assumiu o cargo a 10 de Dezembro de 124.
A tradição não nos relata, tal como fez com Tibério, nem o conteúdo concreto das medidas que tomou nem a sua sucessão cronológica. As fontes quase só nos dão as designações das diversas leis, confundindo a ordem em que se sucederam no tempo e contradizendo-se no restante. Por isso, à história dos dois anos do tribunado de Caio Graco (123 e 122), apenas a podemos reconstruir nas suas linhas gerais.
Ao que parece, logo no início do seu primeiro tribunado, faz promulgar uma lei com força retroactiva contra as comissões judiciais especiais que se haviam encarregue da repressão dos partidários de Tibério. Essa lei submetia a juízo todos os magistrados (os presidentes das comissões) que houvessem condenado à morte ou ao exílio cidadãos romanos.
As medidas mais importantes do seu primeiro tribunado foram a lex agraria, a lei do trigo (lex frumentaria) e a lei judicial.
A lei agrária terá repetido no essencial a de 133, com alguns acrescentos; e repunha, em toda a sua amplitude originária, as competências de decisão dos triúnviros agrários.
O conteúdo da lex frumentaria (provavelmente anterior à lei agrária) é discutido. Lívio (fragmento do livro LX) diz que o preço do trigo do Estado foi fixado em seis asses e um terço por modius.
(Estimativa de Kovaliov para o valor do asse, neste período = 1,15 dólares de 1948; quanto ao modius, Diakov diz-nos que equivaleria a cerca de 8,7 litros.)
Desconhecemos qual era então o preço de mercado do trigo. Alguns defendem que o preço de 6 asses e 1/3 por módio estava muito abaixo do preço de mercado, sendo menos da metade dele; outros afirmam que o preço do trigo de Estado era igual ao preço mais baixo do mercado.
Fosse como fosse, mesmo que o preço estatal não se diferenciasse muito dos preços mais baixos do mercado, a lei era um garante para a população mais pobre contra as frequentes oscilações especulativas do preço do pão (cada cidadão beneficiado pela lei teria direito a cinco módios mensais de trigo). É assim introduzido em Roma o controlo estatal de preços, visando aliviar a situação dos estratos sociais mais vulneráveis.
O grão destinado à venda a preço fixo era importado das províncias e guardado em armazéns do Estado. Além de acarretar um enorme ónus ao Tesouro, o grão barato, já o vimos, fez precipitar os preços no mercado e foi causa de miséria na pequena economia agrícola italiana.
A lei do trigo foi também o ponto de partida para as ulteriores distribuições gratuitas de trigo e outros géneros à população urbana mais pobre. Nos finais da República os demagogos usarão a distribuição gratuita do pão como uma “ferramenta” para arrebanhar o lumpem.
Deste modo, se a lex frumentaria no curto prazo reforçou o movimento democrático na cidade, a longo prazo ela vai metamorfosear-se num dos “instrumentos” que provocaram a queda da República.
Não sabemos se a lex judiciaria visou todas as comissões judiciais permanentes (quaestiones perpetuae) ou se apenas as que investigavam as acusações de concussão contra os magistrados provinciais (quaestiones de repetundis).
Quanto à sua composição, Lívio (ibidem) diz que Caio manteve os tribunais de investigação nas mãos dos senadores, mas que aumentou o número de juízes para 600, com os novos membros a provirem dos equites. Segundo Plutarco (ib, V), «Caio agregou aos senadores juízes, que eram 300, um número igual de cavaleiros, formando desse modo um tribunal misto de 600 juízes». Já Apiano, Cícero, Diodoro e outros afirmam que a maioria das comissões judiciais foram arrebatadas aos senadores, sendo entregues aos cavaleiros.
A participação dos cavaleiros nos tribunais de investigação constituiu um sério golpe nos privilégios da nobreza. E também fez crescer a influência política dos equites no movimento democrático.
No primeiro ano do tribunado de Caio terão sido aprovadas ainda outras leis:
A lex militaris, que interditava a incorporação no exército de jovens romanos menores de 17 anos. Segundo esta lei, todo o equipamento dos soldados passava a ser integralmente custeado pelo Estado. Anteriormente, o Estado já entregava aos legionários o respectivo equipamento, mas deduzindo-lhes posteriormente no soldo o respectivo valor.
