Capítulo XXVII - O principado de Augusto
INSTITUCIONALIZAÇÃO JURÍDICA DO PODER DE OCTAVIANO.
Seguindo a “lição” dos idus de Março, Octaviano tratou de dar ao seu governo uma forma mais “constitucional”, mantendo na organização do Estado traços republicanos. A República, formalmente, continuou a existir, nunca havendo Octaviano manifestado o menor desejo de ser proclamado monarca.
O sistema que fundou, o “principado”, passou por um lento processo de formação.
Foi um produto não apenas da vontade consciente de Octaviano mas também das circunstâncias e da correlação de forças sociais e políticas de então.
No plano jurídico, o poder de Octaviano tinha por base a lei de Públio Tício de 43, que concedeu poderes ilimitados aos triúnviros durante cinco anos. Após o acordo de Tarento, esses poderes haviam sido prorrogados por mais cinco anos, até ao 31 de Dezembro de 33.
Apesar dos poderes ditatoriais de Octaviano e António cessarem, pois, a 1 de Janeiro de 32, Octaviano continuou a fazer-se chamar “triúnviro”. De facto, ambos estavam a usurpar poderes cuja vigência legal já havia cessado. Os juramentos das tropas em 32, quer para António, quer para Octaviano, representaram uma forma de “legitimar” a situação de facto.
Com a morte de António, Octaviano converte-se, de facto, no governante absoluto de Roma e de todos os seus domínios, no entanto, juridicamente, a sua posição continuava a carecer de legitimação.
Em 36, após a vitória sobre Sexto Pompeu, Octaviano havia sido investido com o tribunado vitalício. No ano de 30, tratando de o “legitimar”, o senado confirma e amplia-lhe esses poderes.
Em 29 Octaviano regressa a Roma e celebra um grande triunfo. É-lhe então concedido oficialmente, por lei, o título de imperator (que já usava, “por conta própria”, há alguns anos), que converte em praenomen, tal como o fizera César.
Em 28 é eleito cônsul (pela sexta vez), tendo por colega Agripa. Nesse mesmo ano, com base numa disposição especial que lhes conferiu poderes censórios, Octaviano e Agripa levam a cabo o censo geral dos cidadãos. Ao mesmo tempo, o número de senadores, que nos últimos anos havia chegado a 1.000, foi reduzido para 800. O nome de Octaviano vinha à cabeça da lista, transformando-o assim em princeps senatus.
A 13 de Janeiro de 27, Octaviano declara perante o senado e a assembleia popular que “renunciava aos poderes de triúnviro”, anunciando a “restauração” da República. O senado, três dias depois, confere-lhe o nome honorífico de “Augusto” (de augeo; Augustus = sagrado, majestoso, venerável) e tributa-lhe ainda outras altas homenagens (é então que o mês “sexto” passa a ser chamado augustus).
O chefe do Estado romano gozava agora de uma “bateria” de poderes formais. Como tribuno vitalício, com um poder considerado superior ao dos outros tribunos (potestas major), detinha a plena potestas civil. O cargo de cônsul, que Augusto ocupou por alguns anos consecutivos, aliado ao seu imperium pessoal (o seu título de imperator), conferia-lhe a autoridade militar. Por fim, como primeiro senador, gozava de toda a autoridade moral (auctoritas) inerente a esse cargo de chefia da mais alta instância do Estado.
Cuidando de esconder o carácter monárquico do seu poder, Augusto intitulava-se “primeiro cidadão do Estado (princeps civitatis). Esta expressão fora usada por Cícero e outros contemporâneos, que a haviam referido a Pompeio e a César, exprimindo-lhes a função directiva no Estado.
“Principado” começa então a chamar-se ao sistema de organização estatal de Roma formado sob o domínio de Augusto e que se mantém nos tempos dos seus sucessores. Uma monarquia de facto, escondida debaixo de um manto de formas e sobrevivências republicanas.
Mas “ouçamos” Cícero alguns anos antes, dando voz ao que à época se defendia nos meios conservadores (“De Republica”, publicado em 51): «A liberdade sem freio transforma, por si própria, um povo livre num povo de escravos...se compararmos as formas de governo em estado puro, não só não há razão para censurar o regime monárquico, como, estou disso convencido, convém colocá-lo incomparavelmente mais alto do que os outros...»
