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Capítulo III - A Primeira Guerra Fernandina

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida por «O Espaço da História». 

26. QUAIS LUGARES TOMARAM VOZ POR ELREI DOM FERNANDO, E DALGUMAS GENTES QUE SE VIERAM PARA ELE.

Quando elrei dom Pedro foi morto, alguns dos que tinham os lugares por ele tomaram voz por elrei dom Henrique, mas outros, que lhe obedecer não quiseram, escreveram logo a elrei de Portugal que, se sua mercê fosse de os haver por seus, levantariam voz por ele, e que começasse a entrar por Castela, que lhe dariam as vilas e o receberiam por senhor, fazendo-lhe delas menagem.

Elrei dom Fernando, mui ledo com isto, respondeu a todos que lhe prazia muito e que os havia por seus e lhes faria muitas mercês, e que os acorreria, com as suas gentes e por seu corpo (pessoalmente), se cercados fossem e lhes mister fizesse.

E as cidades e vilas que tomaram a sua voz foram estas: Carmona, Zamora, Cidade Rodrigo, Alcântara, Valência de Alcântara e mais, na Galiza, a cidade de Tui, Padrom, a Rocha, a Crunha, Salvaterra, Baiona, Alhariz, Milmanda, Araújo, a cidade dOurense, a vila de Ribadavia, Lugo e a cidade de Santiago, que se deu mais tarde e com certas condições.

E, assim como estes lugares se deram a elrei dom Fernando, assim se vieram logo para ele com as suas gentes todos os fidalgos e cavaleiros que eram da parte delrei dom Pedro, tanto da Galiza como de Castela, afora aqueles que estavam nos lugares que tomaram voz por Portugal, e os nomes dalguns deles são estes: dom Afonso, bispo de Cidade Rodrigo, que deu a elrei os castelos de Hinojosa e Lumbrales, o conde dom Fernando de Castro, Álvoro Perez de Castro, seu irmão bastardo, que depois foi conde, o mestre dAlcântara, dom Pero Girom, FernandAfonso de Zamora, João Afonso de Beça, João Afonso de Muxica, SueirEanez de Parada, adiantado da Galiza, Gonçalo Martins de Cáceres, Álvoro Mendez de Cáceres, Afonso Fernandez de la Cerda, João Perez de Nóvoa, João Perez dAza, Fernam Rodriguez e Álvoro Rodriguez, seus irmãos, Afonso Fernandez de Burgos, Mem Rodriguez de Seavra, Afonso Lopez de Texeda, Afonso Gomez Churrichão, Diego Afonso de Carvalhal, Gomez Garcia de Foyos, Martim Garcia dAliazira, João Fernandez Andeiro, PedrAfonso Girom, Martim Lopez de Cidade, Afonso Vasquez de Vaamondo, Afonso Gomez de Lira e Lopo Gomez, Fernam Caminha e seus filhos, DiegAfonso de Proanho, Fernam Guterrez Telo, Dia Sanchez, adiantado de Cazorla, Garcia Perez do Campo, Pero Diaz Palomeque, Diego Diaz de Gayoso, FernandAlvarez de Queirós, Garcia Prego de Montão, Diego Sanchez de Torres, João Afonso de Zamora, DiegAfonso de Bolanho, André Fernandez de Vera, Álvaro Diaz Palaçoilo, Gonçalo Fernandez de Valadares, BernaldEanez do Campo, Martim Chamorro, filho do mestre de Alcântara.

Estes e outros que não nomeamos se vieram para elrei dom Fernando, alguns deles juntos em companhia e outros por si, com as suas gentes, fazendo entender a elrei que, assim como aqueles lugares tomaram a sua voz, assim fariam outros muitos, tanto que entendiam que lhe era pequena maravilha ser rei de Castela ou da maior parte dela. E quando o ser não quisesse, que podia fazer rei um dos filhos delrei dom Pedro, seus sobrinhos, que Martim Lopez tinha em Carmona. Assim que duma guisa ou doutra não se lhe podia disto seguir senão mui grande honra e proveito, além de vingança da morte delrei dom Pedro, seu primo, no que mostraria grande façanha que todo o mundo lhe teria a bem.

Elrei respondeu que de Castela seria rei quem Deus quisesse, mas que ele se trabalharia a todo o seu poder para vingar a morte delrei dom Pedro, seu primo. E dizem alguns que mandou fazer queixume ao papa e a elrei de Inglaterra e a seus filhos do mal e desonra que dom Henrique havia feito a elrei dom Pedro, seu primo, em o matar daquela guisa e lhe tomar o reino, e que a isto foram dom Martim Gil, bispo de Évora, e o almirante, quando elrei os mandou com mensagem ao príncipe e a outros senhores em duas galés.

 

27. DAS AVENÇAS QUE ELREI DOM FERNANDO FEZ COM ELREI DE GRANADA PARA FAZEREM GUERRA A ELREI DOM HENRIQUE.

Elrei dom Fernando era grandioso de vontade e querençoso daquilo que todos os homens naturalmente desejam, que é o acrescentamento de sua boa fama e honroso estado, e quando viu que, sem seu requerimento, o mundo lhe oferecia caminho assim azado para cobrar tão grande honra, não mais esguardando (atendendo) a contrários que avir pudessem, determinou em toda a maneira de seguir este feito e levá-lo adiante, vendo em sua vontade tantas ajudas para isso prestes que lhe pareceu coisa ligeira toda Castela ser sua em pouco tempo.

E sendo certo que elrei de Granada não quisera fazer tréguas com elrei dom Henrique por azo da morte delrei dom Pedro – de quem muito amigo era – pelas razões que ouvistes, tratou logo com ele suas avenças, e foram em esta guisa: que ambos fizessem guerra a todos os que tomassem a voz delrei dom Henrique e fossem em sua ajuda, e que esta guerra fosse por mar e por terra, e que elrei de Granada não fizesse paz nem trégua com elrei dom Henrique, mas sempre fosse em ajuda delrei dom Fernando, continuando a guerra contra aquele, e que quaisquer vilas que tomassem voz por elrei dom Fernando fossem seguras delrei de Granada, e igualmente as que tomassem voz por elrei de Granada fossem seguras delrei dom Fernando; e que, se o rei mouro fizesse vir gentes de Benamarim ou doutros lugares em sua ajuda contra elrei dom Henrique, ele fosse teúdo de lhes pagar o soldo, não custando isso a elrei dom Fernando nenhuma coisa, e por essa guisa, vindo gentes estrangeiras em ajuda desta guerra a requerimento delrei dom Fernando, que elrei de Granada não fosse teúdo de lhes pagar parte do soldo que pela sua vinda houvessem de haver; e que, se quaisquer vilas ou lugares que tomassem voz por elrei de Granada – depois que as conquistasse ou indo para as conquistar – fossem por seu mandado destruídas, não seria por isso esta paz quebrada, pois que o não faziam (tomar a sua voz) senão com medo, e por esta maneira fizesse elrei dom Fernando aos que tomassem a sua voz quando lhe prouvesse de o fazer, não quebrando por isso esta avença, a qual os reis firmaram entre si por tempo assinalado de cinquenta anos com grandes juramentos, segundo a crença de cada um, feitos de uma parte à outra para não falecer dela por coisa que aviesse.

 

28. QUE MANEIRA TINHA ELREI DOM FERNANDO COM OS FIDALGOS QUE DE CASTELA SE VIERAM PARA ELE.

E ouvido antes disto quais lugares tomaram voz por elrei dom Fernando e os nomes dalguns fidalgos que para ele se vieram, bem é que saibais que jeito tinha elrei com eles, e também se usou de algum senhorio nas vilas e cidades que então a sua parte tiveram.

E dizendo primeiro da maneira que elrei com eles tinha, esta era mui honrosa e de grande gasalhado, pois além delrei ser grado e liberal não somente aos seus como ainda aos estrangeiros, a estes assinaladamente mostrava grandes gasalhados e partia (repartia) com eles muito gradamente, tanto que era prasmado (censurado) pelos da sua terra e lho diziam por vezes no conselho, mas ele respondia aos fidalgos que em isto lhe falavam que os seus haviam casas e terras em que abastadamente pudessem viver, e que os que vinham desacorridos haviam mister de ser bem aposentados e de lhes serem feitas muitas mercês, e então lhes rogava a todos que sempre dessem de si muita honra aos estrangeiros, dizendo que nisto se mostravam sempre os bons fidalgos, em darem de si muita honra e acolhimento a quaisquer bons que vinham desacorridos.

