Capítulo II - A primeira cruzada

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O CONCÍLIO DE CLERMONT E A PROCLAMAÇÃO DA CRUZADA AO ORIENTE.

No Verão de 1095 o papa viaja pela França, convocando para a cidade de Clermont, no dia 19 de Novembro, um concílio eclesiástico.

Vindos de toda a parte, ali se juntam milhares de cavaleiros e eclesiásticos. Acorre também uma enorme quantidade de gente do povo. Como a cidade não podia dar guarida a toda aquela multidão, a planície contígua cobre-se de tendas de campanha.

A atestar-lhe o carácter de extraordinária “transcendência”, ao concílio comparecem catorze arcebispos, mais de duzentos bispos e quatrocentos abades.

Terminadas as deliberações a 26 de Novembro, o papa discursará depois solenemente, a céu aberto, perante a enorme multidão, chamando os fiéis às armas contra «a tribo persa dos turcos».

(O texto oficial do discurso de Urbano II não se conservou. Vários cronistas ocidentais trataram de “reproduzi-lo”, cada um à sua maneira. Das diversas tentativas de “remontagem” do texto, pela confrontação das suas variantes contidas nos anais, a mais detalhada reconstrução pertence ao historiador norte-americano Dana C. Munro, em “The speech of pope Urban II at Clermont, 1095”, American Historical Review, 1906, vol. XI, nº2.)

O papa não foi avaro em detalhes sobre os supostos horrores que os «irmãos na fé orientais» sofreriam às mãos dos seldjúcidas, acicatando o fanatismo religioso da mole que o ouvia. Urbano II invocou ainda, para justificar a guerra que a cúria romana organizava, a necessidade de «libertar o Santo Sepulcro do Senhor» em Jerusalém.

O papa, com a sua demagogia beata, apelando ao espírito de sacrifício ascético das massas populares, dava-lhes uma aparente possibilidade de fuga ao jugo da miséria feudal, pelo cumprimento do concreto “sacrifício redentor” da cruzada. A Igreja abria assim uma “válvula de escape” aos sentimentos anti-feudais das massas, lançando para Oriente, nesse movimento colonizador organizado sob o lema da “guerra santa”, os elementos populares mais inquietos e afoitos.

Urbano II prometeu aos participantes da expedição, que designou de «mártires da fé», a absolvição dos pecados, a eterna recompensa nos céus, etc, etc. Porém, considerando insuficiente a oferta de uma felicidade ultratumba, resolveu juntar à promessa dos “bens celestiais” uma outra mais terrena. Aos pobres que fizessem o voto de se dirigirem à “terra santa” esperava-os, não só a glória nos céus, como ainda a vitória sobre os “infiéis”, que lhes traria pingues benefícios materiais. No Ocidente, dizia o papa, a terra não dá riquezas, e «mal alimenta os que a trabalham». Já no Oriente, ao invés, esperava-os uma existência de abundância, folgada, pois da terra desses países «brota o leite e o mel», «Jerusalém é o umbigo do orbe, as suas terras são de todas as mais férteis e assemelham-se a um segundo paraíso».

«Quem aqui sofre a dor e a pobreza, ali será feliz e rico!», sintetizou o papa. Afirmam alguns cronistas que, nesta passagem do discurso, Urbano II foi interrompido por fortes gritos da multidão: «Deus o quer! Deus o quer! »

Atiçando ainda mais a alienada imaginação dos camponeses, o papa achou por bem agregar ao seu discurso a ficção de que, para chegar a Jerusalém, «curto era o caminho e pouco o esforço, ». Assim, premeditadamente, Urbano II diminuía aos olhos do povo as dificuldades da expedição, na mira de “empurrar” para a sangrenta “pista do Senhor” milhares e milhares de pessoas na miséria. Sem o menor escrúpulo, clamou aos pobres que deviam renunciar ao último dos seus bens, pela “salvação dos irmãos orientais”.

Aos principais visados pelo seu apelo, os grandes feudais que procuravam engrandecer os seus domínios e os cavaleiros empobrecidos, o papa seduziu-os com a perspectiva do saque e das conquistas territoriais. Recordando aos deserdados «rebentos dos invencíveis antepassados» a «estreiteza da terra» a que estavam reduzidos, instigava-os a «que não se conformassem com esta terra que habitam, com esta terra onde são cada vez mais e onde as riquezas não aumentam». Urbano II convidava-os, pois, com toda a franqueza, a roubarem no Oriente, a «apoderarem-se dos tesouros...dos inimigos».

Convocando os “guerreiros de Deus” a gastarem até à última moeda que possuíssem para a “causa sagrada”, o papa acrescentou um original conselho àqueles que se preparavam para seguir “a pista do Senhor”. Para assegurarem os seus bens de raiz enquanto estivessem ausentes, deviam confiá-los em mãos seguras, ou seja, entregar a sua administração às instituições eclesiásticas.

O discurso de Urbano teve uma viva repercussão entre os seus ouvintes, fossem feudais ou camponeses. Cada um encontrou nele as palavras que mais lhe agradaram.

Aos servos e camponeses oprimidos e esfomeados seduzia-os a esperança de pão e liberdade. O século XI estava a chegar ao seu fim. Os camponeses, alucinados pelos sermões eclesiásticos, esperavam novos prodígios no final do milénio. O próprio Jesus Cristo os teria profetizado. Para alcançar a bem-aventurança, era imperioso “libertar o sepulcro do Senhor”.

Já cem anos antes se havia dado entre o povo um idêntico surto de crença e esperança num mundo melhor (que não o do jugo feudal). Mas, apesar de então – um século atrás – as suas expectativas terem saído defraudadas, o povo mantinha, nesse final do milénio, a “sua” fé inamovível nos prodígios e milagres do “fim dos tempos”.

Aos feudais a expedição prometia ricos despojos e novos domínios territoriais. E é de recordar que o movimento em prol de uma campanha no Oriente já se havia iniciado em diversos círculos feudais do Ocidente, com anterioridade à sua promoção pela igreja e ao concílio de Clermont. Para esses feudais, a iniciativa do papa não podia ser mais oportuna.

 

O COMEÇO DA CRUZADA.

As notícias sobre o concílio de Clermont e a iminente campanha a Jerusalém, sob a forma dos mais diversos rumores, espalharam-se com rapidez pelo Ocidente, «chegando até às longínquas ilhas nos mares».

