Capítulo II - A Guerra Feudal em Castela
A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida por «O Espaço da História».
3. DAS PREITESIAS QUE ELREI DOM HENRIQUE FEZ COM ELREI DE NAVARRA.
Convém que sigamos os feitos delrei dom Pedro de Castela com seu irmão, elrei dom Henrique, no ponto em que deixámos de falar deles (na Crónica de Dom Pedro), e isto para de tudo haverdes um breve conhecimento e a ordenança da nossa obra não desvairar do seu primeiro começo, mormente que delrei dom Fernando nenhuma coisa temos para contar até à morte deste rei dom Pedro.
E portanto deveis de saber que, feita esta aliança com elrei dom Fernando de Portugal, sendo certo elrei dom Henrique das muitas gentes que o príncipe de Gales juntava para vir com elrei dom Pedro e de que elas não tinham outro passo tão bom como pelos portos de Roncesvales, que são no reino de Navarra, e isto cumpria de ser por grado (vontade) do rei navarro, e não doutra guisa, trabalhou de se ver com ele e ordenar em como não houvessem por ali passagem.
E foi assim que se viram elrei dom Henrique e dom Carlos, rei de Navarra, numa vila do estremo que dizem Sancta Cruz de Campezo, e ali fizeram seus preitos e menagens juradas sobre o corpo de Deus, sendo presentes muitos fidalgos, a fim de que elrei de Navarra não desse passagem por aqueles portos ao príncipe nem às suas gentes, e que passando estas pela força, o que se entendia que não podia acontecer, que ele por seu corpo (em pessoa, pessoalmente), com todo o seu poder, fosse na batalha em ajuda delrei dom Henrique.
E para segurança desta promessa pôs elrei de Navarra em arreféns três castelos da sua terra, a saber, a Guarda, São Vicente e o castelo de Buradom, os quais haviam de ter dom Lopo Fernandez de Luna, arcebispo de Saragoça, e monse Beltram de Claquim, um grande cavaleiro de França que ajudava elrei dom Henrique, e, o último castelo, João Ramirez dArelhano. E havia de dar elrei dom Henrique a elrei de Navarra, por esta ajuda que lhe prometia e por interditar os portos a elrei dom Pedro e ao príncipe, a vila do Gronho.
E estas avenças assim firmadas, tornou-se elrei de Navarra para Pamplona e elrei dom Henrique veio-se a Burgos, mui ledo, crendo que elrei dom Pedro e o príncipe não haviam de poder passar por aquela comarca dos portos de Roncesvales, porquanto elrei de Navarra lhos podia mui bem defender e havia de ser em sua ajuda.
E de Burgos se veio elrei a Haro, e ali se partiu dele monse Hugo de Calveley, um inglês, com quatrocentos de cavalo, e foi-se para o príncipe, seu senhor, que da outra parte vinha. E elrei dom Henrique, apesar de que isto muito lhe pesou e de que pudesse fazer nojo a monse Hugo, não o quis fazer, entendendo que fazia direito em ir servir o príncipe, filho delrei seu senhor.
4. COMO ELREI DOM PEDRO SE VIU COM O PRÍNCIPE DE GALES E JUNTARAM AS SUAS GENTES PARA ENTRAR POR CASTELA.
Tornando a contar delrei dom Pedro, onde ficámos quando passou por Portugal, ele chegou depois a Baiona, segundo ouvistes (Crónica de Dom Pedro), e não achou naquela cidade o príncipe de Gales, mas daí a poucos dias viu-se com ele e falou então de quanto havia mister da sua ajuda e de seu pai. E o príncipe lhe respondeu que elrei de Inglaterra, seu senhor e pai, e ele próprio eram mui prestes para o ajudar, e que já escrevera a elrei sobre isso e de que era bem certo que lhe prazeria.
Elrei dom Pedro, mui ledo da resposta, foi entretanto ver a princesa, mulher do príncipe, a uma vila que dizem Angulesma, e deu-lhe muitas jóias das que trazia.
Nisto vieram cartas delrei de Inglaterra a elrei dom Pedro, nas quais lhe fez saber como escrevia ao príncipe, seu filho, e ao duque dAlancastro, irmão deste, para que por seus corpos, com as mais das gentes que haver pudessem, o ajudassem a pôr em posse do seu reino. E identicamente chegaram outras cartas ao príncipe, em que elrei lhe fez saber de quanto lhe prazeria toda a ajuda que a elrei dom Pedro fosse feita por si e pelos seus, aos quais também escrevia a fim de que se juntassem todos com ele. E dali em diante começou o príncipe de mandar (chamar) por gentes, e juntaram-se muitas para esta cavalgada.
E acordaram elrei dom Pedro e o príncipe o que haviam de haver suas gentes de soldo, e fazia-lhes elrei pago em ouro e jóias, assim das dobras que levava como de ouro amoedado que o príncipe lhe emprestava sobre pedras de grande valor.
E foi tratado nestas avenças que elrei dom Pedro desse ao príncipe a terra de Biscaia e a vila de Castro dUrdiales, e a monse João Chandos, condestável de Guiana, que era um bom e grande cavaleiro muito privado do príncipe, a cidade de Soria.
E acordaram mais que, até que o príncipe e todos os seus houvessem pagamento do que haviam de haver pelo tempo que servissem e estivessem em Castela, ficariam entretanto em Baiona, em maneira de arreféns, as três filhas delrei dom Pedro.
E juntas as companhas para entrarem em Castela, fizeram saber a elrei de Navarra que lhes desse passagem pelos portos de Roncesvales e que fosse com eles por seu corpo na batalha, e que lhe daria elrei dom Pedro por isto as vilas do Gronho e de Vitoria, e elrei de Navarra, sabendo como as gentes do príncipe eram muitas mais que as delrei dom Henrique, outorgou de os deixar passar e de ser com eles por seu corpo (pessoalmente) na batalha.
5. COMO ELREI DE NAVARRA ORDENOU DE NÃO SER NA BATALHA EM AJUDA DELREI DOM PEDRO.
Elrei de Navarra, posto em grande cuidado pela promessa que feita havia a elrei dom Henrique e depois a elrei dom Pedro, que era seu contrário, ordenou de facto maneira de se escusar ao prometido, porém feiamente.
E foi assim que, depois que deu lugar a que as gentes delrei dom Pedro e do príncipe passassem pelos portos de Roncesvales, havendo receio de ser na batalha, não quis atender por eles em Pamplona, mas deixou aí Martim Henriquez, seu alferes, com trezentas lanças, para que se fosse com eles, e foi-se a uma sua vila que chamam Tudela, que é cerca do reino dAragão, e ali tratou com um cavaleiro, primo de monse Beltram de Claquim, que diziam monse Olivier de Mauny, o qual estava na vila de Borja que era do seu primo, para que se fizesse desta guisa: elrei de Navarra andaria à caça entre Borja e Tudela, que eram quatro léguas duma à outra, dando azo a que monse Olivier saísse a ele e o prendesse e levasse preso para o castelo de Borja, e depois o tivesse ali preso em Borja até que a batalha entre elrei dom Pedro e elrei dom Henrique fosse acabada, e desta maneira teria boa escusa de que não pudera por seu corpo ser com eles na batalha, e que por isto lhe daria elrei de Navarra, em moradia, uma sua vila que chamam Gavray, com três mil francos de renda.
Ordenado isto e feitas as suas juras e prometimentos, foi-se elrei um dia à caça e saiu a ele monse Olivier e prendeu-o e teve-o preso até que a batalha fosse feita. E então cuidou elrei outra arte pela qual saísse do seu poder sem lhe dar coisa nenhuma, e tratou com monse Olivier que o levasse à sua vila de Tudela, que aí lhe daria recado de tudo o que com ele assentara, e que, enquanto isso, lhe deixaria ali em arreféns o infante dom Pedro, seu filho. Monse Olivier disse que lhe prazia e trouxeram-lhe o infante, e ele foi-se com elrei. E sendo eles em Tudela, mandou elrei prender monse Olivier e um seu irmão, o qual, fugindo por uns telhados, foi morto, e mais tarde, estando preso monse Olivier, deram o infante dom Pedro por ele. Assim que nesta preitesia ele perdeu o irmão e nenhuma coisa houve do que prometido lhe fora.
6. DAS GENTES QUE ELREI DOM HENRIQUE TINHA PARA PELEJAR, E COMO ORDENOU DE PÔR A SUA BATALHA.
Quando elrei dom Henrique soube como o príncipe e elrei dom Pedro, com as suas gentes, passaram os portos de Roncesvales por grado delrei de Navarra, e como este se partira da cidade de Pamplona e se fizera prender por arte, ajuntou as suas companhas e foi-se apousentar perto de São Domingos da Calçada num azinhal mui grande que ali há, e aí fez alardo. Depois partiu e passou o Ebro e pôs o seu arraial cerca da aldeia de Anhastro, e ali lhe disseram como uns seiscentos de cavalo dos seus, entre castelhanos e ginetes, que mandara a cobrar a vila de Ágreda, que estava contra si, eram passados para elrei dom Pedro. Mas elrei dom Henrique não curou daquilo, e a cada dia ordenava as suas gentes para a batalha.
E os estrangeiros que com ele estavam dAragão eram estes, dom Afonso, filho do infante dom Pedro e neto delrei dom James, dom Filipe de Castro, rico homem, cunhado delrei dom Henrique, casado com sua irmã dona Joana, dom João de Luna, dom Pedro Boil, dom Pero Fernandez dÍxar, dom Pero Jordam dUrriés e outros. E de França eram aí estes cavaleiros, monse Beltram de Claquim, o marechal de França e o begue de Vilhenes e outros. E de Castela e de Leão eram aí todos os senhores e fidalgos, salvo dom Gonçalo Mexia e dom João Afonso de Guzmam.
E porque soube que os seus inimigos vinham a pé, ordenou a sua batalha por esta guisa:
Na dianteira pôs a pé monse Beltram e os outros cavaleiros franceses e, com o seu pendão da banda que levava Pero Lopez dAyala, dom Sancho, seu irmão, Pero Manrique, adiantado mor de Castela, Pero Fernandez de Velasco, Gomez Gonçalvez de Castanheda, João Rodriguez e Pero Rodriguez Sarmento, Rui Diaz de Rojas e outros cavaleiros, até mil homens de armas pé terra.
À mão esquerda da batalha onde estavam os que iam a pé, dispôs elrei que fossem numa ala a cavalo o conde dom Telo, seu irmão, dom Gomez Perez de Porras, prior de São João, e outros fidalgos, até mil de cavalo, em que iam muitos cavalos armados (cavalaria pesada).
Na outra ala da mão direita dos que iam a pé, pôs elrei também a cavalo dom Afonso, neto delrei dom James, dom Pero Moniz, mestre de Calatrava, dom Fernam Osorez e dom Pedro Rodriguez de Sandoval, e eram nesta batalha outros mil a cavalo, com muitos cavalos armados.