Assim que, dizendo por miúdo quantas grandezas para com eles mostrou, seria longo processo de ouvir, porém queremos que tanto saibais que, depois da morte deste rei dom Henrique, estando uma vez elrei dom João, seu filho, numa vila de Castela que chamam Medina del Campo, pousava ali numas pequenas casas, de guisa que, ceando ele numa estreita câmara que nelas havia, estavam alguns fidalgos cá fora razoando em muitas coisas, um dos quais era Fernam Perez de Andrade, e eram aí mais Álvoro Perez de Osório, Garcia Gonçalvez de Grisalva e outros, e começaram a falar nas grandezas dos reis de Portugal e Castela, sobre quais deles foram mais grados, e alguns diziam que elrei dom Henrique fora mui grado e outros nomeavam elrei dom Afonso e assim dos antigos reis de Castela, cada um segundo lhe prazia, e embora aí portugueses não estivessem, começaram de louvar muito elrei dom Dinis de Portugal, dizendo que entre os reis dEspanha que de grandeza usaram ele tivera grande avantagem, e, falando nisto, começaram alguns a dizer que elrei dom Fernando era o mais grado rei de que os homens se podiam acordar, e os que isto diziam, para provar a sua intenção, chamaram João Afonso de Muxica, que com outros fidalgos estava aí cerca departindo em outras coisas, e contaram-lhe todo o seu razoar e a dúvida em que eram sobre as grandezas dos reis que na Espanha foram, e que porquanto alguns tomavam bando por elrei dom Fernando – dizendo que ele o fora – o mais de todos – e João Afonso viera para Portugal depois da morte delrei dom Pedro, que dissesse que grandezas achara nele. E ele respondeu, dizendo: «Eu não hei razão de saber todas as grandezas que elrei dom Fernando mostrou para com aqueles senhores e fidalgos que para a sua terra se foram, sei porém que recebiam dele todos muita honra e grandes gasalhados, e a muitos que nomear poderia deu vilas e terras de juro e herdade e grandes dádivas de dinheiros e bestas e outras coisas. E de mim vos digo que, estando uma vez na cidade dÉvora, ele me mandou um dia trinta cavalos e trinta mulas e trinta arneses e trinta mil libras em dinheiros, que eram mil e cento e tantos marcos de prata, e quatro azémolas, as duas delas com duas camas e as outras duas com roupas de estrado (de leito), e mais me deu de juro e herdade uma sua vila que chamam Torres Vedras. E por aqui podereis ver o que daria aos outros senhores e fidalgos de mor estado e condição que eu».

Então disseram todos que nenhum dos reis que antes foram achavam que tal grandeza mostrasse para com algum estrangeiro que à sua terra viesse.

 

29. DA MANEIRA QUE ELREI TINHA NOS LUGARES DE CASTELA QUE POR ELE TOMARAM VOZ.

Falando outrossim do senhorio de que elrei dom Fernando usou nas vilas e cidades que a sua voz então tomaram, sabei que não foi tão levemente tomada que ele não usasse nelas de todo o poderio como nos outros lugares de seu reino, mas que tão cumpridamente se lhe deram e obedeceram em todas as coisas como a seu rei e senhor natural, e ele tal título e nomeação tomou dalguns lugares quando lhes escrevia suas cartas, assim como escrevendo a Zamora se chamava «Rei de Portugal e do Algarve e da mui nobre cidade de Zamora», dizendo que por morte delrei dom Pedro, seu primo, ele era de direito herdeiro dos reinos de Castela e Leão e seu senhor natural.

Ele mandou fazer moeda com os seus sinais, de ouro e prata e graves e barbudas, em alguns lugares que tomaram a sua voz, assim como em Zamora, na Crunha, em Tui, em Valência e em Milmanda, e pôs em elas seus tesoureiros e oficiais segundo para isso cumpriam, os quais despendiam e davam por suas cartas e mandados aquelas moedas que então se corriam por todo o reino de Portugal.

Elrei deu grandes privilégios à cidade dOurense e à de Santiago e aos outros lugares que tinham por ele sua voz, dando grandes ofícios e tenças junto com eles.

Muitos vieram a ele dessas vilas e cidades e pediam-lhe os bens dos que se iam para elrei dom Henrique, e ganhavam dele graças e privilégios e ofícios e tudo lhes era dado ledamente.

Ele dava os bens das igrejas e mosteiros, os que haviam em Portugal e também nos lugares que tomaram a sua voz, não só aos clérigos como às pessoas leigas, se lhos primeiro pediam, e deu a comenda de Toronho e as vilas e lugares que lhe pertencem a Rui de Meira, freire da ordem de São João, e mandou às vilas e lugares da ordem de Alcântara que houvessem Garcia Perez do Campo, craveiro, por lugar-tenente do mestre dessa ordem.

Todas as coisas defesas (interditas) dum reino ao outro corriam então para estes lugares, segundo a cada um prazia de levar.

Assim que não somente os havia elrei por seus, como sua herança própria, mas ainda esperava de haver muitos mais, segundo o que alguns lhe faziam entender.

E pela guisa que elrei dom Fernando dava os bens daqueles que se iam e tinham por parte delrei dom Henrique, assim, por esse modo, dava elrei dom Henrique as terras e bens dos que tomavam voz por Portugal e os perseguia a todo o seu poder.

 

30. COMO FOI TRATADO CASAMENTO ENTRE ELREI DOM FERNANDO E A INFANTA DONA LEONOR, FILHA DELREI DARAGÃO.

Em tudo isto, elrei dom Fernando houve acordo com os do seu conselho que para prosseguir a guerra contra elrei rei dom Henrique não podia ter melhor maneira do que cometer a elrei dom Pedro dAragão que à Infanta dona Leonor, sua filha – que fora esposada com o infante dom João, filho do dito rei dom Henrique – a casasse com ele. E por tal casamento entendia ele de levar seu feito muito adiante com as outras ajudas que tinha, pois ter elrei de Granada duma parte, elrei dAragão da outra e ele, por seu cabo, com as gentes e lugares que tomaram a sua voz, pareceu-lhe muito azado para mais cedo acabar o que começar queria.

E foi assim, de facto, que lha enviou pedir, e foram lá por mensageiros Baltasar dEspínola e Afonso Fernandez de Burgos e Martim Garcia, cavaleiros do seu conselho. E, falando a elrei sobre isto, prouve de a casar com ele e mandou um seu cavaleiro que chamavam monse João de Vilaragut com poder abastante para firmar este casamento, o qual chegou a Lisboa, onde elrei dom Fernando estava. E, feitas suas avenças, foi elrei esposado com ela por palavras de presente na igreja de São Martinho da dita cidade, porquanto elrei pousava então nos paços que chamavam dos infantes, que são à beira dessa igreja. E foi posto nos tratos uma condição, a saber, que elrei dAragão o ajudasse e fizesse guerra com todo o seu poder contra elrei de Castela dois anos continuados, e que mil e quinhentas lanças fossem pagas à custa delrei dom Fernando, e porquanto a estas gentes de armas cumpria de haver pagamento pela moeda que se costumasse a correr no reino dAragão, foi firmado nesta preitesia que elrei dom Fernando mandasse lá tanto em ouro e prata com que se pudesse lavrar moeda de florins e reais que abastasse para paga das gentes que houvessem de fazer guerra, as quais não comessem, andando na terra delrei dAragão, à custa dela depois que a guerra começasse de ser, e havia elrei dom Fernando de pôr certos arreféns para ser elrei dAragão seguro do pagamento que os seus houvessem de haver enquanto servissem naquela guerra.

 

31. COMO ELREI DOM FERNANDO FOI À GALIZA E SE LHE DEU A CRUNHA.

Começou elrei dom Fernando a guerra e pôs os seus fronteiros pelas comarcas e também nos lugares que tinham a sua voz, e mandava que todos os lugares fossem velados por certas pessoas em cada vela e ademais sobrevelas que as requeriam, e, logo que era sol-posto, fechavam as portas de cada lugar e abriam-nas ao sol-levado, e estavam às portas certos homens, com as suas armas, que não deixavam entrar pessoa nenhuma lá dentro que conhecida não fosse, e em cima do muro muitas pedras e traves para deitar aos de fora, se tal coisa cumprisse. O pão de todos os covais era acarretado para a vila e os gados afastados dos estremos para dentro do reino, todas as árvores altas derredor dos lugares eram cortadas e feitas em trações (pedaços) para os inimigos não haverem azo de fazer delas coisa com que lhes empecessem. Estes avisamentos e outros mandou elrei ter em todos os lugares.