Iniciam-se os preparativos da campanha, tomando a França a dianteira aos demais países. Pregadores fanáticos, frades ou beatos laicos, enxameiam diversas regiões da Europa Ocidental, chamando o povo à luta pelas “relíquias sagradas do cristianismo”. Difundiam as mais variadas fábulas sobre sonhos proféticos, visões milagrosas, “aparições”, etc., tratando de incutir nos espíritos que a cruzada «não é uma obra humana, mas, sim, obra divina», como escreverá depois o cronista Roberto o Monge.

Alguns desses pregadores “brotavam” de modo espontâneo das próprias massas populares, à medida que a ideia da expedição ao Oriente ia fazendo o seu caminho nas mentes dos que pertenciam às camadas mais baixas do povo.

Um propagandista fanático da “guerra sagrada”, o monge Pedro o Eremita, alcançou grande notoriedade pela sua pregação nas regiões do Berry, da Picardia, em Orleães e na Ilha de França no Inverno de 1095-96.

Pouco tempo antes da celebração do Concílio de Clermont, Pedro de Amiens (a cidade onde nasceu) terá empreendido a peregrinação aos “lugares santos”, porém, segundo o que se pode concluir das narrativas de Ana Comneno e de outras fontes, sem no entanto ter conseguido chegar a Jerusalém. O fabulário posteriormente elaborado sobre as cruzadas – em particular, nas crónicas de Alberto de Aix (Aquisgranum ou Aix-la-Chapelle) e Guilherme de Tiro – associar-lhe-á toda uma série de episódios fantásticos à pretensa viagem à “cidade santa”. Havendo adormecido na “Igreja do Santo Sepulcro”, aparece-lhe num sonho o próprio Deus, a ordenar-lhe que se apresentasse ao patriarca da cidade para dele receber uma missiva “sagrada”. Essa “carta de Deus” convocava os cristãos ocidentais a irem libertar Jerusalém do poder dos pagãos. De regresso à Europa, Pedro haver-se-ia encontrado com o papa, e teria sido precisamente depois da sua visita que Urbano II convocou o concílio de Clermont para proclamar a cruzada.

Todas estas quimeras ou “patranhas” pias já há muito foram “desmontadas” por historiadores como H. Sybel, H. Hagenmeyer, B. Kugler e outros.

No entanto, essas “estórias” permitem-nos supor que Pedro de Amiens, o “pregador do povo”, haja sido um dos muitos propagandistas incumbidos pela sede apostólica de “semear” entre as massas a ideia de cruzada.

Não seria, pois, um “catequista espontâneo”, nem um fanático ignorante convertido involuntariamente em instrumento cego da Igreja católica romana, como acontecia com os “iluminados do povo”. Sabemos que era dotado de grande talento como orador, que os seus discursos produziam uma viva impressão, não apenas sobre o povo, mas também entre os homens da própria Igreja. Pedro o Eremita foi um hábil demagogo eclesiástico, actuando com êxito no sentido pretendido pela cúria romana. O seu modo de viver e toda a sua conduta, de aparente ascetismo, de desinteresse material, as suas “generosas dádivas” aos pobres (à conta de copiosos donativos a que as fontes ignoram a proveniência), tudo isto, bem como os seus inflamados discursos, criaram-lhe entre os camponeses a fama de ser um “homem de Deus”.

Escreveu B. Kugler (“História das Cruzadas, edição russa de 1895, em Sampetersburgo): «De olhar ardente, enfraquecido pelas privações e queimado pelo sol, assim se apresentava ante os camponeses da França central e setentrional, neles produzindo uma impressão tão viva que em multidão o seguiam como a um profeta do Senhor».

Já no Inverno de 1095-96, Pedro o Eremita e os pregadores que actuaram sobretudo na França do noroeste, na Lorena e na Renânia alemã levam a que se reúnam, em França, grandes multidões de pobres, homens, mulheres e crianças, prontos a iniciar a viagem aos longínquos países do Oriente.

O povo havia assimilado a seu modo os lemas oficiais e o programa para a cruzada da Igreja católica. A muitos, mais que os inflamados sermões, empurrou-os a miséria reinante nesse Inverno de 1095-96 em consequência das perdas de colheitas dos anos anteriores. As pessoas alimentavam-se de raízes de plantas silvestres, com o preço do pão, nas cidades, a atingir níveis incomportáveis para as classes mais humildes. Nas palavras de um cronista francês de então, «o pobre povo era atormentado pela fome».

Foram a miséria e a fome que fizeram os camponeses apressar-se. Abandonavam as suas choças, alienavam por uma bagatela o seu diminuto património para, como escreve um outro cronista, «se dirigirem a um exílio voluntário».

Segundo o abade beneditino francês Guiberto de Nogent, cada um procurava reunir por qualquer meio algum dinheiro, vendendo tudo o que possuía, não pelo seu valor, mas de acordo com o preço que o comprador fixasse, para não tomar “a pista do Senhor” mais tarde que os demais. Guiberto tinha a impressão de que os pobres se arruinavam intencionalmente, vendendo, por exemplo, doze ovelhas por sete denários, um preço inferior ao de uma ovelha com anterioridade à eclosão do movimento da “cruzada popular”.

O peculiar fenómeno da modificação dos preços que antecedeu a partida dos  pobres cruzados é assinalado pelos cronistas que lhe foram contemporâneos, e atesta o carácter de massas desse movimento. Guiberto de Nogent considera-o um “milagre”: «todos vendiam muito barato e compravam muito caro...Pagavam muito caro pelo que necessitavam para o caminho, vendiam barato para reunirem os meios da empresa». “Atormentava-os” a ideia de partir o mais depressa possível, diz este cronista. Nos seus anais, Guiberto faz uma curiosa comparação: «Foi como se a gente houvesse sido recolhida numa horrível prisão, da qual era preciso escapar a toda a pressa».

É certo que foram muitos os que se deixaram aturdir pela exaltação religiosa, e que entre os pobres não faltou quem marcasse a fogo no corpo o sinal da cruz. É também verdade que o fanatismo religioso se havia difundido amplamente entre as camadas mais baixas do povo. No entanto, se os camponeses se apressavam, era porque não podiam nem queriam esperar pelos senhores.

É caricato tentar explicar este desejo dos camponeses de se adiantarem aos seus senhores, como alguns historiadores o fazem, com motivos de “emulação pia”. Torna-se evidente que, antes do mais, fugiam das próprias condições da sua existência, isto é, da miséria e da opressão feudais.

