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Capítulo I - O Início do Reinado

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida por «O Espaço da História».

 1. PRÓLOGO.

Reinou o infante dom Fernando, filho primogénito delrei dom Pedro, depois da morte deste, havendo então de sua idade vinte e dois anos e sete meses e dezoito dias, e era mancebo valente, ledo e namorado, amador de mulheres e achegador a elas. Havia bem composto corpo e de razoada altura, formoso no parecer e muito vistoso, tanto que estando cerca de muitos homens, ainda que conhecido não fosse, logo o julgariam por rei dos outros.

Foi grande criador de fidalgos e muito companheiro com eles. E era tão amavioso de todos os que com ele viviam que não chorava menos por um seu escudeiro, quando morria, do que se ele fosse seu filho. De nenhum a quem bem quisesse podia crer mal que dele lhe fosse dito, mas amava-o e a todas as suas coisas muito de vontade.

Era cavalgante e torneador, grande justador e lançador ao tavolado. Era muito braceiro, tanto que não achava homem que mais o fosse, cortava muito com uma espada e arremessava bem a cavalo.

Amava a justiça e era prestador e grado, muito liberal para todos e grande agasalhador dos estrangeiros. Fez muitas doações de terras aos fidalgos do seu reino, tantas e muitas mais que algum rei que antes dele fosse.

Amou muito o seu povo e trabalhava de o bem reger, e todas as coisas que para seu serviço e defensão do reino mandava fazer, todas eram fundadas em boa razão e muito justamente ordenadas. Porém desfaleceu isto quando começou a guerra e nasceu outro mundo novo, muito contrário ao primeiro, passados os folgados anos do tempo em que reinou seu pai, e vieram depois dobradas tristezas com que muitos choraram suas desaventuradas mesquindades (do árabe miskinu = desgraçado, infeliz). Se ele se contentara de viver em paz, abastado das suas rendas, com os grandes e largos tesouros que de seus avós lhe ficaram, nenhum no mundo houvera vivido mais ledo nem gastara os seus dias em tanto prazer, mas porventura tal não era ordenado de cima.

Era ainda elrei dom Fernando muito caçador e monteiro, de guisa que tempo algum azado para isso deixava que o não usasse. A ordenança de como ele partia (repartia) o ano em tais desenfadamentos, contado tudo pelo miúdo, seria longa de ouvir, pois ele mandava chamar todos os seus monteiros, no tempo para isto pertencente, e não se partiam eles de sua casa até que os falcões saíam da muda, e então, desembargados, iam-se para onde viviam e vinham os falcoeiros e outros que de fazer aves tinham cuidado.

Ele trazia quarenta e cinco falcoeiros de besta (montados), afora outros de pé e moços de caça, e dizia que não havia de folgar até que povoasse em Santarém uma rua na qual houvesse cem falcoeiros. Quando mandava fora da terra por aves, não lhe traziam menos de cinquenta entre açores e falcões nevris e girofalcos, todos primas (fêmeas). Com ele andavam mouros que aprazavam garças e outras aves, e estes nadavam os pegos e pauis se os falcões caíam neles.

Quando elrei ia à caça, todas as maneiras de aves e cães que se cuidar podem para tal desenfadamento, todas iam em sua companha, de guisa que nenhuma ave grande nem pequena se podia levantar, posto que fosse o grou e a abetarda ou até o pardal e a pequena folosa, que antes que as suas ligeiras penas a pudessem pôr a salvo primeiro não fosse presa do seu contrário, e mesmo as singelas pombas, que a ninguém fazem empecimento, em semelhante caso não estavam isentas dos seus inimigos. Para coelhos, raposas e lebres, e outras semelhantes bestas selvagens monteses, levava elrei tantos cães a seguir as suas pegadas e cheiro que nenhuma arte nem multidão de covas lhes prestar podiam que logo não fossem tomadas. E por isso nunca elrei ia alguma vez à caça que sempre nela não houvesse grande sabor (prazer) e desenfadamento.