E posto que alguns digam que ele não tomou nesta guerra senão título de vingador da morte delrei dom Pedro, seu primo, isto não foi desta guisa, mas, ao invés, faziam entender a elrei – e ele assim o dizia – que, porquanto elrei dom Pedro era morto, ele ficava herdeiro nos reinos de Castela e de Leão, pois era bisneto legítimo delrei dom Sancho de Castela, neto da rainha dona Beatriz, filha do dito rei dom Sancho. Porém ele nunca se entremetera (aventurara) de começar tal demanda, nem buscar esta avoenga de tão longe, se não foram os lugares que se lhe deram de seu grado e os muitos fidalgos que se vieram para ele que isto lhe faziam entender.

E porque ainda na Galiza alguns lugares não tinham a sua voz, ordenou elrei de ir lá para receber lugares que se lhe davam, assossegar a terra que estava por ele e cobrar da outra a mais que pudesse, porém a sua ida foi de tal guisa que mais para sua honra fora não ir lá dessa vez.

E partiu elrei por terra, indo com ele dom Álvoro Perez de Castro e dom Nuno Freire, mestre de Christos, e outros senhores e cavaleiros e muitas gentes, e mandou ir oito galés por mar à Crunha e, por capitão delas, Nuno Martins de Góis, e chegou elrei a Tui e foi aí mui bem recebido de Afonso Gomez de Lira, alcaide da cidade, e dos moradores todos dela. Elrei falou então com Lopo Gomez, filho do alcaide, para que fosse adiante à Crunha e, se visse que os da vila duvidavam de o receber por senhor, ele e mais aqueles que levava consigo se pusessem no muro por cima da porta da vila, e que dali defendesse (impusesse) aos do lugar que não cerrassem a porta até que elrei entrasse, que seria logo cerca.

Lopo Gomez chegou à Crunha e nenhuma coisa disse aos do lugar da intenção que levava, salvo que se ia para ali a ver que maneira os portugueses queriam ter. Nisto chegou elrei dom Fernando à vista do lugar e os da vila saíram todos a recebê-lo, e, entre eles, João Fernandez Andeiro, que era o mais honrado do lugar, porquanto as outras gentes são, as mais delas, pescadores e outros homens não de grande conta. E João Fernandez, porque ainda não vira elrei de Portugal, ia dizendo a alta voz entre os outros todos: «Onde vem aqui meu senhor, elrei dom Fernando?» Elrei, quando isto ouviu, deu de esporas ao cavalo em que ia e disse: «Eu sou, eu sou.» Então lhe beijou a mão, ele e aqueles todos que iam em companhia. E, porquanto elrei desta guisa foi recebido na Crunha, não se pôs em obra nenhuma coisa do que Lopo Gomez houvera de fazer.

 

32. COMO FOI TOMADO MONTERREI.

Tendo a vila da Crunha voz por elrei dom Fernando, como dizemos, mandou elrei carregar em Lisboa navios de trigo, cevada e vinhos e que levassem tudo àquele lugar, para o abastecer e aos outros lugares derredor que míngua houvessem de mantimentos. E estando uma nau e uma barca diante da vila, à descarga, vieram outros navios dos inimigos e tomaram tanto a nau como a barca, mais bem cento e quarenta moios de trigo e cevada que nelas ainda estavam e onze tonéis de vinho, e levaram tudo e queimaram os navios.

E mandou elrei corrigir os muros de Tui e de Baiona de Minhor e doutros lugares, como quem os entendia de possuir longamente.

As galés de Portugal, que andavam pela costa, tomaram algumas naus boiantes e um barco no rio de Pontevedra em que acharam dez marcos de prata, cinquenta dúzias de peles de cabra e outras coisas de pouco valor.

O conde dom Fernando de Castro foi-se lançar sobre Monterrei e levava noventa escudeiros seus, Vasco Fernandes Coutinho sessenta, João Perez de Nóvoa um cento, Mem Rodriguez de Seavra oitenta e assim Fernam Rodrigues de Sousa e outros fidalgos, cada um com suas gentes. E eram aí mais alguns vassalos do infante dom João, tais como Vasco Martins Porto Carreiro, Gil Fernandes de Carvalho, Martim Ferreira, Fernam Rodrigues do Vale e outros mui bons escudeiros, até um cento. E alguns deles foram com o conde sobre o lugar, outros ficaram por essas frontarias, conforme lhes era ordenado.

E pagavam então aos que eram armados à guisa trinta soldos por dia, aos bem armados que não eram à guisa, vinte, e aos outros quinze soldos. E andava aquele que tinha carrego de pagar este soldo pelos lugares onde cada uns estavam e aí lhes fazia o pagamento.

E pôs o conde arraial sobre Monterrei, combatendo-o com engenhos e bastidas, e embora fosse bem defeso pelos que estavam lá dentro, no final foi filhado e teve voz por Portugal (n).

 

Nota: este capítulo é uma súmula do que de mais assinalável se passou na Galiza, no que toca ao conflito, nesse ano de 1369.

 

33. COMO ELREI DOM FERNANDO PARTIU DA CRUNHA QUANDO SOUBE QUE ELREI DOM HENRIQUE VINHA PARA PELEJAR COM ELE.

Elrei dom Henrique, estando em Toledo, teve novas que elrei dom Fernando de Portugal se fazia prestes para lhe mover guerra, e soube que lugares tomaram a sua voz e quantos fidalgos se foram para ele e como tomava título de herdar os reinos de Castela por ser bisneto lídimo delrei dom Sancho, como dissemos, e foi certo de que mandava fazer armada de galés e em como nos lugares que tomaram a sua voz acolhiam gentes suas e lhes mandava elrei dom Fernando o soldo.

Elrei dom Henrique, sabendo estas novas, partiu logo de Toledo e foi para Zamora, que estava contra ele, e foi isto no mês de Julho deste ano de quatrocentos e sete (1369), e pôs o seu arraial da parte da ponte.

E jazendo assim elrei sobre Zamora, cuidando de trazer com os da cidade algumas preitesias por modo a que lhe obedecessem e fossem seus, houve novas de como elrei dom Fernando entrara na Galiza e se lhe dera a Crunha e toda aquela terra lhe queria obedecer. E mal isto soube partiu logo de sobre Zamora e foi para a Galiza com todas as suas gentes, com intenção de pelejar com elrei dom Fernando, e vinham consigo monse Beltram de Claquim e todos os bretões que com este andavam, e quantos senhores e grandes cavaleiros no seu reino havia.

Elrei dom Fernando, que disto estava dessegurado e não ia prestes salvo para receber vilas, quando teve conhecimento de que elrei dom Henrique vinha com todo o seu poder na intenção de lhe dar batalha, não houve por seu conselho de o atender. E, mal soube que elrei dom Henrique estava em terra de Galiza, deixou os seus fronteiros nos lugares que por ele tinham voz – a saber, na Crunha dom Nuno Freire, mestre de Christos, natural dessa comarca, com quatrocentos homens a cavalo; em Tui Afonso Gomez de Lira; em Salvaterra e nos outros lugares, seus capitães – mandou a dom Álvoro Perez de Castro que acaudilhasse aquelas gentes que foram consigo e se viesse com elas por terra, até Portugal, e meteu-se numa das galés que levara Nuno Martins e veio nela até à cidade do Porto.

Elrei dom Henrique, onde vinha, soube novas de como elrei dom Fernando era partido e se tornara para Portugal, e acordou então com monse Beltram e com o conde dom Sancho, seu irmão, e com esses senhores que consigo vinham que entrassem por Portugal, para ver se poderia trazer algumas preitesias com elrei dom Fernando a fim de que fosse seu amigo e não houvessem guerra. E deixou o caminho da Crunha, que trazia, e veio por entre Tui e Salvaterra e passou o rio Minho a vau, porque era em tempo que o podiam fazer, e logo que entraram por Portugal começaram de fazer tal guerra qual homem com má vontade faz na terra de seus inimigos, quando não acha quem lho embargue.

 

34. COMO ELREI DOM HENRIQUE CERCOU BRAGA E A COBROU POR PREITESIA.

Chegou elrei dom Henrique a Braga, e como o lugar era grande e mal cercado – sem haver aí mais que uma torre e, ainda por cima, em lugar que não prestava – era bem azado para se tomar. Lopo Gomez de Lira, sabendo como na cidade havia muito pouca gente, e ainda que esses poucos estavam muitos mal armados para a defender, lançou-se lá dentro antes que elrei de Castela chegasse, com uns dez a cavalo e trinta peões.