Muitos pobres procuravam também fugir às suas dívidas, deixando, na expressão de Guilherme de Tiro, «os seus credores “a ver navios”». As dívidas nas aldeias haviam crescido enormemente durante os anos de fome, sobretudo a favor dos conventos. Estes, se bem que tenham aberto aos camponeses os seus celeiros no decurso dos “sete anos fracos”, fizeram-no em condições muito favoráveis para os monges e eclesiásticos seculares credores, e bem pesadas para os devedores camponeses. É significativo que hajam sido precisamente as instituições eclesiásticas, em certas regiões, a procurar travar o movimento dos servos que queriam partir a “libertar o Santo Sepulcro”, argumentando que estes eram demasiado “pobres”, sem meios para a viagem. Se, nuns casos, monges e clérigos expressavam uma real comiseração, em muitos outros tratavam sobretudo de defender os seus créditos e, mais importante ainda, a mão-de-obra que lhes fugia dos campos de lavoura.

Muito antes da data marcada para o início da expedição, estabelecida pelo concílio de Clermont para o dia 15 de Agosto de 1096, já nos começos da Primavera desse ano se põem em marcha as primeiras multidões camponesas, vindas da França setentrional e central, da Flandres, da Lorena e do Baixo Reno. Elas serão seguidas posteriormente por outras “colunas” de pobres provenientes da Escandinávia, de Inglaterra, da Itália, etc.

Dezenas de milhares encetaram o caminho em diferentes datas, formando turbas desorganizadas e desgarradas umas das outras. Iam praticamente desarmados, com os varapaus, as maças, gadanhas, machadas a “fazer as vezes” de armas. «As multidões desarmadas», assim se lhes referirá, à sua chegada a Bizâncio, Ana Comneno.

Tampouco levavam consigo as provisões necessárias. Uns a pé, outros em “carros de bois” (de duas rodas), muitos acompanhados pelas mulheres e os filhos, carregando os seus parcos haveres, marchavam em longas colunas pelas pistas que os peregrinos já antes haviam percorrido, ao longo do Reno e do Danúbio, dirigindo-se para Constantinopla. Guiava-os o sonho de uma vida melhor na “terra de promissão”.

O destacamento formado pelos camponeses do norte da França contava cerca de 15.000 pessoas (apenas 5.000 homens armados) à sua chegada a Colónia. Comandou-os um cavaleiro arruinado, Walter sem Fortuna (Gautier sans-Avoir). Cerca de 14.000 “cruzados” formariam, à chegada a Constantinopla, a hoste guiada por Pedro o Eremita. Alberto de Aix diz que o sacerdote Gottschalk, vindo da Renânia, teria reunido, já em território húngaro, cerca de 15.000 “combatentes”. As colunas de ingleses, franceses, lorenos, suábios e austríacos comandadas pelo conde Emicho de Leiningen eram compostas por cerca de 12.000 homens. E houve ainda outros destacamentos, como os do sul da Itália, que se puseram a caminho.

Os cronistas medievais exageraram em muito o número dos que então empreenderam a marcha. Guilherme de Malmesburry chega mesmo a referir a cifra fantástica de 600.000 homens. Os autores dos séculos XI e XII recorriam a comparações hiperbólicas, as multidões de “cruzados” seriam como “nuvens de gafanhotos” ou as areias do mar, como as estrelas no céu, etc. Expressões como «a multidão inumerável», frequentes nos documentos da época, referiam por via de regra “hordas” de não mais de doze mil a quinze mil pessoas.

Os camponeses e os servos da gleba constituíam-lhes a massa principal. No entanto, já alguns dos cavaleiros mais aventureiros e belicosos se lhes juntam, e até grandes feudais. Estes viam na mole camponesa uma espécie de “força de choque”, de que se pretendiam servir para abrir caminho às suas próprias conquistas no Oriente. Calculavam que, sendo os primeiros feudais a ali chegar, mais facilmente poderiam “abocanhar” uma boa presa.

Possuidores de verdadeiras armas, protegidos por armaduras e dispondo de cavalos, assumiram o comando de muitos dos destacamentos populares. Cumpriram esse papel, entre os franceses, Walter sem Fortuna, que se fez acompanhar por três irmãos e um tio, Foulcher de Orleães, Renaud de Broyes, Gautier de Breteuil, o bandido e aventureiro Guilherme I o Carpinteiro, visconde de Melun, que já havia tentado a sua sorte em Hispania alguns anos antes e que, tratando de arranjar meios para a viagem, roubara até à última camisa os seus servos.

Muitos outros cavaleiros empobrecidos se juntaram aos destacamentos de camponeses. Nobres como o conde de Clermont (na actual província belga de Liège), Lamberto o Pobre, que era parente afastado de Godofredo de Bouillon. Segundo os cronistas, Lamberto teria por única fortuna apenas o seu cavalo.

Junto com os camponeses da Alemanha, empreendem a marcha também numerosos cavaleiros bandidos das regiões do Reno e da Suábia. Entre estes “distinguir-se-ão” um certo Volkmar e Emicho de Leiningen.

O conde Emicho de Leinigen não era pobre. Os seus domínios situavam-se entre os bispados de Speyer e Worms, possuindo ainda outras terras nas cercanias de Mainz. Mas era de carácter extraordinariamente rapace, e “celebrizar-se-á” na cruzada pelas suas práticas de banditismo.

A junção à cruzada popular de alguns feudais importantes e de muitas centenas de cavaleiros empobrecidos, apenas proprietários das suas armas e títulos nobiliárquicos, não modificou o carácter de “êxodo” do movimento, que prosseguiu sem organização adequada e sem plano comum.

O “povo cruzado” apenas tinha umas vagas ideias acerca da localização geográfica da sua meta final. Guiberto de Nogent diz que as crianças camponesas, «a cada castelo ou cidade que encontravam no caminho...perguntavam se aquela era a Jerusalém aonde se dirigiam».

O bispo Guilherme de Tiro comenta que os destacamentos «marchavam sem ter quem os encabeçasse». Referindo-se aos cruzados do povo, escreve que «essa gente casmurra e rebelde não sabe suportar uma disciplina útil».

É de sublinhar que, por vezes, as multidões camponesas tentavam ver-se livres dos seus acompanhantes feudais. Assim, quando a expedição de Pedro o Eremita chegou a Colónia, a 12 de Abril de 1096, a massa popular apenas permaneceu ali três dias, logo retomando a marcha. Pedro de Amiens, com cerca de trezentos cavaleiros franceses, deteve-se por mais alguns dias na cidade, esperando a chegada de hostes de feudais alemães (entre eles, Hugo de Tübingen).

Alberto de Aix, na sua crónica de Jerusalém, conta que à cabeça de um dos destacamentos de “cruzados” iam um ganso e uma cabra. Os camponeses acreditavam que os dois animais “gozavam da graça divina”, considerando-os os chefes da sua hoste. Para o cronista eclesiástico, essa curiosa mescla de resquícios dos antigos cultos pagãos de adoração de animais e dos lemas da cruzada para a “salvação dos lugares santos” constituía «um crime abominável, um extravio pagão...do estúpido e ridículo tropel humano».

