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Capítulo I - A MERCADORIA

O CAPITAL

LIVRO PRIMEIRO

O DESENVOLVIMENTO DA PRODUÇÃO CAPITALISTA

PRIMEIRA SECÇÃO

A MERCADORIA E O DINHEIRO

Sobre as notas:

As notas numeradas a azul, como (1), são notas do próprio Marx.

As notas a verde, como (I), são notas da responsabilidade do tradutor.

As palavras a vermelho não correspondem a uma tradução literal e, portanto, não pertencem ao próprio texto, tendo sido introduzidas no propósito de lhe facilitar a leitura.

Os comentários a vermelho, entre parênteses ou não, também estão “a mais”, e visam, igualmente, facilitar a leitura.

Aparecem ainda a vermelho, assinaladas com (I), as notas introduzidas por Engels.

Esta solução “das cores” foi a que conseguimos encontrar para, por um lado, respeitar o texto de Marx e, por outro, o podermos “glosar” consoante nos for possível.

 


CAPÍTULO PRIMEIRO

A MERCADORIA

 

I. – OS DOIS FACTORES DA MERCADORIA: VALOR DE USO E VALOR DE TROCA OU VALOR PROPRIAMENTE DITO (SUBSTÂNCIA DO VALOR. GRANDEZA DO VALOR).

 

A riqueza das sociedades onde predomina o modo de produção capitalista revela-se como uma «imensa acumulação de mercadorias» (1). A análise da mercadoria, forma elementar desta riqueza, será por consequência o ponto de partida das nossas investigações.

 

(1) Karl Marx, Zur Kritik der politischen OEkonomie, Berlim, 1859, pág. 3.

 

A mercadoria é antes de mais um objecto exterior, uma coisa que pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de não importa que espécie. Quer essas necessidades tenham por origem o estômago ou a fantasia, a natureza delas em nada muda a questão (2). Também não se trata aqui de saber como essas necessidades são satisfeitas, seja imediatamente, se o objecto é um meio de subsistência, seja por uma via indirecta, se é um meio de produção.

 

(2) «O desejo supõe a necessidade; é o apetite do espírito, e é-lhe tão natural quanto a fome o é para o corpo. É daí que a maior parte das coisas tiram o seu valor» (Nicholas Barbon: A Discourse concerning Coining the New Money Lighter. In Answer to mr. Locke’s Considerations, etc., Londres, 1696, págs. 2 e 3). Uma nota de esclarecimento, Barbon, sendo um utilitarista, não está a falar do valor de uso, mas do valor de troca; e era mesmo assim que ele explicava, erradamente, este valor: quer pelas necessidades físicas humanas, quer pelas espirituais. Mas Marx, que está a falar do valor de uso, aqui tão-só o cita para referir esta sua ideia de que as necessidades humanas tanto têm por origem o «estômago» como a «fantasia» ou o «desejo».

 

Cada coisa útil, como o ferro, o papel, etc., pode ser considerada sob um duplo ponto de vista, o da qualidade e o da quantidade. Cada uma dessas coisas é um conjunto de propriedades diversas e pode, por isso, ser útil em diferentes aspectos. Descobrir estes aspectos diversos e, ao mesmo tempo, os diversos usos das coisas é uma obra da história (3). Tal como o é a descoberta de medidas sociais para a quantidade das coisas úteis. A diversidade destas medidas das mercadorias tem por origem em parte a natureza variada dos objectos a medir, em parte a convenção.

 

(3) «As coisas têm uma virtude intrínseca» (virtue (vertue), tal é em Barbon a designação específica para valor de uso) «as coisas que em todo o lado têm a mesma qualidade, como o imã, por exemplo, em todo o lado atrai o ferro» (livro citado: pág. 6). A propriedade que o imã tem de atrair o ferro só se tornou útil quando, por seu intermédio, se descobriu a polaridade magnética.

Uma coisa são as propriedades objectivas dos materiais que já se conhece, e outra coisa é descobrir-lhes os possíveis usos para a sociedade, os seus valores de uso: saber que o imã atrai o ferro não é o mesmo que saber que existe a polaridade magnética.