Elrei dom Henrique começou de a combater, mas, se bem que o muro fosse baixo e os de dentro mui mal armados, não a podia elrei tomar. E jazendo por dias sobre ela, ordenou de a combater em vésperas de São Bertolameu (n), e pôs-lhe uma bastida e combateu-a de guisa que morreram dos de dentro quarenta e oito homens, por míngua de não serem armados, porém, com tudo isto, não a pôde elrei tomar.

Então os da cidade, vendo que a não podiam defender, preitearam-se em certos dias para que o fizessem saber a elrei dom Fernando, que estava em Coimbra, e Lopo Gomez, vendo isto, saiu-se de noite, antes do prazo acabado, e foi-se.

A cidade não foi acorrida no tempo que se preiteou e deu-se a elrei dom Henrique, e este entrou dentro dela com todos os seus. Os do lugar puseram então as coisas que levar puderam dentro da sé, onde lhas não tomavam. E depois que elrei aí esteve uns seis dias, vendo como era má de manter e, além disso, a terra gasta de mantimentos, puseram-lhe o fogo e foram-se a Guimarães, que são daí três léguas.

Elrei dom Fernando, quando soube como Braga se dera, houve grande queixume dos do lugar, dizendo que se puderam mais manter se quisessem, mormente que ele se fazia prestes para lhes ir acorrer, e culpou muito nisto Gonçalo Pais de Braga e Martim Domingues, mestre-escola (do cabido), e outros, dizendo que eles foram em azo e ajudadores de se dar a cidade a elrei dom Henrique, e dava os bens deles a quem lhos pedia, mas depois soube elrei quanto eles fizeram para se defender e que não eram em culpa, e perdoou-lhes o erro em que não caíram e houve-os por bons e por leais, e mandou que lho não lançasse nenhum em rosto.

 

Nota: por uma carta de Henrique II, datada de Braga a 18 de Agosto, este assalto há-de ter ocorrido uns dias antes do dia de S. Bartolomeu. Aliás, como o próprio Lopes nos diz que o rei castelhano esteve uns seis dias em Braga, depois que entrou na cidade, e que a 1 de Setembro já se encontrava sobre Guimarães, conclui-se que Braga se entregou por volta de 24 de Agosto.

 

35. COMO ELREI DOM HENRIQUE CERCOU GUIMARÃES E SE LANÇOU AÍ DENTRO O CONDE DOM FERNANDO DE CASTRO.

Quando elrei dom Henrique chegou a Guimarães achou o lugar mais defensável e melhor apercebido que Braga – porque se lançou aí dentro Gonçalo Pais de Meira, um bom cavaleiro e para muito, com os seus filhos Fernam Gonçalves e Estêvão Gonçalves, que depois foi mestre de Santiago, e consigo quarenta a cavalo, e igualmente outros fidalgos daquela comarca, de guisa que era lá dentro assaz de boa gente – e elrei pôs o seu arraial sobre o lugar no primeiro dia de Setembro, cercando a vila toda derredor com a muita gente que trazia, e os de dentro saíam cá fora, assim a cavalo como a pé, e escaramuçavam com eles, e isto foi logo no começo, enquanto o arraial estava arredado.

Mandou elrei chegar mais o arraial e armar engenhos e começou de combater a vila, mas os de dentro trabalhavam de a defender, de guisa que os de fora não aproveitavam nada no seu combate. Elrei dom Henrique dizem que jurou então que não se alçaria dali a menos de a tomar, e mandava-a combater tão amiúde que dava mui pouca folgança aos da vila. E sendo assim afincada por três semanas de muitas pedras de engenhos que lhe atiravam, prouve a Deus que nunca nenhuma empeceu a homem nem a mulher nem animália.

Os de dentro armaram outros engenhos e atiraram aos de fora e britaram-nos (quebraram-nos) e mataram alguns homens, e foi grande o alvoroço no arraial, e ao serão entrou Diego Gonçalves de Castro, pai de Lopo Dias dAzevedo, em panos de burel, dentro da vila, dizendo que era homem do julgado que ia a velar, mas os da vila conheceram-no e foi logo tomado, e vendo que não havia para si senão morte, confessou que entre ele e elrei dom Henrique havia fala a fim de que pusesse o fogo à vila por quatro partes e, enquanto os da vila acorressem a apagar o fogo, trabalhasse elrei dom Henrique por entrar na vila, e eles, vendo tal traição como esta, mataram-no e deixaram-no comer aos cães.

Outrossim o conde dom Fernando de Castro, que elrei dom Henrique prendera em Montiel aquando elrei dom Pedro foi morto, ainda vinha ali preso, não com ferros de que fugir não pudesse, mas solto sob a guarda dum alguazil del rei que chamavam Ramiro Nunez das Covas. E afirmam alguns que então disse o conde que queria falar com os da vila para que se dessem a elrei dom Henrique e trazer com eles algumas boas preitesias, e que indo aquele que o guardava com ele para ver como falavam e também para sua guarda, que estando cerca do muro se lançou dentro da vila. Ramiro Nunez, quando isto viu, não soube que fazer com medo delrei dom Henrique, e aventurou-se a perigo de morte e pôs-se com o conde dentro da vila, sendo logo preso. Outros contam este lançamento do conde dom Fernando dentro da vila muito pelo contrário, pois dizem que um dia saiu Gonçalo Pais de Meira com os seus filhos e gentes, mais Gonçalo Garcia da Feira e muitos dos da vila, e deram no arraial delrei dom Henrique e mataram alguns dos castelhanos, e que chegaram à tenda onde o conde dom Fernando estava e que, pela força, o tomaram e o trouxeram para a vila, havendo antes disto fala entre eles para que o fizessem desta guisa, e que jazendo elrei sobre Braga já se quisera o conde dom Fernando lançar ali dentro, mas porque viu o lugar fraco e não defensável não se trabalhou de o fazer. Porém, de qualquer guisa que fosse, o que o guardava lançou-se com ele então dentro da vila, com medo delrei dom Henrique, e culpavam-no alguns que soubera disso parte.

Em tudo isto, elrei de Castela assossegava o seu cerco sobre a vila, dizendo que não se havia de alçar sobre ela até que a tomasse.

 

36. COMO ELREI DOM FERNANDO PARTIU DE COIMBRA PARA IR ACORRER A GUIMARÃES, E DOS LUGARES QUE ELREI DE CASTELA TOMOU.

Deixemos Guimarães estar cercada e tornemos a contar onde era elrei dom Fernando enquanto estas coisas se faziam, e sabei que elrei dom Fernando, quando partiu da Crunha e se veio ao Porto, encaminhou logo para a cidade de Coimbra, onde esteve de assossego, e ali lhe veio recado quando Braga era cercada e igualmente soube por certo como elrei dom Henrique jazia sobre Guimarães, e ordenou então de juntar suas gentes e ir acorrer àquela comarca e pôr batalha a elrei de Castela. E mandou logo cartas suas à cidade do Porto para que muito à pressa fosse feita uma ponte de barcas no rio do Doiro, pela qual ele e toda a sua hoste pudessem passar num dia, porquanto a sua vontade era de em toda a guisa ir pelejar com elrei dom Henrique, e que igualmente se fizessem prestes os moradores do lugar para se irem em sua companha.

Os da cidade, mui ledos com este recado, foram todos postos em grande trigança (azáfama) para pôr isto em obra, uns a achegar barcas, outros a carretar madeira, outros a lançar âncoras e a amarrar cabos, de guisa que muito asinha (depressa) foi feita uma grande e espaçosa ponte, lastrada de terra e de areia, tal por que folgadamente podiam ir através seis homens a cavalo. E isto feito, fizeram-se prestes todos os homens de armas e de pé e besteiros, com a bandeira da cidade, para irem em companha delrei à batalha.

Partiu elrei dom Fernando de Coimbra com todas as suas gentes, e dizem que chegou até ao Porto e elrei dom Henrique houve novas disto – e ainda afirmam alguns que elrei dom Fernando lhe escreveu suas cartas para que o atendesse – e, vendo como não podia tomar Guimarães, partiu-se logo do cerco e foi-se para a comarca de Trás-os-Montes onde tomou Vinhais, Bragança, Cedavi e o Outeiro de Miranda em mui poucos dias, que uns foram tomados por arte, outros por não se poderem defender.