(Na Alta Idade Média, a “reanimação” das crenças pagãs representou, com frequência, um modo de protesto radical dos camponeses contra a ordem feudal que então se instaurava e que a Igreja tratava de “santificar”. Diversamente, o caso narrado por Alberto de Aix apenas revela que o povo via na “sua” expedição um modo de dar livre curso ao seu próprio modo de pensar e à sua ânsia de liberdade.)

Ives Le Febvre (obra citada, pág. 112), exagerando a realidade, designa a cruzada popular como uma «revolução...que libertava das obrigações feudais os servos “jungidos” à terra e submetidos a gravames e às corvéias ao arbítrio dos seus senhores...O campo buscava o caminho da liberdade». Já Claude Cahen (“An Introduction to the first crusade”, Past and Present, 1954, nº 6, pág. 27) diz que «se tal não foi uma sublevação, configurou, no fim de contas, uma ruptura».

Uma outra corrente historiográfica, de que P. Rousset nos servirá de exemplo (“Les origines et les caractères de la première croisade”, págs. 138 a 140, Neuchâtel, 1945), apenas vê nos cruzados do povo, perseguidos pela miséria e castigados pela opressão feudal, «místicos», «fanáticos», «representantes do evangelismo e do espírito profético na cruzada».

Há ainda quem vá mais longe, revelando, como R. Grousset, uma franca hostilidade de classe. Para este autor, os cruzados camponeses eram «vadios e criminosos», «gente sem consciência» que tomou a cruz apenas para esconder os seus crimes, «quadrilhas de malfeitores» que «desonram» a ideia da cruzada. Afirma que a cruzada de 1096 não foi senão «um pretexto religioso para a jacquerie», uma «manifestação anárquica», porquanto «a gente do povo» é «inimiga da ordem social» e vê na mera destruição o objectivo de «qualquer revolução». O «perigoso movimento anarquista», de «jacquerie» e de «bandoleiros» dos cruzados camponeses de 1096 chega a ser comparado por Grousset, de um modo absurdo, à revolução popular em França de 1789-92 (“Histoire des croisades, Paris, 1948, vol. I, págs. 6 a 11).

Na realidade, os camponeses que fugiam para Oriente à opressão feudal, esperando alcançar uma vida melhor, entregaram-se pelo caminho ao roubo. No reino da Hungria, na Bulgária e nos outros territórios bizantinos, para conseguirem os víveres de que necessitavam, muitas vezes espoliaram à força as populações. Estas, por sua vez, vingavam-se chacinando os grupos de “desgarrados” e retardatários.

Porém, o banditismo nos diversos destacamentos de cruzados foi função do número e da importância que os feudais aí assumiram. Do destacamento de Walter sem Fortuna, o mais maciçamente popular e que menos cavaleiros integrava, os cronistas apenas relatam um acto mais sério de banditismo. Nas cercanias de Belgrado, nos princípios de Junho de 1096, o destacamento apoderou-se de uma grande quantidade de cavalos, vacas e ovelhas pertencentes aos povoadores locais.

Mas já os homens de Pedro o Eremita, nos finais desse mês, destruíram a cidade de Zemlin (na fronteira de então entre a Hungria e Bizâncio), matando cerca de 4.000 pessoas. Pouco tempo depois atacam a cidade búlgara de Nish, onde são repelidos pelas forças bizantinas e perdem cerca de um quarto dos seus.

Os contingentes comandados pelos cavaleiros bandidos alemães acabaram por ser todos destroçados na Hungria. O destacamento comandado por Volkmar, fazendo o seu caminho pela Boémia, massacrou judeus em Praga e chacinou a população da cidade de Nitra, já no reino da Hungria. Os renanos de Gottschalk atacaram os judeus de Ratisbona, antes de entrarem na Hungria por Wieselburg. O rei Coloman autorizou-lhes a passagem pelo reino, porém, em vez de prosseguirem o caminho, esses contingentes decidiram “aboletar-se” na região, pilhando-a. O exército húngaro interveio, eliminando-os.

Pouco depois, no início do Verão, chegam a Wieselburg as forças comandadas por Emicho de Leiningen, depois de haverem perpetrado matanças de judeus em Metz, Trier, Speyer, Worms, Mainz, Colónia e outras povoações. Os húngaros negam-lhes a entrada no país e os cruzados respondem com o assédio à fortaleza (de Wieselburg). Algumas semanas depois são rechaçados, tendo Emicho e os restantes chefes conseguido escapar.

Vê-se, assim, que R. Grousset “falha o seu alvo”, cometendo o despropósito de apelidar de “Jacques Bonhomme” feudais como o conde Emicho, o visconde Guilherme de Melun, Tomás de Marle, Clarembaud de Vendeil ou Drogon de Nesle: essa «gente inimiga da ordem social» não era de “baixa extracção”. Por outro lado, se é verdade que muitos ladrões e outros criminosos se juntaram às hostes da “cruzada popular”, não é menos certo que os feudais foram os seus chefes.

Segundo os cálculos de um investigador alemão, a “cruzada popular” terá perdido na Europa (sobretudo na Hungria e Bulgária) cerca de 30.000 pessoas.

Em meados de Julho, passados três meses sobre o início da marcha, o já raleado destacamento de Walter sem Fortuna alcança Constantinopla. Pouco depois, a 1 de Agosto, chegam os homens de Pedro o Eremita, que também haviam deixado muitos dos seus pelo caminho.

Juntamente com alguns milhares de cruzados normandos e italianos da Itália meridional, acampando no exterior da cidade, os “peregrinos” pilham e incendeiam palácios nos subúrbios, saqueiam igrejas, roubando até o chumbo que lhes cobria o cimo, «para o vender aos gregos no mercado», diz um cronista.

Bizâncio, livre de pechenegas e do ambicioso emir Tchaka desde 1091, não precisava desses indesejáveis “aliados”. Por outro lado, os recém-chegados reclamavam veementemente que os transportassem ao seu destino, à tão desejada “terra da promissão”. Fanáticos fizeram então correr o rumor de que o imperador os retinha deliberadamente em Constantinopla, com propósitos pérfidos.

Aleixo I, cinco dias após a chegada do Eremita, inicia o transporte dos cruzados, que seriam entre 30.000 a 35.000 pessoas, para a outra margem do Bósforo. Depois, a esfarrapada e mal armada multidão, cometendo durante a marcha atrocidades contra a população grega, desloca-se para a região fortificada de Civitot (actual Gemlik), situada 35 km a noroeste de Niceia e imediatamente a sul da costa meridional do golfo de Nicomédia, ali estabelecendo o seu acampamento.