Na batalha do meio destas duas batalhas, ia elrei dom Henrique e o conde dom Afonso, seu filho, o conde dom Pedro, seu sobrinho, filho do mestre dom Fadrique, Inhigo Lopez de Orozco, Pero Gonçalvez de Mendonça, dom Fernam Perez dAyala, micer Ambrósio, que depois foi almirante, e outros que de dizer não curamos, até mil e quinhentos de cavalo.
E assim eram por todos quatro mil e quinhentos de cavalo (mil dos quais desmontados), afora muitos escudeiros a pé das Astúrias e de Biscaia, que pouco aproveitaram, pois toda a peleja foi dos homens de armas.
Nisto elrei de França mandou cartas suas a elrei dom Henrique em que lhe enviava dizer e rogar que escusasse aquela batalha e fizesse a guerra por outra guisa, pois fosse certo que com o príncipe vinha a flor da cavalaria do mundo, contudo que o príncipe e aquelas gentes não eram de condição a muito durarem no reino de Castela e, dentro em pouco, tornar-se-iam (regressariam), e que por isso desviasse aquela peleja a todo o seu poder para que se não fizesse. E escreveu àqueles cavaleiros franceses que aí estavam para que assim o aconselhassem, aos quais, quando lhe falaram sobre isto, respondeu elrei que o falaria em segredo com os seus. Mas todos estes o aconselharam a que todavia pusesse a batalha, porque, se tão-somente pusesse a dúvida ou fizesse mostrança de não querer pelejar, os mais do reino se partiriam dele e ir-se-iam para elrei dom Pedro, e isso mesmo fariam as vilas e cidades pelo grande medo que lhe tinham, e, ao invés, se vissem que queria pelejar, todos esperariam a ventura da batalha, a qual fiavam na mercê de Deus que venceria. E esta resposta deu elrei a monse Beltram e aos outros e terminou de pôr a batalha.
7. COMO ELREI DOM PEDRO E O PRÍNCIPE ORDENARAM A SUA BATALHA, E FOI ELREI DOM PEDRO ARMADO CAVALEIRO.
Da parte delrei dom Pedro foi ordenada a batalha desta maneira:
Eles vinham todos pé terra. E na avanguarda vinha o duque dAlancastro, irmão do príncipe, a que chamavam dom João, e monse João de Chandos, condestável pelo príncipe na Guiana, monse Roberto Knolles, monse Hugo Calveley, monse Olivier, senhor de Clissom, e muitos outros cavaleiros de Inglaterra, que eram três mil homens de armas assaz de bons e usados na guerra.
E na ala da mão direita vinham o conde dArmanhaque, o senhor de Lebret e seus parentes, o senhor de Rozam e outros grandes cavaleiros e bons escudeiros da Guiana, até duas mil lanças.
E na outra ala à sua mão esquerda vinham o captal de Buch e muitos cavaleiros e escudeiros da Guiana do bando do conde de Foix, e muitos capitães de companhias, até dois mil homens de armas.
Na batalha postumeira vinha elrei dom Pedro, elrei de Neapol (Nápoles), o príncipe de Gales, o pendão delrei de Navarra, com trezentos homens de armas, e muitos cavaleiros de Inglaterra, até três mil lanças.
Assim que eram por todos dez mil homens de armas, e outros tantos frecheiros. E estes homens de armas eram então a flor da cavalaria do mundo, pois havia paz entre França e Inglaterra e era ali todo o ducado da Guiana, os de Armanhaque e os do condado de Foix, e todos os cavaleiros e ricos homens da Bretanha e toda a cavalaria de Inglaterra, e vinham além destes com elrei dom Pedro, dos seus, até oitocentos homens de armas entre castelhanos e ginetes.
E desta maneira foram ordenadas as batalhas de cada uma das partes para o dia em que se houvesse de fazer a peleja, e partiu então elrei dom Henrique daquele lugar onde estava e foi-se contra a comarca de Álava, onde elrei dom Pedro era, e pôs o seu arraial numa serra alta que há na dita comarca, onde as gentes delrei dom Pedro não podiam pelejar com as suas pela fortaleza do assentamento. E cobraram os ingleses esforço com isto, porquanto viram que elrei dom Henrique se pusera naquela serra e não descia ao campo, onde eles estavam prontos para lhe dar batalha.
E aí soube elrei dom Henrique como muitos do príncipe se estendiam pela terra a buscar viandas (mantimentos) e mandou lá alguns capitães com gentes que os acharam derramados (dispersos), buscando as viandas, e os tomaram a todos. Duzentos homens de armas e outros tantos frecheiros ainda se acolheram a um outeiro, mas, embora bem se defendessem, também no final alguns deles foram mortos e os outros tomados.
Elrei dom Pedro e o príncipe, que estavam para lá da vila de Vitoria, quando souberam que as gentes delrei dom Henrique ali andavam, cuidaram que era ele que lhes vinha pôr a peleja e puseram-se todos num outeiro além de Vitoria, que dizem São Romam, e aí alinharam a sua batalha e foi elrei dom Pedro armado cavaleiro pela mão do príncipe, e muitos outros naquela hora, porém tornaram-se os delrei dom Henrique para o seu arraial e mais não se fez nesse dia.
8. COMO O PRÍNCIPE DE GALES ENVIOU A ELREI DOM HENRIQUE UMA CARTA, E DAS RAZÕES CONTIDAS NELA.
Sabendo elrei dom Henrique como elrei dom Pedro e o príncipe de Gales iam a caminho do Gronho para passar o rio Ebro, partiu donde estava e foi-se para Nájara, e pôs o seu arraial aquém da vila, em guisa que o Rio de Nájara estava entre o seu arraial e o caminho por onde elrei dom Pedro havia de vir.
Elrei dom Pedro e o príncipe, com as suas gentes, partiram do Gronho e vieram para Navarrete, e daí enviou o príncipe a elrei dom Henrique um seu arauto com uma carta que dizia assim:
«Eduarte, filho primogénito delrei de Inglaterra, príncipe de Gales e de Guiana e duque de Cornualha e conde de Cestre.
Ao nobre e poderoso príncipe dom Henrique, conde de Trastâmara.
Sabei que nestes dias passados o mui alto e mui poderoso príncipe dom Pedro, rei de Castela e de Leão, nosso mui caro e mui amado parente, chegou às partes de Guiana onde nós estávamos e fez-nos entender que, quando elrei dom Afonso, seu pai, morreu, todos os naturais dos reinos de Castela e de Leão pacificamente o tomaram por seu rei e senhor, entre os quais vós fostes um dos que assim lhe obedeceram, e estivestes grande tempo na sua obediência.
E diz que depois disto, pode agora haver um ano, vós, com gentes estranhas, entrastes em seu reino e lho tendes ocupado pela força, chamando-vos rei de Castela, tomando-lhe os seus tesouros e rendas, dizendo vós que o defendereis dele e daqueles que o ajudar quiserem, pelo qual somos muito maravilhado que um tão nobre homem como vós, e ademais filho de rei, fizésseis coisa vergonhosa contra vosso rei e senhor.
E o dito rei dom Pedro enviou mostrar estas coisas a elrei de Inglaterra, meu senhor e pai, e lhe requereu que, pelo grande divedo de linhagem que entre as casas de Inglaterra e de Castela houve em comum, e também pelas ligas e amizades que com o dito rei, meu senhor, e comigo tinha feitas, o quisesse ajudar a cobrar o seu reino e senhorio.
A Elrei meu senhor e pai, vendo que elrei dom Pedro, seu parente, lhe enviava pedir coisa justa e razoada, a que todo rei deve de ajudar, prouve-lhe fazê-lo assim, e mandou-nos que com todos os seus vassalos e amigos o houvéssemos de ajudar, conforme a sua honra pertence, pela qual razão somos aqui chegados e estamos hoje neste lugar de Navarrete, que é nos termos de Castela.
E para que, se vontade fosse de Deus, se pudesse escusar tão grande espargimento de sangue de cristãos como é por força de aí haver, se a batalha se fizer, do que Deus sabe que a nós muito pesa, vos rogamos e requeremos da parte de Deus e do mártir São Jorge que, se vos praz que nós sejamos bom medianeiro entre o dito rei dom Pedro e vós, no-lo façais saber, e nós então trabalharemos em como vós hajais nos seus reinos, e na sua boa graça e mercê, uma tão grande parte por a qual mui abastadamente possais manter vosso bom e honroso estado. E se algumas outras coisas entendeis de livrar (resolver) com ele, nós, com a mercê de Deus, entendemos de aí pôr tal meio em como vós sejais de tudo bem contente.
E se vos disto não praz e quereis que se livre por batalha, sabe Deus que nos despraz de tal muito, porém não podemos escusar de ir com elrei dom Pedro, nosso parente e amigo, por seu reino, e se nos quiserem alguns embargar o caminho, nós faremos muito por o ajudar, com a ajuda e graça de Deus.
Escrita em Navarrete, vila de Castela, primeiro dia de Abril.»
9. DA RESPOSTA QUE ELREI DOM HENRIQUE ENVIOU AO PRÍNCIPE POR SUA CARTA.
Elrei dom Henrique, vendo esta carta, recebeu bem o arauto e deu-lhe panos de ouro e dobras, e houve conselho em como responderia ao príncipe, porque alguns diziam que, pois que lhe não chamara rei, lhe escrevesse de maneira não cordial, mas depois acordaram em que lhe escrevesse cortesmente, e foi a carta nesta forma:
«Dom Henrique, pela graça de Deus, rei de Castela e de Leão.
Ao mui alto e mui poderoso príncipe dom Eduarte, filho primogénito delrei de Inglaterra, príncipe de Gales e de Guiana e duque de Cornualha e conde de Cestre.
Recebemos por um arauto a vossa carta, na qual se continham muitas razões que vos foram ditas por esse nosso adversário que aí é, e não nos parece que fostes bem informado, como assim seja que nos tempos passados ele regeu estes reinos de tal maneira que todos os que o sabem e ouvem bem se podem maravilhar de tanto tempo ser sofrido no senhorio que teve. E todos os dos reinos de Castela e de Leão, com grão dano e trabalho e mortes e perigos e malezas que seriam longas de contar, suportaram até aqui os seus feitos, os quais não puderam mais encobrir nem sofrer. E Deus, por sua mercê, houve então piedade de todos os destes reinos, para tão grande mal não ir mais adiante, e não lhe fazendo nenhum da sua terra outra coisa salvo prestar-lhe a obediência que devia, e estando todos com ele em Burgos para o servir e ajudar a defender os seus reinos, deu Deus sentença contra ele, que de sua própria vontade os desamparou e se foi. E todos os do seu senhorio houveram com isso mui grande prazer, tendo que Deus enviara sobre eles a sua misericórdia por os livrar de tão duro e tão perigoso senhorio que tinham, e todos os dos ditos reinos, assim prelados como cavaleiros e fidalgos e cidadãos, de sua vontade própria vieram a nós e nos receberam por seu rei e senhor.
