O espaço da História

Capítulo XVIII - As causas das guerras civis. A revolução económica e social do século II

AS FONTES PARA A HISTÓRIA DAS GUERRAS CIVIS.

 

A fonte principal, abarcando quase todo o período das guerras civis, dos Gracos até ao ano de 37, formam-na os livros XIII a XVII da “História romana” de Apiano, que se reúnem sob a denominação comum de “As guerras civis”.

 

Dispomos também das biografias de Plutarco. As de Tibério e Caio Graco, Mário, Sila, Crasso, Lúculo, Sertório, Cícero, Pompeu, César, Catão o Jovem, Bruto e António.

De Lívio, para este período, só se conservaram fragmentos dos livros LVI a CXXXIII. Existe ainda um resumo do reitor Floro, do século II da era, tomado de Lívio e de outros autores e intitulado “Dois livros de extractos de Tito Lívio sobre todas as guerras que se deram em setecentos anos”.

 

Todas as outras fontes literárias de importância apenas esclarecem acontecimentos particulares ou se referem a breves períodos de tempo.

 

A obra de Caio Salústio Crispo (86 – 35).

Personagem político influente, partidário de César e inimigo jurado do senado, escreveu três obras históricas. Chegaram-nos duas pequenas “monografias”, “A guerra jugurtina” e “A guerra catilinária”. Quanto à terceira obra, intitulada “As Histórias”, compunha-se de cinco livros e relatava o período de 78 a 67, mas dela apenas possuímos algumas cartas e discursos, bem como uma série de pequenos fragmentos. A julgar por esses fragmentos, Salústio teria aí relatado detalhadamente a revolta de Espártaco.

Alguns historiadores atribuem-lhe ainda a autoria de duas mensagens a César e o discurso contra Cícero, que se considerava pertencerem a um período posterior.

 

Desempenhou um importante papel político no decurso da luta entre César e Pompeu e durante a ditadura de César. Foi questor, tribuno da plebe, senador e procônsul da província de Nova África (anterior Numídia). Participou, pois, do centro da vida política de então.

Como historiador, Salústio é em geral preciso e escrupuloso na exposição dos factos. Porém, por vezes, revela-se de uma extrema parcialidade na apreciação de algumas personagens históricas. Exemplo manifesto disso é a sua descrição de Catilina, que caracteriza como um mero representante dos círculos oligárquicos dissolutos.

Filosoficamente, foi um estóico, o que o levou a pôr um cunho moralista em muitos dos seus juízos (no entanto acumulou, roubando, uma enorme fortuna em África).

O seu estilo (modo de expressão comedido e lacónico) denota a influência de Tucídides, que muito apreciava. Usa com frequência arcaísmos de traço catoniano.

Grande mestre da palavra e fino psicólogo, segue atentamente as motivações e os processos mentais das suas personagens, mostrando-se propenso à exploração de situações e efeitos dramáticos.

A sua influência sobre a prosa romana posterior foi enorme, particularmente em Tácito.

 

Nos numerosos escritos de Cícero reflecte-se um vasto período das guerras civis, o que vai de 80 até 43 (quando morre). São particularmente importantes os discursos e as cartas (ele escreveu memórias sobre o seu consulado, em prosa e em verso, tanto em grego como em latim, mas perderam-se por completo).

 

Entre os seus discursos (conservaram-se cinquenta e sete completos e fragmentos de outros vinte), são de sublinhar: “Em defesa de Sextius Roscius Amerinus” (ano de 80), contra o pupilo de Sila e, indirectamente, contra o seu regime; seis discursos contra o propretor da Sicília, C. Cornélio Verres, acusado de peculato e roubo (ano de 70); “Sobre a nomeação de Gneu Pompeu como comandante” ou “Pro lege Manilia” (de 66), o primeiro discurso puramente político de Cícero (os anteriores foram pronunciados no foro); três discursos contra o projecto de lei agrária de P. Servílio Rufo, pronunciados no senado em Janeiro de 63; os quatro célebres discursos contra Catilina, em Novembro/Dezembro de 63; o “Em defesa de L. Murena”, vinculado com a questão de Catilina; “Em defesa de Séxtio” (de 56), importante para a história do consulado de Cícero, da sua expulsão e do seu retorno; o discurso “Sobre as províncias consulares” (de 56), onde defendia a prorrogação dos poderes proconsulares de César na Gália; “Em defesa de Milão” (de 52), que caracteriza a situação extremamente tensa vivida em Roma nas vésperas da queda da República; e os catorze discursos contra António (as “filípicas”), pronunciados em 44 e em 43.

 

Se é vasto o material histórico que Cícero nos proporciona, ele é também subjectivo e tendencioso.

A eloquência romana, à época, em especial a forense, admitia a exposição arbitrária dos sucessos, a atribuição de relevância a circunstâncias unilaterais, com o silenciar das restantes e, inclusive, a falsificação dos factos. E Cícero foi também politicamente inconstante. Acresce ainda que, no calor da luta de partido, usava lançar mão da calúnia contra os adversários, sem quaisquer rebuços.

Ele foi sobretudo um orador. “Amoroso” da palavra, muitas vezes deixava o seu discurso ser guiado por uma bela frase que houvesse enunciado, ainda que o devaneio lhe contrariasse a própria vontade (são de grande valor histórico os comentários a cinco discursos de Cícero do gramático Quinto Ascónio Pedião (3 - 88 da era); há ainda comentários anónimos a outros discursos de Cícero).

 

Bem mais fidedigno é o seu epistolário, composto por numerosas cartas suas e dos seus correspondentes (entre outros, César, Pompeu, Catão o Jovem, Bruto).

A colecção de cartas foi publicada já depois da sua morte, provavelmente a iniciativa do seu amigo Ático e do liberto Tirão.

Muitas das cartas de Cícero não se destinavam a publicação; são de carácter íntimo e escritas sem qualquer pretensão literária. Além de caracterizarem o seu autor e muitos dos seus contemporâneos, as cartas traçam um quadro claro da vida política e social, dos costumes e práticas na Roma da primeira metade do século I.

 

Caio Júlio César (101 – 44) foi também um óptimo escritor. Conservaram-se as suas obras “Sobre as guerras gálicas” e “Sobre a guerra civil”.

A primeira compreende oito livros, tendo César escrito os sete primeiros. Neles relata os acontecimentos entre os anos de 58 e 52. O oitavo livro foi composto pelo seu legado Hírcio, compreendendo os anos de 51 e 50, até ao estalar do conflito entre César e o senado e o início da guerra civil.

César também não terminou o escrito “Sobre a guerra civil”, em três livros, abarcando os anos de 49 e 48, até à sua entrada em Alexandria.

Os sucessos posteriores foram relatados em três pequenos livros, por alguns dos seus ajudantes: “A guerra alexandrina”, “A guerra da Hispania” e “A guerra africana”.