Os cruzados começam por lançar razias sobre as aldeias bizantinas das imediações. Seguidamente incursionam já em território seldjúcida, pilhando e chacinando os camponeses gregos ortodoxos submetidos aos turcos. Em virtude de rixas “nacionais” e de disputas pela partilha do despojo, francos, normandos e alemães dividem-se, formando diversos destacamentos que actuavam por sua própria conta e risco. As incursões dos cruzados vão-se tornando mais profundas a partir de meados de Setembro, atingindo os próprios arrabaldes de Niceia (actual Iznik). Em finais de Setembro, sob a chefia de um nobre normando de nome Renaud, um destacamento de 3.000 infantes e 200 cavaleiros, segundo Alberto de Aix, ou de 6.000 homens, de acordo com as fontes muçulmanas, toma a fortaleza de Xerigordon, já a leste de Niceia.

O sultão de Roum, Kilij Arslan, envia as suas tropas contra os cruzados. Estes tentam fazer frente aos turcos, mas são derrotados, com os sobreviventes a refugiarem-se na praça-forte. Porém Xerigordon era uma “ratoeira”. A nascente de água que a abastecia situava-se no exterior dos muralhas e os assediados, atormentados pela sede, tiveram de render-se ao fim de oito dias de cerco. Os que não foram passados a fio de espada pelos turcos tiveram por sorte o cativeiro.

Segundo os cronistas (à excepção de Ana Comneno, que afirma ter Pedro ficado até ao fim com os cruzados, sendo só então resgatado), o Eremita terá então voltado a Constantinopla. Conta Alberto de Aachen, que Aleixo I os havia instruído para esperar pelos exércitos dos grandes feudais, mas os cruzados não quiseram dar ouvidos aos conselhos do “pregador do povo”. Irritado, Pedro teria partido para a capital bizantina.

Depois de terem liquidado o destacamento cruzado de Xerigordon, os turcos posicionaram-se nas colinas próximas de Civitot, no caminho para Niceia. A 21 de Outubro, cerca de 25.000 homens abandonam o campo, dirigindo-se por aquela rota.

As fontes dividem-se na explicação do sucesso. Umas afirmam que os emires turcos de Kilij Arslan enviaram provocadores ao campo dos “católicos romanos”, espalhando o rumor de que Niceia teria caído nas mãos do destacamento já há duas semanas “desaparecido”. Os alemães e normandos que o compunham não teriam voltado a Civitot porque não queriam partilhar a “presa” com os seus companheiros. Outros cronistas dizem que a verdade foi descoberta, e que os cruzados pobres exigiram aos seus chefes que os conduzissem a vingar os mortos de Xerigordon.

Como quer que haja sido, em coluna desordenada, com quinhentos cavaleiros na dianteira, muitos deles sem armadura, deixando no acampamento apenas os que não possuíam armas, os doentes e as mulheres, a massa dos cruzados põe-se em marcha. A quatro quilómetros e meio do seu acampamento caem na emboscada que os turcos lhes haviam preparado. A maioria dos cavaleiros tomba aos primeiros tiros dos archeiros e, ao iniciar-se o corpo a corpo, já os da retaguarda estão em fuga, tentando desesperadamente voltar a Civitot. Dos chefes, Walter sem Fortuna, Reinaldo de Broyes, Folker de Orleães morrem no campo de batalha, mas Walter de Breteuil e Godofredo Burel fogem.

Os turcos perseguem os fugitivos e entram no acampamento cruzado, chacinando também os não combatentes. Cerca de 3.000 cruzados conseguem refugiar-se numa velha fortaleza junto ao mar, de onde serão salvos pelos navios de guerra bizantinos. Dos outros, os turcos apenas pouparam as mulheres e homens mais novos, para os reduzir à escravatura.

Assim acabou a “cruzada popular”. Em apenas meio ano, cerca de sessenta mil pessoas do Ocidente (portanto, não contando as vítimas “orientais”) colheram «o mel e o leite» da morte. Para os camponeses e servos que se deixaram aturdir pela propaganda dos feudais eclesiásticos, para os cavaleiros “sem fortuna” mais ávidos ou aventureiros, para um ou outro feudal importante como Hugo de Tübingen, tal como havia predito Urbano II, realmente «curto fora o caminho e pouco o esforço», mas apenas para cessar de existir.

 

O COMEÇO DA CRUZADA DOS FEUDAIS.

Em Agosto de 1096 inicia a sua marcha um grande exército feudal da Lorena. Comandava-o Godofredo IV, duque da Baixa Lorena.

Geoffroy era comummente denominado de Bouillon, o nome do castelo principal do senhorio nas Ardenas que herdara de seu tio. Apesar do título ducal e dos seus grandes avoengos (descendia de Carlos Magno), apenas possuía de modo pleno o domínio de Antuérpia e o senhorio de Bouillon. Todo o restante território da Lorena (ou Lotaríngia, como era então chamada) Inferior havia-lhe sido outorgado apenas a título de benefício pelo imperador Henrique IV.

Godofredo apressou-se a responder aos apelos do papa, na esperança de “talhar-se” um maior domínio e uma posição mais “sólida” no Oriente. Os seus irmãos Eustácio e Balduíno acompanharam-no. Juntam-se-lhe muitos dos seus vassalos da Lorena, que organizaram os seus próprios destacamentos armados, bem como os cavaleiros da margem direita do Reno.

Balduíno, o mais novo dos três irmãos, iniciara a carreira de “servidor da Igreja”, porém, já anteriormente a esta época, havia abandonado o trajo eclesiástico. Não possuindo quaisquer domínios próprios, parte para a “guerra santa” determinado a alcançar pelas armas o que a “fortuna” (ou melhor, o sistema do morgadio) lhe negara por herança.

O exército de Godofredo seguiu pela rota do Reno e do Danúbio, cruzando a Hungria e a Bulgária, em direcção a Constantinopla, o “ponto de reunião” que Urbano II escolhera para os exércitos cruzados.

Os cavaleiros normandos da Itália meridional foram encabeçados pelo príncipe Bohemundo de Tarento. Sendo o filho mais velho de Roberto Guiscard, tomara parte na campanha deste contra Bizâncio, na primeira metade da década de oitenta. O pai deixara-lhe em herança as recém conquistadas possessões nos Balcãs, mas Bohemundo acabou por delas ser expulso pelos gregos (1085). À época da cruzada, os seus domínios resumiam-se ao relativamente pequeno Principado de Tarento e a algumas outras possessões no sul da Itália, que conseguira arrancar a seu irmão Rogério Borsa.