Assim que entendemos, por estas coisas sobreditas, que isto foi obra de Deus. E por tanto, pois que por vontade de Deus e de todos os do reino este nos foi dado, vós não tendes razão por que nos hajais de estorvar. E se batalha houver de ser, sabe Deus que nos despraz disso, contudo para defender estes reinos, a que tão teúdos somos, não podemos escusar de pôr o nosso corpo frente àquele que contra eles quer ser, e por isso vos rogamos e requeremos, da parte de Deus e do apóstolo Santiago, que não vos queirais tremeter (atrever) de assim poderosamente em nossos reinos fazerdes dano, que, fazendo-o, não podemos escusar de os defender.
Escrita no nosso arraial cerca de Nájara, segundo dia de Abril.»
Mostrou o príncipe esta carta a elrei dom Pedro, e disseram então que estas razões não eram abastantes para se escusar de pôr logo a batalha, e pois que tudo era na vontade de Deus, que, como sua mercê fosse, assim o livrasse.
10. COMO SE FEZ A BATALHA ENTRE AMBOS OS REIS E FOI VENCIDO ELREI DOM HENRIQUE.
Já ouvistes como elrei dom Henrique tinha o seu arraial posto por onde havia de vir elrei dom Pedro de guisa a que o rio de Nájara estava entre uns e outros, e houve então seu conselho de passar o rio e pôr a batalha numa grande praça que é contra Navarrete, por onde os inimigos haviam de vir, e disto pesou a muitos dos seus, porque tinham à primeira o seu arraial posto com maior avantagem do que o depois tiveram, mas elrei dom Henrique era homem de grande coração e esforço e disse que não queria pôr batalha salvo na praça chã, sem avantagem nenhuma.
E elrei dom Pedro e o príncipe, com todas as suas companhas, partiram de Navarrete, sábado pela manhã, e puseram-se todos pé terra antes uma grande peça (grande espaço) que chegassem aos delrei dom Henrique, indo ordenados em batalha conforme havemos contado.
Elrei dom Henrique igualmente ordenou a sua batalha na maneira que dissemos, mas, antes que as batalhas juntassem, alguns ginetes e o pendão de Santistebam, com homens desse lugar que estavam com elrei dom Henrique, passaram-se para elrei dom Pedro.
Nisto moveram as batalhas e chegaram uns aos outros, e o conde dom Sancho, irmão delrei dom Henrique, e monse Beltram e todos os cavaleiros que estavam com o pendão da banda foram ferir na avanguarda onde vinha o duque dAlancastro e o condestável. E os da parte delrei dom Pedro e do príncipe traziam todos cruzes vermelhas em campo branco, e os delrei dom Henrique levavam nesse dia bandas. E assim tão de vontade juntaram uns com os outros que caíram as lanças a todos e começaram de se ferir às espadas e achas e porras (maças), chamando os da parte delrei dom Pedro, «Guiana, São Jorge», e os delrei dom Henrique, «Castela, Santiago», e tão rijamente se feriram que os da avanguarda do príncipe começaram de se retrair quanto seria uma passada e alguns deles foram derribados, de guisa que os delrei dom Henrique cuidaram que venciam e chegaram-se mais a eles, e recomeçaram-se outra vez a ferir.
Dom Telo, irmão delrei dom Henrique, que estava de cavalo à mão esquerda da avanguarda delrei dom Henrique, não movia para pelejar, o que foi um grande azo de se perder a batalha e a razão por que elrei dom Henrique depois sempre lhe quis mal. E os da ala direita da avanguarda do príncipe endereçaram então contra dom Telo, e ele, mais os que consigo estavam, não ousaram de atendê-los e moveram do campo a todo o romper, seguindo-os os desta ala que iam contra dom Telo, mas vendo que não lhe podiam empecer, tornaram sobre as espaldas dos que estavam a pé na avanguarda delrei dom Henrique com o pendão da banda, que pelejavam com a avanguarda do príncipe, e, ferindo-os pelas espaldas, começaram a matar alguns deles, e isso mesmo fez a outra ala da mão esquerda da avanguarda do príncipe, depois que não achou gentes a cavalo que pelejassem com ela.
Assim que ali era toda a pressa (o esforço) da batalha, sendo dom Sancho e os outros todos cercados de cada parte pelos inimigos, porém o pendão da banda ainda não era derribado. E elrei dom Henrique, como ardido cavaleiro, chegou várias vezes em cima do seu cavalo armado de loriga aí onde a pressa era tão grande, para acorrer aos seus, crendo que assim o fariam os outros que estavam com ele a cavalo, mas, quando viu que os seus não pelejavam, não pôde sofrer os inimigos e teve de voltar costas, bem como todos os que a cavalo com ele eram, e desta guisa se perdeu a batalha.
E afirma-se que, se é verdade que sendo a batalha da sua parte bem pelejada, era em grande dúvida não ser elrei dom Pedro desbaratado, mesmo assim mal pelejada como ela foi, não fora o grande esforço e a ardideza do príncipe e do duque dAlancastro, que eram estremados homens de armas, ainda o vencimento dela esteve em grande aventura.
E foram então mortos dos de pé que guardavam o pendão da banda, entre cavaleiros e homens de armas, até quatrocentos, e presos muitos outros, assim como dom Sancho, monse Beltram, o marechal, dom Filipe de Castro e outros cujos nomes deixamos para não alongar. E dos de cavalo foram igualmente presos o conde de Denia, o conde dom Afonso, o conde dom Pedro, o mestre de Calatrava e outros que de dizer não curamos, e foram ainda mortos no encalço até à vila de Nájara muitos delrei dom Henrique. E matou elrei dom Pedro depois por sua mão, tendo-o preso um cavaleiro do príncipe, Inhigo Lopez de Orozco, e fez também matar Gomez Carrilho de Quintana, camareiro mor delrei dom Henrique, e Sancho Sanchez de Moscoso e Garcia Jufre Tenório, que foram presos na batalha, e isto tiveram-no todos a mal.
E foi esta batalha vencida a sábado de Lázaro, seis dias de Abril (n), da era de César de mil quatrocentos e cinco anos (1367).
Nota: Segundo a edição de Madrid, de 1780, das Crónicas de Ayala (v. I, págs. 461 e 472), a batalha ter-se-ia dado a três de Abril.
11. COMO O PRÍNCIPE DISSE CONTRA O MARECHAL DE FRANÇA QUE MERECIA A MORTE, E COMO SE LIVROU POR JUÍZO DE CAVALEIROS.
No dia seguinte, que era domingo, trouxeram ante elrei dom Pedro e o príncipe todos os prisioneiros que na batalha foram tomados – porque dizia elrei dom Pedro que alguns contra quem ele passara por sentença lhe deviam ser entregues, para neles fazer justiça –, entre os quais veio o marechal de França, homem de sessenta anos e mais, e o príncipe, quando o viu, chamou-lhe traidor e fementido (perjuro), e disse que merecia a morte, e o marechal retorquiu, dizendo: «Senhor, vós sois filho de rei e não vos respondo como poderia neste caso, mas eu não sou traidor nem fementido». Então o príncipe disse-lhe se queria ir a juízo de cavaleiros, e que aí lho provaria, e o marechal respondeu que sim. E foram os juízes doze cavaleiros de desvairadas nações.
E, no juízo, disse o príncipe contra ele que na batalha de Poitiers, que aquele vencera e onde foi preso elrei de França, o marechal fora seu prisioneiro e posto a rendição (resgate), e que lhe fizera então preito e menagem, sob pena de traição e fementido (perjúrio), de que, salvo se fosse em companha delrei de França ou dalgum da sua linhagem da flor de lis, não se armaria contra elrei de Inglaterra nem contra o príncipe até que a sua rendição fosse paga, o que ainda não sucedera. «E agora», disse o príncipe, «não esteve nesta batalha elrei de França nem ninguém da sua linhagem e vejo-vos armado contra mim, não tendo pagado aquilo por que ficastes, e por tanto haveis caído em mau caso.»
Muitos cuidaram, ouvindo isto, que o marechal tinha muito mau caso feito, e que se não escusava da morte por tal.
E, por fim, disse o príncipe ao marechal que seguramente dissesse tudo o que entendesse para defender a sua fama e honra, pois que isto era feito de guerra entre cavaleiros. E este respondeu dizendo que era verdade tudo o que o príncipe dizia, «mas eu, senhor», continuou ele, «não me armei contra vós como o capitão desta batalha, pois elrei dom Pedro o é, a cujas gajas como soldadeiro (assoldado) vós aqui vindes. E assim, senhor, pois vós não sois capitão desta hoste, mas sim gajeiro e assoldado, eu não errei em me armar contra vós, que não o fiz salvo contra elrei dom Pedro, de quem é a requesta desta batalha». E os juízes disseram ao príncipe que o marechal respondia mui bem com direito, e deram-no por quite da acusação que lhe fazia.
E foi bem notada esta resposta, de guisa que por tal sentença se livravam depois semelhantes casos quando aconteciam na guerra.
12. DAS RAZÕES QUE ELREI DOM PEDRO HOUVE COM O PRÍNCIPE SOBRE A TOMADA DOS PRISIONEIROS.
Na segunda-feira partiram elrei e o príncipe do campo para a cidade de Burgos, não bem contentes por duas razões.
A primeira, porque no dia da batalha elrei matara pela sua mão Inhigo Lopez de Orozco, tendo-o preso um cavaleiro gascão, o qual se queixou ao príncipe de como elrei lhe fizera perder o seu prisioneiro e da desonra que lhe havia feita, e o príncipe disse a elrei que bem parecia que não tinha vontade de lhe guardar o que com ele pusera (acordara), pois este que era um dos principais capítulos, que não matasse nenhum homem de conta sem primeiro ser julgado, ele já começara a quebrantar, e elrei se escusou então o melhor que pôde.
A outra razão, porque no domingo após a batalha elrei dom Pedro pediu ao príncipe que todos os cavaleiros e escudeiros castelhanos que eram de conta lhe fossem entregues por razoados preços – preços pelos quais ficasse o príncipe de garante àqueles que os tinham, que elrei lhe faria uma obrigação pelo que aí montasse. E que, havendo então tais homens, falaria com eles de tal maneira que ficassem da sua parte. E por esta coisa se afincou muito elrei dom Pedro, dizendo que se por outra guisa se livrassem sempre seriam em seu desserviço.
O príncipe disse que não pedia com razão, porque os prisioneiros eram daqueles que os tinham, e que estes eram tais homens que, nem por mil vezes tanto o que valiam, nunca nenhum lhe daria o prisioneiro que tivesse, pois logo cuidariam que os comprava para os matar, e que disto não se trabalhasse mais, que não era coisa para ir a seu termo.
Elrei dom Pedro respondeu que, se estas coisas haviam de se passar assim, então fazia conta que o príncipe não o ajudara, que mais perdido tinha agora o seu reino que da primeira vez e que despendera os seus tesouros debalde.
O príncipe houve acrimónia e disse a elrei: «Parente, senhor, a mim parece que vós tendes agora mais forte maneira para cobrar o reino do que tivestes quando o regíeis e governastes de tal guisa que o houvestes de perder, por tanto vos aconselho a que tenhais tal jeito com todos pelo qual cobreis os corações dos grandes e dos fidalgos da vossa terra, e que, se o fizerdes como da primeira vez, estais em ponto de perder o reino e a vossa pessoa, e nem elrei, meu senhor, nem eu, não vos poderemos mais acorrer.»