Este elrei dom Fernando começou a reinar como o mais rico rei que em Portugal houve até ao seu tempo, pois ele achou grandes tesouros que seu pai e avós guardaram, em guisa que somente na torre do haver do castelo de Lisboa foram achadas oitocentas mil peças de ouro e quatrocentos mil marcos de prata, afora moedas e outras coisas de grande valor que aí estavam, e mais todo o outro haver em grande quantidade que era posto em certos lugares pelo reino.

Além disto havia elrei em cada ano, de seus direitos reais, oitocentas mil libras, que eram duzentas mil dobras, afora as rendas da alfândega de Lisboa e do Porto, das quais elrei havia tanto que mal é agora de crer, pois antes que elrei reinasse foi achado que uns anos por outros a alfândega de Lisboa rendia de trinta e cinco mil até quarenta mil dobras, afora algumas outras coisas que à sua dízima pertencem.

E não vos maravilheis disto e de ser muito mais, que os reis antes dele tinham tal jeito com o povo, sentindo-o para seu serviço e proveito, que era por força de serem todos ricos e os reis haverem grandes e grossas rendas, pois eles emprestavam sobre fiança dinheiros aos que queriam carregar, e haviam dízima duas vezes no ano, com o retorno que lhes vinha. E visto o que cada um ganhava, do ganho deixava logo a dízima em começo de pago, e assim, não sentindo, pagavam a pouco e pouco, e eles ficavam ricos e elrei havia todo o seu.

Havia outrossim mais em Lisboa estantes (residentes) de muitas terras, não numa só casa mas em muitas casas de uma nação, assim como genoveses e prazentins e lombardos, e os de Milão, que chamavam milaneses, e corcins, e biscainhos, e catalães de Aragão e de Maiorca, e assim doutras nações a que os reis davam privilégios e liberdades, sentindo-o para seu serviço e proveito. E estes faziam vir ao reino e enviavam daqui grandes e grossas mercadorias, em guisa que, afora das outras coisas que nessa cidade podiam abastadamente carregar, somente em vinhos foi um ano achado que se carregaram doze mil tonéis, além dos que levaram depois os navios na segunda carregação de Março.

E por tanto vinham de desvairadas (diferentes) partes muitos navios a ela, em guisa que, com aqueles que vinham de fora e com os que no reino havia, jaziam muitas vezes ante a cidade quatrocentos e quinhentos navios de carregação, e estavam à carrega no rio de Sacavém, e à ponta do Montijo, da parte de Ribatejo, sessenta e setenta navios em cada lugar, carregando de sal e de vinhos. E pela grande espessura de muitos navios que assim jaziam defronte a Lisboa, como dizemos, iam antes as barcas de Almada aportar a Santos, que é a um grande espaço da cidade, não podendo marear por entre eles.

E receando os vizinhos de Lisboa, que ainda então não era cercada, que gentes de desvairadas misturas, e tantas, podiam fazer alguns danos e roubos na cidade, ordenaram que a cada noite certos homens de pé e a cavalo guardassem as ruas quando tais navios jaziam ante ela.

Elrei dom Fernando não comprava para carregar nenhuma daquelas coisas que os mercadores compram e por as quais têm o seu costume de viver, não carregando salvo aquelas que havia dos seus direitos reais; e se alguns mercadores queriam tomar carrego de lhe trazer de fora dos seus reinos as coisas que havia mister para as suas taracenas, não carregava nenhuma coisa delas, dizendo que era de seu talante que os mercadores da sua terra fossem ricos e abastados, e não lhes fazer coisa que fosse em seu prejuízo e descimento da sua honra. E por tanto mandava que não comprassem nenhuns estantes estrangeiros, nem por si nem por outrem, qualquer haver de peso ou comezinho fora da cidade de Lisboa, salvo para seu mantimento, e afora vinhos, fruta e sal, mas já nos portos da cidade podiam comprar soltamente, para carregar, quaisquer mercadorias.