A lei para a construção de estradas (lex de viis muniendis). Empreenderam-se então grandes trabalhos, dando ocupação a muitos operários e enriquecendo os publicanos de obras públicas. Caio dirigia todas estas obras, criando assim mais um pólo de confronto com a aristocracia, pois que estava a intervir na esfera de competências do senado e dos censores.
A lei sobre as províncias consulares (lex de provinciis consularibus), alterando o modo de atribuição das províncias ao cônsules. Até então o senado atribuía-as logo após as eleições, o que lhe permitia entregar aos seus homens de confiança as províncias mais ricas. A nova lei impunha que as províncias fossem outorgadas ainda antes da eleição consular.
Todas estas reformas requeriam grandes recursos financeiros. Eram, pois, necessárias novas fontes de receita estatal. Por proposta de Caio, é introduzido o dízimo na nova província da Ásia (o ex reino de Pérgamo), contratando-se-lhe a arrecadação dos impostos (lex Sempronia de provincia Asia).
Nem o dízimo nem o sistema de concessão da arrecadação de impostos eram novidade, existindo já noutras províncias. A singularidade residia no novo modo de adjudicação: em leilão público na própria Roma.
Enquanto que na Sicília e na Sardenha a arrecadação do dízimo e dos outros impostos era concessionada no local, sendo relativamente pequena a área adjudicada em cada um dos contratos, a Ásia era atribuída em monopólio, com o contrato a conceder a cobrança dos impostos em toda a província.
O novo sistema, se permitiu aumentar as receitas de Estado, também deu carta branca aos publicanos arrecadadores para o saque da rica região; tanto mais que os seus iguais equites lhes garantiam a completa impunidade nas comissões judiciais.
Esta prática estendeu-se depois às outras províncias.
Nas eleições dos tribunos da plebe para 122 Caio de novo é eleito. A nobreza não se havia atrevido a levantar-lhe qualquer obstáculo à recandidatura.
Caio gozava então da máxima autoridade, com o movimento democrático romano a atingir então o seu breve período de apogeu. Era o omnipotente tribuno da plebe (e triúnviro agrário), dirigindo as grandes obras públicas, com todo um exército de empresários e agentes na sua dependência.
Para a nobreza, Caio representava a ditadura. Mas nenhuma medida importante foi tomada sem a aprovação da assembleia popular, agora plenamente soberana, relegando o senado e os magistrados para segundo plano.
Ao que parece, as leis mais importantes de 123 terão sido tomadas no segundo semestre desse ano, quando Caio, já reeleito para 122, havia reforçado consideravelmente a sua posição no poder.
Em finais de 123 ou inícios de 122 surgem duas novas propostas: o projecto-lei sobre o estabelecimento de colónias (lex Sempronia de coloniis deducendis) e o projecto de concessão dos direitos de cidadania aos itálicos.
As terras disponíveis do ager publicus haviam-se quase esgotado. Assim, o estabelecimento de novas colónias permitiria prosseguir com a entrega de terras aos cidadãos pobres, complementando a reforma agrária.
Caio fundou no Brútio a colónia de Minérvio (Minervium) e, na região de Tarento, a de Neptúnia (talvez ainda uma terceira, na região de Cápua).
Dada a falta de terras livres na Itália, Caio propôs-se formar uma colónia no exterior, no território da antiga cidade de Cartago.
Pela primeira vez na história de Roma tentava-se promover a formação de colónias no ultramar.
Apesar do local escolhido ser maldito, a rogatio é apresentada pelo tribuno da plebe Rúbrio e é aprovada (lex Rubria). À nova colónia foi dado o nome de Junónia.
Se bem que o projecto permitisse novas distribuições de terras, não se visaria a constituição de colónias preponderantemente agrícolas: os territórios escolhidos eram favoráveis à indústria e ao comércio; e Plutarco diz (ib, IX) que Caio procurou fomentar o interesse das pessoas de fortuna pelas novas colónias.
O projecto sobre a extensão dos direitos de cidadania terá tido uma primeira versão, mais moderada, em que apenas se referia aos latinos. Caio terá elaborado depois uma segunda versão, mais radical.