Assim como foi tomada Miranda, que, antes que elrei dom Henrique chegasse a ela, mudaram-se alguns dos seus e fingiram que eram recoveiros (almocreves) portugueses e que haviam mister de viandas da vila por seus dinheiros. Os do lugar, não se catando de tal arte, deram-lhes ocasião a que entrassem lá dentro, e eles, entrando, tiveram logo a porta, e nisto chegaram à pressa os que iam cerca para lhes acorrer, e desta guisa houveram a vila.

Outrossim, os homens de Cedavi defendiam mui bem o lugar, indo elrei dom Henrique sobre ele, mas houveram alguns do arraial fala com VasqueEsteves e com alguns outros para que lhes dessem entrada na vila, que não receberiam nojo e lhes faria elrei muitas mercês, e eles, outorgando isto, tomaram as chaves e abriram as portas, e entraram os inimigos e foi tomado o lugar. E os moradores de dentro que disto parte não sabiam, andando depois fugido este VasqueEsteves, lançaram então inculca (perseguição) sobre ele e tomaram-no e foi enforcado numa ameia do muro.

E todos os montes daquela comarca foram então cheios de homens, mulheres, moços e gados, e viveram na Abadia velha e em Ventoselo e em todas as aldeias dos montes altos, e os monges e abades dos mosteiros daquela comarca todos fugiram, e foi isto do mês de Agosto até Santa Maria de Setembro (n).

E deixou elrei dom Henrique depois recado na vila de Bragança e foi-se para Castela, e dizem que o azo da sua partida tão cedo e de não atender elrei dom Fernando, para com ele pelejar, foram as novas que lhe chegaram, estando sobre Guimarães, em como à cidade dAljazira, por não ser posta em boa segurança, a cobraram os mouros e destruíram de todo, tendo elrei de Granada vindo aí por seu corpo (em pessoa), e que pelo grande pesar que elrei disto houve se partiu assim e se foi para a vila de Toro e dali repartiu suas gentes, umas à frontaria de Granada, outras à Galiza e outras ainda contra Zamora e os outros lugares que não tinham a sua voz e estavam por Portugal.

 

Nota: Sabemos que Henrique II esteve em Braga durante a segunda quinzena de Agosto, no cerco de Guimarães até 21 de Setembro e que só depois entrou em Trás-os-Montes. A fuga para os pontos altos das populações do nordeste transmontano, logo entre Agosto e 8 de Setembro, só pode explicar-se pelo ataque de outras forças castelhanas. Veja-se, sobre isto, na edição das Crónicas de Ayala de 1780, t. II, pág. 596, a parte final da mencionada carta de 18 de Agosto de Henrique II.

 

37. COMO ELREI DOM FERNANDO SE TORNOU, E DOS FRONTEIROS QUE PÔS EM ALGUNS LUGARES.

Elrei dom Fernando, quando soube que elrei dom Henrique era partido de sobre Guimarães, não foi mais por diante e tornou-se, e dizem que lhe pesou muito porque elrei de Castela se partira, e mandou então umas gentes para as suas terras e outras às frontarias das comarcas e lugares, segundo viu que lhe cumpria, fazendo-lhes gradas e grandes mercês e pagando-lhes logo o soldo por certo tempo.

E foi enviado por fronteiro mor entre Tejo e Odiana o infante dom João, mais o infante dom Dinis, seu irmão, e com eles o mestre de Santiago e dom frei Álvoro Gonçalves, prior do Hospital, Fernam Rodriguez dAza, Fernam Gonçalves de Meira, Vasco Gil de Carvalho, João Afonso de Beça, GonçalEanes Pimentel, Vasco Martins de Sousa e outros que de dizer não curamos.

E pagavam de soldo ao de cavalo tari com faca armado à guisa (n) trinta soldos por dia, que eram oito dobras por mês, e ao ginete vinte, que eram por mês cinco dobras, e ao de cavalo sem faca quinze soldos. Armado à guisa chamavam então, assim de pé como de cavalo, a qualquer que era cumpridamente armado, não lhe falecendo nenhuma coisa, e ao que o era comunalmente e não tão bem chamavam armado à meia guisa. E quando lhes faziam pagamento do soldo descontavam-lhes dele quanto montava nas malfeitorias que cada um fazia. E do armazém de Lisboa levavam para cada um dos lugares as armas e coisas que mister havia para sua defensão.

A Elvas foi enviado por fronteiro Gonçalo Mendes de Vasconcelos, e com ele gentes de Lisboa tais como Álvoro Gil, Vasco Esteves de Moles, EstevEanes e Martim Afonso Valente, todos cavaleiros. Gomes Lourenço do Avelar (ou do Avelal), mais Gonçalo Vasques dAzevedo, Gonçalo Gomes da Silva, João Gonçalves Teixeira e outros foram enviados, em companha do dito Gomes Lourenço, a Cidade Rodrigo, e Joane Mendes de Vasconcelos a Estremoz, e dom Fernando dOlivença a Olivença.

O mestre dom Martim Lopez estava então em Carmona, e em Monterrei Álvoro Perez, em Tui Afonso Gomez de Lira, em Milmanda Nuno Viegas o velho, em Araújo RodriguEanes, e assim dos outros fidalgos, cada uns em seus lugares.

E houve elrei dom Fernando mui grande queixume dos moradores de Bragança e de Vinhais e dos outros lugares que elrei dom Henrique tomou desta feita – dizendo que por sua culpa lhos deram, podendo-se defender por maior espaço, e deu os bens dalguns àqueles que lhos pediam – os quais moradores se houveram por mui agravados, dizendo que os culpava a eles porque se davam tão asinha (depressa), não se podendo mais defender, aos inimigos, e não se culpava a si próprio, que lhes não acorria, podendo-o mais bem fazer.

Certamente elrei dom Fernando era então muito prasmado (censurado) pelos povos, dizendo eles que nenhum rei podia acabar os grandes feitos a que se pusesse se ele próprio não fosse presente com os seus, para os esforçar e mostrar sua ardideza (valentia), e que de nenhuma coisa lhe prestava a sua mancebia e ardimento, pois ele espalhava todas as suas gentes e punha-se em poder e conselho do conde dom João Afonso Telo e de outros que, em cobarde encaminhamento, lhe faziam entender que não se trigasse (apressasse) a pôr batalha, que onde não se precatasse (quando menos esperasse) toda Castela lhe obedeceria, e por tal azo como este se gastava ele a si – e o reino – com a mudança das moedas, para satisfazer a todos aqueles, e perdia as gentes e os lugares que tinha, assenhoreando-se dele a cobardice, assim que todo o seu feito era de Santarém para Coimbra e depois tornar a Lisboa, em guisa que já as gentes o traziam por rifão, em escárnio dizendo: «ei-vo-lo vai, ei-vo-lo vem, de Lisboa para Santarém».

Neste comenos acendia-se a guerra cada vez mais e trabalhavam-se os das frontarias de fazer nojo uns aos outros, levando a cabo cavalgadas (razias) nas terras dos inimigos, trazendo roubos de gentes e de gados, cada uns como melhor podiam.

 

Nota: A expressão «cavalo tari» talvez designasse o cavalo de justa ou de batalha. A expressão «com faca» significava de porte médio.

 

38. COMO GIL FERNANDES ENTROU A CORRER POR CASTELA, E DA MANEIRA QUE TEVE EM TRAZER SUA CAVALGADA.

Assim aveio nesta sazão que em Elvas havia um escudeiro bem mancebo chamado por seu nome Gil Fernandes, filho de Fernam Gil, neto de Gil Lourenço, prior que fora de Santa Maria do dito lugar, o qual foi homem de bom esforço e para muito, segundo dissemos na história delrei dom Afonso o quarto. E este Gil Fernandes, saindo a seu avô nas condições e ardideza, fez muitos e mui bons feitos, pelo que depois foi mui nomeado nas guerras que se seguiram, como adiante ouvireis. E o primeiro foi no começo desta guerra, antes que Gonçalo Mendes de Vasconcelos viesse a Elvas por fronteiro.

E foi assim que ele se trabalhou de juntar, dos seus parentes e amigos, setenta homens de armas e quatrocentos homens de pé, e passou por Badalhouce e foi correr a terra de Medellim e apanhou mui grande cavalgada (presa) de gados e bestas e de prisioneiros. Mas o roubo era tão grande que mal o entendiam todos de trazer a Portugal, mormente havê-lo de defender a quem lho tolher quisesse – isto entendiam eles de gravemente (muito dificilmente) poder fazer, tanto que disseram muitos a Gil Fernandes, porquanto era homem novo e não ainda usado em guerra, que fizera mal em os pôr em perigo, alongando-se tanto pela terra dos seus inimigos.