 

A utilidade duma coisa faz dela um valor de uso (4). Mas essa utilidade nada tem de vago e etéreo. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela de modo algum existe sem ele. Esse próprio corpo, como ferro, trigo, diamante, etc., é consequentemente um valor de uso e não é o mais ou o menos de trabalho que é preciso ao homem para se apropriar das suas qualidades úteis que lhe confere esse carácter. Quando estão em questão valores de uso, subentendemos sempre uma quantidade determinada, como uma dúzia de relógios, um metro de tecido, uma tonelada de ferro, etc. Os valores de uso das mercadorias fornecem o fundo a um saber particular, o da ciência e rotina comerciais (5). Os valores de uso não se realizam senão no uso ou no consumo. Eles formam a matéria da riqueza, qualquer que seja a forma social dessa riqueza. Na sociedade que vamos examinar, eles são ao mesmo tempo os suportes materiais do valor de troca.

 

(4) «O que constitui o valor (worth) natural de qualquer coisa é a propriedade que ela tem de satisfazer as necessidades ou as conveniências da vida humana» (John Locke: Some Considerations on the Consequences of the Lowering of Interests, 1691). No século XVII ainda encontramos com frequência nos escritores ingleses a palavra Worth para valor de uso e a palavra Value para valor de troca, em consonância com o espírito duma língua que gosta de exprimir a coisa imediata em termos germânicos e a coisa reflectida em termos romanos.

 

(5) Na sociedade burguesa «a ninguém aproveita o desconhecimento da lei». – Em virtude duma fictio juris (ficção jurídica) económica, todo o comprador é suposto possuir um conhecimento enciclopédico das mercadorias. Ou seja, ser um especialista em merceologia.

 

O valor de troca aparece antes de mais como a relação quantitativa, como a proporção na qual valores de uso de espécie diferente se trocam um contra o outro (6), relação que muda constantemente com o tempo e o lugar. O valor de troca parece, pois, ser qualquer coisa de arbitrário e de puramente relativo; um valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria, que se afigura, como diz a escola, uma contradictio in adjecto (7). Consideremos a coisa mais de perto.

 

(6) «O valor consiste na relação de troca que se verifica entre uma dada coisa e uma dada outra, entre dada medida duma produção e dada medida das outras.» (Le Trosne: Do interesse social...Fisiocratas, edição de Daire, tomo XII, Paris, 1846, pág. 889.)

 

(7) «Nada pode ter um valor intrínseco.» (N. Barbon: livro citado, pág. 6); ou, como diz Butler: The value of a thing / Is just as much as it will bring (o valor duma coisa é exactamente tanto quanto o que ela vier a render).

 

Uma mercadoria particular, um quarter (corresponde a 290,79 litros) de trigo, por exemplo, troca-se por outros artigos nas mais diversas proporções. No entanto o seu (I) valor de troca permanece inalterado (290,79 litros), de qualquer maneira que o exprimamos, em x de graxa, y de seda, z de ouro, e assim por diante (290,79 litros de trigo = x de graxa, ou = y de seda, ou = z de ouro, ou etc.). Ele deve ter, portanto, um conteúdo distinto dessas expressões diversas.

 

(I) Advertência: esta equação pertence já à forma valor total ou desdobrada, que é analisada no item III-B. Não deve por isso ser tomada em consideração, de modo algum, na análise da forma valor simples ou acidental, que é feita no item III-A.

 

Tomemos de novo duas mercadorias, sejam elas o trigo e o ferro. Qualquer que seja a sua relação de troca, ela pode sempre ser representada por uma equação na qual uma quantidade dada de trigo é reputada igual a uma quantidade qualquer de ferro, por exemplo: 1 quarter de trigo = a quilogramas de ferro. Que significa esta equação? Que em dois objectos diferentes, em 1 quarter de trigo e em a quilogramas de ferro, existe alguma coisa de comum. Os dois objectos são, portanto, iguais a um terceiro que, em si mesmo, não é nem um nem outro. Cada um dos dois, enquanto que valor de troca, há-de ser redutível a esse terceiro, independentemente do outro.

Um exemplo tomado à geografia elementar vai tornar-nos isto mais claro. Para medir e comparar as superfícies de todas as figuras rectilíneas decompomo-las em triângulos. Reduzimos o próprio triângulo a uma expressão completamente diferente do seu aspecto visível: ao semiproduto da sua base pela sua altura. Do mesmo modo, os valores de troca das mercadorias devem ser reduzidos a alguma coisa que lhes é comum e da qual eles representam um mais ou um menos.