As obras de César pertencem ao género histórico das Memórias e têm as correspondentes virtudes e defeitos.

César escreveu-as com propósitos bem definidos: mostrar a importância e as dificuldades da conquista das Gálias e justificar-se relativamente à guerra civil. E fê-lo de um modo hábil, criando em quem o lê a impressão de estar perante um relato de uma absoluta objectividade. Mas a verdade é que César tergiversou e silenciou aquilo que lhe era desfavorável. Na leitura das suas obras é imperioso um constante cotejo com as outras fontes.

 

Caio Suetónio Tranquilo (ap. 75 – 160), escritor já da época imperial, escreveu sobre o período final das guerras civis nas suas “Biografias dos doze Césares”, que começam em Júlio César e terminam com Domiciano. Aqui interessam-nos as duas primeiras, as biografias de César e de Augusto.

Suetónio provinha de uma família de libertos (o avô desempenhara um cargo no palácio e o pai fora tribuno de legião), tendo chefiado uma das chancelarias na época de Adriano.

Ele não foi um historiador, mas um (mau) biógrafo: nunca nos proporciona um relato completo das acções dos biografados e não lhes estuda os traços psicológicos; interessam-lhe as coscuvilhices, as anedotas e os detalhes picantes da vida do palácio. Não por acaso o crismaram de “recompilador dos mexericos do palácio”. No entanto, as suas biografias fornecem-nos toda uma série de notícias que estão ausentes nas restantes fontes.

 

Dião Cássio consagrou à época das guerras civis os livros XXXI a LXI da sua obra, começando na guerra de Lúculo contra Mitridates e findando com a morte de António.

 

Os fragmentos dos livros XXXIV a XXXVI de Diodoro contêm importante informação para a história das revoltas dos escravos na Sicília. Ao que parece, nestes capítulos da sua “Biblioteca” terá seguido a obra de um eminente historiador helénico, o sírio Posidónio (135 – 60), autor de uma “História” (em cinquenta e dois livros) que abarcava o período que ia de 144 a 86.

 

Muita informação valiosa se contém na “Geografia” (dezassete livros escritos em grego) de Estrabão, eminente viajante e historiador da época de Augusto. Estrabão escreveu ainda uma “História”, em que continuava a de Políbio, mas essa obra perdeu-se.

 

Apesar de breve e superficial, tem alguma importância a “História Romana” (dois livros) de Caio Veleio Patérculo, que vai até ao ano 30 da era (Veleio foi contemporâneo dos primeiros imperadores).

 

Cornélio Nepos refere o período das guerras civis na sua biografia de Ático.

 

Alguns dados podem ainda recolher-se nos eruditos do período pós-imperial: Eutrópio, Orósio, Valério Máximo, etc.

 

A “Sobre a agricultura” de Catão é extraordinariamente importante para o estudo da economia da Itália na primeira metade do século II. Importância semelhante tem “A economia agrícola” de Terêncio Varrão para o século I (três livros escritos em forma de diálogo e já em idade muito avançada do seu autor).

 

Quanto às fontes autênticas, são poucas as inscrições latinas que se conservaram. As mais importantes são: A lei Acília contra as concussões (lex Acilia repetundarum), de 123 ou de 122, gravada sobre uma lâmina de bronze; na outra face da lâmina encontra-se a lei agrária de Thorius (um tribuno da plebe); um fragmento da lei de Sila, datada de 81, sobre o aumento do número dos questores (lex Cornelia de XX quaestoribus); a lei de Júlio César sobre organização municipal (lex Julia municipalis).

Já da época dos finais da República e inícios do Império, a mais importante inscrição é o Monumentum Ancyranum (assim designado por ter sido encontrado em Ancyra; a actual Ankara), uma cópia em latim e grego (com lacunas em ambos os textos) do chamado “testamento de Augusto”: uma enumeração dos seus actos enquanto princeps. O original encontrava-se em Roma, à entrada do seu mausoléu.

Sobre esta época das guerras civis conservaram-se muitas inscrições gregas.

 

Os fastos consulares e triunfais são mais fidedignos para este período.

 

No número de documentos autênticos podemos incluir a correspondência e os discursos dos homens políticos (como os de Cícero), transmitidos por autores gregos e romanos. Assim, por exemplo, as cartas de Cornélia (a mãe dos Gracos), os excertos de discursos de Tibério e Caio, etc.

 

O material arqueológico desta época é muito abundante (nem sempre é possível diferenciá-lo do que respeita à primeira época do Império). São particularmente importantes as ruínas de Pompeia, uma pequena cidade da Campânia sepultada sobre as cinzas do Vesúvio na erupção de 24 de Agosto do ano de 79 da era.

 

Também a literatura não historiográfica e a arte são fontes históricas. Elas fornecem-nos o quadro geral dos sentimentos sociais e da vida quotidiana de então.

 

A NATUREZA DA REVOLUÇÃO DO SÉCULO SEGUNDO. AS SUAS CAUSAS.

 

Uma advertência: não é possível traçar uma linha divisória entre os processos do século II e os fenómenos sociais do século I. Ao falar-se do século II referem-se com frequência factos também ocorridos no século seguinte.

A palavra “revolução” é aqui usada em lato sensu, pois que o sistema esclavagista já há muito fizera a sua aparição.

Porém, no século II, o primitivo sistema da escravatura evolui para uma forma especificamente romana, que não se encontra em mais nenhum Estado do mundo antigo, seja no Oriente, na Grécia clássica ou no mundo helenístico em geral.

A essência dessa profunda mudança nas relações económicas e sociais pode ser resumida em três linhas gerais:

1) A escravatura domina quase por completo o sistema das relações económicas.

2) Alastra a grande propriedade territorial e a pequena propriedade agrícola entra em decadência.

3) Dá-se uma enorme acumulação de capital usurário e comercial.

 

Com os concomitantes fenómenos político-sociais:

1) Enorme aumento do número de escravos e agravamento das suas condições de vida.

2) Pauperismo e proletarização dos camponeses.

3) Formação do subproletariado urbano.

4) Reforço da classe dos cavaleiros e aparecimento de um novo partido democrático.

 

Pode dizer-se que este processo foi a consequência lógica da própria evolução interna da economia da escravatura. Contudo, ela nunca teria assumido a sua forma romana específica sem as grandes conquistas dos séculos III e II.

A expansão militar romana, limitada de início à Itália, multiplica a sua força agressiva, rapidamente se estendendo a toda a bacia do Mediterrâneo. Essas conquistas vão influir decisivamente sobre a evolução do processo económico em Itália e em todo o mundo mediterrânico.

Alimentada pelas forças económico-sociais defensoras do programa de política exterior de Catão, a expansão militar, por sua vez, reforçou o poder dessas forças, moldando assim o caminho económico e gerando o peculiar sistema esclavagista romano dos finais da República.