Gil Fernandes, ao qual a natureza provera de bom esforço e ardimento, afoitamente começou por dizer: «Amigos, esforçai e não hajais temor, e se algumas gentes vierem a nós, com ousança e sem receio pelejemos com eles». Então usou de uma arteira sajaria (sageza) e bom avisamento em este modo: porquanto o infante D. João era fronteiro mor daquela comarca, combinou com um seu tio, que diziam MartinhAnes, que se chamasse infante dom João e que eles em tal conta o trariam, e mandou logo aos prisioneiros que lhe beijassem a mão como a seu senhor, e ele tal jeito lhes mostrava, fazendo depois soltar alguns deles para darem fama pela terra que era o infante dom João.

E foi assim, de facto, que os prisioneiros que deixavam ir juravam a quaisquer outros que era o infante dom João quem levava aquela cavalgada, afirmando que lhe beijaram a mão. Os castelhanos que o ouviam, receando o seu nome e poder, não ousavam de sair a eles, e desta guisa veio aquele roubo a Portugal sem achar quem lhe fizesse nojo, e era a cavalgada tão grande que trazia mais de uma légua em longo (n).

 

Nota: a légua de Fernão Lopes é a antiga, ou seja, cerca de 6 quilómetros e meio.

 

39. COMO ALGUNS FRONTEIROS PORTUGUESES PELEJARAM COM OS CASTELHANOS, E DO QUE AVEIO A CADA UNS DELES.

Logo cerca veio a Elvas por fronteiro Gonçalo Mendes de Vasconcelos, o qual rogou este Gil Fernandez para que fossem correr contra Badalhouce, e ele outorgou de o fazer, mas disse-lhe que entendia que na cidade estavam tantos que não se podia escusar a peleja, e que por isso levasse consigo todos os da vila bem acaudilhados, que ele com quarenta a cavalo iria correr contra Badalhouce até um local que chamam a Torre das palomas, e que os fidalgos que ali estavam sairiam logo a ele e que assim os viria tirando (atraindo) até onde houvesse de ser a peleja.

Ordenado por esta guisa, foi Gil Fernandes correr e do local saiu muita gente, assim homens a cavalo como de pé, e vinham-se refertando (escaramuçando) com eles para os trazer até onde pelejariam. E quando chegou junto a Gonçalo Mendes começou Gil Fernandes de dizer, em altas vozes (brados), que se esforçassem todos, pois que aquele era o seu bom dia, e o seu cavalo trazia já na testa um ferro de lança com um tração (bocado) de haste, e assim andou depois na peleja.

Chegaram os castelhanos e juntaram uns com os outros – e dum cavaleiro de Badalhouce que chamavam Fernam Sanchez, que era o fidalgo de mor estado que aí havia, foi tal a sua ventura que um homem de pé, carniceiro de Lisboa, que chamavam Lourencinho, lhe deu com uma almarcova (cutelo) na mão do cavalo, o qual caiu logo com ele – e tombou Fernam Sanchez por terra e um outro cavaleiro, de Toledo, e assim fizeram a outros assaz de bons que ficaram logo ali mortos. As outras gentes fugiram para Badalhouce, que era bem perto, e o seu encalço foi seguido até onde se fazer pôde, e tornaram-se depois os portugueses a Elvas mui ledos com esta vitória.

Também o infante dom João, que era fronteiro mor daquela comarca, e dom frei Álvoro Gonçalves, prior do Hospital, em sua companha, juntaram as suas gentes, mais alguns outros dos castelos derredor que se escusar (dispensar) podiam, e partiram de Estremoz, onde estavam, e foram a Badalhouce – já depois daquele sucesso com Fernam Sanchez – para combater o lugar e o tomar, se pudessem. E acometeram-no e ao primeiro combate entraram a primeira cerca, porém as gentes do lugar acolheram-se à cerca velha e ali se defenderam de guisa que não foram entrados, e os portugueses puseram fogo às casas da primeira cerca – e foram muitas delas queimadas – e derribaram parte do muro, e tornou-se em seguida o infante com as suas gentes e os outros para os seus lugares.

 

40. DOS LUGARES QUE GOMES LOURENÇO TOMOU, E COMO JOÃO RODRIGUES PELEJOU COM OS DE LEDESMA.

Elrei dom Fernando, como ouvistes, quando tornou da ida de Guimarães, mandou seus fronteiros aos lugares que por ele tinham voz, entre os quais ordenou de mandar Gomes Lourenço do Avelar a Cidade Rodrigo e que se viesse Afonso Gomes da Silva, que antes disto ali estava, e haviam ido em sua companha Afonso Furtado, Estêvão Vasques Filipe, João Rodriguez Porto Carreiro e outros bons que já dissemos, até duzentas lanças, e mandou-lhes elrei fazer uma mui formosa bandeira de suas armas que levaram quando partiram de Lisboa, que fora no mês de Abril (n).

Gomes Lourenço chegou à cidade e – depois que foi de assossego – correu a terra derredor, e filhou estes lugares, a saber, São Felizes dos Galegos, o Barruecopardo, a Hinojosa e Cerralbo, e pôs em São Felizes por fronteiro João Rodrigues Porto Carreiro com vinte e quatro a cavalo.

Estando João Rodrigues no lugar, veio sobre ele o concelho de Ledesma, que eram bem oitenta a cavalo, e João Rodrigues saiu da vila e pelejou com eles e foram vencidos os de Ledesma, matando-se e prendendo-se muitos deles, e também dos homens de pé que ainda vinham à longa, e foi esta peleja muito soada porque os poucos venceram muitos.

E desta guisa que os portugueses faziam é de cuidar que o fariam os castelhanos, mas porque nenhuma coisa do que eles então fizessem achamos em escrito não o podemos pôr em história.

Mas sabei que nesta sazão, em Lisboa, uma terça-feira ao serão, se alçou fogo na Ferraria, da parte do mar, e arderam todas as casas daquela rua e mui grande parte da rua Nova, e foi grande a queima e muito o haver perdido e furtado, e durou o fogo por grande espaço.

Outrossim no ano seguinte de quatrocentos e oito (1370), aos vinte e três dias do mês de Fevereiro, desde a meia-noite até à sainte (hora de saída) das missas, fez mui grande tormenta, e tinha elrei no porto de Lisboa certas naus que armava para a guerra que havia com elrei de Castela, e foi a tormenta tão grande que as mais delas se perderam e quebraram em terra, e perdeu-se muita companha delas e dos outros navios que nesse porto estavam. E era o vento tão grande que às telhas dos telhados, que eram cobertos com cal, assim as levava como se fossem penas, e o postigo da porta da foi arrancado e a tranca da porta britada (quebrada) e igualmente o fecho, e muitas oliveiras foram arrancadas. E pesou muito disto a elrei dom Fernando, que então estava nessa cidade.

 

Nota: esta partida de Lisboa em Abril há-de ter sido no ano de 1369, e da companha (ou hoste) de Afonso Gomes da Silva. Assim, Afonso Furtado, Estêvão Vasques Filipe e João Rodrigues Portocarreiro teriam seguido nessa hoste, já estando há meio ano em Cidade Rodrigo quando Gomes Lourenço aí chegou. Aliás, no capítulo XXXVI (nosso item 37), quando se fala da ida como fronteiro de Gomes Lourenço a Cidade Rodrigo, um pouco estranhamente repete-se o seu nome por duas vezes: «Gomes Lourenço do Avelar… foram enviados em companha do dito Gomes Lourenço a Cidade Rodrigo». Pensamos que tal repetição visa precisamente sublinhar quais os fidalgos que então teriam ido com ele a fim de os distinguir dos três que agora se nomeiam.

 

41. COMO ELREI DOM HENRIQUE CERCOU CIDADE RODRIGO, E POR QUE RAZÃO SE PARTIU DE SOBRE O CERCO.

Passou o ano de quatrocentos e sete (1369) e começou a era de quatrocentos e oito (1370), no qual ano, estando elrei dom Henrique na vila de Toro, soube como Gomes Lourenço do Avelar mais as gentes que com ele estavam em Cidade Rodrigo faziam grandes cavalgadas pela terra derredor e muita perda e dano por toda aquela comarca que voz de Portugal não tinha, e tendo elrei disto grande sentido ordenou (decidiu) de a vir cercar, e partiu da vila de Toro e veio pôr arraial sobre ela, e fez-lhe atirar com engenhos e combatê-la de vontade.