13. DAS AVENÇAS QUE FORAM FEITAS ENTRE O PRÍNCIPE E ELREI DOM PEDRO SOBRE AS COISAS QUE PROMETIDAS LHE TINHA.
Passadas estas coisas, fez o príncipe requerer por alguns dos seus a elrei dom Pedro que, tal como bem sabia que fora ordenado entre eles, tanto a si como aos outros senhores e homens de armas que ali eram, fossem pagas suas gajas e estados e soldo a cada um sem nenhuma falta que em isso houvessem. E se bem que elrei havia pago em Baiona, a ele e aos outros, parte do que haviam de haver, que porém ficava em dívida de grandes quantias a todos eles, pelas quais o príncipe fizera juramentos e menagens aos seus, juntos com os delrei, conforme este bem sabia, e que portanto fosse sua mercê, pois já estava em posse do seu reino, de ordenar em como houvessem pagamento e ele fosse fora das obrigações que lhes tinha feitas. Além disto, pois que de seu grado lhe prometera o senhorio de Biscaia e a vila de Castro dUrdiales – sem ele lho requerer, porque em todas as guisas queria que houvesse alguma terra e renda no reino de Castela – e lho outorgara, conforme por suas cartas tinha outorgado, que lhe prouvesse de assim o cumprir, de modo a ele se tornar cedo para a sua terra, que não era em proveito, mas perda grande, estar muito tempo com tantas gentes nos seus reinos acrescentando à despesa.
Elrei ouviu isto que lhe disseram e mandou-lhe responder, por outros, que era verdade o que haviam dito e que lhe prazia de cumprir tudo o que prometera. Porém sobre a paga da dívida quis elrei pôr revolta, dizendo que pagara grandes soldos e gajas em jóias e pedras, tomando-as eles por mais baixo preço do que aquilo que valiam.
E o príncipe respondeu dizendo que os seus foram agravados com tal paga, dando-se-lhes pedras e jóias que lhes não cumpriam, e não moeda, como mister haviam para comprar cavalos e armas a fim de o servirem, assim que de tal coisa não devia de fazer menção. E disse mais o príncipe, ao que pedia elrei – que lhe deixasse, à sua despesa e gajas e soldo, mil lanças dos seus até que fosse bem assossegado o reino –, que isso bem lhe prazia, mas que os seus queriam ver primeiro como pagavam os homens de armas do tempo todo que haviam servido.
Sobre isto passaram-se muitas falas e razões entre elrei e o príncipe, até que, por fim, acordaram em fazer conta das gentes que vieram e do que tinham havido de soldo e de quanto lhes deviam, e acharam que montava toda a dívida em mui grande quantia, razão pela qual o príncipe pediu a elrei que lhe desse vinte castelos em arreféns, quais ele nomeasse, para segurança da paga. E quanto à cidade de Soria, que prometida havia por suas cartas a monse João, condestável, que elrei lha fizesse entregar.
Elrei respondeu que não podia por nenhuma guisa pôr tais castelos em fieldade, pois diriam os do reino que queria dar a terra a gentes estranhas, e que já nem havia por bem de ficarem em seu reino as mil lanças que lhe requeria, mas quanto ao senhorio de Biscaia e a Castro dUrdiales e a entregar Soria a monse João, que bem lhe prazia de o outorgar.
E sobre estas coisas houve muitos debates, falando-se tudo por aqueles de quem fiavam, dizendo sempre o príncipe que queria saber como haviam de ser pagos os seus e ele ser quite da sua obrigação. Elrei então lhe enviou dizer que logo mandava por todo o seu reino a pedir ajuda para paga destas dívidas, que a um dia certo lhe faria paga da metade e que, pelo mais, tivessem em arreféns as suas três filhas que em Baiona ficaram até que fosse pago de todo, e deu-lhe cartas para que entregassem ao príncipe a terra de Biscaia e a monse João a terra de Soria, mas ao príncipe não se quiseram dar depois os moradores da terra, apesar de que ele lá mandou seu recado, porquanto lhes escreveu elrei caladamente, por outra guisa, que não se lhe dessem, e ao condestável pediram dez mil dobras de chancelaria pela carta e ele não a quis tomar, dizendo que não lhe pediam tanto salvo para não lhe darem a dita cidade.
O príncipe, vendo como estas coisas iam, para dar lugar a que elrei não se tivesse por mal contente dele, disse que lhe prazia de atender alguns dias em Castela, fazendo-lhe elrei juramento de lhe cumprir tudo o que havia prometido, e elrei disse que lhe prazia. E acordaram que viesse o príncipe das Huelgas de Burgos, onde pousava, até dentro da cidade, à igreja de Santa Maria, e que lhe jurasse elrei publicamente, ante todos, de lhe cumprir todas as coisas que entre eles eram divisadas. Todavia o príncipe disse então que não iria lá dentro salvo se lhe dessem uma porta da cidade, com a sua torre, em que pusesse gente de armas para sua segurança, e elrei mandou-lha dar. E foram postos na torre homens de armas e frecheiros e, ao fundo da porta, numa grande praça que havia já dentro da cidade, pôs o príncipe mil homens de armas, e fora da cidade, ao redor do mosteiro onde ele pousava, as mais das gentes que consigo vieram, todos armados.
Entrou então o príncipe dentro da cidade por aquela porta que era guardada, e iam de bestas (montados) ele e seu irmão, porém não armados, e ao redor dele alguns capitães e até quinhentos doutros homens de armas, e assim chegou à igreja maior onde haviam de ser os juramentos. Elrei dom Pedro veio ali e publicamente leram as escrituras do que era teúdo de dar ao príncipe e aos seus e de como se obrigava a pagar, a ele ou aos seus tesoureiros, metade da quantia daquele dia a quatro meses, dentro de Castela, e a outra metade em Baiona daí a um ano, por a qual o príncipe teria em arreféns as suas filhas que lá ficaram quando dali partira. Outrossim jurou naquele dia elrei que faria entregar o senhorio de Biscaia e Castro dUrdiales ao príncipe, e a monse Chandos, condestável da Guiana, a cidade de Soria que lhe prometido havia. Feito isto, foi-se elrei para o seu paço, e o príncipe para o mosteiro onde pousava.
Elrei dom Pedro foi-o depois ver e disse-lhe como havia enviado muitos pelo seu reino a fim de juntar dinheiros para a primeira paga e que, por modo a dar-lhe muito maior aguça (celeridade), ele mesmo queria ir pela terra para pôr nisso melhor recado. O príncipe disse que fazia bem e lho agradecia, por manter sua verdade e os juramentos que fizera, e disse-lhe mais que a ele lhe fora dito que elrei mandava cartas suas aos da terra de Biscaia para que o não tomassem por senhor, mas que nisto não podia crer e que lhe rogava que lha fizesse entregar, como lhe havia prometido, e a cidade de Soria ao condestável. E elrei respondeu que nunca tais cartas mandara e que da terra lhe ser entregue e o príncipe a haver lhe prazia muito, e que em tudo isto lhe poria bom remédio neste espaço dos quatro meses, e assim se despediu dele.
14. QUAIS PESSOAS MATOU ELREI DOM PEDRO DEPOIS QUE PARTIU DE BURGOS, E COMO TRATOU DE PAZ COM ELREI DOM FERNANDO DE PORTUGAL.
Partiu elrei dom Pedro de Burgos, e o príncipe para um lugar que dizem Amusco, e indo elrei para Toledo, antes que chegasse à cidade, mandou matar Rui Ponce Palomeque, cavaleiro, e Fernam Martinez, homem honrado do lugar, porque andaram com elrei dom Henrique depois que entrara no reino. E levou arreféns dos de Toledo, para ser deles seguro, e dali partiu e chegou a Córdova. E daí a dois dias armou-se, de noite, e com outros andou pela cidade por certas casas, e fez matar dezasseis homens dos honrados que nela havia, dizendo que estes foram os primeiros a ir receber elrei dom Henrique quando ali chegara.
Dali se partiu e foi a Sevilha, e antes que chegasse fez lá matar micer Gil Bocanegra, almirante de Castela, dom João, filho de dom Pedro Ponce de Leão, Afonso Arias de Quadros, Afonso Fernandez e outros.
E mandou a Martim Lopez de Córdova, mestre de Calatrava, que estava nessa cidade (Córdova), que matasse dom Gonçalo Fernandez de Córdova, dom Afonso Fernandez, senhor de Montemayor, e Diego Fernandez, alguazil mor da cidade, mas ele não o quis fazer, entendendo que faria mal, e elrei dom Pedro houve dele queixume por isto e ordenou que o prendessem à traição, mas a rogo delrei de Granada e por receio que elrei deste teve, fez soltar dom Martim Lopez, que assim escapou à morte.
E por queixume que elrei havia de dom João Afonso de Guzmam, que depois foi conde de Niebla – porque não se fora nem chegara a ele quando da outra feita houve o alvoroço de Sevilha em que elrei dom Pedro tinha fugido para Portugal –, como o não achou na cidade para o prender, mandou matar sua mãe, dona Urraca, de cruel morte, e tomou todos os bens que ambos tinham. E mandou ainda matar Martim Ianhez, seu tesoureiro mor, a quem fora tomada a galé do haver conforme haveis ouvido (Crónica de D. Pedro).
Estando elrei assim em Sevilha, mandou a Portugal, a elrei dom Fernando, Mateus Fernandez, seu chanceler mor e do seu conselho, para tratar com ele paz e amizade, o qual chegou a Coimbra, onde elrei dom Fernando estava, e tratou com ele, dizendo que elrei dom Pedro queria haver com ele paz e amizade e ser seu verdadeiro amigo para sempre em todas as coisas que cumprisse. E confirmaram então as suas amizades o mais firmemente que puderam, fazendo sobre isso suas escrituras como para tal feito cumpriam.
E sendo partido o embaixador de Castela, elrei dom Fernando mandou João Gonçalves, do seu conselho, para confirmar este acordo de amor e paz que o procurador delrei dom Pedro com ele tratara, e João Gonçalves chegou a Sevilha e elrei confirmou tudo o que Mateus Fernandez havia tratado, e tornou-se então João Gonçalves.
E elrei dom Pedro mandou em seguida João de Cayom, seu alcaide mor, para que chegasse a elrei dom Fernando e lhe requeresse que ratificasse outra vez a amizade que haviam feita, e ele chegou a Tentúgal, onde elrei então estava, e, tendo-o requerido, outorgou elrei dom Fernando a paz e amor que antes disto havia feito, e recebeu dele o mensageiro preito e menagem por aquelas avenças, e despediu-se e foi-se a caminho de Sevilha.
