O espaço da História

Capítulo XXIII - A rebelião de Sertório e a revolta de Espártaco

OS ANOS DE 70. REBELIÃO DE SERTÓRIO E REVOLTA DE ESPÁRTACO.

 

A TENTATIVA DE LIQUIDAR O REGIME DE SILA.

 

A violenta fractura do sistema político-social produzida pela guerra civil e, sobretudo, pelo regime de Sila, gerou uma enorme quantidade de descontentes. Proprietários expropriados. Os defraudados veteranos de Mário. Os equites, que haviam perdido os tribunais e boa parte da sua influência política. O subproletariado sem trigo gratuito. Até uma parte da aristocracia, hostil ao carácter monárquico da ditadura siliana.

Marco Emílio Lépido (pai do futuro triúnviro), cônsul de 78, converteu-se no “campeão” de todos os que se opunham ao regime.

Ainda que pertencendo à nobreza e tivesse sido um apoiante e Sila, passara-se ao campo da oposição por razões de ordem pessoal. Aquando propretor na Sicília havia cometido exacções de tal ordem que se viu na iminência de um processo por repetundae. É então que passa às fileiras dos adversários.

Mal ascende ao consulado (o seu colega era o siliano Quinto Lutácio, filho do cônsul que participara na batalha de Vercelas, no ano de 101), logo após a morte de Sila, Lépido de imediato inicia a agitação contra a constituição recém instaurada. Entra depois em contacto com os emigrados e com o que restava dos partidários de Mário em Roma e na Itália.

Apesar da hostilidade do senado e de Catulo, Lépido logra fazer aprovar algumas medidas, entre elas, o restabelecimento das distribuições de trigo, ainda que em forma mais limitada do que no passado.

 

Enquanto isso, na Etrúria, estalara a guerra civil, com os habitantes, de armas na mão, a expulsar de várias localidades os colonos de Sila.

O senado envia para a região ambos os cônsules, a fim de ali recrutarem tropas e dominar a revolta. Lépido recruta todo um exército.

Já terminado o seu mandato de cônsul, Lépido recusar-se-á a abandonar o cargo e a licenciar as tropas. Nos inícios de 77, exige do senado o restabelecimento da antiga autoridade dos tribunos da plebe, o regresso dos emigrados e, para ele próprio, a reeleição consular. Em resposta o senado declara-o inimigo da pátria, confiando a Catulo e a Pompeu o encargo de o destruir.

 

Pompeu marchou sobre o vale do Pó, ocupado por um dos aliados de Lépido, Marco Júnio Bruto (pai do Marco Júnio Bruto que participou no assassínio de César), um antigo partidário de Mário. Pompeu assediá-lo-á na cidade de Mutina.

Catulo preparava a defesa de Roma, para onde Lépido se dirigia com forças numerosas. A batalha deu-se junto às muralhas da cidade, no campo Márcio. Lépido teve de retroceder, retirando para a Etrúria. Dali, após nova derrota, fugirá para a Sardenha com os restos das suas forças. Morre pouco depois na ilha. Marco Perperna, que o servira como pretor, vai conduzir essas forças à Hispania, para reunir-se a Sertório.

Modena rendeu-se a Pompeius, com Brutus a ser supliciado.

 

A REBELIÃO DE SERTÓRIO.

 

Na Mauritânia a partir de 81, Sertório pusera-se ao serviço de um dos pequenos chefes locais. Ganha fama como cabo-de-guerra com as suas vitórias sobre as tribos líbias e os piratas. Em 80 os rebeldes lusitanos enviam-lhe mensageiros, convidando-o para o comando da sua milícia. Com uma força mista de emigrados romanos e guerreiros mauritanos parte para a Lusitânia, onde assume a direcção da revolta local contra a Roma de Sila.

Após a derrota dos pretores das duas Espanhas, Sila havia para ali enviado Quinto Metelo, que chega à península em 79. Porém a rebelião já então se estendera a toda a Hispania e Metelo foi impotente para dominá-la.

 

Hispania foi proclamada um Estado independente. Com os emigrados romanos mais eminentes é formado um senado de 300 membros. Nos postos de alto mando do exército foram colocados romanos. Isto demonstra que não foi intento de Sertório a criação de um Estado ibérico. Pelo contrário, torna-se evidente que considerou a Hispania como uma mera província romana, apenas separada momentaneamente de Roma, enquanto fosse vigente a constituição de Sila.