Gomes Lourenço e as gentes que com ele estavam, e também Martim Lopez de Cidade – que era o mais honrado cavaleiro que aí havia – com Pero Mercham (p1) e outros do lugar que tomaram voz por elrei dom Fernando, defendiam-se todos de guisa que os do arraial haviam bem que fazer.

Vendo elrei dom Henrique que não lhe podia empecer por combates (ataques) com engenhos e trons e força de bestaria, ordenou de lhe fazer uma cava, e começaram de a fazer junto com o mosteiro de São Payo (p2), que está arredado do lugar.

Gomes Lourenço soube-o por inculcas (vigias) que trazia fora e, a direito de onde entendeu que haviam de vir, derribou casas dentro da cidade e fez encher cubas de terra e de pedra e uma grande bastida de madeira, com peitoris de portas de casas em ela, acautelando-se do dano que lhes recrescer podia.

Os de fora acabaram a sua cava e puseram grande parte do muro em contos (n), e divisado o dia do combate deitaram fogo à cava e começaram a combater o lugar por quatro partes, para não entenderem os de dentro por onde levavam a cava, crendo que por nenhuma guisa os da cidade pudessem sofrer a força daquele combate, o qual durando por bom espaço, com cada uns mostrando as suas forças, uns para se defender e os outros para entrar, arderam os contos que tinham posto ao muro e caíram dele bem dezoito braças, tudo em torrões (pedaços) grandes uns sobre os outros, da qual coisa os de fora houveram grão prazer, e muitos da cidade houve tais, vendo aquilo, que cuidaram de por força serem entrados.

Os que combatiam (assaltavam) trabalharam logo de subir por cima do muro que caíra e – pondo-o em obra – viram os de dentro afortelezados daquela parte derribada, de guisa que matavam alguns deles e feriam muitos, e maravilhando-se da sua força e avisamento afastaram-se para fora, e foi aí morto um cavaleiro que diziam monse Lemosim, irmão do senhor de Lebret (p1).

Elrei dom Henrique, vendo que com tudo o que lhe feito havia não a podia tomar, e depois pelas grandes chuvas que estorvavam a vinda dos mantimentos de que o arraial era já minguado, determinou de partir dali, havendo dois meses e meio que jazia sobre ela, e foi-se para Medina del Campo no mês de Março meado, e ali ordenou de fazer pagamento a monse Beltram e aos estrangeiros de cento e vinte mil dobras que lhes devia das suas soldadas e que se fossem para suas terras. E mais enviou Pero Manrique e Pero Rodriguez Sarmento à Galiza com gentes, porquanto soube que dom Fernando de Castro andava naquela comarca, com grão poder, fazendo dano nos que a sua parte tinham. E dali partiu para Toledo e veio-se a Sevilha, para pôr recado na terra que recebia dano dos de Carmona e também dos mouros, que faziam a cada dia entradas, e – o pior em tudo isto – da frota das galés e naus de Portugal que jaziam no rio de Guadalquivir, de guisa que Sevilha não tinha o mar desembargado para dele haver proveito, como depois do capítulo seguinte ouvireis.

 

Nota: meter escoras entre as pedras da muralha para depois lhes deitar o fogo.

Pesquisa 1: quem foram estes dois, Pero Merchán e monsieur Lemosin, que seria irmão de Arnaud-Amanieu de Albret. Pistas: Arnaud-Amanieu tinha irmãos legítimos mas também ilegítimos; a alcunha ou nome «Lemosin» ou «Limosin» pode eventualmente estar errada.

Pesquisa 2: onde se localizava, junto a Ciudad Rodrigo de então, este mosteiro de San Pelayo. Pistas: Puerta de San Pelayo, Calle de San Pelayo.

 

42. COMO FOI CERCADA ZAMORA PELA RAINHA JOANA, E MORTOS OS FILHOS DE AFONSO LOPEZ DE TEXEDA.

Trabalhando-se elrei dom Henrique de haver os lugares e vilas que a sua voz não tinham, e vendo que nenhuns cometimentos nem preitesias que fizesse aos que eram alcaides deles lhe prestavam para os haver pela sua parte, cercava-os e combatia-os com todas as artes e forças que para tal feito eram pertencentes, e os que tinham tais fortalezas não trabalhavam menos de se defender dele, como se elrei e os seus fossem mouros inimigos da fé que os houvessem de cobrar e haver em seu poder, e não somente elrei com as suas gentes, mas ainda a rainha sua mulher, que para isto abastante coração havia, igualmente se trabalhava de cercar alguns deles, entre os quais cercou Zamora, que tinha Afonso Lopez de Texeda mais os seus irmãos e outros fidalgos com muitas gentes, mantendo voz por elrei dom Fernando.

E foi o lugar por vários dias tão afincado que se preiteou Afonso Lopez com a rainha em que, se até certos dias lhe não viesse acorro, o desse sem outra (mais) contenda. A rainha outorgou a preitesia com a condição de que Afonso Lopes lhe entregasse em arreféns, para segurança disto, dois filhos seus que tinha consigo, os quais por grado do pai lhe foram entregues.

Passou o termo entre eles divisado e não lhe veio outro nenhum acorro salvo que aí foi micer Gregório de Campo Morto (p), que se lançou dentro do lugar com sessenta homens de armas, não embargando que a cidade jazesse assim cercada, mas isto não prestou nenhuma coisa para ela se poder defender, e foi requerido Afonso Lopez para que desse o lugar, pois o termo já era passado, e ele, que de o fazer havia pouca vontade, por tais palavras e com tal som (tom) se escusou, coisa da qual a rainha houve tão grande queixume que disse, afirmando-o por juramento, que se Afonso Lopez não lhe desse o lugar como ficara acordado com ela, pois que o termo já era passado, lhe mandaria degolar os filhos ante seus olhos, se ele os olhar quisesse, e assim lho mandou dizer.

Afonso Lopez, ouvindo isto, usou dum modo mui estranho – o qual é, não de louvar, como virtude, mas façanha sem proveito, cumprida de toda a crueldade – e respondeu àqueles que isto lhe disseram que se a rainha, por esta razão, lhe mandasse degolar os filhos, ainda ele tinha a forja e o martelo com que fizera aqueles e que assim faria outros.

Os que esta resposta ouviram, posto que Afonso Lopez afoitamente em isso falasse, não puderam crer que os seus dois filhos tão azados para amar deixasse morrer daquela maneira, como assim seja que na morte do filho nenhum pode sentir maior dor que o pai, mormente de tal jeito.

E foi assim que os trouxeram à vista do muro, frontando (instando) e requerendo a Afonso Lopez que desse o lugar como ficara acordado, senão que os matariam logo na sua presença, e ele respondeu que se quisessem os matassem.

Bradavam os filhos ao pai – chorando – que os não deixasse matar e se amerceasse deles, dizendo: «Ó pai, por Deus e por mercê, havei de nós dó e não nos deixeis assim matar. Ó pai, senhor, dai esse lugar, pois vos não veio acorro, e não morramos assim sem porquê!»

Estas e outras doridas razões, que não minguava quem lhas ensinasse dentre os que presentes eram, bradavam os filhos ao pai para que lhes acorresse, e não somente eles como todos os que estavam à beira igualmente bradavam que se amerceasse deles.

E durando isto por grande espaço, detendo-se aqueles que de os matar tinham carrego, no final nenhumas palavras nem brados dos filhos, nem de muitos que se chegavam a ver, o demover puderam de sua intenção, e os filhos foram mortos naquela hora, por falecer do que prometido tinha, e ele não pôde depois manter o lugar e houve-o elrei dom Henrique por preitesia.

 

Pesquisa: Quem foi este Gregório de Campo Morto. Pistas: era muito provavelmente um mercenário; a palavra «micer» indica que seria natural de Itália; no Vale de Aosta há um lugar chamado «Champ-Mort».

 

43. DA FROTA DAS NAUS E GALÉS QUE ELREI DOM FERNANDO ENVIOU A BARRAMEDA, E DO QUE AS GENTES PADECIAM ENQUANTO ALI JAZERAM.

Elrei dom Fernando, no começo desta guerra, mandou armar grande frota de galés e naus, a saber, vinte e oito galés suas e quatro a soldadas de micer Reinel de Guirimaldo, e trinta naus do seu reino e das que se vieram para ele da costa do mar. E nas galés iam por almirante micer Lançarote Pessanho e por capitão João Focim, um daqueles cavaleiros que se vieram de Castela para elrei dom Fernando, o qual se partiu primeiro com seis galés e duas galeotas aos quinze dias de Junho, e depois partiu o almirante com toda a frota.