A nenhuns senhores nem fidalgos, nem clérigos nem outras pessoas poderosas consentia que comprassem mercadorias algumas para revender, porquanto tiravam a vivenda aos mercadores da sua terra, dizendo que contra a razão parecia que tais pessoas usassem de actos a elas pouco pertencentes, mormente que por direito lhes era defeso, salvo quando comprassem aquilo que lhes cumprisse para seu mantimento e guarnimento de suas casas.

E porque Lisboa é grande cidade de muitas e desvairadas gentes, e para ser purgada de furtos e roubos e doutros malefícios que nela se faziam, os quais presumiam que eram feitos pelos homens que não viviam com senhores, nem têm bens nem rendas nem outros mesteres, mas jogam e gastam em grande abundança, por isso mandava ele que em cada uma das freguesias houvesse dois homens bons que a cada mês inquirissem e soubessem que vivenda faziam os que nela moravam, e de que fama eram os que com eles se acolhiam, e se achavam alguns que não usavam como deviam faziam-no saber em segredo a Estêvão Vasques e a Afonso Furtado, seus escudeiros, a que disto tinha dado carrego, e eles os mandavam prender pelos seus homens e os entregavam à justiça para se fazer neles cumprimento do direito, dizendo elrei que sua vontade era que tais como estes, pessoas que mester não houvessem nem vivessem com senhores continuadamente, não morassem nas vilas e lugares do seu senhorio, e que, recebendo os seus povos dano e sem razão, caso ele aí não tornasse (actuasse, agisse), daria a Deus disso grave conta, pois era teúdo de os manter em direito e justiça.

Não consentia que nenhum senhor ou fidalgo ou outra pessoa coutasse em bairro no qual pousasse algum malfeitor, mas mandava que os prendessem dentro dos bairros onde se coutavam, pondo grandes penas àqueles que os defender quisessem.

Mandava que não pousasse em Lisboa qualquer fidalgo ou outra pessoa quando ele aí não estivesse, salvo se fosse com aqueles que quisessem ter casas e estalagens para pousadias, aos quais mandava que pagassem pelas pousadas razoados preços, e mandava às justiças que lhos fizessem pagar, porque sua vontade era que não pousassem nenhumas pessoas por outra guisa, ainda que bairros ali tivessem.

E para isto se fazer melhor, mandou que todos os bispos e mestres e comendadores, e quaisquer outras pessoas às quais se houvesse de dar pousadas de aposentadoria, quando tivessem casas nas vilas e lugares do seu senhorio, as corrigissem todas até certo tempo de guisa a que pudessem nelas pousar, e que fossem logo requeridos os donos delas e seus procuradores para que as corrigissem. E se os senhores delas ou os seus procuradores fossem a isto negligentes, mandava aos juízes que dos bens deles dessem mantimento a gentes tais que as fizessem corrigir. E se os juízes punham nisto tardança, mandava ao corregedor da comarca que pelos bens dos juízes as fizesse corrigir. E se o corregedor era negligente, mandava elrei que se corrigissem pelos bens do corregedor. E desta guisa eram todos aguçosos a pôr em obra o que elrei mandava, e os poderosos tinham casas em que pousassem, relevando o povo da muita sem razão que antes disto padecia.

Muitas outras ordenações fez e mandou cumprir para bom regimento e prol do seu povo este nobre rei dom Fernando, as quais, razoadas todas por miúdo, fariam tão grande tratado como aqui não cumpre de ser escrito.

 

2. COMO ELREI DE ARAGÃO E ELREI DOM HENRIQUE TRATARAM SUAS AVENÇAS COM ELREI DOM FERNANDO.

Deixando estas coisas que dissemos, que em outro lugar também se dizer não podem, e tornando ao começo do reinado deste rei dom Fernando, deveis de saber que, partindo ele daquele mosteiro onde fora trazido seu pai, e ele levantado por rei, veio-se a um castelo que chamam Porto de Mós, onde esteve alguns dias. E, assim como se ele esperasse uma nova e grande guerra com algum rei seu vizinho, mandou logo por todo o seu reino que soubessem parte (inquirissem) quais poderiam ter cavalos e armas e ser besteiros e homens de pé. E igualmente fez ver os castelos de que guisa estavam, e mandou-os reparar nos muros e torres e cavas ao redor e poços e cisternas, onde cumpriam, e às portas, paredes travessas e pontes levadiças e cadafalsos, e fornecê-los de armas e cubas e doutras vasilhas, segundo os lugares onde cada uns eram. E deu disto carrego aos corregedores das comarcas, e aos seus almoxarifes mandou fazer toda a despesa.