 

Em Roma a guerra sempre havia assumido um papel essencial. O seu sistema social foi-se tornando mais e mais militarizado, atingindo um grau sem paralelo entre os Estados esclavagistas da Antiguidade.

Esta militarização será manifesta e devastadora na derradeira época da República.

 

A partir da I guerra púnica, são lançadas no mercado enormes multidões de escravos. Em 256 Régulo capturara mais de 20.000 em África. Em 209, em Tarento, Fábio Cunctator reduz à escravatura 30.000 dos seus habitantes. Em 177, depois de haver submetido o interior da Sardenha, Tibério Semprónio afirmava, numa inscrição dedicada a Júpiter, terem sido mortos ou tomados como prisioneiros mais de 80.000 homens (Lívio, XLI, 28). Na pilhagem do Epiro, em 167, fazem-se 150.000 escravos. Cipião Emiliano trouxe 50.000 de Cartago.

É de sublinhar que os historiadores só referem as grandes cifras, os grandes “rebanhos” de escravos. Muitas e muitas outras pessoas foram escravizadas, na Cisalpina, Ilíria, Espanhas, Macedónia, Grécia, no decurso das grandes como nas pequenas campanhas militares.

As cifras globais são da ordem dos milhões. Este afluir de hordas de escravos a baixo preço estimulou o desenvolvimento da economia da escravatura em toda a bacia do Mediterrâneo e, em especial, na Itália.

 

Em cada guerra Roma recolheu enormes receitas, em tributos e despojo de guerra. Recordemos, a mero título de exemplo: os 3.200 talentos de prata de tributo na primeira guerra púnica; os 10.000 da segunda, os 15.000 talentos de Antíoco III.

 

(Kovaliov estimava o valor de 1 talento de prata como equivalente a cerca de 400.000 libras esterlinas do ano de 1948; o do asse, neste período, em cerca de 3,5 libras esterlinas. É de referir que então, naquela época, o valor da prata contra o ouro era muito superior ao de hoje.)

 

Segundo os cálculos mais modestos, nos inícios do século II e apenas das Espanhas, foram levadas em seis anos cerca de 200.000 libras romanas (aproximadamente 65.000 kg) de prata e 5.000 libras de ouro (1.500 kg).

 

Em 189, após a batalha de Magnésia, os romanos tomam de despojo 1.230 dentes de elefante, 234 coroas de ouro, 137.000 libras de prata, 224.000 moedas gregas de prata, 140.000 moedas de ouro macedónias e grande quantidade de vasilha em ouro e prata.

 

O triunfo de Emílio Paulo, o vencedor de Pidna, durou 3 dias. Plutarco (Emílio Paulo, XXXII, XXXIII): «O primeiro dia apenas bastou para fazer desfilar ante o povo, sobre 250 carros, as estátuas, os quadros e as colossais esculturas tomadas na guerra, desfile que constituiu um extraordinário espectáculo. No dia seguinte foram exibidos muitos carros carregados de armas e armaduras macedónias esplêndidas pelo seu valor e maravilhoso fabrico. Os carros eram seguidos por 3.000 homens transportando moedas de prata em 750 bandejas, cada uma das quais continha moedas num peso de 3 talentos (como unidade de peso, 1 talento = aproximadamente 26 kg) e era sustida sobre os ombros de 4 homens...vinham depois pessoas com bandejas cheias de moedas de ouro, cada uma delas pesando 3 talentos, tal como as de prata. As bandejas de ouro eram 77. Atrás traziam uma ânfora sagrada de ouro com um peso de 10 talentos, adornada com pedras preciosas...».

 

Após triunfar de Cartago, Cipião o Africano entregou ao Tesouro romano 133.000 libras de prata (1 libra romana = 327 gramas) e distribuiu 400 asses a cada um dos seus soldados.

 

Após as pilhagens da conquista vinha normalmente um saqueio mais sistemático. Cada província era gravada com impostos cuja arrecadação, regra geral, era adjudicada. Não eram só os publicanos a enriquecer; as províncias eram também uma “mina de ouro” para os magistrados romanos e os seus colaboradores. O famoso Verres, propretor da Sicília de 73 a 71, terá roubado ali 40 milhões de sestércios.

A actividade dos pretores provinciais escapava, de facto, a qualquer controle. É certo que no termo dos seus cargos podiam ser apresentadas no senado queixas contra eles e que, em 149, a lei de Calpúrnio Pisão (lex Calpurnia) instituiu uma comissão judicial permanente para os processos respeitantes a corrupção de magistrados (quaestio de repetundis). Porém os membros dessa comissão eram senadores, isto é, antigos cônsules, pretores...

Em 123 Caio Graco transfere essas competências de fiscalização judicial para os cavaleiros. Se isso pôs algum freio aos magistrados, ao mesmo tempo e inversamente, a introdução do sistema de adjudicação geral da arrecadação dos impostos trará consigo abusos ainda maiores.

 

Esta espantosa concentração de riqueza em Itália gerou um impetuoso, mas em grande medida artificial, incremento da actividade económica. Os valores arrecadados nas províncias foram invertidos nas grandes propriedades agrícolas, no comércio e em operações financeiras. No entanto, as ganâncias do capital – dinheiro geraram um luxo sem regra na classe alta e transformaram toda a actividade financeira em especulação desenfreada.

 

É ainda de assinalar que, com as conquistas, o cereal a baixo preço da Sicília e da África arruinou a pequena propriedade agrícola, ajudando assim à concentração da propriedade fundiária.

 

O LABOR DOS ESCRAVOS.

 

Na antiguidade a guerra era a grande “fornecedora” da escravatura.

 

O segundo “gerador” de servitium foram as dívidas. Nas províncias, dado que os habitantes não gozavam dos direitos de cidadania romana, os usurários podiam reduzir em massa os devedores à condição servil.

O seguinte episódio ilustra-o bem. Por volta do ano de 105, quando decorriam os preparativos da guerra conta os cimbros (Cimbri) e os teutões (Teutones), Mário foi autorizado pelo senado a recrutar para o exército nos Estados aliados do ultramar. Entre outros, Mário dirige-se ao rei da Bitínia, Nicomedes. O rei, em resposta, mandou dizer-lhe que a maioria dos seus súbditos fora levada pelos publicanos arrecadadores de impostos, para serem vendidos como escravos nas províncias. Provavelmente Nicomedes terá exagerado, mas o que é certo é ter então o senado decretado que nenhum aliado nascido em condição livre pudesse ser tornado escravo. Com base nesse decreto, o pretor da Sicília, em poucos dias, libertou 800 homens (Diodoro, fragmento do livro XXXVI).