A cruzada deu-lhe alento às antigas ambições sobre os territórios orientais. Cobiçaria não apenas apossar-se de um vasto domínio independente à custa dos seldjúcidas, mas o próprio império bizantino.

Aproveitando o sítio da sublevada Amalfi, onde se haviam reunido os cavaleiros normandos, ali declara que “toma a cruz” e organiza o seu exército, deixando o seu tio Rogério I da Sicília sem tropas para continuar o cerco.

Terá cruzado o Adriático logo em Outubro de 1096, desembarcando não longe de Avlona, no Epiro (actual Albânia), acompanhado pelo seu sobrinho Tancredo (filho de uma irmã de Bohemundo), um nobre sem domínios, por alguns primos e por muitos outros médios e pequenos feudais da Itália meridional e da Sicília.

O cronista anónimo da Gesta Francorum relata que “encontraram” em grande abundância cereais, vinho e outras provisões, descendo posteriormente para o vale de Andronopoli (vale do rio Drino), onde esperaram que as restantes tropas cruzassem o estreito de Otranto e se lhes viessem juntar. Iniciam então a marcha em direcção a Constantinopla. No Natal de 1096 estão em Kastoria, onde pilham os camponeses e roubam rebanhos de gado e manadas de cavalos. Prosseguem a marcha pela Pelagónia, atacando «uma cidade fortificada de heréticos. Queimámos a cidade e os seus habitantes (Gesta)». Ao cruzarem o rio Vardar, a hoste do conde Roscignolo, que ficara para trás, é atacado pelas forças bizantinas (destacamentos de Patzinaks e Turcopoles). Tancredo, com 200 cavaleiros, acorre em auxílio do conde e faz vários prisioneiros. Ao interrogá-los, Bohemundo apercebe-se que as ordens dadas às tropas bizantinas de ripostarem aos ataques dos cruzados provêm do próprio imperador Aleixo I, e liberta os prisioneiros. Chega então um enviado especial bizantino, para os acompanhar até Constantinopla e, ao que parece, Bohemundo terá mantido, a partir dali, no restante caminho pela Macedónia e Trácia bizantinas, os seus cavaleiros mais ou menos “sossegados”. Diz o cronista da Gesta que o funcionário bizantino, «ao passarmos pelas suas cidades, ordenava aos habitantes que nos oferecessem mercado, mas não permitiam a nenhum de nós passar além muros”. Também segundo a Gesta, «os nossos homens quiseram atacar e assediar certa cidade fortificada, pois era rica em todo o género de bens, mas o lorde Bohemundo recusou o seu consentimento, ficando muito zangado com Tancredo e os restantes cavaleiros».

Sabemos que, depois de haverem passado por Serres, onde «Bohemundo teve um encontro com dois enviados bizantinos e, em sinal de amizade, bem como em justiça para com os da terra, ordenou que fossem entregues todos os animais roubados em poder dos nossos», os normandos chegaram à cidade de Rusa (apenas sabemos que se localizaria entre Serres e Rodosto), onde acamparam «no quarto dia da semana antes da festa do Senhor (Páscoa). Bohemundo disse então aos seus vassalos: «aproximai-vos da cidade gradualmente (Constantinopla), eu irei à frente (para falar com o imperador); e levou consigo uns poucos».

Também em Outubro de 1096 empreende a marcha o grande exército dos feudais da França meridional, comandados pelo poderoso Raimundo IV de Saint-Gilles, conde de Toulouse e marquês da Provença.

Recordemos que Saint-Gilles havia participado na “reconquista” em Hispania e estava desde há muito vinculado ao trono papal. Já com mais de cinquenta anos de idade, foi o primeiro a “responder” ao apelo de Urbano II em Clermont. O cronista francês Baudry de Bourgueil descreve a chegada teatral dos embaixadores do conde de Saint-Gilles, logo após o discurso do papa, declarando em alta voz que o seu senhor “tomava a cruz”, ou seja, integraria a cruzada.

A aparição em Clermont dos embaixadores do conde havia sido preparada de antemão com Urbano II. Em Setembro de 1095 o papa visitara este seu “vassalo de São Pedro”, havendo-se já então assegurado da sua participação na cruzada.

Raimundo preparou minuciosamente a sua expedição durante um ano inteiro, projectando instalar-se solidamente no Oriente, num principado próprio. Por isso levou consigo a esposa, Elvira de Castela, e o seu filho mais novo.

Tal como Bohemundo, Também Saint-Gilles tratará de se apossar de cidades comerciais na costa síria, dada a sua importância nas relações de intercâmbio entre o Ocidente e o Oriente. Bohemundo, senhor de Otranto e Brindisi, era “vizinho” de Bari, na Apúlia. Os mercadores desta cidade, desde o século X, mantinham relações comerciais tanto com Bizâncio como com a Síria. Quanto a Raimundo de Toulouse, este havia submetido numerosas cidades da França meridional que, por esta época, davam início ao desenvolvimento das suas relações comerciais internacionais. Era extremamente tentadora a ideia de reunir, sob um único poder, alguns dos elos finais na cadeia comercial que se estendia do Mediterrâneo Oriental ao Ocidental, dado que o comércio marítimo mediterrânico estava então em incremento.

Sob o estandarte de Raimundo reuniram-se muitos médios e pequenos feudais da França meridional, inclusive vários bispos. Com eles seguiu Adhemar de Puy, legado apostólico do exército cruzado, incumbido de zelar pelos interesses da cúria romana.

Este exército partiu em finais de Outubro. Cruzando os Alpes, há-de ter prosseguido pela Cisalpina e, bordejando o Adriático, desceu pelas regiões montanhosas do oeste dos Balcãs, até Durazzo. Continua depois a sua marcha pela Via Egnatia.

Raimundo de Aguiliers, cronista e capelão do conde de Saint-Gilles, que acompanhou o exército, na sua "História dos francos que tomaram Jerusalém" relata-nos episódios da viagem a partir do território da actual Eslovénia ou, quiçá, da Croácia.

[Os territórios a que Aguiliers chama Slavónia não correspondem à actual Eslavónia croata, mas sim à faixa litoral dos Alpes Dináricos na actual Dalmácia, também uma região da Croácia, no Montenegro e norte da Albânia. Esses territórios eram então governados por senhores croatas (a norte) e pelo reino sérvio (a sul).]