Esta alguma coisa de comum não pode ser qualquer propriedade natural, geométrica, física, química, etc., das mercadorias. As suas qualidades naturais não são tomadas em consideração a não ser na medida em que lhes dão uma utilidade que faz delas valores de uso. Mas, por outro lado, é evidente que se faz abstracção do valor de uso das mercadorias quando as trocamos, e que toda a relação de troca é mesmo caracterizada por essa abstracção. Na troca, um valor útil vale precisamente tanto quanto qualquer outro desde que se encontre na proporção apropriada. Ou então, como dizia o velho Barbon:

«Uma espécie de mercadoria é tão boa como outra quando o seu valor de troca é igual; não há nenhuma diferença, nenhuma distinção nas coisas em que esse valor é o mesmo (8)

 

(8) «One sort of wares are as good as another, if the value be equal...There is no difference or distinction in things of equal value.» Barbon acrescenta: «Cem libras esterlinas em chumbo ou ferro têm tanto valor como cem libras esterlinas em prata ou ouro». (N. Barbon: livro citado, págs. 53 e 7.)

 

Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de qualidade diferente; como valores de troca, elas não podem ser senão de diferente quantidade.

Uma vez posto de lado o valor de uso das mercadorias não lhes resta senão uma qualidade, a de serem produtos do trabalho (I). Mas já o próprio produto do trabalho se metamorfoseou sem que déssemos por isso. Se abstraímos do seu valor de uso, todos os elementos materiais e de forma que lhe dão esse valor desaparecem no mesmo momento. Não é mais, por exemplo, uma mesa, ou uma casa, ou fio, ou qualquer objecto útil; também já não é mais o trabalho do marceneiro, do pedreiro, de não importa que trabalho produtivo dado. Com os caracteres úteis particulares dos produtos de trabalho desaparecem, ao mesmo tempo, o carácter útil dos trabalhos produtivos que ali estão contidos e as diversas formas concretas que distinguem uma espécie de trabalho da outra. Nada mais resta, portanto, que o carácter comum desses trabalhos; eles são todos reduzidos ao mesmo trabalho humano, a um dispêndio de força humana de trabalho sem atender à forma particular sob a qual esta força foi despendida.

 

(I) Marx, até aqui, “para nos simplificar a vida”, isto é, a compreensão, tinha quase só encarado a utilidade das mercadorias pelo lado das suas propriedades naturais. A partir daqui começa também a referir um outro aspecto formador da utilidade do objecto: o trabalho útil. Todavia os parágrafos que se seguem quase até ao fim deste item I dizem respeito ao trabalho em abstracto, trabalho social comum, trabalho formador do valor de troca das mercadorias, e não ao trabalho útil concreto, formador ou, se quisermos dizer assim, “conformatador” da utilidade do objecto.

 

Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Cada um deles assemelha-se completamente ao outro. Eles têm todos uma mesma realidade espectral. Metamorfoseados em sublimados idênticos, amostras do mesmo trabalho indistinto, todos esses objectos não manifestam senão uma coisa, que na sua produção uma força de trabalho humana foi despendida, que trabalho humano ali está acumulado. Enquanto que cristais dessa substância social comum, eles são considerados valores.

Esta alguma coisa de comum que se mostra na relação de troca ou no valor de troca das mercadorias é, portanto, o seu valor. E um valor de uso, ou um qualquer artigo, só tem um valor na medida em que nele está materializado trabalho humano.

Como devemos medir, agora, a grandeza do seu valor? Pelo quantum da substância «criadora de valor» nele contida, o trabalho. A quantidade de trabalho mede-se pela própria duração deste no tempo, e o tempo de trabalho possui de novo a sua medida em partes de tempo como a hora, o dia, etc.

Poderíamos imaginar que, se o valor duma mercadoria é determinado pelo quantum de trabalho despendido na sua produção, quanto mais um homem for preguiçoso ou inábil tanto mais valor terá a sua mercadoria, porque ele emprega mais tempo para o seu fabrico. Mas o trabalho que forma a substância do valor das mercadorias é trabalho igual e indistinto, um dispêndio da mesma força. A força de trabalho da sociedade inteira, força essa que se manifesta no conjunto dos valores, não conta, portanto, senão como uma força única, se bem que ela se componha de inúmeras forças individuais. Cada força de trabalho individual é qualitativamente igual a toda outra na medida em que ela possui o carácter duma força social média e actua como tal, ou seja, não emprega na produção duma mercadoria senão o tempo de trabalho necessário em média ou o tempo de trabalho necessário socialmente.