 

A pirataria foi a terceira fonte. Nesta época ela assumiu proporções nunca vistas. Nos últimos três séculos da República os piratas criaram, sobre as semidesérticas costas da Ilíria, Cilícia e Chipre, autênticos Estados, com fortalezas e frotas. A sua audácia ia ao ponto de lançarem ataques sobre as costas da Itália e da Sicília. Em 67 Pompeu recebe poderes ditatoriais sobre o Mediterrâneo e as suas costas a pretexto da necessidade de destruir os ninhos de pirataria. César e Octávio também os combateram.

“Curiosamente”: enquanto que, por um lado, as correrias marítimas iam proporcionando a mercadoria viva aos mercados da escravatura; os escravos fugitivos, pelo outro, vinham a formar parte considerável das tripulações piratas.

O saque no mar era uma operação muito lucrativa e não foram poucos os ricos que inverteram o seu dinheiro em empresas de pirataria.

Assim, nesta época, a pirataria apresentava-se como um elemento orgânico do próprio sistema esclavagista e, precisamente por isso, nunca foi possível eliminá-la por completo.

É ainda de referir que na época das guerras civis os piratas, como forças organizadas que eram, foram utilizados com frequência por ambas as facções em conflito.

 

Quarta fonte, a procriação em cativeiro.

Interessados em que as suas escravas tivessem a maior quantidade possível de filhos, os proprietários procuravam incentivá-las a isso com pequenas regalias; por exemplo, dispensando-as dos labores.

Os escravos nascidos e criados na casa do amo eram muito apreciados, pois eram considerados mais fiéis.

No entanto a natalidade entre os escravos foi sempre pequena.

 

Diodoro (fragmento do livro XXXIV) fala de empresas dedicadas exclusivamente à criação de escravos na Sicília do século II.

 

Um dos objectivos da criação de escravos era o de formar mão-de-obra qualificada. Catão, o amo “modelo”, ocupava-se pessoalmente da instrução das crianças escravas, vendendo-as depois com um bom lucro. Crasso, personagem riquíssima da primeira metade do século I, dedicou-se (entre outros) também a este negócio, mas em bem maior escala.

 

Havia ainda alguns casos particulares de servitium. Um homem livre podia ser reduzido à escravidão por sanção judicial, sendo essa a sorte reservada, por exemplo, aos que fugiam ao cumprimento do serviço militar.

 

A aquisição de escravos fazia-se, modo geral, por duas vias. Directamente, como despojo de guerra, ou por compra no mercado.

 

Como os comandantes dispunham a seu livre arbítrio do saque, podiam apoderar-se da quantidade de escravos que lhes aprouvesse. Também eram distribuídos escravos aos simples soldados. César fê-lo muitas vezes.

 

Cada centro urbano tinha o seu mercado de escravos. Em Roma, localizava-se nas proximidades do templo de Castor.

Delos foi o mais famoso mercado de escravos. Ali se chegavam a vender, num só dia, 10.000 pessoas, segundo diz Estrabão (XIV, 5, 2).

 

Os escravos eram exibidos nus, para que o comprador pudesse dar-se conta da qualidade da mercadoria em oferta. Regra geral, em sinal da sua condição, apresentavam traços de gesso nas pernas e usavam barretes de lã. Os prisioneiros de guerra, uma grinalda.

O vendedor era obrigado a informar o comprador de quaisquer defeitos do escravo. Por vezes dependuravam-lhes ao pescoço uma tabuinha onde se lhes indicava a origem, idade, etc. A lei previa a nulidade do contrato para os casos em que, após a venda, surgissem defeitos omitidos pelo vendedor.

 

Em Roma, os preços dos escravos sofreram grandes oscilações. O aumento do luxo e da riqueza disponível para esbanjar levaram a preços incríveis. Pagavam-se somas enormes por belas bailarinas; centenas de milhares de sestércios pelos actores e outros profissionais altamente qualificados.

Plínio o Velho (História Natural, VII, 128): «O preço mais alto, que jamais se havia pago por um escravo, pelo menos ao que eu sei, foi dado pelo gramático Dáfnis...700.000 sestércios...Nos nossos tempos essa cifra foi superada...mas por outro lado, segundo a tradição, os actores conseguiam alcançar a sua liberdade com os seus próprios ganhos, e já no tempo dos nossos antepassados o actor Roscius ganhava com o seu trabalho 500.000 sestércios por ano».

O período das grandes conquistas trouxe uma brusca queda dos preços dos escravos. Em 177 os preços dos escravos sardos foram tão baixos que se tornou habitual o dito «tão barato como um sardo» (Festo, 428, 50: «Sardi venales, alius alio nequior»). No século I, aquando da conquista do reino do Ponto, os escravos eram vendidos ao preço de 4 denários cada (então 1 denário = 4 sestércios = 16 asses).

Mas o preço médio de mercado terá oscilado entre os 300 e os 500 denários.

 

Os escravos pertencentes a um grande proprietário dividiam-se em duas categorias: familia urbana e familia rustica (agrícola).

O trabalho dos escravos domésticos assumiu, predominantemente, um carácter improdutivo. A criadagem, um grupo semi-parasita, compunha a esmagadora maioria da familia urbana. Nas casas romanas ricas, tal como nas da classe média, a parte da familia destinada ao serviço dos amos era desmesuradamente desproporcionada face ao número de escravos ali empregues em trabalhos produtivos ou entregues em aluguer. Numa casa rica havia centenas de escravos de criadagem: desde porteiros, mensageiros, lavadores de pratos, serventes, moços de fretes a cabeleireiros, manicuras, professores, médicos, administradores.

 

Os escravos artesãos eram pouco numerosos. Tratava-se de escravos que os seus proprietários haviam alugado ou de servi pertencentes aos próprios artesãos.

De um modo geral, terá sido pequeno o peso específico do trabalho escravo na indústria italiana de então.

 

Mas já eram amplamente utilizados na construção. Crasso usava nesta actividade mais de 500 escravos.

O mesmo sucedia nos trabalhos de extracção. Na Hispania, nas minas de prata próximas de Nova Cartago, chegaram a trabalhar 40.000 escravos.

 

Escravos eram também os empregados das casas comerciais, das agências bancárias, das companhias de publicanos e outras empresas privadas.

E já sabemos que era numerosa a categoria dos escravos públicos.

 

O carácter agrícola da economia italiana e, sobretudo, a concentração da propriedade fundiária, levaram ao seu emprego massivo na agricultura.

Sobre isto dispomos de óptimas fontes: Catão, Varrão e Columela, este último um escritor do século I da era. Podemos, pois, seguir ao longo de três séculos a evolução na Itália da economia e do trabalho escravo agrícola.

Catão (De agri cultura, 10-11) diz-nos qual era o efectivo normal para um olival de 240 jugera (cerca de 60 hectares): 1 guardião (vilicus) escravo, nas funções de capataz; a governanta, geralmente a mulher do vilicus; 5 operários agrícolas; 3 carreteiros; 1 cavalariço; 1 porqueiro; 1 pastor (todos escravos).