Agora deixemos estar elrei dom Pedro em Sevilha e tornemos a contar delrei dom Henrique, do que se fez dele depois que fugiu da batalha até que tornou outra vez a Castela, e igualmente da sua mulher e dos filhos, pois, posto que antes disto queríamos falar da paga que elrei dom Pedro fez ao príncipe e de como lhe entregou as terras que lhe havia de dar e este se despediu dele e foi para a sua terra, o que era de razão dizermos primeiro, nós isso fazer não podemos porque nas obras dos antigos, que antes de nós fizeram histórias, tais coisas não achámos nas escrituras por eles a nós comunicadas, e antes entendemos que foi pelo contrário, que nunca mais lhe fez pagamento, segundo adiante ouvireis, e que o príncipe se partiu sem mais lhe falar por novas que havia de que os franceses começavam a fazer guerra no ducado de Guiana à maneira das companhias. E por isso tornaremos aos feitos delrei dom Henrique, dos quais, muitos deixando, alguns diremos para abreviar.
15. DO QUE AVEIO A ELREI DOM HENRIQUE DEPOIS QUE FUGIU DA BATALHA, E À RAINHA SUA MULHER.
Fugiu elrei dom Henrique, como ouvistes, depois que viu perdida a batalha, e ele andava nesse dia num grande cavalo ruço castelhano todo armado de loriga, mas, pelo grande trabalho por que havia passado, não o podia levar o cavalo como cumpria, e um escudeiro seu criado, que tinha um bom cavalo ginete, quando o viu assim, chegou-se a ele e disse: «Senhor, tomai este cavalo, que esse vosso já não se pode mover», e elrei assim o fez, e partiu da vila de Nájara e levou o caminho de Soria para Aragão, e iam com ele dom Fernam Sanchez de Tovar, dom Afonso Perez de Guzmam, micer Ambrósio, filho do almirante, e outros.
E no outro dia saíram a eles, duma aldeia da terra de Soria, alguns a cavalo, porque os viram ir assim apressurados, e tais aí houve que o conheceram e quiseram-no prender ou matar para haver a graça delrei dom Pedro, e ele, quando os viu estar assim duvidando, acometeu-os, desbaratou-os e matou aquele que o quisera prender.
E dali chegou a Aragão a um lugar que dizem Illueca, e achou aí dom Pedro de Luna, que depois disseram papa Benedito, e foi-se com ele até fora de Aragão, aos portos de Jaca. E daí partiu e chegou a Ortés, uma vila do conde de Foix, ao qual muito pesou porque ele fora vencido, mas também porque chegava a sua casa, dado que se receava do príncipe, que via então como um dos poderosos homens do mundo, e dele ter achaque contra si porque o não prendera, pois que o tinha em sua casa.
E dizem que perguntou o conde a elrei «como vinha assim», e ele respondeu e disse: «Venho com aquela fortuna que acontece aos cavaleiros, pus o campo e perdi-o, e agora venho assim como vedes». E o conde o confortou e recebeu mui bem, e deu-lhe cavalos, dinheiros e homens que foram com ele até Tolosa, onde esteve por alguns dias.
E foi-se depois a Vila Nova cerca de Avinhão, onde estava o duque dAnjou, irmão delrei de França, no qual achou grande acolhimento, dando-lhe o duque de seus dinheiros, e foi-lhe de grande ajuda nisto o papa Urbano quinto, que estava em Avinhão e queria bem a elrei dom Henrique. Contudo elrei não viu então o papa, pois todos se receavam do príncipe de Gales, dado que o viam tão poderoso.
Os arcebispos de Toledo e de Saragoça, que tinham ficado em Burgos com a rainha, o infante e as infantas enquanto elrei fora à batalha, como souberam que era perdida, partiram à pressa a caminho de Saragoça, onde chegaram com muito medo e grandes trabalhos, achando então contrário agasalhado àquele que cuidavam em elrei dAragão, porque ele, como via o príncipe, e igualmente elrei dom Pedro, mui poderosos em Castela, receando-se deles, disse que elrei dom Henrique, quando cobrara o reino de Castela, não lhe cumprira as coisas que entre eles haviam sido acordadas, e tomou logo sua filha, a infanta, que a rainha dona Joana trazia por esposa do infante seu filho, e disse que não queria estar por tal casamento, e em tudo isto não sabia a rainha parte (não tinha conhecimento) do que era feito delrei, seu marido, depois que fugira da batalha.
Outrossim o príncipe de Gales e elrei dom Pedro trataram logo suas amizades com elrei dAragão, e tudo isto se fazia para elrei dom Henrique não haver acolhimento em terra dAragão.
Por azo deste não bom acolhimento houve entre os senhores e fidalgos dAragão grandes bandos (facções) perante elrei, dizendo alguns a elrei dAragão que estivesse da parte delrei dom Henrique, pois que nos seus misteres de guerra que houvera com Castela sempre o achara bom ajudador e leal amigo, e que em tal tempo (ocasião) lho devia agradecer, mormente que, se elrei dom Pedro ficasse assossegado (sem opositores) em seu reino, lhe poderia fazer guerra como anteriormente. Outros diziam que elrei dom Henrique não cumprira a elrei dAragão o que lhe prometera de dar quando cobrasse o reino de Castela, e que por isso não havia razão para o ajudar.
A rainha, vendo nestes feitos que lhe não cumpria de estar em Aragão, pois entre os senhores aí havia tais que queriam mal ao seu marido, houve acordo em se ir para ele, que já sabia o lugar onde estava, e partiu de Saragoça a caminho de França, e achou elrei dom Henrique em Servian, que é uma vila de Linguadoc (Languedoc).
16. COMO ELREI DOM HENRIQUE SE VIU COM O DUQUE DE ANJOU, E DO GRANDE ACOLHIMENTO QUE ACHOU EM ELREI DE FRANÇA.
Tornando a contar delrei dom Henrique, do que fez depois que foi cerca de Avinhão, em Vila Nova, segundo ouvistes, onde estava então o duque dAnjou, não embargando que o duque o bem recebesse e partisse (partilhasse) com ele dos seus dinheiros, pesou-lhe muito da sua vinda, porquanto elrei de França e elrei de Inglaterra haviam novamente pazes feitas e era entregue ao príncipe o ducado de Guiana. E receando-se o duque, pelo gasalhado que fazia a elrei dom Henrique, que desprazeria a elrei de França, seu irmão – tendo o príncipe achaque contra este de que outra vez queria avolver (revolver) guerra, por acolher em sua terra homens a que o príncipe bem não queria, mormente um tal como elrei dom Henrique, de que ainda se receava –, quisera-se escusar quanto pôde para não ver então elrei dom Henrique, porém, quando viu que se escusar não podia, ordenou que lhe dessem pousada na torre da ponte dAvinhão que é do lado de França, e ali o viu escondidamente, da primeira vez que lhe falou, e deu-lhe por conselho que escrevesse a elrei, seu irmão, fazendo-lhe saber o mister em que era.
Elrei dom Henrique assim o fez, e chegaram os seus mensageiros a Paris, onde elrei de França estava, e contaram-lhe o desbarato na batalha e como a perdera elrei dom Henrique, e que ele, pois que a casa de França era a maior dos reinos dos cristãos e não devia falecer a sua ajuda aos que em tal caso houvessem caído, por tanto lhe pedia que o quisesse ajudar daquela maneira que visse que lhe cumpria, mormente contra homens que lhe não queriam bem, ainda que no presente com eles houvesse paz.
Elrei de França, como viu as suas cartas, escreveu logo ao duque, seu irmão, para que lhe desse cinquenta mil francos de ouro e mais um forte castelo que diziam Peirapertusa, em que tivesse a sua mulher e os filhos, e mais fez tornar a elrei dom Henrique o condado de Cessenom, que seu antecessor, elrei dom João de França, lhe dera quando o servira na guerra contra os ingleses, mas depois o houvera este rei Carlos, empenhado por ele sobre certo ouro, e então lho desembargou, e foi elrei dom Henrique entregue de todas estas coisas, as quais o duque lhe fez haver mui despachadamente.
Neste comenos, vinham-se para elrei a cada dia cavaleiros e escudeiros de Castela, e traziam-lhe novas em como o príncipe e elrei dom Pedro não eram avindos nem em bom acordo, e de que os mais da sua parte que haviam sido presos na batalha eram já soltos e estavam nos castelos que primeiro tinham, donde faziam guerra a elrei dom Pedro, e mais soube como algumas vilas e cidades estavam por ele, e toda a Biscaia.
E houve cartas dalguns seus amigos – cavaleiros ingleses que andavam com o príncipe e que estiveram antes ao seu serviço, quando elrei dom Henrique entrara em Castela – para que não tornasse ao reino até que o príncipe fosse fora dele, porque depois que elrei dom Pedro partira de Burgos e fora para Sevilha, apesar de que o príncipe esperara os quatro meses pela primeira paga, nunca mais houvera dele recado, nem lhe fora entregue nenhuma coisa de quantas lhe havia prometidas, e entendiam que cedo se partiria para a sua terra desavindo com elrei dom Pedro e não o tornaria mais a ajudar, nem as gentes que com ele vieram, por todos serem dele mal contentes, e, ademais, que o príncipe havia novas que Lemosim e Perrim de Sabóia, com outros, ao modo das companhias, lhe faziam guerra no ducado de Guiana, pelo que a sua estada em Castela não seria muita.
Assim que, com estas novas e outras semelhantes que vinham a elrei dom Henrique a cada dia, era muito ledo e cobrava esforço.
17. COMO ELREI DOM HENRIQUE ORDENOU DE TORNAR PARA CASTELA, E COMO ELREI DE ARAGÃO LHE EMBARGAVA A PASSAGEM PELO SEU REINO.
Quanto a estada do príncipe durou em Castela, nem como partiu e de que maneira, nós mais não sabemos do que tendes ouvido, mas mal elrei dom Henrique soube novas certas da sua partida ordenou de se tornar a Castela, e viu-se, na vila que chamam Águas Mortas, com o duque dAnjou e dom Guido, cardeal de Bolonha, parente delrei de França. E ali eles fizeram seus tratos com elrei dom Henrique, em nome delrei de França, os mais fortes que puderam, firmados com juramentos, e deu o duque a elrei dom Henrique uma soma de dinheiros para ajuda da sua vinda.
Dali partiu elrei e tornou-se a Peirapertusa, onde deixara a sua mulher e os filhos. E tinha então até duzentas lanças, e mandou buscar companhas para trazer consigo. E vieram-lhe capitães com gentes, a saber, o visconde de Ilha, dom Bernal, conde de Osona, o bastardo de Béarne, monse Berni de Villemur e o begue de Vilhenes. E partiu logo a caminho de Castela com eles, e levou consigo a rainha sua mulher e o infante dom João, e à infanta dona Leonor, com outras donas e donzelas, deixou-a no castelo de Peirapertusa.
Elrei dAragão, que parte soube de sua tornada e como havia de passar pelo seu reino, mandou-lhe dizer que era amigo do príncipe de Gales e que não lhe queria fazer nojo, e que por isso lhe requeria que não passasse pela sua terra, pois, se doutra guisa o quisesse fazer, que não podia escusar de lha defender.