O tempo de trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias é aquele tempo que todo o trabalho exige quando é executado com o grau médio de habilidade e intensidade e nas condições que, em relação ao meio social dado, são normais. Após a introdução em Inglaterra da tecelagem a vapor, passou a bastar talvez metade do tempo de antes para transformar em tecido uma certa quantidade de fio. O tecelão inglês, quanto a ele, não trabalhando com um tear a vapor, continuava a precisar do mesmo tempo que antes para operar essa transformação, mas, a partir de então, o produto da sua hora de trabalho individual não representava mais do que a metade de uma hora de trabalho social e rendia apenas metade do valor anterior.

É, pois, tão-só o quantum de trabalho ou o tempo de trabalho necessário, numa sociedade dada, à produção dum artigo que lhe determina a quantidade de valor (9). Cada mercadoria particular conta, em geral, como um exemplar médio da sua espécie (10). As mercadorias nas quais estão contidas iguais quantidades de trabalho têm, por consequência, um valor igual. O valor duma mercadoria está para o valor de qualquer outra mercadoria na mesma relação em que o tempo de trabalho necessário à produção duma está para o tempo de trabalho necessário à produção da outra.

 

(9) «Nas trocas, o valor das coisas úteis é regulado pela quantidade de trabalho necessariamente requerido e ordinariamente empregue para as produzir.» (Some Thoughts on the Interest of Money in general, and particularly in the Public Funds, etc., Londres, pág. 36.) Este notável escrito anónimo do século passado não traz nenhuma data. Pelo seu conteúdo, torna-se no entanto evidente que ele apareceu no reinado de George II, por volta de 1739 ou 1740.

 

(10) «Todas as produções dum mesmo género não formam propriamente senão uma massa cujo preço se determina em geral e sem atender às circunstâncias particulares.» (Le Trosne: l. c., pág. 893.)

 

A quantidade de valor duma mercadoria permaneceria decerto constante se o tempo necessário à sua produção também permanecesse constante. Mas este último varia com cada modificação da força produtiva do trabalho, que, por seu lado, depende de circunstâncias diversas, entre outras: da habilidade média dos trabalhadores; do desenvolvimento da ciência e do grau da sua aplicação tecnológica; das combinações sociais da produção; da extensão e da eficácia dos meios para produzir e das condições puramente naturais. A mesma quantidade de trabalho é representada, por exemplo, por 15 alqueires de trigo, se a estação for favorável, ou por apenas 7,5 alqueires em caso contrário. A mesma quantidade de trabalho fornece uma maior massa de metal nas minas ricas do que nas minas pobres, etc. Os diamantes não se encontram senão raramente na camada superior da crosta terrestre; e assim para encontrá-los também é preciso em média um tempo considerável, de modo que eles representam muito trabalho num pequeno volume. É duvidoso que o ouro alguma vez tenha pago completamente o seu valor. Isto ainda é mais verdadeiro para o diamante. Segundo Eschwege, todo o produto da exploração das minas de diamantes do Brasil, ao longo de 80 anos, ainda não tinha atingido, em 1823, o preço do produto médio de um ano e meio das plantações de açúcar ou café desse mesmo país, embora representasse muito mais trabalho e, por isso, mais valor. Com minas mais ricas, a mesma quantidade de trabalho efectivar-se-ia numa maior quantidade de diamantes, cujo valor baixaria. Se se conseguisse transformar com pouco trabalho o carvão em diamante, o valor deste último poderia porventura cair abaixo do valor dos tijolos. Em geral, quanto maior é a força produtiva do trabalho, mais curto é o tempo necessário à produção dum artigo e mais pequena é a massa de trabalho nele cristalizada, mais pequeno é o seu valor. Inversamente, quanto mais pequena é a força produtiva do trabalho, maior é o tempo necessário à produção dum artigo e maior é o seu valor. A quantidade de valor duma mercadoria varia, pois, em razão directa do quantum (de tempo social de trabalho) e em razão inversa da força produtiva do trabalho que nela se realiza.

Conhecemos agora a substância do valor: é o trabalho. Conhecemos a medida da sua quantidade: é a duração do trabalho.

Uma coisa pode ser um valor de uso sem ser um valor. Basta para isso que ela seja útil ao homem sem que provenha do seu trabalho. Assim são o ar, os prados naturais, um solo virgem, etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano sem ser uma mercadoria. Quem, com produto seu, satisfaz as suas próprias necessidades não cria senão um valor de uso pessoal. Para produzir mercadorias, tem não apenas de produzir valores de uso, mas valores de uso para outros, valores de uso sociais (I). Por fim, nenhum objecto pode ser um valor se não é uma coisa útil. Se é inútil, o trabalho que contém foi despendido inutilmente e, portanto, não cria valor.