Decidida a dar luta, a aristocracia vai recorrer de novo a um tribuno da plebe, Marco Lívio Druso, rico, famoso e de oratória fácil. E deitar mão de uma nova táctica, a apresentação de contra-projectos demagógicos.
Lívio apresentou uma rogatio para a fundação em Itália de doze colónias, com o estabelecimento em cada uma delas de 3.000 cidadãos. Estes seriam isentos de qualquer imposto (a lei de Caio previa que os habitantes das colónias pagassem uma pequena taxa, a título de renda da terra). Tal projecto era irrealizável e nenhuma dessas colónias virá a ser formada, mas o povo aprova-o (lex Livia). O prestígio de Caio sofre o seu primeiro revés.
Contra o projecto da concessão de plenos direitos aos latinos, Lívio apresenta um outro, a proibir aos comandantes romanos a inflicção de castigos corporais aos latinos durante as campanhas militares. Também esta rogatio foi aprovada.
Na Primavera de 122, na sua qualidade de triúnviro para o estabelecimento das novas colónias, Caio, acompanhado por Fúlvio Flaco, passa setenta dias em África, ocupando-se da fundação de Junónia.
A sua ausência de Roma em tal momento constituiu um grave erro político. Os inimigos aproveitam-no, lançando uma campanha de agitação contra a sua pessoa.
Regressando a Roma, Caio apresenta a rogatio de sociis et nomine latino. As fontes contradizem-se quanto ao seu conteúdo, com uns a afirmarem que concedia iguais direitos de cidadania a aliados e latinos, outros a sustentar que apenas os latinos receberiam a cidadania plena, prevendo-se direitos limitados para os aliados.
Fosse como fosse, o novo projecto alcançava camadas mais vastas da população itálica e, por isso, gerou também uma maior e mais viva oposição entre os cidadãos romanos.
Um dos cônsules de 122, Caio Fânio, um antigo amigo e partidário de Graco que se passara para o partido contrário, encabeçou a campanha contra a rogatio. Fânio dizia que os latinos, logo que gozassem dos direitos de cidadania, se apoderariam do melhor em Roma, relegando os romanos para a posição de cidadãos de segunda.
No dia da votação, a proposta do senado, Fânio ordena a todos os não cidadãos que abandonem Roma.
Não se sabe o que aconteceu nos comícios. Talvez Lívio Druso tenha interposto o seu veto à rogatio, talvez o próprio Caio a tenha retirado, dada a oposição reinante na assembleia popular. De qualquer modo, a sua proposta não singrou e Caio sofreu uma gravíssima derrota.
Quando no Verão de 122 volta a apresentar a sua candidatura a tribuno da plebe para 121, é-lhe decretada a impedição. Além disso, e facto tão ou ainda mais grave, nas eleições consulares é eleito Lúcio Opímio, um inimigo mortal dos Graco.
No dia 10 de Dezembro de 122 cessou o mandato de Caio como tribuno da plebe e, no dia 1 de Janeiro de 121, os novos cônsules iniciaram as suas funções.
A aristocracia decidira ser chegado o momento de aniquilar Caio, provocando-o abertamente ao confronto. Junónia serviu-lhes de pretexto.
O tribuno da plebe Minúcio Rufo propõe então a liquidação da colónia. Paralelamente, põem a correr rumores, que os áugures logo interpretam como sinais de desgraça: em África, o vento espalhava sobre os altares as vísceras dos animais sacrificados; os lobos desenterravam os marcos miliares (indicavam mil passos = 1 milha).
A assembleia popular que iria decidir da sorte de Junónia reunir-se-ia no Capitólio. Para esse mesmo dia, Opímio convoca uma sessão do senado.
Os aristocratas, armados, ocupam o templo de Júpiter. Também os partidários de Graco se armam. Já no decorrer da assembleia, um deles mata um lictor do cônsul, por haver proferido insultos contra os democráticos. O seu cadáver é imediatamente levado perante os senadores, com estes a conferirem poderes extraordinários a Lúcio Opímio para que “restaurasse a ordem” (com a fórmula videat L. Opimius consul ne quid republica detrimenti capiat; pela primeira vez é declarado o estado de sítio sem a nomeação formal de um ditador).
Durante a noite, por ordem de Opímio, senadores e também cavaleiros, com os seus escravos e clientes, ocupam o Capitólio. Também Caio e Fúlvio Flaco reúnem os seus partidários. No forum, desde o cair do dia, vai-se formando uma multidão de curiosos.