Dali partiu elrei e veio-se a Santarém, e estando ele no mês de Março em Alcanhães, no termo daquele lugar, chegaram mensageiros delrei dAragão, a saber, monse Alfonso de Castel Novo e frei Guilhem, mestre em teologia, da ordem dos pregadores, os quais vinham para tratar paz e amizade entre elrei dAragão, seu senhor, e o dito rei dom Fernando.

E foi assim que, falando monse Alfonso sobre isto a elrei, propôs perante ele os grandes e assinalados divedos (laços) que entre os reis dAragão e de Portugal de longos tempos houvera, razão pela qual, com muitas outras boas que a seu propósito trouxe, veio a concluir que vontade era delrei, seu senhor, ter com ele boa e firme paz para sempre e ser seu verdadeiro amigo e de seus filhos, e dos reinos e gentes a ele sujeitos.

A elrei prouve (agradou) a sua embaixada e deu-lhe boa e graciosa resposta, e firmaram suas avenças o mais firme que se fazer pode para que fossem ambos fielmente amigos, mas sem outra ajuda nem prestança que se prometessem fazer contra algum outro reino ou senhorio, mesmo que guerra acontecesse de haver com ele.

Semelhavelmente, nesta sazão, ordenou elrei de Castela de lhe enviar seu certo recado para haver com ele paz e amizade, e, estando em Burgos, fez seu procurador Diogo Lopes Pacheco, que na sua mercê então vivia, para vir tratar desta avença.

E, não sendo ainda os embaixadores delrei dAragão partidos daquele lugar de Alcanhães, chegou Diogo Lopes Pacheco e, divisado o dia para falar com elrei sobre aquilo a que vinha, propôs ante ele dizendo assim: «Senhor, elrei dom Henrique de Castela, meu senhor, me envia a vós com sua mensagem como aquele que deseja de haver paz e amorio convosco e ser vosso verdadeiro amigo sem nenhum engano, e por isso, antes que eu diga alguma das coisas por que a vós sou enviado, vos peço, por mercê, que praza a vossa grande alteza de me dizerdes declaradamente que tendes vontade em haver paz e amorio com ele, para eu dizer, com a mercê de Deus e a vossa, então aquilo que me é mandado e tornar a ele com tal resposta qual cumpre de se dar entre reis tão nobres, como vós sois, e que hão entre si tão grandes e assinalados divedos.»

A estas razões respondeu elrei, dizendo: «Que ele bem sabia e era certo dos grandes e estremados divedos, assim de linhagem como de bons e compridos merecimentos, que entre eles sempre houvera como irmãos e amigos, os quais laços, prazendo a Deus, ele tinha em vontade de levar adiante com boa e aguisada razão, e pois que Deus encomendara paz e amor entre os homens e estremadamente entre os reis, mais que a nenhuns outros, para os seus reinos serem guardados de perigos, que a ele, por isto e pelo lugar que tinha de Deus sobre a terra, qual sua mercê fora de lho dar, e também para que os grandes divedos que sempre houvera entre os reis de Portugal e Castela fossem acrescentados cada vez mais, lhe prazia de ser seu verdadeiro amigo e haver com ele paz e bom amorio, e que por isso Diogo Lopes falasse sobre tudo o que lhe era mandado e razoado lhe parecesse de dizer.»

Então firmaram as suas amizades e posturas, quais entre elrei dom Pedro, seu pai, e elrei dom Henrique de Castela antes disto foram firmadas, e feitas escrituras sobre tal, quejandas viram que cumpria, partiu-se Diogo Lopes e foi-se ao seu caminho. E dizem também que nesta ocasião falou Diogo Lopes a elrei em como se queria vir para a sua mercê.