Cícero apenas lhe assinalava como limites a subordinação da monarquia à autoridade do senado e o carácter electivo da acessão ao cargo. E deixava entender que não lhe repugnaria ocupar ele próprio esse posto de “reitor” ou princeps da República.
Augusto, ao “renunciar aos poderes de triúnviro”, havia também renunciado à sua autoridade sobre as províncias. Mas, a “rogo” do senado, “consentiu” em manter por dez anos o poder proconsular em três delas, Síria, Espanha e Gália, a que acrescentava o Egipto, seu domínio pessoal desde o ano de 30.
As outras províncias eram governadas, tal como antes, por procônsules e propretores republicanos. Também a administração do Tesouro estadual (o erário) retornou ao senado e aos questores. Para aquelas três províncias governadas por Augusto e para o Egipto surge uma administração financeira independente, a cargo de agentes do princeps civitatis. Esse tesouro imperial foi denominado fiscus.
Mommsen, dada a “coexistência” de Augusto com o senado, as magistraturas e a assembleia popular, caracterizou o sistema de poder como “diarquia”, assinalando-lhe o aparente dualismo de poderes. Porém essa aparente dualidade depressa se esvanecerá.
No ano de 27 Augusto parte para as províncias ocidentais, onde permanecerá por alguns anos. Deixa o governo de Roma nas mãos de Marco Valério Messala Corvino, na qualidade de praefectus urbi (um ex republicano que se havia passado ao “partido” de Augusto). Contudo, pouco tempo depois de o imperador haver partido, Messala renuncia ao seu cargo, ao que parece, em razão de conflito com os magistrados ordinários.
Em 23 será denunciada uma conjura, encabeçada por Terêncio Varrão Murena e Fânio Cepião, visando assassinar Augusto. Os conspiradores serão julgados e executados, mas também este sucesso alertará Augusto para a necessidade de consolidar o seu poder, contra o que restava do espírito e das instituições republicanas.
Já aquando da sua viagem às províncias ocidentais, aproveitando os seus poderes proconsulares, Augusto organizara uma guarda pessoal de 9 coortes pretorianas, num total de 9.000 homens (cohortes praetoriae). Após o seu regresso a Roma no ano de 24, estabelecera três dessas coortes na própria cidade, distribuindo as outras seis por pequenas cidades nos arredores. Além disso, formou em Roma três cohortes urbanae, com funções de polícia.
A coorte pretoriana existia já na época da República, como guarda pessoal do pretor. Nos finais da República o número dessas coortes chegara a ser de três. Augusto “justificara” o seu aumento para nove com o facto de deter poderes proconsulares sobre três províncias. Os soldados que nelas prestavam serviço, os chamados “pretorianos”, gozavam de uma situação de privilégio.
A 1 de Julho de 23 Augusto renuncia ao cargo de cônsul (eleito), que ocupara ininterruptamente desde o ano de 31, mas mantém o seu título de tribuno vitalício (o cargo de tribuno vitalício representa agora o mais alto poder na administração civil: senado, comícios e magistraturas). Possui o direito de apresentar propostas perante o senado com preeminência sobre os outros magistrados (jus primae relationis) e, no ano seguinte, é-lhe também “concedido” o direito de convocar o senado e de o presidir, sentando-se entre os dois cônsules.
Ainda no ano de 23, o senado reconhece como “maior” o imperium de Augusto (imperium maius), subordinando-lhe todos os chefes militares (portanto, também os procônsules das províncias senatoriais), convertendo oficialmente o princeps em chefe de toda a administração provincial.
Em 19 é-lhe atribuído o poder consular vitalício. Portanto, passa a deter os poderes tribunício e consular “maiores” sem ter de se sujeitar a sufrágio. A exemplo do que já sucedia nas relações entre Augusto e os tribunos eleitos, também agora é “oficializada” a sua preponderância sobe os cônsules ordinários.
Por fim, no ano de 12, Augusto será eleito nos comícios pontífice máximo.
É ainda de assinalar que assumiu, de quando em quando, poderes e cargos extraordinários: a tutela das “leis e costumes” (cura legum et morum), a direcção do abastecimento de víveres à cidade (cura annonae), a superintendência sobre os aquedutos (cura aquarum) e estradas (cura viarum).