E a intenção delrei era que esta frota jazesse à entrada do rio de Sevilha para embargar que nenhum navio pudesse ir nem vir com mercadorias nem levar outros mantimentos para a dita cidade, e que – empachado longamente aquele porto por tal guisa – Castela receberia tamanha perda e dano por esta razão que lhe seria a ele de mui grande avantagem para cumprir a sua vontade, além disto, parte das galés e navios andariam correndo a costa, e – ganhando a seus inimigos o que haver pudessem – dariam sempre volta para a foz do rio e ali jazeriam de assossego com as outras quando vissem que cumpria, e que disto se não podia seguir salvo mui grande proveito.

Partiram as naus e galés juntamente no mês de Maio (n1) de ante o porto de Lisboa com grande parte de gentes do reino, que era formosa companha de ver. E iam nas galés por patrões micer Baltasar dEspínola, Brancaleom genovês, João de Mendonça (p), Gonçalo Durães de Lisboa, Gomes Lourenço de Carnide e outros cujos nomes não fazem míngua posto que não se escrevam aqui, e chegaram a um lugar que chamam Barrameda, que é à entrada do rio de Sevilha, e ali ancoraram todas.

Os castelhanos, quando ali os viram, não lhes prouve da sua vizinhança e diziam contra eles, por modo de escárnio, que não foram ajudar elrei dom Pedro enquanto era vivo e que então lhe iam ajudar os ossos depois da morte.

Jazeu ali a frota por espaço de tempo e destruiu toda a ilha de Cález e fez muito dano por aquela comarca, assim no mar como por terra – porém não achámos que mais tomassem, logo como chegaram primeiro, que um baixel carregado de azeites, com seis quintais de alácar, e uma galé a que puseram o nome «A bem ganhada» – e gastava-se muito a cidade de Sevilha por azo da servidão do rio que desta guisa estava embargada.

Passado o verão e vindo o inverno, começou a gente de adoecer e os mantimentos de minguar, e morriam alguns e soterravam-nos em terra, e dali os dessoterravam os lobos e comiam-nos. E posto que elrei lhes mandasse navios com biscoito que se fazia no Algarve e em Lisboa, e outros mantimentos e coisas que lhes faziam mister, não era a abundança tanta que lhes satisfazer pudesse, em guisa que por frio e fome e comer desacostumadas viandas vieram muitos à morte e fraqueza e continuadas dores. E se alguns por morte ou fugimento (fuga) faleciam da frota, logo era cumprido o conto de outros tantos que novamente traziam a ela.

E igualmente mudavam os patrões que serviam um tempo, mandando outros que servissem nas galés.

E mandava elrei lá muito burel e panos de linho e de cor e vestires feitos para alguns que andavam mal vestidos, e descontavam-lhos no soldo quando lhes levavam os dinheiros de que lhes faziam pagamento.

Se elrei, por razão de embaixadas ou por outra alguma coisa, havia mister destas naus e galés para enviar a outra parte, tomava aquelas que lhe prazia e mandava-as fornecer e pagar de seu soldo, e depois que vinham de onde eram enviadas tornavam-se para a frota donde partiram.

Parte das naus e galés vinham ao Algarve e a Lisboa – e nestes lugares lhes pagavam às vezes o seu soldo e tomavam refresco e mantimento – e tornavam-se logo para a outra frota. Mas não embargando isto, o mui longo tempo que continuadamente ali jazeram, que foi um ano e onze meses (n2), passando muita fome e frio e outras dores, fez com que se perdeu muita gente dela, pois que lhes caíam os dentes e os dedos dos pés e das mãos, e outras tribulações que passavam que seria longo de dizer.

 

Nota 1: Se os navios saíram juntamente de Lisboa em Maio, mas o primeiro a zarpar para o Guadalquivir foi João Focim, a 15 de Junho, então a frota há-de ter feito escala nalgum porto, provavelmente algarvio, e daí terá partido Focim ao comando das suas 6 galés e 2 galeotas.

Nota 2: Fernão Lopes há-de estar a referir-se ao tempo que as tripulações passaram embarcadas, e não à duração do bloqueio naval no Guadalquivir, caso contrário, este ter-se-ia prolongado até Maio de 1371, o que não é crível.

Pesquisa: este «Brancaleom genovês» talvez seja Brancaleone Doria, e dado que Fernão Lopes quase sempre aportuguesa os nomes, «João de Mendonça» pode eventualmente designar um castelhano, isto é, alguém que porventura se chamava Juan de Mendoza.

44. RAZÕES SOBRE AS TRÉGUAS QUE ALGUNS DISSERAM QUE ELREI DE GRANADA FIZERA COM OS CASTELHANOS.

Afirmam alguns que primeiro que nós escreveram, dizendo em suas histórias, que elrei dom Henrique, quando partiu de Medina del Campo para Sevilha – como tendes já ouvido – antes que chegasse à cidade soube pelo caminho como o mestre de Santiago, dom Gonçalo Mexia, e o mestre de Alcântara, dom Pero Moniz (n1), haviam feito trégua com elrei de Granada, do que dizem que lhe muito prouve, mas não falam por quanto tempo nem com que condições esta trégua foi feita. E isto nos parece contradizer muito à verdade por algumas certas razões.

E deixada a primeira que deveram de dizer, a saber, a razão por que foi feita e com quais preitesias e por que tempo, tomemos a segunda, dizendo assim: que o rei mouro, requerido no começo desta guerra por elrei dom Henrique para que lhe desse trégua, por nenhuma guisa lha quis outorgar, tendo que ele indignamente ocupava os reinos de Castela que por herança direita convinham (cabiam) às filhas delrei dom Pedro, seu irmão, a saber, a dona Beatriz, que se finara em Baiona de Gasconha, e depois a dona Constança, casada com o duque dAlancastro, e que por isso firmou então elrei de Granada tréguas com elrei dom Fernando e não com ele, e um dos capítulos nelas contido era que – conforme tendes ouvido – elrei de Granada não fizesse paz nem trégua com elrei dom Henrique, mas sempre continuasse a guerra contra ele.

E se alguém disser que o mouro, não embargando isto, podia quebrar a trégua e juramento que feito havia, segundo a sua crença, e ser amigo delrei dom Henrique, responde-se que isto não parece de outorgar, que, se assim fora, dadas as entradas que os mouros faziam amiúde em Castela, não era tal trégua coisa que se encobrir pudesse, nem elrei de Granada não enviaria pedir, nesta sazão, a elrei dom Fernando que lhe mandasse de sua terra algumas coisas em que lhe faria prazer, assim como enviou, pois elrei dom Fernando, a seu requerimento, lhe enviou então de presente seis alãos e seis sabujos, todos com colares brolados e fuzis de prata dourados e as trelas deles de ouro fiado, e trinta ascumas, todas com contos e anguados de prata dourados, que levavam quarenta e seis marcos de prata em guarnimento, e levaram-lhe este presente, que apodavam (estimavam) a seiscentas dobras, sete moços do monte delrei dom Fernando, o qual presente, posto que pequeno fosse, lhe não fora enviado se elrei de Granada quebrantara a trégua que com ele tinha feita.

E nós não achámos que elrei dom Henrique mandasse vir da frontaria dos mouros as gentes que lá tinha enviadas para guarda da terra, ademais que sendo depois Carmona cercada, onde estavam os filhos delrei dom Pedro, vinha elrei de Granada em sua ajuda com muitas gentes, como adiante ouvireis, o que não fizera se tivera trégua com ele.

E por estas razões nos parece ser de não darmos fé aos que falaram do britamento desta trégua pelo rei de Granada (n2).

 

Nota 1: Por decisão de Henrique II, Pedro Muñiz era à época Mestre das Ordens de Alcântara e de Calatrava. Ver, na edição de Madrid de 1780 das Crónicas de Ayala, t. I, a nota XIX a p. 596.

Nota 2: Bom, um dos que disseram que houve trégua foi o próprio rei Henrique II, segundo carta que escreveu a Murcia (a qual Fernão Lopes certamente desconhecia). E ao contrário de Lopez de Ayala, a principal fonte de Lopes, o rei até diz por quanto tempo se estabeleceu a trégua: 8 anos. Ver, na mencionada edição das Crónicas de Ayala, t. II, p. 599.