«Estava-se no Inverno. Os habitantes negavam-se a comerciar connosco e não nos forneciam guias, fugindo das suas aldeias e praças-fortes. Matavam os pobres que seguiam à distância o nosso exército...o conde e alguns dos seus cavaleiros foram atacados, tendo feito alguns prisioneiros...e o conde ordenou que, a uns, os olhos fossem arrancados, a outros, cortados os pés e, a outros ainda, que lhes decepassem os narizes e as mãos...Demorámos 40 dias a atravessar o país. Chegámos até ao rei dos “Slavónios” (provavelmente, encontraram-se com Constantino Bodin), em Scutari. O conde jurou-lhe amizade e pagou-lhe um grosso tributo, para que o exército pudesse comprar ou procurar aquilo de que necessitasse, mas em vão...porque os Slavónios continuaram a matar os nossos homens e a roubar tudo o que podiam aos que iam desarmados.

Alcançámos Durazzo. Continuaram a matar os que seguiam desarmados...roubavam-nos o que podiam, de noite, nos bosques e nos locais de pernoita mais afastados do acampamento principal. Mataram Pontius Reinald e feriram mortalmente o seu irmão, Peter, e estes eram nobres príncipes...Continuamos o caminho, rodeados, à nossa retaguarda e pela frente, à nossa esquerda e direita, por destacamentos de turcos, cumanos, patzinaks e búlgaros que nos montavam emboscadas. Mais tarde, no vale da Pelagónia, o bispo de Puy foi capturado pelos patzinaks, que o roubaram e feriram na cabeça...O inimigo continuava a rodear-nos por todos os lados.

Depois de Tessalónica, chegámos a uma cidade de nome Rusa. Destruímos-lhe os muros, juntámos um grande despojo e obrigámos a cidade a render-se. Nela hasteámos os nossos estandartes ao grito de “Toulouse! Toulouse!” Depois alcançámos uma outra cidade, Rodosto. Os cavaleiros do imperador tentaram vingar-se de nós (pela pilhagem de Rusa), mas muitos foram mortos, e fizemos um grande saque. Também ali se nos juntaram os que havíamos enviado ao imperador...o conde devia seguir a frente do exército, sem armas e com apenas alguns acompanhantes, para falar com o imperador...»

Dos senhores e cavaleiros da França setentrional e central, o primeiro a partir foi Hugo de Vermandois, o irmão mais novo do rei de França, apenas possuidor daquele condado. Após ter reunido uma pequena milícia, composta pelos seus próprios vassalos e por alguns vassalos reais, dirige-se em Agosto a Itália, donde parte, em Setembro, do porto de Bari, para Durazzo. Haviam-se-lhe juntado alguns dos cavaleiros bandidos sobreviventes do destacamento de Emicho de Leinigen, como Guilherme Charpantier. Já perto da costa oriental do Adriático, uma tempestade destroça-lhe a maior parte dos barcos, perecendo muitos dos seus acompanhantes. Hugo conseguiu salvar-se, tendo a sua embarcação dado à costa perto de Durazzo. As autoridades locais bizantinas enviá-lo-ão depois, sob escolta, à corte imperial em Constantinopla.

Algo mais tarde, lança-se ao caminho uma grande hoste de cavaleiros franceses, sob o comando do duque Roberto da Normandia, do conde Étienne II de Blois e do conde Roberto II da Flandres.

Roberto da Normandia, o filho mais velho de Guilherme o Conquistador, envolvera-se anteriormente em constantes guerras com seu irmão Guilherme II o Ruivo, rei de Inglaterra, tentando em vão disputar-lhe o trono. Talvez Roberto haja visto na cruzada uma solução para as suas dificuldades políticas e financeiras de então. Com ele seguiram não apenas os seus vassalos franceses, mas também muitos barões e cavaleiros da Inglaterra e da Escócia.

Um grande número de cruzados acompanhava também os outros dois chefes na aventura feudal. Cruzando os Alpes, estas milícias chegam a Itália em Novembro, onde a maioria inverna (Roberto da Flandres cruzou logo o Adriático, apesar de, no Inverno, a travessia ser perigosa). Na Primavera do ano seguinte navegam de Brindisi para Durazzo, seguindo depois pela velha rota romana da Via Egnatia (Ohrid, Tessalónica, Rodosto, Selimbria) até Constantinopla.

Muitos populares, na sua maioria camponeses, seguiram na cauda dos exércitos feudais. O exército de Raimundo de Saint-Gilles foi o que integrou a “hoste” de pobres mais numerosa.

Ao “prepararem as suas bagagens” para a expedição, os «guerreiros de Deus» recorreram aos procedimentos costumeiros. Conta um cronista da época que os condes de Zimmern (no actual estado de Baden-Wurtemberg), antes de iniciar a viagem, saquearam os seus dependentes, «a aldeia Rulinghofen em particular, onde deixaram os camponeses na amargura». O conde Roberto II da Flandres roubou os territórios do bispo de Cambray, «devastando o “país” de tal maneira que este ficou sem lavradores e não houve ali nem bois nem vacas nem outros animais, enquanto que os homens e as mulheres, adultos e crianças, fugiam para pedir esmola noutras regiões».

Numerosos senhores venderam ou hipotecaram as suas terras e direitos. Os compradores foram sobretudo os feudais eclesiásticos.

Godofredo hipotecou o castelo de Bouillon ao príncipe e bispo de Liège, e vendeu Stenay ao bispo de Verdun, embolsando nesses “negócios” 3.000 marcos de prata para as despesas da viagem. Do mesmo modo procedeu Raimundo de Toulouse com algumas das suas terras, tal como outros feudais do Languedoc. Roberto da Normandia hipotecou por 10.000 marcos todas as suas terras ao irmão, o rei da Inglaterra.

O exemplo dos grandes senhores foi seguido pelos feudais de menor categoria que, além de hipotecarem as suas terras, vendiam os seus direitos de jurisdição, de estadia, etc. Assim, o cavaleiro Achard de Montmerle hipotecou à abadia de Cluny três dos seus domínios por 2.000 “sou” de Lyon e 4 mulas.

Os “livros de registos” à época de abades e bispos atestam que, enquanto os cavaleiros partiam em viagem para a «causa grata a Deus», uma bem-aventurada chuva de propriedades tombava nas mãos dos “substitutos dos apóstolos”.

As forças “cruzadas” não formavam um exército unido, mas hostes separadas. Cada senhor feudal empreendia a marcha acompanhado pelos seus homens. Não existiam chefias superiores nem inferiores, tampouco havia um comando geral ou um plano comum de acção.

Agrupando-se muitos deles de modo espontâneo em torno dos feudais mais ilustres, era frequente ver cavaleiros passarem-se de uma hoste a outra, consoante os benefícios materiais que lhes eram oferecidos ou pensassem alcançar.