De manhã, Caio e Fúlvio são chamados ao senado, para responderem às acusações de actos contra o Estado. Em resposta, com um grupo de democráticos armados, ocupam o Aventino.
O filho menor de Fúlvio é enviado ao senado, para pedir que se entabulassem negociações. Mas o jovem Flaco é preso e Opímio ordena o ataque ao Aventino. Os partidários de Graco são rapidamente esmagados. Flaco tenta esconder-se e é morto junto com o seu primogénito. Caio foge. Dois dos seus deixam-se ficar para trás e dão luta aos perseguidores, procurando em vão dar-lhe tempo para a travessia do Tibre. Vendo os seus inimigos aproximarem-se, Caio terá ordenado ao escravo que o acompanhava que lhe desse a morte. O escravo terá cumprido a ordem, logo se suicidando.
As cabeças de Caio e de Fúlvio são levadas a Opímio. Os seus cadáveres foram lançados ao rio. Os seus bens, confiscados. Nesse dia e nos seguintes, 3.000 dos seus partidários serão massacrados.
A LIQUIDAÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA.
A reacção aristocrática não podia destruir por completo a obra dos Gracos. Muitas das suas medidas mais importantes correspondiam a tendências e necessidades já então amadurecidas na sociedade romana.
Os cavaleiros manterão, por muito tempo, o controlo dos tribunais (mas com descontinuidade, tendo havido curtos períodos de retorno à predominância senatorial). As alterações de Caio ao sistema dos contratos de concessão da cobrança dos impostos (leilão em Roma, concessão em situação de monopólio) serão estendidas a outras províncias.
O mais certo é terem sido mantidas as colónias itálicas. Mesmo Junónia, que não se considerava colónia desde a lei de Minúcio Rufo, continuará a ter habitantes. Em 118, após a vitória sobre os alóbrogos e os arvernos (Arverni), será fundada uma nova colónia em Narbona (antigo ópido gaulês de Narbo), na Gália meridional, junto aos Pirinéus (nasce então uma nova província, a Gália Narbonesa, que se estenderá pelo vasto território compreendido entre os Alpes e os Pirinéus).
Quanto à reforma agrária, à aristocracia era praticamente impossível voltar a apoderar-se, no imediato, das terras agora repartidas em dezenas de milhares de parcelas. Havia pois que seguir outro caminho.
Como a lei proibia a alienação das parcelas, talvez já no ano de 121, em “defesa” dos pequenos proprietários, é abolido o seu arrendamento hereditário (deixando-se de pagar renda), bem como a interdição de as vender.
Apiano (I, 27): «Em seguida os ricos começaram a comprar as parcelas dos pobres...A situação dos pobres empiorou ainda mais».
Depois, provavelmente em 119, é dissolvida a comissão agrária. Pela mesma época, é decretado que as terras estatais não poderão ser objecto de novas divisões, com todas as terras estatais em possessio, dentro dos limites legais, a serem convertidas em propriedade plena dos seus possuidores.
Os ex possuidores, agora proprietários plenos, eram onerados com um imposto especial. As receitas desse imposto destinavam-se às “subvenções” populares.
Por fim, talvez em 111, este imposto é também abolido. Segundo a lei do tribuno da plebe Espúrio Tório (lex Thoria), que derrogava a legislação anterior na matéria, todas as terras que haviam sido do ager publicus, fossem pequenas parcelas recebidas em virtude da lex Sempronia ou grandes propriedades dentro dos limites estabelecidos pela mesma lei (500 a 1.000 jugera), eram declaradas como propriedade privada plena, não sujeitas a impostos nem a qualquer limitação ulterior.
Era proibida, daí em diante, a ocupação de terras estatais por particulares, só sendo permitido o seu arrendamento pelos censores ou o seu uso como campos de pastagem comuns. Para acalmarem os pequenos proprietários, estabeleceram um número muito baixo de cabeças de gado para os “compartes” das pastagens “de baldio”: dez animais de grande porte e cinquenta de gado miúdo.
Deste modo, no “fim” da reforma agrária, assiste-se ao pleno triunfo da propriedade privada da terra e ao seu inevitável processo de concentração.