Elrei respondeu àquele que lhe levou estas novas, e disse: «Maravilho-me muito delrei dAragão enviar-me dizer tal coisa como esta, pois bem sabe ele que, no tempo em que eu lhe fui cumpridoiro (necessário) em sua guerra, nunca lhe faleci cada vez que me houve mister, e que pela entrada que eu fiz em Castela cobrou ele cento e vinte castelos que elrei dom Pedro lhe tinha tomados, e agora manda-me dizer que não passe pelo seu reino! A mim convém-me de ir a Castela, e não posso escusar que não passe por aqui, e se ele me quiser estorvar e ter o caminho, fará nisso a sua vontade, mas eu não posso escusar, a quem me estorva der ou quiser embargar, que me não defenda dele o melhor que puder.»
Tornou-se o cavaleiro com esta resposta e elrei ordenou de lhe ter os caminhos. Contudo, em Aragão havia muitos que tinham pela parte delrei dom Henrique e amavam muito o seu serviço e honra, tais como o infante dom Pedro, pai do conde de Denia, o conde de Ampúrias, dom Pedro de Luna, o arcebispo de Saragoça e outros, e o infante dom Pedro enviou a elrei dom Henrique um seu escudeiro para que o guiasse por terra de Ribagorça.
E vinha elrei pelo reino dAragão recebendo grande nojo dos que lhe tinham os caminhos, porém não ousavam de lhe aguardar a batalha. E chegou primeiro elrei a uma vila do infante dom Pedro que dizem Arén, e aí esteve dois dias repousando. Depois partiu dali, continuando o seu caminho, e achou-o em outro seu lugar que chamam Benavarri, e o infante fez-lhe então dar viandas, e tudo o que mister houve. Seguiu elrei por suas jornadas e chegou a Estadilha, e ali houve novas em como elrei dAragão mandava aos seus que saíssem de Saragoça ao caminho, a pelejar com ele, e foi nessa noite dormir a Balbastro. E ali lhe disseram que elrei dAragão era já em Saragoça e mandava a todos os seus passar a ponte sobre o Ebro, para que lhe fossem ter o caminho, mas eles faziam-no de mui má mente, que os mais deles queriam bem a elrei dom Henrique. E, seguindo o seu caminho, saiu dAragão, passou pelo reino de Navarra e chegou à vista de Calahorra, na frontaria de Castela.
E, antes que chegasse à cidade, perguntou elrei aos que com ele vinham se já estavam no termo de Castela, e eles disseram que sim, então elrei desceu-se do cavalo, fincou os joelhos em terra, fez o sinal da cruz num areal que ali era e disse: «Eu juro a esta significança (signo) da cruz que nunca em minha vida, por mister que me avenha, hei-de sair do reino de Castela, e antes espere aqui a minha morte, ou qualquer ventura que me avier, que já mais de ele sair». E isto dizia elrei porquanto saíra do reino, após a batalha de Nájara, e achara assaz graves todas as coisas que teve de livrar com os seus amigos em prol da sua ajuda.
E armou ainda alguns cavaleiros antes que chegasse a Calahorra, onde foi bem recebido com todos os que com ele vinham. E chegaram ali, a elrei, dom João Afonso de Haro, dom João Ramirez dArelhano e outros cavaleiros e escudeiros que andavam por Castela, até seiscentos homens de armas, e folgou elrei muito com eles, e foram por si mui bem recebidos.
18. COMO ELREI DOM HENRIQUE ENTROU EM BURGOS E COBROU O CASTELO E A JUDIARIA.
Esteve elrei alguns dias ali, onde muitos se vieram para ele, e partiu a caminho de Burgos. E passando cerca da vila do Gronho, que estava da parte delrei dom Pedro, não a pôde cobrar e encaminhou então para a cidade. E antes que lá chegasse mandou saber a vontade dos do lugar, e se o acolheriam nela.
Aos da cidade prouve muito da sua vinda, e enviaram-lhe mensageiros seus para que ao outro dia entrasse nela, que todos eram prestes em lhe obedecer, e ainda que o castelo estivesse por elrei dom Pedro, e lá dentro, com o alcaide, houvesse até duzentos homens de armas, e igualmente a judiaria mantivesse a sua voz, que não deixasse de ir por isso, que todos se viriam depois à sua mercê.
Elrei partiu logo e foi-se a Burgos, e receberam-no mui honradamente todo o povo e a clerezia, não embargando que os do castelo atiravam setas e trons.
Elrei ordenou de combater o castelo e a judiaria, e fez fazer cavas e atirar com engenhos, e os judeus logo preitearam de ficarem por seus, e fizeram-lhe serviço de um conto (milhão). Afonso Fernandez, alcaide do castelo, porfiou alguns dias em se defender, mas por fim deu o castelo a elrei dom Henrique e entregou-lhe elrei de Neapol, que estava aí dentro, o qual viera em ajuda delrei dom Pedro à batalha de Nájara, e elrei mandou-o para o castelo de Curiel, e depois houve por ele oitenta mil dobras que pagou de rendição (resgate) a rainha dona Joana, sua mulher.
Ali houve novas elrei dom Henrique em como a cidade de Córdova estava por ele, e de que elrei dom Pedro estava em Sevilha e abastecia muito a vila de Carmona, e foi bem ledo com estes recados, e mandou a rainha, sua mulher, e o infante seu filho para terra de Toledo, pois tinha nessa comarca muitos lugares que estavam por ele, e foram com ela o arcebispo de Toledo e o bispo de Palência e outros.
Elrei depois disto foi cercar a vila de Donas, porquanto esse lugar é no caminho de Burgos a Valhadolide e dali faziam muito dano e estorvo. E elrei dom Henrique, depois que aí chegou, fê-la cercar e atirar-lhe com engenhos. Rodrigo Rodriguez, que estava no lugar, aprazou-se até certos dias e, não havendo acorro delrei dom Pedro, passado o prazo, deu a vila a elrei, e ficaram todos na sua mercê.
19. COMO ELREI DOM HENRIQUE CERCOU A CIDADE DE LEÃO, E MANDOU LAVRAR A MOEDA DOS SESSENES.
Começou-se a era de quatrocentos e seis (1368) e o terceiro ano que reinava elrei dom Henrique, e, no mês de Janeiro, partiu elrei da vila de Donas e foi cercar a cidade de Leão – estando então a cidade por elrei dom Pedro e os fidalgos da terra por elrei dom Henrique –, e fez uma bastida no mosteiro de São Domingos, e posta a bastida contra uma torre do lugar, não a puderam os de dentro defender, e deram-lhe a cidade e ficaram todos por seus.
Depois que a cobrou, elrei partiu de Leão e foi combater Outer de Fumos, que estava por elrei dom Pedro, e esta deu-se-lhe, e assim fizeram outros lugares. E acordou em seguida de ir a Ilhescas, que são seis léguas de Toledo, onde estava a rainha sua mulher, e ali esteve alguns dias perguntando a todos o que lhes parecia que era bem de fazer: se deveria andar pelo reino ou se cercaria a cidade de Toledo.
Sobre isto houve muitos conselhos, e, por fim, acordaram que a fosse cercar pelas muitas viandas que naquela comarca havia, e pôs ali o seu arraial, da parte da veiga, aos trinta dias do mês de Abril.
Com elrei estavam até mil homens de armas, e na cidade havia até seiscentos a cavalo e muita gente de pé. E para elrei mais se fortalecer no cerco sobre a cidade, fez logo construir no Tejo, perto do arraial, uma ponte de madeira, e mandou certas gentes de armas passar além dela e aí pousar. E fez ir a rainha sua mulher e o infante para a cidade de Burgos, para terem azo de estar de assossego.
E havia no arraial muitas viandas e grande acorro de dinheiros dos lugares que elrei cobrou, jazendo (permanecendo) ali, e doutros em redor que tinham a sua parte, e para a paga das gentes que com elrei andavam houve acordo de lavrar moeda nova, e fizeram umas que chamavam sessenes, que uma delas valia seis dinheiros. E esta moeda lavraram em Burgos e em Talaveira, e com ela houve elrei acorrimento para a paga das gentes que consigo tinha.
20. COMO ELREI DOM PEDRO FEZ VIR ELREI DE GRANADA EM SUA AJUDA, E COMO SE HOUVERA DE PERDER A CIDADE DE CÓRDOVA.
Deixemos estar Toledo cercada e vejamos o que elrei dom Pedro fazia entretanto, estando em Sevilha.
Elrei dom Pedro foi certificado de todas as coisas que seu irmão fizera desde que no reino entrara até que cercou a cidade de Toledo, e houve por isso mui grão pesar, e não se trabalhava então doutra coisa senão de abastecer a vila de Carmona o mais que podia, e quando soube que Toledo era cercada tratou também com elrei de Granada que o viesse ajudar com as mais das gentes que pudesse.
O rei mouro foi disto mui ledo e veio com grande poder, pois trouxe consigo sete mil a cavalo, ginetes, e oitenta mil de pé, dos quais doze mil eram besteiros, e elrei dom Pedro havia mil e quinhentos a cavalo e seis mil homens de pé, assim que eram por todos noventa e quatro mil e quinhentas pessoas, e com este ajuntamento foi elrei dom Pedro cercar a cidade de Córdova, que não estava da sua parte e era lugar de que lhe faziam grande guerra.
Na cidade estavam muitos e bons fidalgos, com gentes assaz para se defender, no entanto, cuidando que os mouros pelejariam com eles nas barreiras, não se aperceberam de pôr recado nos muros.
Os mouros eram muitos e chegaram rijamente à cidade, tanto que, com a muita bestaria, foi o combate tão grande por uma parte (sector) que Abem Falos, capitão mouro que aí vinha, cobrou a coiraça que dizem da Calahorra, e tomaram o alcácer velho, fazendo nele seis portais (brechas), e subiram alguns mouros acima do muro com os seus pendões.
O desmanho (confusão) foi tão grande na cidade, por esta razão, que cuidaram que eram entrados. As donas e donzelas que eram na cidade, vendo aquilo, saíam às ruas e praças chorando, escabeladas, pedindo por mercê àqueles senhores e cavaleiros que houvessem delas dó e piedade e não as deixassem ser desonradas e postas em cativeiro de mouros. E tantas lágrimas e gritos soltavam e tais palavras diziam que não havia homem que as ouvisse que não houvesse delas compaixão e dó, o que tal esforço fez cobrar aos que ali dentro eram que rijamente endereçaram para aquele lugar em que os mouros estavam, e pelejaram com eles assim tão de vontade que pela força, e a mau grado seu, lhes fizeram desamparar o muro e os deitaram fora da cidade – matando muitos deles e outros cativando –, e ficaram aí os seus pendões. E depois fizeram à pressa corrigir mui bem aquele rompimento do muro, porque em outro dia esperavam semelhante ou muito maior combate, tomando entretanto mui grão prazer porque os livrara Deus de tamanho perigo em que foram postos.