Para 100 jugera de vinhas: O vilicus e a vilica; 10 operários; 1 carreteiro; 1 cavalariço; 1 vigilante dos cachos de uva; 1 porqueiro.

Se os números totais, treze e dezasseis pessoas, respectivamente, parecem muito baixos, é porque Catão se está a referir apenas ao pessoal permanente. Durante a colheita e a prensagem das azeitonas ou da uva, aos escravos juntavam-se trabalhadores livres.

Catão só refere as propriedades da Itália central, onde não se cultivavam os cereais. O grande latifundium do sul, de criação de gado, ou os campos de cereais da Sicília requeriam uma quantidade de mão-de-obra escrava consideravelmente maior.

 

Sobre as roupas e a alimentação dos escravos, Catão diz o seguinte: o guardião e a guardiã, assim como o pastor, recebiam menos pão do que os escravos empregues nos trabalhos pesados e, no Inverno, a ração era mais pequena do que no Verão; Catão aconselhava a preparar o vinho destinado aos escravos com o bagaço da uva; quanto às roupas, uma túnica e um agasalho, recomendando ainda que se recuperassem as vestes usadas, para fazer com elas mantas de remendos.

Catão dá muitos conselhos sobre os cuidados e a cura do gado, explica até como fazer sacrifícios aos deuses para que os bois se mantenham sãos, mas não diz uma única palavra sobre como curar os escravos doentes.

Sobre as regras que o vilicus há-de respeitar, diz simplesmente (ibidem, 5): «Com os escravos não há que ser cruel: há que cuidar que não sofram frio nem fome. O guardião deve mantê-los constantemente em labor, para evitar que cometam roubos ou crimes...se o guardião estiver em conivência com os escravos, o amo não o deverá deixar sem castigo».

Columella já se preocupará bem mais com a saúde dos escravos na sua De agri cultura (56, 59): «As habitações para os escravos que se podem mover em liberdade devem estar orientadas para o sul; para os encadeados, se houver muitos, convém possuir um ergástulo nos sótãos do edifício que melhor responda às exigências sanitárias, com muitas janelas pequenas para a iluminação e situadas a uma altura tal que não se possam alcançar com as mãos...»

 

Os escravos não gozavam de qualquer protecção legal face ao amo ou a quem quer que fosse. A sua morte ou mutilação, a lei apenas as sancionava como atentado à propriedade. O censor, se é que intervinha, só o faria em casos de extrema crueldade. O escravo, segundo a lei, era uma res (coisa).

Varrão (I, 17): «Direi agora com que instrumentos se trabalha a terra. Alguns dividem-nos em duas categorias: as pessoas e os instrumentos, sem os quais não poderiam trabalhar. Outros dividem-nos em três categorias: instrumentos falantes, instrumentos semivocalia e instrumentos mudos. Os primeiros são os escravos, os segundos os bois e os últimos os instrumentos inanimados».

 

O escravo alforriado transformava-se em liberto. A manumissio não o libertava completamente de relações de dependência, pois o liberto passava a fazer parte da clientela do seu ex-amo, agora o seu patronus, adoptando-lhe o nome de família e, com frequência, também o nome próprio. Por vezes o liberto era forçado a permanecer na casa do patrão; outras vezes, a pagar-lhe tributo.

Em grande número de casos a manumissão representava um lucrativo negócio, com o escravo a pagar o resgate da liberdade.

Em Roma esta categoria era muito numerosa. Os grandes proprietários, os senadores (impedidos de se ocuparem de comércio pela lex Claudia), tinham necessidade de gente de confiança, de agentes e interpostas pessoas. E os mais indicados para essas tarefas eram os libertos. Assim, cada proprietário abastado dispunha de dezenas, por vezes, centenas de clientes provindos dos escravos.

Os libertos gozavam de todos os direitos políticos com uma única ressalva, só podiam inscrever-se numa das quatro tribos da cidade de Roma.

 

A AGRICULTURA.

 

A questão agrária ressurge já no século III, agravando-se mais e mais com o correr do tempo. Em meados do século II a reivindicação da terra é o principal problema e factor de conflito na sociedade romana.

 

Apiano (I, 17): «Os ricos, que ocupavam a maior parte desta terra indivisa (o ager publicus) e esperavam que logo lhes seria reconhecida como de sua propriedade, começaram a acrescentar às suas possessões as parcelas vizinhas dos pobres, em parte comprando-as, em parte arrebatando-as pela força; de modo que, por fim, nas suas mãos, em lugar de pequenas propriedades, encontravam-se [agora] grandes latifúndios. Para o trabalho nos campos e o cuidado do gado começaram a comprar escravos...Deste modo a gente poderosa se enriqueceu sem medida e o país se povoou de escravos. Os ítalos, pelo contrário, diminuíram de número, esgotados pela miséria, os impostos e o serviço militar; quando depois esse peso diminuiu, os ítalos haviam ficado sem trabalho, pois a terra pertencia aos ricos, que não a trabalhavam com a ajuda dos homens livres, mas sim com os braços dos escravos».

O quadro “clássico” pintado por Apiano é confirmado por todas as outras fontes e pelo desenrolar dos acontecimentos.

Na Itália dos meados do século II a terra já se concentrara nas grandes propriedades. O monopólio da nobreza sobre o ager publicus, as imensas hordas de escravos de baixo preço e os capitais líquidos em demanda de colocação haviam tornado comum o latifundium.

 

Na época antiga semeava-se trigo, cevada, milho. Com as conquistas esses cultivos são abandonados, devido às importações de cereais baratos das províncias. Agora cria-se gado, faz-se fruticultura, horticultura, vinha e olival. Desenvolvem-se também culturas para fornecer materiais ao artesanato, como a do salgueiro, para a fabricação de cestos.

Catão (I, 7): «Se me perguntas qual é o cultivo que mais convém, responderei assim: numa propriedade de 100 jugera situada em bom local, antes do mais convém a vinha que dê vinho bom ou abundante, depois os legumes, depois os salgueiros e, por ordem de importância, as oliveiras, o prado, os cereais, as árvores para lenha, pomares, árvores que dêem bolota».

O domínio fundiário itálico foi em grande medida uma economia natural. Provido de um quadro permanente de trabalhadores (livres ou escravos), entre os quais havia artesãos, podia viver dos recursos próprios, não tendo necessidade de recorrer sistematicamente ao mercado. A tendência para a auto-suficiência económica foi um traço característico da vida antiga.

Porém, sobre essa base económica natural, havia também a agricultura que produzia para o mercado, que vai progredindo com o crescimento da vida urbana.

Na Itália do século II a produção agrícola de mercadorias já havia atingido uma considerável dimensão.