A POLÍTICA INTERNA DE AUGUSTO.
O quimérico projecto dos sectores conservadores e de Augusto pretendia o “retorno” à velha ordem aristocrática dos nobres, anterior ao próprio tempo dos Gracos, com o predomínio do senado sobre uma assembleia popular de quase nula autoridade. Pretendia-se também retornar à simplicidade de vida, aos bons costumes de épocas já há muito passadas.
A autoridade dos pais (patrum auctoritas) foi reforçada face aos comícios. As decisões destes voltam a apenas possuir força legal depois de confirmadas pelo senado (o que correspondia a um “recuo” ao ano de 339, ano em que a lei de Publílio Filão havia abolido essa ratificação senatorial). É atribuído ao senado um poder que nunca havia detido, o de julgar os seus próprios membros. Forma-se um comité especial, composto por altos magistrados e quinze senadores, encarregue da preparação dos projectos de decretos a apresentar ao senado.
Por outro lado, “prevenindo-se”, Augusto tratou de depurar esta instância de elementos “suspeitos”. Nas depurações dos anos de 28, 18, 8 antes da era e de 4 e de 14 da era, agindo com poderes censórios, Augusto reduzirá o número de senadores (que, após César, havia superado o de mil) a seiscentos.
Contemporaneamente, dá-se forma jurídica à diferenciação entre a classe senatorial e as restantes categorias de cidadãos. Aos senadores é estabelecido o censo de 1.000.000 de sestércios.
Para os cavaleiros foi mantido o velho censo de 400.000 sestércios (ou seja, a partir de uma fortuna neste valor, era-se cavaleiro). À ordem equestre pertenciam ainda os filhos dos senadores que ainda não houvessem alcançado a primeira magistratura que dava acesso ao senado (a questura).
Inicia-se também na época de Augusto a “metamorfose” da ordem equestre. Ao lado dos cargos “ordinários”, ocupados por elementos da classe senatorial, surge agora, recrutada entre os cavaleiros, uma nova categoria de altos funcionários que irá crescer com o decurso do tempo. Compõem-na, de início, o praefectus praetorio (o comandante dos pretorianos), o prefeito do esquadrão anti-incêndios (sete coortes de vigilantes formadas no ano 7 da era; cohortes vigilum), etc.
Assim, de classe de grandes mercadores, publicanos e usurários, que foram na época da República, os equites começam a transformar-se em funcionários imperiais. Este processo atingirá o seu pleno desenvolvimento nos finais do século II.
Saída das camadas mais modestas dos “cavaleiros”, e também dentre os libertos, surge uma terceira categoria de funcionários, assegurando, como procuradores, as funções de agentes financeiros. Depois, com os sucessores de Augusto, libertos haverá que ocuparão até cargos de primeiro plano.
Para diferenciá-la daquelas duas fracções da classe dominante, a esmagadora maioria dos cidadãos era designada, com um significado agora diverso do primitivo, pelo arcaico termo de plebe. Esta plebs não apresentava uma condição homogénea, subdividindo-se nas respectivas “classes” do censo e incluindo o proletariado.
As guerras civis haviam destruído ou arruinado muitas famílias abastadas, fazendo crescer de modo considerável o número de escravos manumitidos.
Augusto, em nome da “pureza” da classe dirigente romana, impediu aos libertos o ingresso nas classes altas (senadores e cavaleiros), ainda que, pelas fortunas possuídas, pudessem cumprir a condição censitária. Aos senadores e a seus filhos era interdito o matrimónio com mulheres libertas, tal como o era o casamento entre um liberto e a filha de um senador. Tampouco lhes foi autorizado o serviço militar.
Também tomou medidas contra a própria alforria. No ano 2 antes da era, a lex Fufia Caninia limitou a manumissão testamentária. Quem possuía de três a dez escravos não podia libertar, por testamento, senão até à metade deles. De onze a trinta, até um terço. De trinta e um a cem, não mais de um quarto. De cento e um a quinhentos, apenas um quinto. Regra geral, era interdito libertar mais de cem escravos por um só testamento. Os escravos a alforriar tinham ainda de ser nomeados, no testamento, pela respectiva ordem de preferência para a manumissão.