Os métodos de governo de Sertório estavam em perfeito contraste com os dos seus predecessores. Os ibéricos foram tratados com justiça e respeito. O exército era sujeito a uma rigorosa disciplina, castigando-se impiedosamente toda e qualquer violência dos soldados sobre a população local.

Osca (actual Huesca), na Hispânia setentrional, foi escolhida como capital. Ali Sertório organizou uma escola para os filhos dos chefes espanhóis, onde lhes era ensinado o latim, o grego e outras matérias, o que era inaudito na política provincial romana (é certo que assim Sertório também estava a conservar junto de si reféns das tribos espanholas, sem que tal fosse muito evidente).

A guarda de Sertório era formada por alguns milhares de jovens nativos que lhe haviam jurado fidelidade até à morte.

 

O chefe rebelde levou a cabo uma audaciosa política externa, procurando apoiar-se em todas as forças inimigas de Roma. Aliou-se com os piratas da Cilícia, que lhe puseram à disposição uma frota completa, assegurando a defesa da costa oriental. Os seus agentes desenvolveram uma intensa actividade entre as tribos gaulesas, procurando incitá-las à rebelião. Entrou em relações com Mitridates (que iniciará em 74 nova guerra contra Roma), tendo celebrado com ele um tratado. Sertório não se oporia ao ataque do rei do Ponto na Ásia Menor e este, em troca, enviar-lhe-ia 40 naves e 3.000 talentos.

 

Em Itália, após a derrota de Lépido, Pompeu não havia desmobilizado o seu exército, reclamando do senado que lhe fosse entregue o comando na Hispania. O senado considerava-o um ambicioso e desconfiava dele, mas fez-lhe a vontade. No Verão de 77, com o título de procônsul e o seu exército, Pompeu cruza os Alpes e dirige-se para a Ibéria.

 

Nos finais de 77, às tropas espanholas de Sertório já se haviam junto os mais de 20.000 homens que Perperna trouxera da Sardenha. Acresce que o chefe rebelde era incomparavelmente superior como chefe militar a Pompeius. Nos anos seguintes, apesar da superioridade numérica das forças de Roma, o curso da guerra será favorável à rebelião.

Em 75 Pompeu é derrotado em campo aberto, sendo gravemente ferido. Se Metelo não lhe tem acudido, o seu exército teria sido completamente aniquilado.

 

No entanto, no campo de Sertório dar-se-á a discórdia. Os aventureiros da emigração romana, além de tratarem desdenhosamente os ibéricos, eram instáveis. Tentando aproveitar-se disso, o comando romano pôs a prémio por grossa soma a cabeça de Sertório. Este, ao sabê-lo, não se fiando dos emigrados, afasta da sua guarda pessoal todos os romanos, que substitui por iberos. O descontentamento entre os emigrados aumenta.

Entretanto é descoberta uma conspiração para o assassinar, organizada por pessoas do seu círculo próximo. Uma parte dos conjurados é presa e executada. Outros, entre os quais o próprio Perperna, vão conseguir permanecer na sombra.

Em 72, durante um banquete em Osca organizado por Perperna, Sertório e os que o guardavam são apunhalados pelos conspiradores emigrados.

Mas quando Perperna se apodera do mando, a maior parte dos espanhóis abandona-o. Pompeu derrotou-o com facilidade ao primeiro recontro. Capturado, Perperna é condenado à morte.

Depressa as dispersas restantes forças rebeldes serão aniquiladas. Em 71 Pompeu regressa à Itália, há dois anos a braços com uma espantosa rebelião dos escravos.

 

A REBELIÃO DE ESPÁRTACO.

 

As fontes sobre a revolta são escassas e pobres. Quase se resumem a algumas páginas de “As guerras civis” de Apiano e da biografia de Crasso escrita por Plutarco. Já vimos que a fonte principal, “As Histórias” de Salústio, se perderam quase por completo. As outras fontes – os fragmentos XCV e XCVII dos livros de Lívio; Floro; Orósio; Veleio Patérculo e outros – apenas lhe fazem breves referências, só expondo parcialmente os factos.

 

Quase nada sabemos sobre Espártaco. Apenas que era originário da Trácia. Pelas vagas referências de Apiano e Floro, teria feito parte das tropas auxiliares romanas e sido reduzido à escravatura por haver desertado. Devido à sua força física, logo o terão destinado a gladiador. As fontes são unânimes em louvar-lhe a cultura, a inteligência e a humanidade.