Catão (I, 3): «Se possível, há que escolher o domínio no sopé de um monte, voltado para o sul, num local sadio onde haja muitos trabalhadores e abundância de águas. Nas cercanias é bom ter uma cidade ou o mar, ou um rio navegável, ou um bom caminho frequentado».

Num fragmento (frag. 135) enumera as cidades itálicas onde podiam comprar-se com vantagem os artigos necessários à exploração agrícola: «Em Roma compra túnicas, togas, capas, socas de madeira; em Cales e Minturnae capuchos, instrumentos de ferro como sejam as gadanhas, foices, enxadas, pás, machados, objectos de cobre para acabamentos, cordas, cadeias; em Venafrum enxadas...»

No fragmento 146, dá conselhos para a venda de pés de oliveira.

 

Segundo Catão, na Itália central predominaria o domínio de extensão média. O que é conforme às notícias referentes à substituição dos cultivos, pois que a vinha, a oliveira, a horticultura e as outras culturas não cerealíferas não permitem, por razões técnicas e económicas, a grande dimensão.

Já na Sicília e em África se encontravam imensos latifúndios cerealíferos de centenas e até milhares de hectares.

Na Itália meridional predominavam os saltus latifundiários (as pastagens).

 

O OCASO DOS CAMPONESES.

 

Ao pequeno camponês, que dispunha de uma pequena porção de terra e com os outros meios que pudesse possuir, era muito difícil entregar-se à viticultura, ao olival ou às outras culturas agora rentáveis. Assim, a decadência dos cultivos cerealíferos significou a ruína de muitos dos pequenos proprietários que a eles se dedicavam.

No território italiano, após as devastações de Aníbal, vieram, entre outras desgraças para o camponês, a “guerra social”, a revolta de Espártaco, as confiscações de terras pelo segundo triunvirato. Também as guerras no ultramar foram fatais para a pequena propriedade, pois transformaram muitos camponeses em soldados profissionais. As suas propriedades, abandonadas por muitos anos, arruinaram-se. O soldado que fora um camponês, ao voltar à Itália já havia esquecido a antiga condição: o soldo e o despojo de guerra eram agora o seu modo de vida.

O processo não se deu por igual em toda a Itália. O norte manteve uma considerável população camponesa. É no centro e no sul que a pequena propriedade mais depressa vai desaparecendo.

 

FORMAÇÃO DO SUBPROLETARIADO.

 

Uma parte dos camponeses arruinados transformou-se em proletariado agrícola; mas muitos migram para as cidades. Aí dificilmente encontravam ocupação, pois que no comércio e no artesanato lhes preferiam os escravos e os libertos.

Mas em Roma era diferente. A corrupção política (a compra de votos, contratação de sequazes, etc.), a enorme concentração de riqueza, as doações de dinheiro e de géneros por parte do Estado e dos particulares permitiam-lhes uma vida de parasitas, que a célebre fórmula «Panem et circenses» (de finais da República) bem espelhou.

 

Também a clientela se foi degradando. Cada nobre fazia-se rodear de um sem-número de clientes: acompanhavam o nobre ao forum, votavam por ele nas eleições e, em caso de necessidade, “ajudavam-no” com os punhos e à paulada.

Era usual muitos deles passarem o dia à porta do “seu” nobre, na esperança de um pequeno presente ou soma em dinheiro em troca de lhe desejarem os bons auspícios.

Durante as guerras civis os clientes serão o principal sustentáculo da nobreza.

 

No século I, toda esta numerosa massa de desqualificados irá contribuir para a degeneração da democracia e a queda da República

 

O CAPITAL FINANCEIRO E USURÁRIO.

 

O enorme incremento do capital – dinheiro não correspondia ao nível de desenvolvimento económico da Itália. As suas fontes foram os tributos, o despojo de guerra e, a partir da segunda metade do século II, a exploração sistemática das províncias pelos publicanos.

 

Roma transformara-se em centro de poderio mundial, no entanto o seu aparelho estadual manteve no essencial a forma da cidade-Estado, com a sua assembleia popular, senado e magistrados. As estruturas administrativas na Itália e nas províncias eram muito débeis (procônsules, pretores e questores). Não dispondo ali de órgãos financeiros e de administração económica próprios, Roma entregou a arrecadação dos impostos e toda uma série de actividades económicas públicas aos particulares (os publicanos).

Políbio (VI, 17): «Muitos trabalhos em toda a Itália...que não seria fácil enumerar, relativos à administração e à construção de obras públicas, bem como os rios, portos...minas e, em suma, tudo quanto se encontrava em poder dos romanos, eram adjudicados em contrato pelos censores. Tudo isso ia parar às mãos do povo e pode dizer-se que quase todos os cidadãos tinham parte nos contratos e nas vantagens que deles derivavam. Assim, alguns obtinham dos censores mediante “luvas” um determinado contrato, outros logravam-no graças às amizades, outros eram empregues pelos contratadores, e finalmente alguns, para os obterem, entregavam ao tesouro estatal o seu capital».

 

Com base neste sistema nasceram empresas que lembram um pouco as modernas sociedades por acções.

Por vezes o Estado exigia somas enormes pelos contratos, que nem os mais ricos podiam suportar. Juntavam-se então alguns dos contratadores, formando uma companhia (societas publicanorum) em que os lucros (partes) eram proporcionais aos capitais invertidos. Com as “acções” especulava-se: vendiam-se, compravam-se, jogando na alta e na baixa das cotações.

As grandes companhias desenvolveram aparelhos administrativos próprios: escrivães, agentes, navios, escritórios nas províncias. Constituíam o principal instrumento de exploração das províncias.

 

Já existindo em Roma nos tempos mais antigos, a usura foi progredindo a expensas da pequena propriedade agrária.

Com as conquistas as operações usurárias atingirão proporções devastadoras. Regiões inteiras são despovoadas porque os seus habitantes foram vendidos como escravos. Estados aliados e não aliados endividam-se de tal modo que acabam por se entregar a Roma.

A taxa de juro dos empréstimos chegava a ser de 48 – 50% ou até mais elevada.

 

O capital – dinheiro romano, em contínuo incremento, tinha um carácter altamente especulativo. É típica, nesse sentido, a figura de Crasso, o homem mais rico da primeira metade do século I.

 

(Marx diria: o capital – dinheiro na sua figura Crasso.)

 

Plutarco (“Marco Crasso”, II): «Os romanos afirmam que o esplendor das suas numerosas virtudes é obscurecido por um só vício: a avidez de lucro. Mas eu creio que este vício, que sobrepujou os demais, teria de fazer ainda mais notáveis as suas virtudes. Como prova maior da sua cobiça estão também os processos de que se serviu para buscar a sua imensa fortuna.