 

(I) Adenda e nota de Engels à quarta edição alemã. Adenda: «E não apenas para outros, pura e simplesmente. O camponês medieval produzia o cereal do tributo para o senhor feudal e o cereal do dízimo para o clérigo. Mas nem o cereal do tributo nem o do dízimo se tornavam mercadorias pelo facto de terem sido produzidos para outros. Para se tornar mercadoria o produto tem de ser transferido por meio da troca para o outro a quem serve como valor de uso.» Nota: «Insiro... (a adenda)...porque, por sua omissão, surgiu muitas vezes o equívoco de que qualquer produto que fosse consumido por alguém que não o produtor valeria para Marx como mercadoria.»

Transcrito da edição de Barata-Moura, “Edições Avante!”, Lisboa, 1990, pág. 52.

 

II. – DUPLO CARÁCTER DO TRABALHO APRESENTADO PELA MERCADORIA.

 

Logo no início, a mercadoria apareceu-nos como uma coisa de face dupla, valor de uso e valor de troca. Em seguida vimos que todos os caracteres que distinguem o trabalho que produz valores de uso desaparecem mal ele (o trabalho) se exprime no valor propriamente dito. Eu, pela primeira vez, pus em relevo este duplo carácter do trabalho representado na mercadoria (11). Como a economia política gira à volta deste ponto é-nos necessário entrar aqui em mais amplos detalhes.

 

(11) Zur Kritik...págs. 12, 13 e passim.

 

Tomemos duas mercadorias, um casaco, por exemplo, e 10 metros de tecido de linho; admitamos que a primeira tem duas vezes o valor da segunda, de tal forma que, se 10 metros de tecido = x, o casaco = 2x.

O casaco é um valor de uso que satisfaz uma necessidade particular. Provém dum género particular de actividade produtiva, determinada pelo seu fim, pelo seu modo de operação, o seu objecto, os seus meios e o seu resultado. Ao trabalho que se manifesta na utilidade ou no valor de uso do seu produto chamamos-lhe, muito simplesmente, trabalho útil. Deste ponto de vista, ele (o trabalho) é sempre considerado em relação ao seu resultado.

Tal como o casaco e o tecido são duas coisas úteis diferentes, também do mesmo modo o trabalho do alfaiate, que faz o casaco, se distingue do trabalho do tecelão, que faz o tecido. Se esses objectos não fossem valores de uso de qualidade diversa e, por isso, produtos de trabalhos úteis de qualidade diversa, eles não se poderiam colocar frente a frente como mercadorias. O casaco não se troca contra o casaco, um valor de uso contra o mesmo valor de uso.

Ao conjunto dos valores de uso de todas as espécies corresponde um conjunto de trabalhos úteis igualmente variados, distintos no género, na espécie, nas famílias – uma divisão social do trabalho. Sem ela não há produção de mercadorias, embora a produção de mercadorias não seja reciprocamente indispensável à divisão social do trabalho. Na velha comunidade indiana, o trabalho é socialmente dividido sem que com isso os produtos se transformem em mercadorias. Ou, para tomar um exemplo que nos é mais familiar, em cada fábrica o trabalho é sujeito a uma divisão sistemática; mas esta divisão não acontece porque os trabalhadores aí, nas fábricas, troquem reciprocamente os seus produtos de trabalho. Só os produtos de trabalho privados e independentes uns dos outros é que se apresentam como mercadorias reciprocamente permutáveis.

Já está então entendido: o valor de uso de cada mercadoria encerra um trabalho útil especial ou uma actividade produtiva que corresponde a um fim particular. Valores de uso não podem enfrentar-se como mercadorias a não ser que contenham trabalhos úteis de qualidade diferente. Numa sociedade cujos produtos tomam em geral a forma da mercadoria, quer dizer, numa sociedade onde todo o produtor tem de ser comerciante, a diferença entre os diversos géneros de trabalhos úteis que se executam independentemente uns dos outros desenvolve-se num sistema muito fortemente ramificado, numa divisão social do trabalho.