Noutro dia tornaram os mouros e a gente delrei ao combate, mas acharam a cidade apercebida doutra maneira e arredaram-se a fora – e muito prouvera então a elrei de os mouros cobrarem Córdova e a destruírem, havendo dela grande sanha porque estavam aí alguns tais que lhe haviam feito muita guerra. E tornou-se, passado alguns dias, elrei dom Pedro a Sevilha, e elrei de Granada para a sua terra.
Tornou depois outra vez elrei de Granada e cercou a cidade de Jaén. Os de dentro saíram às barreiras, mas, afincados pelos mouros, houveram-se de retrair (ir para trás), e entraram os mouros com eles na volta e cobraram a cidade. E, na entrada, foram alguns dos cristãos mortos ou cativos e os outros acolheram-se ao alcácer, e dali preitearam (ajustaram) com os mouros que lhes dariam certa quantia de dobras e que estes os descercassem.
Em seguida elrei dom Pedro partiu de Sevilha, e chegaram de novo a Córdova ele e elrei de Granada, contudo acharam-na apercebida de tal guisa que não provaram (experimentaram) de lhe fazer nojo.
Partiu então elrei de Granada e tomou a cidade de Úbeda, que não era bem cercada, e roubou-a de tudo e fê-la queimar. E entrou em Utreira e Marchena, e levou destas vilas quantos aí achou cativos, e perdeu-se então muita gente, pois foi certo que somente do lugar de Utreira levaram os mouros onze mil prisioneiros, entre homens, mulheres e moços pequenos. E cobrou elrei de Granada os castelos que elrei dom Pedro tomara quando foi em sua ajuda contra elrei Vermelho, e ainda mais alguns outros, e fez-se neste tempo muito dano na terra dos cristãos pela divisão destes reis.
Entretanto, tornou-se elrei dom Pedro a Sevilha, fazendo sempre abastecer a vila de Carmona, que é a seis léguas dessa cidade, receando-se que se havia de ver em algum grande perigo e cuidando de ter ali acorrimento (socorro).
21. COMO ELREI DOM HENRIQUE HOUVERA DE COBRAR TOLEDO, E COMO JUNTOU SUAS GENTES PARA PELEJAR COM ELREI DOM PEDRO.
Tornando a Toledo, que deixámos cercada, elrei dom Henrique fez de guisa que cobrou uma bastida que os da cidade tinham feita numa igreja que chamam São Servande, ao cimo da ponte (de Alcântara).
E alguns de dentro que amavam elrei dom Henrique tomaram um dia a torre dos abades, que é mui alta e mui forte, e começaram de chamar por elrei dom Henrique. Os do arraial puseram logo escadas à torre, e subiram acima bem quarenta homens e colocaram nela cinco bandeiras. Os da cidade, vendo aquilo, puseram fogo à torre por dentro na parte que era mais baixa, e os de cima, não o podendo sofrer, houveram todos de deixar a torre e desceram-se pelas escadas.
Alguns outros da cidade que quiseram por vezes dar entrada a elrei dom Henrique, tendo sido descobertos, foram mortos por isso. E havendo dez meses e meio que Toledo era cercada, afincando-a elrei por desvairadas guisas, era já o lugar mui minguado de gentes e mantimentos, de guisa que comiam cavalos e mulas e valia então a fanega do trigo mil e duzentos maravidis.
Elrei dom Pedro, que havia novas de quanto o lugar havia mister do seu acorro e de que não se podiam longamente ter por azo da fome que nele havia, mandou chamar todos os que a sua parte tinham e tratou com elrei de Granada que lhe desse ajuda dalgumas gentes. E antes que partisse de Sevilha levou os seus filhos, o tesouro e muitas armas e pôs tudo naquela vila de Carmona que abastecida tinha. Feito isto, deixou aí homens de que se fiava e partiu para Alcântara, onde recolheu todas as gentes pelas quais havia enviado, com a intenção de ir acorrer Toledo.
Elrei dom Henrique, sabendo disto parte, mandou a Córdova, a todos os seus, que se viessem para ele ali a Toledo, onde tinha o cerco, logo que soubessem que elrei dom Pedro partia de Sevilha, porquanto a sua vontade era de pelejar com ele. E eles vendo as suas cartas fizeram-no assim, e seriam por todos mil e quinhentos homens de armas, e quando elrei dom Pedro depois chegou a Alcócer, que é na comarca de Toledo, eram eles em Vila Real, a dezoito léguas dessa cidade.
Elrei dom Henrique, em tudo isto, não era certo se elrei dom Pedro vinha para lhe dar batalha ou descercar a cidade, e dado que a batalha estava em dúvida, houve acordo em deixar gentes sobre a cidade para que, não se fazendo, não perdesse o tempo e o trabalho que pusera em a ter cercada, pois receava-se que elrei dom Pedro fingisse que lhe queria dar batalha para, sendo ele levantado do arraial, açalmar (abastecer) a cidade de gentes e de armas e abundo de viandas (mantimentos em abundância), e por isso deixou no arraial seiscentos homens de armas, e peões e besteiros com eles.
E partindo de sobre Toledo foi-se para uma vila que chamam Orgaz, que são cinco léguas dessa cidade, e então chegaram a ele as gentes que dissemos que vinham de Córdova, e mais chegou ali monse Beltram de Claquim, que vinha de França, e com aqueles que vinham com ele e os outros estrangeiros que andavam com elrei seriam até seiscentas lanças.
Assim que se juntaram ali por todos, com estas e com outras gentes, até três mil lanças, e de outros – ginetes e homens de pé – não curou elrei de juntar salvo aqueles que cada um costumava de trazer consigo, e ali ordenou a sua batalha por esta guisa: a avanguarda deu a monse Beltram e aos outros cavaleiros que vieram de Córdova, e à outra gente toda mandou que fossem com ele noutra batalha, sem fazer mais alas nem mudar para outra ordenança.
E, partindo dali, soube como elrei dom Pedro passara pelo campo de Calatrava e era cerca dum castelo que chamam Montiel, da ordem de Santiago, e que estavam com ele dom Fernando de Castro e FernandAfonso de Zamora e os conselhos de Sevilha e doutros lugares, até três mil lanças, e dos mouros que elrei de Granada mandara em sua ajuda, mil e quinhentos a cavalo (ginetes).
22. COMO HOUVERAM BATALHA ELREI DOM HENRIQUE E ELREI DOM PEDRO E FOI VENCIDO ELREI DOM PEDRO.
Elrei dom Henrique houve por seu conselho de trigosamente (rapidamente) andar o seu caminho e de catar (buscar) maneira em como pelejasse com elrei dom Pedro, pois bem via que durando a guerra prolongadamente cobraria elrei dom Pedro muitas avantagens, e portanto andou quanto pôde para dar aguça (pressa) a pôr a batalha, de guisa que chegou cerca de Montiel, onde estava elrei dom Pedro, e alguns dos que iam com ele punham fogo aos matos para ver o caminho que a escuridão da noite lhes embargava.
Elrei dom Pedro não sabia novas delrei dom Henrique nem era certo se partira do arraial sobre Toledo, e tinha as suas companhas arramadas (dispersas) pelas aldeias a duas e três léguas do lugar de Montiel. Garcia Moram, alcaide do castelo, vendo tais fogos, disse a elrei como eles apareciam e que mandasse ver se eram dos seus inimigos. Elrei dom Pedro respondeu que pensava que era dom Gonçalo Mexia com os outros que partiram de Córdova e se iam juntar àqueles que estavam em Toledo, contudo, nesta dúvida, mandou elrei suas cartas a todos os seus que pousavam pelas aldeias derredor para que à alva da manhã fossem com ele no lugar de Montiel, onde estava.
Ao outro dia, grande manhã, chegou elrei dom Henrique com as suas gentes à vista do lugar de Montiel, que desde a meia-noite haviam andado, e alguns delrei dom Pedro, que ele enviara ao caminho de onde apareciam os fogos, tornaram-se à pressa, dizendo que elrei dom Henrique mais os das suas companhas vinham já todos muito perto dali.
Elrei dom Pedro, quando isto ouviu, armou-se, ele e os seus, e puseram-se em batalha cerca do lugar de Montiel, mas não eram ainda vindos todos os da sua parte que ele mandara chamar às aldeias.
Elrei dom Henrique, como chegou, endereçou com as suas gentes para a batalha, porém monse Beltram de Claquim e os mestres de Santiago e de Calatrava, com os outros que eram na avanguarda, quando se moveram para defrontar os delrei dom Pedro acharam um vale que não puderam passar, e elrei dom Henrique mais os que com ele iam, que era a segunda batalha, passaram por outra parte e endereçaram para os pendões delrei dom Pedro, e tanto que chegaram a eles foram logo desbaratados, que elrei dom Pedro e os seus não se tiveram por nenhum espaço e começaram de se ir.
Dos delrei dom Henrique, uns seguiam os mouros, matando neles, outros detiveram-se com os delrei dom Pedro, até que se acolheu ao castelo de Montiel e se encerrou nele, e dos seus uma parte acolheu-se lá dentro, alguns foram mortos e outros fugiram, contudo não morreu outrem de conta salvo um cavaleiro de Córdova que diziam João Ximenez.
E foi esta batalha à hora de prima, quarta-feira, aos catorze dias de Março da era de mil quatrocentos e sete anos (1369).
Martim Lopez de Córdova, que elrei dom Pedro fizera mestre de Calatrava, vinha nesse dia com gentes para ser com ele na batalha, mas alguns daqueles que iam fugindo deram-lhe novas em como era vencido, e então tornou-se para Carmona, onde estavam os filhos delrei dom Pedro – a saber, dom Diego, dom Sancho e outros que elrei dom Pedro houvera, depois da morte de dona Maria de Padilha, dalgumas outras mulheres –, e apoderou-se de todos os três alcáceres da vila, dos tesouros delrei e de quanto aí achou, e acolheram-se dentro do lugar, com ele, até oitocentos de cavalo e muitos besteiros e homens de pé, pois o lugar era abastecido de armas e viandas em grande abundança.
23. DAS RAZÕES QUE HOUVE MEM RODRIGUES DE SEAVRA COM MONSE BELTRAM DE CLAQUIM SOBRE O CERCO DELREI DOM PEDRO.
Desbaratada aquela batalha, e posto elrei dom Pedro no castelo de Montiel, fez logo elrei dom Henrique, a mui grande pressa, levantar uma parede de taipas e de pedra seca com que cercou o lugar derredor, de guisa que elrei não se fosse dali.
Com elrei dom Pedro estava no castelo um cavaleiro da Galiza que diziam Mem Rodriguez de Seavra, o qual fora preso na vila de Briviesca quando elrei dom Henrique entrara da outra feita no reino (em 1366), e tendo-o preso e rendido um cavaleiro que chamavam monse Beltram de la Sala, pagou por ele monse Beltram de Claquim cinco mil francos, porquanto lhe disse o dito Mem Rodriguez que era natural de terra de Trastâmara, a qual monse Beltram houvera então por condado, e por esta razão esteve aquele Mem Rodriguez com monse Beltram um tempo e só depois se foi para elrei dom Pedro.