Ao princípio Crasso não possuía mais de 300 talentos, porém, quando foi posto à cabeça do Estado (provavelmente Plutarco referir-se-á ao ano de 70, quando foi cônsul junto com Pompeu), depois de ter oferecido a Hércules a décima parte da sua fortuna, de ter distribuído presentes pelo povo, de haver entregue três meses de víveres a cada romano à custa da sua própria bolsa, constatou-se que as suas riquezas ascendiam a 7.100 talentos, segundo os cálculos por ele mesmo feitos antes da expedição contra os partos. A maior parte destas riquezas estavam, para dizer a verdade, bastante longe de lhe fazer honra, porque foram arrebatadas das chamas dos incêndios da guerra e se serviu das chagas sociais para acumulá-las».

Mais adiante, Plutarco diz que Crasso, no tempo das proscrições de Sila, adquiriu a preços irrisórios as propriedades dos condenados e que essa foi uma das fontes principais da sua fortuna.

Logo se entregará a especulações em larga escala. A que se conta de seguida ficou célebre: uma boa parte de Roma era constituída por bairros de casas para arrendamento, de muitos pisos, mal construídas e “coladas” umas às outras. Eram aí frequentes os incêndios e os desabamentos. Quando numa dessas mansardas deflagrava um incêndio, logo acorriam os agentes de Crasso, tratando de comprar a baixo preço o edifício em chamas e as casas contíguas. Apoderou-se assim de muitos edifícios da cidade. As equipas de escravos de Crasso reconstruíam as casas e ele ganhava com isso somas colossais.

 

Os “bancos” romanos constituíam uma outra forma organizada do capital – dinheiro (além das societas publicanorum). Tal como na Grécia, as casas de câmbio estiveram-lhes na origem.

 

Os agentes de câmbio eram chamados em Roma argentarii e os seus negócios, argentariae. Durante muito tempo usou-se para os designar a palavra grega trapezita, o que leva a supor terem sido gregos os primeiros cambistas. Desta profissão (a mera actividade de câmbio), que não gozava de grande prestígio na sociedade, também mais tarde (no Império) se ocuparão sobretudo estrangeiros e libertos.

 

Os bancos de câmbio situavam-se no forum. Os seus locais eram construídos pelo Estado e entregues de arrendamento pelos censores. Além de agentes de câmbio privados, havia também agentes estatais.

 

Das actividades dos primeiros tempos, o controlo da “bondade” (peso, teor) das moedas e o seu câmbio, depressa passam a uma série de operações já tipicamente bancárias (ou seja, alguns transformam-se em “banqueiros”): empréstimos, depósitos, pagamentos directos ou por transferência da soma da conta de um cliente para a de outro, envio de dinheiro para outras cidades, etc. Os “banqueiros” também intervinham nas operações comerciais.

 

O CAPITAL COMERCIAL.

 

Nos últimos séculos da República o comércio exterior desenvolve-se consideravelmente. As fontes literárias e as inscrições assinalam a presença dos mercadores itálicos na ilha de Delos, na península balcânica, na Ásia Menor e em outras províncias.

Delos, que absorvera em meados do século II todo o comércio de Corinto e de Rodes e tornara-se o maior centro de comércio do Oriente mediterrânico, é mais frequentemente mencionada pelas fontes.

Os mercadores itálicos e os seus agentes em Delos constituíram organizações próprias, dirigidas por funcionários eleitos e conhecidas pelo nome da divindade padroeira: os Mercuriais (Mercurialis), Neptunialis, etc. A maioria dos seus membros não era romana, mas oriunda da Itália meridional e da Sicília: de Tarento, Nápoles, Cumas, Siracusa e outras cidades.

Na época dos Gracos, aquando da concessão aos publicanos das colectas na Ásia, aumenta a quantidade de nomes romanos nas inscrições de Delos. Os publicanos arrecadadores de impostos entregavam-se também a grandes operações comerciais, porquanto os dízimos das províncias eram muitas vezes pagos em espécie e havia que vendê-los no mercado.

 

A balança comercial romana foi sempre passiva (com as importações a superar as exportações).

Quando Roma se tornou um parceiro de relevo no comércio mediterrânico, a economia relativamente atrasada da Itália não podia competir com a produção bem mais desenvolvida de muitas das regiões da bacia do Mediterrâneo. Só alguns ramos da indústria italiana, como o da produção metalúrgica na Etrúria, produziam para o exterior (além de trabalharem para o mercado interno). Por outro lado, as enormes somas disponíveis do capital – dinheiro permitiam preterir os produtos itálicos e comprar as mercadorias nos mercados estrangeiros.

Enquanto o passivo da balança comercial foi compensado pela entrada de grandes quantidades de dinheiro vindo das províncias, não se formou qualquer ameaça para a economia itálica. Porém, na época do Império, com o cessar das conquistas e a mudança de política em relação às províncias, o passivo comercial provocou a evasão para o estrangeiro dos metais preciosos, ajudando a gerar a crise monetária.

 

O ARTESANATO.

 

Marx, assinalando as particularidades da economia romana dos séculos II e I, escrevia (O Capital, livro III, capítulo XX): «Na antiga Roma, a partir dos últimos anos da República, enquanto a manufactura se encontrava ainda muito abaixo do nível médio de desenvolvimento do mundo antigo, o capital mercantil alcançou o ponto máximo de desenvolvimento dentro dos limites da forma antiga».

 

Na indústria itálica prevalecia o pequeno artesanato. Pompeia, com as suas pequenas oficinas, é disso o melhor exemplo.

A grande maioria dos artesãos era composta por homens livres e libertos. Os ricos proprietários de escravos preferiam ocupar-se de vendas, especulações, investimentos na agricultura. Não se interessavam pela indústria, que pouco rendia. O artesanato era mesmo considerado como uma ocupação não muito honrosa para um romano.

Quando as grandes mudanças na economia ítala se dão bruscamente nos inícios do século II, o pequeno artesanato livre era então preponderante. As conquistas que enriqueceram Roma “libertaram-na” da necessidade de desenvolver a indústria em Itália, pois que podia adquirir as mercadorias nas mesmas províncias aonde ia buscar o dinheiro para as comprar. Assim a indústria itálica estagnou, mantendo o nível em que se encontrava nos inícios do século II (ou seja, permaneceu no estádio do pequeno artesanato livre).

 

OS CAVALEIROS E O NOVO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO.

 

Já sabemos que os equites (a cavalaria) provinham das famílias mais ricas da primeira classe de possuidores (censo). Como o serviço na cavalaria era muito dispendioso, o Estado concedia-lhes um subsídio, uma dada soma para a compra do cavalo bem como uma consignação para o seu sustento (aes hordiarum).