É, ademais, completamente indiferente para o casaco que seja o alfaiate ou os seus oficiais operários a usá-lo. Em ambos os casos ele serve de valor de uso. Tal como a relação entre o casaco e o trabalho que o produz não é de modo nenhum alterada pelo facto de que a sua confecção constitua uma profissão particular e se torne num elo da divisão social do trabalho. Assim que a necessidade de usar roupas a isso os obrigou, e durante milhares de anos, os homens confeccionaram vestuário sem que um só homem se houvesse tornado por isso alfaiate. Mas tecido ou casaco, ou qualquer outro elemento da riqueza material não fornecido pela natureza, sempre deveu a sua existência a um trabalho produtivo especial tendo por fim adequar matérias naturais a necessidades humanas. Enquanto que produz valores de uso, que é útil, o trabalho, independentemente de toda a forma de sociedade, é a condição indispensável da existência do homem, uma eterna necessidade, o mediador da circulação material entre a natureza e o homem.

Os valores de uso, tecido, casaco, etc., ou seja, os corpos das mercadorias, são combinações de dois elementos, matéria e trabalho. Se lhes subtrairmos a soma total dos diversos trabalhos úteis que neles estão contidos sempre resta um resíduo material, alguma coisa fornecida pela matéria e que nada deve ao homem.

O homem não pode proceder doutro modo que a própria natureza, quer dizer, ele não faz senão mudar a forma das matérias (12). Mais ainda, nessa obra de simples transformação ele é de novo constantemente apoiado por forças naturais. O trabalho não é, pois, a única fonte dos valores de uso por ele produzidos, a única fonte da riqueza material. Ele é o pai dela, e a terra, a mãe, como diz William Petty.

 

(12) «Todos os fenómenos do universo, sejam eles produtos da mão do homem ou das leis universais da física, não nos dão a ideia de efectiva criação, mas unicamente duma modificação da matéria. Juntar e separar são os únicos elementos que o engenho humano encontra ao analisar a ideia da reprodução: e tanto é reprodução de valor (valor de uso, se bem que aqui Verri, na sua polémica com os fisiocratas, não saiba ele mesmo de que espécie de valor está a falar) e de riqueza se a terra, o ar e a água no campo se transformarem em grão, como se, com a mão do homem, a baba de um insecto se transformar em seda ou alguns pedacinhos de metal se organizarem para formar um relógio de repetição.» (Pietro Verri: Meditazioni sulla Economia Politica; impresso pela primeira vez em 1771. Edição dos economistas italianos de Custodi, Parte moderna, tomo XV, págs. 21, 22.

Aviso: esta nota foi corrigida pelo texto da edição inglesa de O Capital e, portanto, não é idêntica à nota da edição francesa.

 

Deixemos agora a mercadoria enquanto objecto de utilidade e regressemos ao seu valor.

Segundo a nossa suposição, o casaco vale duas vezes o tecido de linho. Esta mais não é, todavia, que uma diferença quantitativa de valor, que para já ainda não nos interessa. Por isso, porque ainda não nos interessa a desigualdade ou diferença quantitativa de valor, podemos tão-só observar que, se o casaco, como valor, é igual a duas vezes 10 metros de tecido, 20 metros de tecido são, também como valor, iguais a um casaco. Enquanto que valores, o casaco e o tecido são coisas da mesma substância, expressões objectivas dum trabalho idêntico. Mas a confecção de casacos e a tecelagem são trabalhos diferentes. Há no entanto situações sociais em que o mesmo homem é alternadamente alfaiate e tecelão, em que, portanto, estas duas espécies de trabalho são simples modificações do trabalho do mesmo indivíduo em vez de serem funções fixas de indivíduos diferentes, tal como o casaco que o nosso alfaiate faz hoje e as calças que vai fazer amanhã mais não são do que variações do seu trabalho individual. Constata-se também, logo à primeira vista, que na nossa sociedade capitalista, consoante a orientação variável da procura do trabalho, uma dada porção de trabalho humano tem que se oferecer ora sob a forma de confecção de vestuário, ora sob a de tecelagem. Estas mutações de forma do trabalho podem causar maior ou menor fricção, mas efectuam-se sempre.