 

Em 73 (a data que é geralmente aceite; se bem que alguns historiadores sustentem que a rebelião haveria começado já em 74) Spartacus está em Cápua, numa das escolas de gladiadores da cidade. Nos começos do Verão, duas centenas de gladiadores organizam uma conjura, que terá sido descoberta. Porém, sessenta ou setenta fogem, armados com o que puderam encontrar. São encabeçados por Spartacus e Crixus. No caminho da fuga conseguem apoderar-se de um comboio que transportava armas de gladiadores, acoitando-se no Vesúvio, donde partem em correrias pelas vizinhanças. As suas forças depressa se reforçam com o contínuo afluir dos escravos e peões das propriedades dos arredores, estes últimos atraídos pela notícia de que Espártaco divide o despojo em partes iguais.

 

Nos primeiros tempos as autoridades romanas não deram grande importância ao incidente. De Cápua é enviada uma pequena brigada, que os escravos aniquilam. Agora têm nas mãos verdadeiras armas.

Já alarmados, os romanos lançaram contra os escravos 3.000 homens ao mando do propretor Caio Clódio. Não querendo perder homens num assalto ao Vesúvio, o propretor estabeleceu o seu acampamento no sopé da montanha, fechando o único caminho de acesso. Os escravos, com cordas, descem pela vertente mais escarpada e atacam Clodius de surpresa. Os romanos puseram-se em fuga e o seu acampamento cai nas mãos dos rebeldes.

No Outono será o pretor Públio Varínio, com duas legiões das melhores tropas, a entrar na Campânia. Spartacus derrota separadamente os dois lugar-tenentes de Varínio e, de seguida, o próprio pretor, chegando-lhe a capturar os lictores e o cavalo.

 

A revolta estende-se a todo o sul da Península: Campânia, Lucânia (talvez também à Apúlia). Muitas cidades foram tomadas e saqueadas. Salústio refere o massacre dos esclavagistas e as inevitáveis crueldades praticadas por quem havia sofrido a perda da liberdade. Mas Espártaco procurou impedir os excessos e concentrou toda a sua energia na organização do exército rebelde, tratando de infundir-lhe a necessária disciplina.

Cria um exército de 70.000 homens, organiza a produção de armas e adestra a cavalaria. Concebe então um plano: reunir o máximo possível de homens e conduzi-los para fora de Itália, cruzando os Alpes orientais.

 

Foram enviados contra os escravos os exércitos de ambos os cônsules de 72, Lúcio Gélio e Gneu Cornélio Lêntulo.

Entre os escravos havia surgido uma querela e 20.000 homens, comandados por Crixo, abandonam o campo para passarem a actuar independentemente. O pretor Quinto Árrio, um ajudante de Gélio, ataca-os e derrota-os no monte Gargano, na Apúlia. Crixo morre no combate.

 

Salústio, Lívio e Plutarco dizem que o contingente de Crixo era formado por gauleses e germanos. Pode-se pois supor que a discórdia haja estado relacionada com a heterogénea composição nacional das forças rebeldes. Mas o desacordo teve por objecto o próprio programa de acção. Crixo e os seus companheiros eram partidários do recrudescimento das operações ofensivas e, ao que parece, não tinham qualquer intenção de deixar a Itália. Num dos fragmentos de Salústio lê-se: «...e os escravos, em desacordo quanto aos planos das acções futuras, chegaram quase a combater entre si. Crixo e os seus companheiros de tribo, gauleses e germanos, queriam marchar contra os romanos e apresentar-lhes batalha».

 

Nos Apeninos, Spartacus manobra habilmente e inflige uma sucessão de derrotas às forças de Lêntulo, Gélio e Árrio. Continua a avançar para norte, escapando às ciladas que os romanos lhe haviam preparado. As suas forças continuam a aumentar em número (diz Apiano que o exército rebelde chegou a contar 120.000 homens).

Espártaco chega a Modena e, em frente à cidade, derrota as tropas de Caio Cássio Longino, governador da Gália Cisalpina.

O caminho em direcção aos Alpes estava agora aberto. O plano de Espártaco parecia em vias de cumprir-se. Porém, precisamente então, o exército rebelde inflectiu a sua marcha e regressou ao sul.