No ano 4 da era, a lex Aelia Sentia limitou o direito de manumissão em vida. Só o proprietário maior de vinte anos podia libertar escravos, mas apenas quando estes tivessem pelo menos trinta anos de idade. Caso contrário, a lei exigia a intervenção de uma comissão especial, formada por cinco senadores e cinco cavaleiros (nas províncias era composta por vinte cidadãos romanos), que decidia se a alforria devia ou não ser concedida.
Por essa mesma lei, os escravos que haviam sofrido castigos, quer da parte de seus amos, quer por parte dos órgãos estaduais, se alforriados, não eram admitidos entre os cidadãos, mas integrados na camada dos “súbditos estrangeiros” (peregrini dedicticii). Estes “súbditos”, além de outras condições a limitar-lhes a liberdade, não podiam residir num raio de cem milhas à volta de Roma.
As guerras civis haviam convertido muitos homens livres em escravos. Augusto, por mais duma vez, interveio, fazendo libertar dos ergástulos grande número destes escravos “ilegais”.
Na política provincial, Augusto seguiu em parte na senda de César. Confirmou a abolição do sistema de “concessionários” na arrecadação dos impostos directos. E os provinciais passam a ter o direito de dirigir as suas queixas directamente ao imperador.
Já será outra a sua atitude no respeitante à outorga dos direitos de cidadania. Se, durante o período da disputa com Marco António, tanto este como Octaviano recorreram amplamente a essa medida, o agora Augusto, segundo o que diz Suetónio (“Augusto”; 40), obcecado pela ideia de manter “puro” o sangue dos romanos, raramente fez concessão desses direitos.
A família entrara em crise, fruto em parte do processo de mudanças da sociedade romana desde a época das grandes conquistas, mas também, e em grande medida, como consequência das guerras civis. As mulheres jovens preferiam não ter filhos. Era grande o número de homens que permaneciam solteiros. O resultado foi uma queda abrupta na natalidade.
Entre as classes abastadas esta crise era mais intensa e assumia aspectos próprios. Alcançando as mulheres uma emancipação de facto, ela traduzia-se comummente pela livre prática do adultério (a poesia “sentimental” de Ovídio e a popularidade de que gozou à época foram um reflexo desse estado de coisas). Em consequência, os divórcios eram frequentes no seio da classe dominante.
De 18 antes da era a 9 da era, Augusto fará promulgar uma série de severas leis visando a consolidação da família, segundo “os bons costumes dos ancestrais”, e na mira de promover o aumento da natalidade.
Uma delas foi a lei Júlia contra o adultério (lex Julia de adulteriis coercendis). Contrariamente ao que até então era preceituado, o pai “ganha” o direito, em certas circunstâncias, de matar a filha adúltera e o seu amante. Também o marido ofendido pode matar, mas igualmente só em alguns casos, o que lhe praticou adultério com a esposa (porém não pode dar morte a esta).
A lei, além disso, retirava estes casos do âmbito familiar, tornando-os objecto de processo público judicial. O direito a denunciar uma mulher por adultério cabia, no prazo de 60 dias, ao marido e ao pai da adúltera. Decorrido esse tempo, a qualquer cidadão maior de 25 anos. Se o marido havia perdoado e não se divorciava da “culpada”, a denúncia já não produzia qualquer efeito (salvo nos casos em que se provasse que o marido, ao agir assim, o fizera por interesse).
No caso da sentença os dar por culpados, os adúlteros eram condenados ao exílio e ao confisco dos seus bens. A mulher tinha pena acrescida, não podendo voltar a casar-se com homem livre).
Todos os crimes de carácter sexual praticados por homens e não compreendidos na categoria de adulterium, a lei classificava-os como stuprum, punindo-os severamente.
A lei sobre o matrimónio (lex Julia de maritandis ordinibus) foi dirigida sobretudo contra o celibato e a ausência de filhos no matrimónio, visando incrementar a natalidade.
A lei prescrevia a obrigatoriedade do matrimónio para os cidadãos, autorizando inclusivamente o matrimónio entre cidadãos nascidos livres e mulheres libertas (excepto à classe senatorial). Era aplicável aos homens na idade entre os 25 e 60 anos e às mulheres entre os 20 a 50 anos. Quem transgredisse este novo “dever social” ficava privado do direito de herdar por testamento. As mulheres eram ainda gravadas com um imposto anual no valor de 1% dos seus bens. Estas sanções possuíam carácter temporário, cessando a sua aplicação com o matrimónio. Com o nascimento de cada novo filho, os pais adquiriam crescentes vantagens sociais.