 

OS CRUZADOS E BIZÂNCIO.

Estimando-se entre 70.000 a 100.000 homens o efectivo total dos diversos exércitos francos que entravam nos territórios de Bizâncio, Aleixo I Comneno tomou medidas defensivas. Destacamentos de cavaleiros pechenegas e de outros mercenários foram colocados ao longo da rota da Via Egnatia, com ordens para atacar as forças cruzadas quando estas se entregassem ao saque e à violência sobre a população. A dar crédito a Aguiliers, o exército de Raimundo de Toulouse, o mais numeroso e onde vinha Adhemar de Puy, o legado apostólico, teve “direito a um tratamento especial”, sendo constantemente flagelado. É provável que, por um lado, esses ataques visassem atrasar-lhe a marcha, tratando de evitar uma possível junção com as forças dos normandos de Bohemundo e, por outro, mostrar aos “representantes de São Pedro” que no Oriente a hegemonia pertencia a Bizâncio, não a Roma.

Aleixo pretendia usar as forças do Ocidente na reconquista dos territórios perdidos para os seldjúcidas, fazendo os chefes cruzados jurar-lhe fidelidade. Para o conseguir, era crucial evitar que os seus exércitos se agrupassem. Além disso, uma tal concentração de poder militar nos arrabaldes de Constantinopla constituía um enorme perigo para o próprio império Bizantino. O imperador temia sobretudo o seu velho inimigo Bohemundo, suspeitando que este planearia, com os restantes chefes cruzados, lançar um assalto à capital.

Assim, quando o exército de Godofredo de Bulhão, em Dezembro de 1096, chega aos arrabaldes de Constantinopla, depois dos seus cavaleiros haverem saqueado pelo caminho a Trácia Inferior, Aleixo exige ao duque loreno que lhe preste juramento de “fidelidade”. Ordena-lhe também que as forças lorenas retomem a marcha, cruzem o estreito do Bósforo e aguardem os outros exércitos cruzados já na Ásia Menor. Godofredo e os seus recusam-se ao preito e vão protelando, com os mais diversos pretextos, o embarque do exército.

Relata Ana Comneno que, tendo Aleixo convidado alguns dos condes para uma audiência no palácio, «correu o rumor entre os “latinos” de que o imperador os havia mandado prender. De imediato vários destacamentos se dirigiram a Constantinopla, começando por destruir o palácio que havia próximo do Lago de Prata...atacaram as muralhas, confiados no seu número, levando o desaforo ao ponto de tentarem deitar o fogo a um dos portões».

Hugo de Vermandois foi enviado a Godofredo, em missão de “bons ofícios”, mas o loreno continuou a recusar submeter-se, e insultou o francês.

Em resposta, as forças bizantinas, superiores em número, rodearam os cruzados e travaram combate, derrotando-os. Godofredo teve de prestar juramento ao imperador: «todas as cidades, fortalezas e regiões que tomasse, que houvessem sido outrora domínios do Império Romano, ele as entregaria ao Governador que o Imperador nomeasse para o efeito».

Prestado o juramento à maneira latina, o duque da Lorena recebeu valiosos presentes e uma choruda soma em dinheiro. Os navios bizantinos transportaram o exército para a outra margem do estreito e asseguraram-lhe um abundante aprovisionamento, durante os meses em que tiveram de esperar pelas restantes forças da expedição.

Ana Comneno refere, posteriormente, a destruição nos arrabaldes de Constantinopla dum contingente cruzado sob o comando de um certo conde Raoul, por se recusar a fazer a travessia do Bósforo. «Muitos foram mortos e muitos mais ainda feridos». Os sobreviventes deste destacamento terão pedido aos bizantinos que lhes fosse assegurado transporte por mar “até ao Santo Sepulcro” (Palestina), tendo Aleixo I anuído.

Roberto de Flandres deve ter chegado um pouco antes de Bohemundo, dado que Ana Comneno fala, já depois dos incidentes com Godofredo, de condes que «não queriam obedecer, porque esperavam a chegada de Bohemundo; mas Aleixo conseguiu obrigá-los a renderem-lhe preito».

Após uma “demorada” viagem em território bizantino, em que manifestamente procurou fugir ao contacto com as forças do “adversário” na parte inicial do percurso (a cavalaria pechenega só “encontrou” os normandos aquando da sua travessia do rio Vardar), o príncipe de Tarento alcança a capital bizantina nos princípios de Abril. Já vimos que Aleixo Comneno lhe exigiu a vinda a Constantinopla (tal como o ordenará depois a Raimundo de Toulouse) na dianteira do seu exército. Bohemundo agiu muito “diplomaticamente”, logo fazendo o preito a Aleixo I, «como era costume entre os latinos». Em paga, «o imperador mandou encher uma câmara de riquezas, oferecendo-as ao normando», mas já lhe recusou o cargo que solicitava, o de «Grande Doméstico do Oriente»; ou seja, Bohemundo “apenas pedia” o governo de todos os territórios que fossem conquistados e o comando em chefe das forças cruzadas.

Como veremos, o normando agiu com falsidade, pois não tinha qualquer intenção de respeitar o seu juramento. Apenas procurava “arrancar” aos bizantinos o máximo de concessões possível. Aleixo I “pagou-lhe na mesma moeda”, procurando depois atiçar a desconfiança de Raimundo de Toulouse contra Bohemundo.

O exército dos normandos cruzou o Bósforo em finais de Abril, pouco antes da chegada do conde de Toulouse.

Todas as tentativas de Aleixo I de levar Saint-Gilles a reconhecer os direitos bizantinos sobre os territórios que viessem a ser “recuperados” foram em vão. O conde provençal, certamente com o apoio do bispo Adhemar de Puy, recusou-se a qualquer compromisso, replicando ao bizantino «que não tinha vindo ao Oriente para fazer de outro o seu senhor ou para lutar por outros interesses que não os de Deus, e que apenas para lutar por Deus abandonara o seu país e bens». Nem Bohemundo nem os outros condes que se fizeram defensores da causa do imperador bizantino foram capazes de demover Saint-Gilles, obstinado em defender os seus eventuais direitos e da cúria romana sobre futuras conquistas. Também de nada serviram os ataques da cavalaria bizantina contra os provençais ou a cessação do fornecimento de víveres.

Os restantes contingentes de cruzados alcançam Constantinopla pouco depois, nos inícios de Maio, juntando-se ao exército de Saint-Gilles. Enquanto permaneceram nos arredores da capital, aguardando o translado para a Ásia Menor, foram constantes os choques com os gregos, assim como os actos de pilhagem.