 

As fontes não nos revelam o que nessa ocasião se passou. Podemos presumir, no entanto, que moralizados pelas suas vitórias, sendo já mais “itálicos” que bárbaros, os rebeldes não quiseram abandonar o que era de facto o seu país, a Itália. Terão possivelmente reclamado a Spartacus que os continuasse a dirigir na guerra contra Roma, obrigando o chefe rebelde a submeter-se à vontade do seu exército.

Como quer que haja sido, os revoltosos marcham em direcção a Roma e acercam-se da cidade.

 

Já no Outono de 72, os cônsules haviam recebido ordem de interromper as operações militares contra Espártaco. Marco Licínio Crasso, pretor nesse ano, fora nomeado comandante supremo, com o título de procônsul e dez legiões sob o seu mando.

Ao que parece, Crasso planeava “empurrar” os escravos para o Piceno, para ali os bloquear. Tratando de circundar os rebeldes, ordenou ao seu legado Múmio que se posicionasse a alguma distância da zona por eles ocupada. Mas Múmio desobedeceu, e atacou-os.

Espártaco derrota-o. Muitos dos soldados, lançando as armas por terra, fogem. O exército rebelde marcha para sul.

 

Para restaurar a disciplina das suas tropas, Crasso adoptou as mais severas medidas. Aos que haviam fugido diante do inimigo foi aplicado o antigo castigo do decimo, já há muito em desuso no exército romano. Um em cada dez desses soldados foi executado.

 

Entretanto os rebeldes atravessam a Lucânia e detêm-se na cidade de Túrio e seus arredores (no Brútio). Aparecem ali muitos mercadores para comprarem o despojo recolhido pelos escravos. Espártaco proíbe que se receba em troca ouro ou prata. Só ferro e cobre devem ser aceites.

 

Crasso, por fim, marchou em perseguição dos rebeldes. Diz Plutarco (“Crasso”, X) que então Espártaco havia gizado um novo plano: transportar parte das suas tropas à Sicília «com o fim de reanimar a liça dos escravos sicilianos, sufocada havia pouco, porém, sempre latente». O plano terá fracassado porque os piratas, com quem haviam celebrado um acordo prévio para o transporte, traíram, não aparecendo com as suas naves.

Os perseguidores romanos entram no Brútio. Crasso, pretendendo encerrar os rebeldes na extremidade sul da península, faz construir «de mar a mar» uma linha fortificada de 300 estádios (55 km). A primeira tentativa de a romper falha. Mas logo, numa noite de tormenta de Inverno (72/71), Espártaco consegue forçar as fortificações. Os rebeldes regressam à Lucânia.

 

Crasso, considerando que lhe era impossível vencer os rebeldes apenas com as suas tropas, pede ajuda. O senado ordena a Pompeu que apresse o seu regresso da Hispania. Ordem semelhante é enviada a Marco Licínio Lúculo, então na Macedónia, que deveria desembarcar em Brundisium.

 

Nesta conjuntura crítica de novo surgem dissenções entre os rebeldes. E de novo gauleses e germânicos, chefiados por Casto e Gáunico, fazem secessão. Separados das forças principais, serão aniquilados pelas tropas de Crasso.

 

Espártaco dirige-se para Brundísio, talvez com a intenção de passar à península balcânica. O certo é que todos os outros caminhos lhe estavam fechados pelas legiões romanas. Nas proximidades da cidade é informado que Lúculo já ali havia desembarcado. Então volta para trás, ao encontro de Crasso.

 

Na Apúlia, na Primavera de 71, trava-se a derradeira batalha. Os rebeldes combateram com a coragem do desespero. Sessenta mil tombam na luta, Spartacus está entre eles. Seis mil rebeldes, caídos em cativeiro, morrem na cruz ao longo da estrada que ia de Cápua a Roma. Um grande contingente de cinco mil homens havia conseguido abrir caminho para norte, mas encontra as forças de Pompeu e é completamente aniquilado.

Alguns grupos isolados terão conseguido escapar, buscando refúgio nas montanhas.

 

A “guerra dos escravos” (bellum servile) durara, desde o Outono de 73, dezoito meses. A Itália perdera dezenas e dezenas de milhares de escravos. Os campos haviam sido devastados e muitas cidades destruídas. Os proprietários, atemorizados, começam a evitar a compra de escravos, preferindo-lhes os vernae (“nascidos em casa”). Crescerá ainda o número de libertos. Aumentará também a quantidade de terras entregues em arrendamento.