A oposição a esta lei nas classes abastadas terá sido tal que Augusto se viu obrigado a ceder. Assim, no ano 9 da era, foi promulgada uma nova lei (a lex Papia Poppaea, da “iniciativa” dos cônsules desse ano). À mulher divorciada ou viúva foi dilatado o prazo de tempo para encontrar um novo marido. Àqueles que eram casados e não haviam tido filhos, foi permitido receber em herança a metade dos bens que lhes houvessem sido deixados testamentalmente. Esta lei previa também mais benefícios para as famílias de numerosa prole. Os homens gozavam de privilégios nas suas carreiras. As mulheres, de uma maior liberdade de disposição quanto aos bens próprios, entre outras vantagens (“direito dos três filhos”; jus trium liberorum).
Augusto usou amplamente os “seus” literatos como meio de propaganda do seu “programa social”. Exaltação da vida familiar, crítica do luxo, idealização dos antigos costumes romanos são traços comuns entre a corrente literária que gozava da simpatia e do apoio do imperador (Virgílio, Horácio, Tito Lívio).
Também o exemplo pessoal do princeps devia incentivar o “retorno à simplicidade de vida” da classe dominante. Diz Suetónio (“Augusto”, 72-73):
«Viveu primeiramente próximo do forum, numa casa que havia pertencido ao orador Calvo; depois, no Palatino. Porém, também ali, na modesta casa de Hortênsia. Esta residência não aparentava grandeza ou luxo. Os pequenos pórticos eram de pedra de Albano. Nas divisões não havia nem decorações em mármore nem chãos elegantes. Por mais de quarenta anos Augusto viveu, Inverno e Verão, sempre no mesmo dormitório...as roupas que usava provinham apenas dos labores domésticos, feitas pela esposa, a irmã, a filha ou as sobrinhas.»
Confrontando os dados do censo de 28 ae com os do censo do ano 13 da era, verificamos que o número de cidadãos romanos aumentou, no decurso desses quarenta anos, de 4 para 5 milhões (estimava-se então a população total do Império em 70 a 100 milhões de almas). Este aumento terá sido devido ao restabelecimento das normais condições de vida, com o fim das guerras civis, e não às medidas de política demográfica de Augusto, que visavam essencialmente as altas camadas sociais (ou seja, apenas uma pequena parte da população romana).
No que respeita ao “insuflar” na sociedade dos “bons usos dos antepassados” (mos majorum), o exemplo da própria família de Augusto prova o quão pouco podem as medidas de governo quando a marcha da história se processa num sentido que lhes é contrário. O próprio Augusto “quebrou os laços sagrados” por três vezes.
Na sua juventude, o então Octávio estivera noivo de Servília, mas não chegou a haver casamento, por razões de ordem política. Octaviano casou-se com Clódia, enteada de António. Divorcia-se desta em 41 para se casar com Escribónia (que já tivera dois maridos), parente de Sexto Pompeu. Por fim, apaixonado pela bela e inteligente Lívia Drusília, esposa de Tibério Cláudio Nero, fá-la divorciar-se em 38, casando-se em seguida com ela.
Pior ainda, a filha (Júlia, de Augusto e de Escribónia) e a neta (Júlia, filha de Júlia e de Agripa) levaram uma vida tão escandalosa que foi forçoso puni-las com o exílio (para toda a vida).
Também na vida religiosa se procurou restaurar os “usos dos antepassados”, repondo os cultos e colégios sacerdotais já quase tombados no esquecimento na época final da República (por exemplo, é então restabelecido o colégio dos irmãos arvais). O próprio Augusto foi membro devoto de um desses colégios.
Fomenta-se o estudo das passadas glórias do povo romano e, provavelmente, terão sido então redigidos os fastos triunfais e consulares. A historiografia de corrente conservadora (Tito Lívio) é protegida e “encoraja-se” a elaboração de uma epopeia romana (Virgílio).