Mais tarde, talvez no século IV, ao lado dos “cavaleiros com cavalo do Estado” (equites equo publico) aparecem os equites equo privato, jovens das famílias ricas que serviam na cavalaria custeando os seus próprios gastos, porquanto não pertenciam às centúrias de cavaleiros.

A partir da segunda metade do século III, os equites começam a transformar-se numa nova categoria social (ordo equester). Deixam de prestar serviço na cavalaria, agora recrutada entre os aliados, e passam a fornecer ao exército oficiais superiores para a infantaria (tribuni militum) e cavalaria (praefecti sociorum). Por volta desta época é introduzido o censo para os cavaleiros, num montante dez vezes superior ao da primeira classe: um milhão de asses ou quatrocentos mil sestércios (até ao ano de 217, o sestércio equivaleu a dois asses e meio; depois, a quatro asses).

A lei de Cláudio de 218 contribuiu para a diferenciação dos cavaleiros como classe. Impedidos de se dedicarem ao comércio, os senadores foram “encerrados” na sua qualidade de grupo de proprietários agrários. Graças a essa lei, o comércio, os contratos e a actividade financeira em geral passam às mãos dos cavaleiros, que se convertem na aristocracia romana do dinheiro. Surgem novos costumes a distinguir-lhes a condição. Como sinais distintivos, os equites começam a usar um anel de ouro na mão direita e uma estreita faixa vermelha sobre o peito (os senadores usavam uma faixa mais larga).

A lei judicial de Caio Graco, que entregou aos cavaleiros o cargo de “conselheiros jurados”, diferenciou ainda mais as duas categorias a nível político.

O processo de diferenciação completou-se na época de Augusto, com o estabelecimento do censo para os senadores, fixado em um milhão de sestércios (o dos cavaleiros manteve-se em 400.000 sestércios). Mas os cavaleiros perderão na época do império a sua posição de aristocracia do dinheiro.

 

Assim, no século II, a classe dos grandes proprietários de escravos dividiu-se em duas fracções, a agrária e a mercantil. A primeira possuía as terras e, através do senado e das magistraturas, governava a República. A segunda detinha o poder financeiro, mas não controlava o poder político. Isso explica a oposição ao senado dos equites, na ala direita do novo movimento democrático.

 

O núcleo principal deste novo partido era formado por camponeses pobres e proletários agrários.

Os cavaleiros não eram aliados em que se pudessem fiar, pois com frequência os traíram, bandeando-se com o campo inimigo. No entanto, graças à sua riqueza e à sua organização, os equites por diversas vezes conseguiram dirigir em seu proveito o movimento democrático.

Aos camponeses uniam-se os pequenos artesãos e comerciantes, os proletários urbanos e as camadas de subproletários.

 

AGUDIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIAIS.

 

Nos meados do século II a oposição entre escravos e proprietários constituía o conflito de fundo, sempre latente. Concentravam-se então em Itália, na Sicília, Ásia Menor e outras regiões do Mediterrâneo enormes massas de escravos, prisioneiros de guerra na sua maioria.

A segunda oposição deu-se entre os ricos esclavagistas e os pequenos proprietários, os proletários e o lumpem.

Uma terceira querela deu-se entre a nobreza (“senado”) e os cavaleiros.

Um outro conflito, particularmente intricado, foi o que opôs cidadãos e não cidadãos (provinciais, aliados, etc.). Tal como entre os cidadãos, também entre os não cidadãos havia ricos, camponeses, proletários, lumpem, o que gerou uma teia de relações complexa e contraditória. Mas a comunidade dirigente romana opôs-se à massa dos não cidadãos, excluída da direcção política e da situação de privilégio daquela.

 

AS GUERRAS CIVIS E A SUA DIVISÁO EM PERÍODOS.

 

Os romanos usavam o termo “guerra civil” no seu preciso significado, o de luta armada entre cidadãos romanos, Assim foram guerras civis, por exemplo, a que se travou entre Mário e Sila ou a que se deu entre César e Pompeu.

A rebelião dos ítalos de 91 não foi considerada como tal, sendo chamada de “guerra social”. Tampouco consideraram como guerras civis as revoltas dos escravos, que designaram como “guerras dos escravos”.

 

Entre os historiadores contemporâneos, há os que designam como “guerra civil” qualquer conflito entre classes que tenha assumido o carácter de luta armada (já Apiano usara a expressão nesse sentido).

Esses conflitos dos séculos II e I prolongaram-se por mais de 100 anos, levando à queda da República.

Porque fizeram ruir a República ou/e porque muitos deles foram movimentos de carácter revolucionário, a história contemporânea também usa o termo “revolução” para os designar no seu conjunto.

No entanto é de sublinhar que estas lutas se deram no período de apogeu do sistema esclavagista romano, com a escravatura a prosseguir a sua senda e sem que o conjunto destes conflitos tenha levado a qualquer “revolução” real na formação sócio-económica. Tal só ocorrerá nos finais do Império, quando os conquistadores bárbaros, com o apoio dos escravos e colonos, fazem ruir em grande parte a antiga sociedade.

As guerras civis (no sentido de Apiano) dos séculos II e I visaram todo o sistema de relações político-sociais formado no decurso das conquistas: são rebeliões dos escravos contra os amos, dos camponeses carentes de terras contra o latifundium, dos itálicos e dos provinciais em demanda de direitos políticos, lutas entre cavaleiros e senadores romanos pelo poder. Todos estes movimentos serão derrotados, gerando “contra vontade” um novo sistema político, o Império.

 

Considerando apenas as grandes crises revolucionárias que abarcaram parte considerável dos territórios de Roma, então houve quatro destas.

A primeira verifica-se entre os anos de 140 e 120. Abrange a primeira rebelião dos escravos na Sicília, a revolta dos escravos e dos pobres na Ásia Menor e levantamentos noutras regiões e, por fim, o movimento dos Gracos. Seguiram-se-lhe cerca de quinze anos de período de reacção.

Nos finais do século II estala a segunda. Novas rebeliões de escravos na Sicília e noutras regiões, que se dão contemporaneamente ao ataque dos bárbaros no norte da Itália, e violentos movimentos revolucionários democráticos na própria Roma.

Após a reacção dos anos 100 a 90, nova explosão de movimentos revolucionários: a guerra social, a revolta das províncias orientais e o conflito entre a aristocracia e a democracia em Itália.

A ditadura de Sila, entre 82 e 78, marcará um breve período de reacção, logo seguido pela tremenda crise de 70: rebelião de Sertório na Hispania e a guerra dos escravos itálicos comandados por Espártaco.

Esse foi o ponto culminante da vaga revolucionária. Os movimentos democráticos irão extinguir-se gradualmente, tendo um último broto com Catilina, e irão ceder lugar a duas “guerras civis” de outro tipo: às “guerras de legiões”; à luta pela ditadura entre fracções da classe dominante e os seus “candidatos” próprios (César e Pompeu; Octávio e António).