Toda a actividade produtiva é, no fim de contas, se abstrairmos do seu carácter útil, um dispêndio de força humana. A confecção de vestuário e a tecelagem, apesar das suas diferenças, são, ambas as duas, um dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos humanas e, neste sentido, são da mesma maneira trabalho humano. A força humana de trabalho, que ao ser exercida mais não faz do que mudar de forma nas diversas actividades produtivas, tem seguramente de estar mais ou menos desenvolvida para poder ser despendida sob tal ou tal forma. Mas o valor das mercadorias representa pura e simplesmente o trabalho do homem, um dispêndio de força humana em geral. Ora, tal como na sociedade civil um general ou um banqueiro desempenham um grande papel, enquanto que o homem puro e simples faz triste figura (13), o mesmo acontece aqui ao trabalho humano. Ele é um dispêndio da força simples que todo o homem ordinário, sem desenvolvimento especial, possui no organismo do seu corpo. O trabalho médio simples muda (I), é certo, de carácter nos diferentes países e segundo as épocas; mas ele é sempre determinado numa sociedade dada. O trabalho complexo (skilled labor, trabalho qualificado) mais não é do que uma potência do trabalho simples, ou melhor, mais não é do que trabalho simples multiplicado (exemplo: 1 multiplicado por uma fracção maior que 1), de maneira que uma dada quantidade de trabalho complexo corresponde a uma quantidade maior de trabalho simples (por exemplo, 1 hora de um dado trabalho complexo = 1,8 horas de trabalho médio simples). A experiência mostra que esta redução se faz constantemente. Mesmo quando uma mercadoria é toda ela produto de trabalho mais complexo, o seu valor fá-la reportar-se, numa qualquer proporção, ao produto de trabalho simples, do qual ela por consequência não representa mais do que uma determinada quantidade (14). As diversas proporções segundo as quais diferentes espécies de trabalho são reduzidas ao trabalho simples como sua unidade de medida estabelecem-se na sociedade sem que os produtores tenham disso consciência e parecem-lhes ser, portanto, convenções tradicionais (usos que vêm da tradição). Segue-se daqui que, na análise do valor, se vai tratar cada tipo de força de trabalho como uma força de trabalho simples ou que já foi reduzida, pelo valor da sua mercadoria, a uma força de trabalho simples.

 

(13) Hegel: Filosofia do Direito, Berlim, 1840, pág. 250, parágrafo 190.

 

(I) Hoje, em Portugal, duma forma básica, poderíamos considerar como integrando a força de trabalho média simples a escolaridade até ao 9º ano. Mas a conta mais certa seria pegar em todas as profissões sem particular grau de qualificação para ver a real média de habilitações que isso dá.

Pegando em todas as profissões produtoras de mercadorias ou de serviços efectivos (efeitos úteis das coisas) e achando a respectiva média escolar, não estamos a calcular a componente escolar da força de trabalho média simples, a que conta na determinação do valor das mercadorias e serviços efectivos, mas sim a componente escolar da força de trabalho média adulta da sociedade.

 

(14) O leitor deve reparar que não se trata aqui do salário ou do valor que o operário recebe por uma jornada de trabalho, mas do valor da mercadoria na qual se efectiva essa jornada de trabalho. Aliás, no ponto em que estamos da nossa exposição a categoria do salário ainda não existe de modo nenhum.

Um exemplo: os valores duma porção de madeira de pinho, cola, verniz, etc. (tudo feito, no total, em x horas de trabalho simples de fábrica ou de oficina), e o valor duma peça de mobiliário fabricada com esses materiais por um marceneiro (por acaso nas mesmíssimas x horas, mas de trabalho complexo), com o seu móvel a valer, como produto final, digamos, 3 vezes a madeira de pinho e os outros materiais que o marceneiro transforma. O trabalho simples forma aqui 1 unidade e o trabalho complexo compõe 2 unidades do valor final do móvel, o qual representa 3 unidades de trabalho simples.

 

Do mesmo modo, pois, que nos valores tecido e casaco a diferença dos seus valores de uso é eliminada, também desse mesmo modo desaparece no trabalho que aqueles valores representam a diferença das suas formas úteis costura e tecelagem. Assim, tal como os valores destas coisas são puras cristalizações dum trabalho idêntico, ao passo que os valores de uso tecido e casaco são combinações de actividades produtivas particulares com fio e pano, também do mesmo modo os trabalhos fixados nos valores destas coisas não têm mais qualquer relação produtiva com o fio e o pano, mas exprimem simplesmente um dispêndio da mesma força de trabalho. A tecelagem e a costura formam o tecido e o casaco precisamente porque têm, como trabalhos particulares, qualidades diferentes; mas elas não formam os valores senão pela sua qualidade comum de trabalho humano.

O casaco e o tecido são não apenas valores em geral, mas valores duma determinada grandeza; e, segundo a nossa suposição, o casaco vale duas vezes o mesmo que 10 metros de tecido. Donde vem esta diferença? Do facto do tecido conter menos metade de trabalho que o casaco, de modo que, para a produção deste último, a força de trabalho tem de ser despendida durante o dobro do tempo que exige a produção do primeiro.