A assembleia popular, composta em grande parte por cidadãos urbanos desqualificados, foi “domesticada”. Augusto aumentou de novo, para mais de 200.000, o número de beneficiários das distribuições gratuitas de pão. O seu “testamento” (Monumentum Ancyranum) refere numerosas doações extraordinárias de pão e de dinheiro à população de Roma e aos colonos. Mais de 300.000 veteranos receberam parcelas de terra ou quantias em dinheiro pelos serviços prestados.
Durante todo o seu reinado, nos combates de gladiadores que o imperador tratou de organizar, intervieram cerca de 10.000 homens. Pelo menos por vinte e seis vezes, ofereceu ao povo combates com feras africanas, onde terão sido mortos 3.500 animais. «Dei ao povo o espectáculo de uma batalha naval, além Tibre, no local onde hoje se encontra o “pequeno bosque dos Césares”, fazendo abrir para esse fim um lago de 1.800 passos de comprimento por 1.200 de largura. Nesta batalha tomaram parte trinta navios dotados de três ou de duas ordens de remos e um maior número de embarcações de menor dimensão. Além dos remeiros, participaram na batalha cerca de 3.000 homens.»
Durante o seu reinado foram edificados o forum de Augusto, o templo de Apolo no Palatino, o pórtico de Octávia, o santuário do “divino” Júlio (no local onde o seu cadáver havia sido cremado), o teatro de Marcelo, o Templo de Marte Vingador e muitos outros edifícios públicos. Foram restaurados o Capitólio, o teatro de Pompeu e oito templos de Roma. Melhoraram-se as condutas de água, a Via Flamínia (de Roma a Rimini) foi reparada, etc.
Toda esta actividade devia servir a recordar, nos séculos vindouros, a glória e brilho do reinado de Augusto.
Foi Augusto o fundador do culto ao seu pai adoptivo, o “divino Júlio”. E, seguindo-lhe o exemplo, fomentou ainda, com todos os meios ao seu alcance, o da “mãe” da estirpe Júlia, o culto de Vénus. No entanto proibiu que a ele próprio, Augusto, fosse prestado culto, pelo menos em Itália e em Roma. Nas províncias foi consentida a adoração do “génio” (o espírito protector) do imperador. Também então se começa a difundir nas províncias o culto da deusa Roma, que já havia feito a sua aparição na época da República.
AS REFORMAS MILITARES DE AUGUSTO.
Os pretorianos cumpriam dezasseis anos de serviço militar (contra os vinte anos dos legionários), recebendo 20.000 sestércios por ano (os legionários, 12.000). Eram recrutados exclusivamente entre os ítalos.
O grosso do exército imperial compunham-no as legiões e as tropas auxiliares destacadas nas províncias. A maioria das tropas dispunha-se ao longo das fronteiras do Reno e do Danúbio, no Egipto e no norte da Ibéria, onde decorriam conflitos militares ou o inimigo ameaçava.
O número de legiões diminuiu para vinte e sete ou vinte oito (no ano de 31, o número de legiões romanas, somando as de Octaviano às de Marco António, chegara a ser de setenta ou de setenta e cinco). O número total de soldados oscilou entre 250.000 e 300.000, metade servindo nas legiões e a outra metade nas tropas auxiliares (coortes de infantaria e cavalaria).
A maioria dos recrutas era incorporada por alistamento voluntário. Não obstante, foram frequentes as conscrições obrigatórias.
Os efectivos das tropas auxiliares eram completados com muitos bárbaros das províncias fronteiriças (inversamente, nas legiões só se podiam alistar cidadãos). O período de serviço nas tropas auxiliares chegava a ser de vinte e cinco anos.
Apesar dos tempos de serviço já serem muito longos, os soldados viam frequentemente o seu licenciamento diferido. Como era usual recompensar o soldado licenciado com parcelas de terra ou quantias em dinheiro, e as dificuldades do erário não permitiam a baixa simultânea de serviço a grandes massas de soldados, desse modo “expedito” se resolvia o problema (o que originou, mais tarde, motins e mesmo rebeliões contra o poder imperial). Augusto, para fazer face a estas despesas, instituiu um tesouro militar especial (aerarium militare), financiado pelas novas taxas sobre as sucessões e por outras verbas.