E por este conhecimento que Mem Rodriguez havia com monse Beltram falou-lhe um dia desde o castelo, dizendo que, se a ele prouvesse, lhe queria falar em segredo.
Monse Beltram disse que lhe prazia e divisaram a hora para quando fosse a fala, e porque a guarda daquele lado era de monse Beltram, veio-lhe aí Mem Rodrigues falar de noite, e as suas razões foram estas: «Senhor monse Beltram, elrei dom Pedro, meu senhor, me mandou que falasse convosco, e vos envia dizer assim: que bem sabe que vós sois mui nobre cavaleiro e que sempre vos pagastes de fazer façanhas de bons feitos, e, porque vós vedes bem o estado em que ele é posto, que se vos prouver de o livrar daqui e pôr a salvo, sendo com ele e da sua parte, ele vos dará duzentas mil dobras castelhanas e mais seis vilas de juro e herdade, para vós e os vossos sucessores que depois de vós vierem – e peço-vos por mercê que o façais, que grande honra cobrareis em acorrer a um rei tal como este, quando todo o mundo souber que por vós cobrou a sua vida e reino.»
Monse Beltram respondeu a Mem Rodriguez, dizendo: «Amigo, vós sabeis bem que eu sou vassalo delrei de França, meu senhor, e natural da sua terra, e que sou aqui vindo por seu mandado a servir elrei dom Henrique porque elrei dom Pedro tem a parte dos ingleses, e fez aliança com eles especialmente contra aquele que eu tenho por senhor. Além disto, eu sirvo elrei dom Henrique e ando a suas gajas e soldo, e não me cumpre de fazer coisa que contra o seu serviço e honra seja, nem vós mo devíeis aconselhar, e rogo-vos, se algum bem ou cortesia em mim achastes, que mo não digais mais.»
«Senhor monse Beltram, disse Mem Rodriguez, eu entendo que vos digo coisa que, fazendo-a, não vos é nenhuma vergonha, e peço-vos, por mercê, que cuideis em tal, e havei sobre isto bom conselho.»
Monse Beltram, ouvidas estas razões, disse que se queria avisar sobre elas, para ver o que lhe cumpria de fazer em tal caso.
Tornou-se Mem Rodriguez com este recado a elrei, e alguns depois afirmavam que ele dissera isto por arte (dissimulação) a monse Beltram, sendo no fito delrei dom Pedro ser escarnecido, como depois foi, e que, embora ele fosse preso quando elrei dom Pedro foi morto, tudo fora arte do dito Mem Rodriguez, porquanto elrei dom Henrique depois lhe deu na Galiza dois lugares de juro e herdade. Outros dizem que isto não pareceu ser assim porque Mem Rodriguez era mui bom cavaleiro, e não é de crer que fizesse tal coisa contra o seu senhor, mormente que depois tomou a parte delrei dom Pedro e, perseverando em ela, acabou a sua vida.
24. COMO ELREI DOM PEDRO SAIU DE MONTIEL E COMO FOI MORTO E EM QUE LUGAR.
Monse Beltram ficou bem cuidoso com as razões que Mem Rodriguez lhe disse, e ao outro dia chamou os seus parentes e amigos que ali eram com ele, especialmente um seu primo que diziam monse Olivier de Mauny, e disse-lhes todas as razões que Mem Rodriguez lhe havia propostas, pedindo que lhe dessem conselho em como lhes parecia que devia fazer, porém que logo lhes notificava que ele não faria tal coisa, em nenhuma maneira do mundo, sendo elrei dom Pedro inimigo delrei de França, seu senhor, e ademais delrei dom Henrique, a cujas gajas e serviço ele andava, contudo que lhes perguntava, sobre esta razão que Mem Rodriguez lhe cometera, se a diria a elrei, ou se faria mais sobre isto, pois lhe cometia coisa que, fazendo-a, era em desserviço dos ditos senhores, e, para mais, era caso de traição.
Os cavaleiros parentes de monse Beltram e alguns outros com quem isto falou, ouvidas as razões que entre ele e Mem Rodriguez houvera, disseram que eles outorgavam em aquele mesmo conselho, que ele não fizesse coisa que contra o serviço delrei de França, seu senhor, fosse, nem igualmente delrei dom Henrique, a cujas gajas estava, ademais que sabia que elrei dom Pedro era bem inimigo dos ditos senhores, e mais lhe disseram que lhes parecia bem que o fizesse saber a elrei dom Henrique.
Monse Beltram, crendo-os no conselho, falou a elrei tudo o que lhe aviera com Mem Rodriguez de Seavra. Elrei dom Henrique agradeceu-lho muito e disse que, graças a Deus, melhor guisado (ensejo) tinha de lhe dar aquelas vilas e dobras que lhe prometia elrei dom Pedro, que não ele, e prometeu logo de lhas dar, rogando-lhe que dissesse a Mem Rodriguez que elrei dom Pedro viesse seguro à sua tenda e que o poria a salvo, e, quando aí fosse, que lho fizesse saber.
Monse Beltram duvidou de fazer isto, no entanto, por afincamento de alguns parentes seus demoveu-se a fazê-lo – mas não acharam, porém, os que esta razão ouviram salvo que fora mui mal feito, porque dizem alguns que, quando monse Beltram tornou a resposta a Mem Rodriguez, passaram mui grandes juramentos entre eles em como poria elrei dom Pedro a salvo, de guisa que elrei se teve por seguro dele. Nem é de cuidar que elrei dom Pedro doutra guisa saísse do castelo e se pusesse em seu poder, mas pelo grande afincamento em que se via, por se partirem dele alguns dos seus, que se vinham para elrei dom Henrique, e depois pela água, que não tinham senão muito pouca, e com o esforço das juras que lhe haviam feitas, houve-se de aventurar uma noite, havendo já nove dias que jazia no castelo.
E vestiu então umas solhas e cavalgou em cima dum cavalo ginete, e, junto com ele, dom Fernando de Castro, Diego Gonçalvez, filho do finado mestre de Alcântara, e Mem Rodriguez e outros, e veio-se para a pousada de monse Beltram, e descavalgou do cavalo e disse-lhe: «Cavalgai, pois tempo é que nos vamos.»
E nenhum respondeu a isto, porque haviam feito já saber a elrei dom Henrique que ele estava com monse Beltram.
Quando tal viu, elrei dom Pedro pôs dúvida em sua estada e não houve isto por bom sinal, e quisera cavalgar no seu cavalo, mas um dos que estavam com monse Beltram travou dele (agarrou-o) e disse – Esperai um pouco, senhor – e deteve-o para que não partisse.
Nisto chegou elrei dom Henrique, armado de todas as armas, com o bacinete posto na cabeça, como estava prestes para este feito, e quando entrou na tenda de monse Beltram travou delrei dom Pedro, contudo não o conhecia (reconhecia) bem por haver grão tempo que o não via.
Mas aqui são desvairadas as opiniões, posto que ao fim toda seja uma, porque uns dizem que, travando elrei dom Henrique dele, ainda duvidava se era elrei, e que um cavaleiro de monse Beltram lhe disse – Vede que esse é o vosso inimigo – ao que logo respondeu elrei dom Pedro duas vezes, dizendo – Eu sou, eu sou – e que então o conheceu melhor elrei dom Henrique e lhe deu com uma adaga pelo rosto e o derribou em terra, ferindo-o doutras feridas, e que foi morto àquela hora. Outros afirmam, escrevendo em seus livros, que elrei dom Pedro, quando se viu em poder do seu irmão, e como era traído daquela guisa, se lançou rijamente a ele, dizendo – Oh traidor, aqui estás tu – e, como homem de grande coração, quisera-lhe dar com uma adaga que já lhe tinham tomada, e quando a não achou que se atirou a ele a braços e deu com ele em terra, e que então Fernam Sanchez de Tovar, que era um dos cavaleiros que elrei dom Henrique consigo levava, tirou elrei dom Pedro de cima e voltou elrei dom Henrique sobre ele, e que desta guisa foi morto, que doutra maneira, se os deixassem a ambos, crê-se sempre que elrei dom Pedro teria matado o seu irmão.
Ora nós, concordando o desvairado razoar destes e doutros autores, dizemos por esta maneira: que a queda seja de ambos, e elrei dom Pedro havido por bom e ardido cavaleiro, que em tal tempo (ocasião) não perdeu coração e esforço, mas, estando ele sem nenhuma ajuda e elrei dom Henrique com muitos, matou-o este por sua mão e assim acabou sua trabalhosa vida.
25. COMO FOI SABIDO PELO REINO QUE ELREI DOM PEDRO ERA MORTO, E DA MANEIRA QUE ELREI DOM HENRIQUE TEVE EM ALGUNS LUGARES.
Grande arruído foi no arraial quando souberam que elrei era morto, e foram presos nessa hora dom Fernando de Castro, Mem Rodriguez de Seavra, Gonçalo Gonçalvez dÁvila e outros que com elrei saíram do castelo.
E foi a sua morte a vinte e três de Março de mil e quatrocentos e sete (1369), havendo então de sua idade trinta e cinco anos e sete meses. E era homem de bom corpo, branco e ruivo (o cabelo), e ceceava um pouco na fala. E viveu no seu reino, até que dom Henrique se chamou rei em Calahorra, dezasseis anos cumpridos, e reinou três anos em contenda com ele. E, sendo morto assim segundo ouvistes, mais tarde foi levado a Toledo e sepultado com os outros reis.
Os que estavam no castelo de Montiel deram-se todos a elrei dom Henrique e entregaram-lhe todas as coisas que delrei dom Pedro foram, e igualmente se lhe deu Toledo, aquela cidade que tinha cercada.
De Montiel partiu elrei dom Henrique e encaminhou para Sevilha, que já tinha voz tomada por ele, e dali mandou todas as gentes para as suas terras. Outrossim foi certo que Cidade Rodrigo, Zamora e Carmona, que dantes estavam por elrei dom Pedro, não queriam tomar a sua voz, tal como alguns outros lugares. E elrei fez então cometer a Martim Lopez de Córdova, mestre que se chamava de Calatrava, e aos outros que estavam em Carmona com os filhos delrei dom Pedro, que ele os poria, aos moços e a eles todos, com os tesouros e jóias que delrei dom Pedro ficaram, e com todo o seu, dentro de Portugal, ou em Granada ou em Inglaterra, como antes quisessem, e que deixassem o lugar sem mais contenda, mas eles não quiseram fazer nenhuma preitesia. Além disto, fez cometer a elrei de Granada tréguas por algum tempo, mas o rei mouro não se outorgou em tal, e elrei, vendo isto, deixou naquela comarca os seus fronteiros e encaminhou para Toledo, que já tinha a sua voz.
E ali houve conselho de que, ainda que lançasse grande peita sobre o reino, não havia de poder chegar a cumprimento da paga dos soldos que devia, e, para não anojar e agravar os povos, mudou então a moeda em mais baixa lei, e esta mudança logo de presente lhe serviu para a paga dos estrangeiros, mas danou muito a terra, subindo as coisas a tão grandes preços, pela moeda que era febre, que uma dobra valia trezentos maravedis e um cavalo sessenta mil.