Os soldados não podiam constituir legalmente família até ao licenciamento. Esta medida afastou-os ainda mais da comum sociedade romana. As unidades militares possuíam um nome e um número que as distinguiam, eram ciosas das suas tradições militares e desenvolveram um forte espírito de corpo. A disciplina foi elevada a um alto nível.
Paralelamente à institucionalização e reorganização do exército permanente, foi reestruturada a frota. As esquadras tinham por portos permanentes o cabo Miseno, Ravena e Alexandria. Formaram-se também flotilhas no Reno e Danúbio, em apoio às longas operações militares que ali se desenrolaram.
O pessoal da frota era geralmente recrutado entre os provinciais livres (nas esquadras de Miseno e Ravena, nos tempos de Augusto, ainda serviam muitos dos antigos escravos capturados na guerra contra Sexto Pompeu. Os seus conhecimentos de marinharia ou o labor dos remos haviam-nos poupado à sorte dos seus camaradas das tropas terrestres).
A POLÍTICA EXTERIOR DE AUGUSTO.
Entre os partos travava-se então uma guerra pela sucessão ao trono. Aproveitando esta circunstância, Augusto conseguiu recuperar as insígnias e prisioneiros capturados pelos partos nas passadas expedições de Crasso e de Marco António. É acordado com Fraates IV (cerca do ano 20 ae) que o rio Eufrates faz a fronteira entre os domínios dos romanos e dos partos.
No Oriente, Augusto tratou ainda de reforçar a influência romana sobre os reinos vassalos (por volta de 25 ae, o rei Amyntas legara o seu Estado, a Galácia, a Roma).
Na Ibéria as tribos locais mantinham a sua independência em quase todo o norte da península (uma região montanhosa). Também o sul da Aquitânia continuava insubmisso. Iberos e aquitanos entreajudavam-se na luta contra os romanos desde os tempos de Sertório.
Ainda na época do segundo triunvirato, os romanos haviam desencadeado a guerra contra as tribos dos Astures (das Astúrias), dos Cantabri (da Cantábria) e dos Vascones (os bascos). Os combates serão particularmente encarniçados em 26. Dois anos antes (em 28), tinham sido vencidas as últimas tribos livres aquitanas, deixando os povos do norte da Hispania de poder contar com esses aliados na luta. Mesmo assim, só nos anos de 20 e de 19 Agripa conseguirá aniquilar-lhes a resistência.
Os territórios destas tribos foram anexados à Hispania citerior, que logo foi chamada Hispânia Tarraconense (a Ulterior foi dividida em duas províncias: a Lusitânia e a Bética), com uma parte dos cântabros a ser levada pelos vencedores para outras regiões da península. Agora definitivamente “pacificada”, a Ibéria vai sofrer um rápido processo de romanização.
Em Itália, após a batalha de Filipos, a província da Gália Cisalpina “desaparece”, passando as fronteiras itálicas a estender-se até aos Alpes.
Nos passos alpinos ocidentais, a maioria das tribos que ali viviam desde há muito se haviam conformado ao domínio romano. A excepção à regra era a tribo dos Salassi (salassos), que mantinha nas suas mãos o passo do Pequeno São Bernardo. Casos houveram em que comandantes romanos tiveram de lhes pagar pelo direito de livre passagem no seu território. No ano de 25, por ordem de Augusto, esse povo foi aniquilado.
Em 16, a pretexto de defender a Ístria (Istria ou Histria; península do norte do Adriático) das incursões das tribos bárbaras, os romanos levam a cabo uma expedição além Alpes orientais, conquistando, até ao Danúbio, uma nova província, o Noricum (Nórica; partes da Caríntia e a Estíria, na actual Áustria), rica em ferro e ouro. No ano seguinte (o de 15) são submetidas as tribos dos Rhaeti (retos ou récios) e dos Vindelici (vindélicos; da Vindelícia, região entre os Alpes centro-orientais e o Danúbio), constituindo-se a província da Rhaetia (ou Raetia; Récia; no oeste da Áustria, Suíça oriental e parte da Baviera).
Ainda na região do Danúbio, após quatro anos de duros combates (de 12 a 9), com os romanos sob o mando de Tibério Cláudio Nero, enteado de Augusto, são submetidos os Pannonii (panónios; Áustria oriental e Hungria). O país será mais tarde transformado (ano 10 da era) na província da Panónia.
Dominado o curso superior e médio do Danúbio, também a Moesia, no curso inferior do rio, é submetida. A Mésia superior, habitada pelo povo dos getas (Getae), correspondendo às actuais Sérvia e Bulgária do norte, é unida à província da Macedónia (em 27 ae a Grécia fora separada da Macedónia, formando a província da Achaia; a Moesia Superior tornar-se-á província a partir de 6 ae). A Mésia inferior (a restante Bulgária actual), Augusto cedeu-a ao reino cliente da Trácia, que se comprometeu a defendê-la.
No Reno, a pretexto das incursões germanas na Gália (houve-as nos anos de 29, 17 e 12), Augusto vai tentar aquilo que César não havia conseguido, a conquista da Germania.
Ao mando do outro enteado de Augusto, Druso Cláudio Nero, no decurso de várias campanhas nos anos de 12 a 9, as legiões romanas (apoiadas pela flotilha) conquistam a Germania ocidental até ao rio Elba.
Druso morre, em consequência de uma queda do cavalo, sendo substituído no mando pelo seu irmão Tibério. As campanhas de 8-7 ae e de 4-5 da era ampliam o domínio romano sobre o país. Nessa mesma época, os germanos foram também atacados a partir do sul, das fronteiras do Danúbio.
Em 6 da era, Tibério inicia uma grande campanha contra as tribos dos Marcomani, que haviam criado um forte estado bárbaro na região que hoje é a Boémia. Maroboduus (Marobóduo), o seu rei, levara a cabo uma reforma militar decalcada da organização do exército romano. As forças dos marcomanos contavam cerca de 75.000 homens.
É então que se desencadeia, na retaguarda romana, a grande revolta dos panónios e dos dálmatas (Dalmatia, ao longo da costa oriental do Adriático, da Ístria à Macedónia). O recrutamentos compulsivo de tropas locais para a expedição contra os Marcomani foi a mecha que fez explodir o ódio acumulado ao opressor romano. O número de combatentes rebeldes chegou a atingir os 200.000. Ao mesmo tempo, na Mésia, atacavam os getas.
Augusto teve de desistir da ofensiva contra os marcomanos e de enviar forças consideráveis a combater a revolta. Nos finais dessa guerra de repressão, encontravam-se na península balcânica quinze legiões e muitas tropas aliadas. Tibério e o seu sobrinho Germânico (filho do falecido Druso) só conseguiram aniquilar a rebelião ao fim de três anos de guerra, em 9 da era.
Pouco depois da celebração do triunfo sobre os panónios e os dálmatas, nesse mesmo ano 9, levantam-se em armas os germanos de entre o Elba e o Reno, com a tribo dos Cherusci (queruscos) à cabeça. Chefiava o levantamento o jovem querusco Armínio. Aqui fora o legado Públio Varo a acender o estopim, ao tentar impor o pagamento de impostos e a introdução do procedimento judicial romano.
Varo, com três legiões e tropas auxiliares aliadas, é inesperadamente atacado no que hoje é a floresta de Teutoburger, na Vestfália. Após quatro dias de combates todo o exército romano é aniquilado, com Varo a suicidar-se. Roma perdeu assim os territórios de além Reno.
Nos anos 10 e 11, Tibério empreenderá várias expedições punitivas e, com o auxílio da flotilha, de novo penetra no interior da Germania.
Por fim, reconhecendo-se incapazes de dominar aquele inóspito país, os romanos retiram até ao Reno, que desde então serviu de fronteira ao Império. Apenas uma estreita faixa na margem direita e o triângulo compreendido entre os cursos superiores do Reno e do Danúbio (a noroeste da Récia) se mantiveram em poder dos romanos. Começam então a erguer-se as primeiras fortificações do chamado limes. Uma linha de baluartes de fronteira, ligados por uma rede de estradas, valli (fossos defendidos por paliçadas) e postos de vigilância.
A MORTE DE AUGUSTO.
Augusto morreu com cerca de 77 anos de idade, a 19 de Agosto do ano 14, em Nola. Desenvolvendo o novo regime sob as bases que Sula e César já haviam lançado, Augusto e os seus colaboradores ergueram, no essencial, um edifício estatal que irá manter-se por quase três séculos.