Se, portanto, quanto ao valor de uso, o trabalho contido na mercadoria não vale senão qualitativamente, já no que respeita à grandeza do valor ele não conta senão quantitativamente. Ali, trata-se de saber como o trabalho se faz e o que ele produz, aqui, de quanto tempo ele dura. Como a grandeza de valor duma mercadoria não representa mais nada do que o quantum de trabalho nela contido segue-se daqui que todas as mercadorias, numa certa proporção, têm de ser valores iguais.

Se a força produtiva de todos os trabalhos úteis exigidos na confecção dum casaco permanece constante, a quantidade do valor dos casacos aumenta com o número destes (por exemplo, porque há mais gente a fazer casacos). Se um casaco representa x jornadas de trabalho, dois casacos representam 2x, e assim sucessivamente. Mas admitamos que a duração do trabalho necessário à produção dum casaco aumenta duas vezes ou diminui de metade; no primeiro caso um casaco tem agora tanto valor como dois tinham antes, no segundo dois casacos não têm agora mais valor do que precedentemente tinha um só, embora em ambos os casos, tanto antes como agora, o casaco preste os mesmos serviços e o trabalho útil donde provém continue a ser sempre da mesma qualidade. Mas o quantum de trabalho despendido na sua produção não se manteve o mesmo.

Uma quantidade mais considerável de valores de uso forma, como é evidente, uma maior riqueza material; com dois casacos pode-se vestir dois homens, com um casaco não podemos vestir mais que um só, etc. No entanto, a uma massa crescente da riqueza material pode corresponder um decrescimento simultâneo do seu valor. Este movimento contraditório provém do duplo carácter do trabalho. A eficácia, num dado espaço de tempo, dum trabalho útil depende da sua força produtiva. O trabalho útil torna-se, portanto, uma fonte mais ou menos abundante de produtos em razão directa do aumento ou da diminuição da sua força produtiva. Em contrapartida, uma variação desta última força nunca atinge directamente o trabalho representado no valor. Como a força produtiva pertence ao trabalho concreto e útil, ela deixa de poder atingir o trabalho logo que se faz abstracção da sua forma útil. Sejam quais forem as variações da sua força produtiva, o mesmo trabalho, operando durante o mesmo espaço de tempo, fixa-se sempre no mesmo valor. Mas ele fornece num determinado espaço de tempo mais valores de uso, se a sua força produtiva aumenta, menos, se ela diminui. Toda a mudança na força produtiva do trabalho que aumenta a fecundidade do trabalho e, por consequência, a massa de valores de uso por ele prestados, diminui o valor dessa massa agora aumentada se ela (a mudança na força produtiva) encurta o tempo total de trabalho necessário à sua (da massa de valores de uso) produção, e o mesmo movimento contraditório se dá inversamente (I).

 

(I) Toda a mudança na força produtiva de trabalho que diminui a fecundidade do trabalho e, por consequência, a massa de valores de uso por ele prestados, aumenta o valor dessa massa agora diminuída se ela alonga o total de tempo de trabalho necessário à sua produção.

 

Resulta do que precede que não há, propriamente falando, dois tipos de trabalho na mercadoria, todavia o mesmo trabalho está ali oposto a si próprio, conforme se reporte ao valor de uso da mercadoria como seu produto, ou ao valor desta mercadoria como sua pura expressão objectiva. Todo o trabalho é por um lado dispêndio, no sentido fisiológico, de força humana, e a este título de trabalho igual ele forma o valor das mercadorias. Por outro lado, todo o trabalho é dispêndio da força de trabalho humana sob tal ou tal forma produtiva, determinada por um fim particular, e, a este título de trabalho concreto e útil, ele produz os valores de uso ou utilidades. Do mesmo modo que a mercadoria tem de ser, antes de mais, um objecto de utilidade para ser um valor, também o trabalho tem de ser, antes de tudo, trabalho útil para ser considerado dispêndio de força humana, trabalho humano no sentido abstracto da palavra (15).

A substância do valor e a grandeza do valor estão já determinadas. Resta agora analisar a forma do valor.

 

(15) Para demonstrar que «o trabalho...é a única medida real e definitiva que pode servir em todos os tempos e em todos locais para estimar e comparar o valor de todas as mercadorias», A. Smith diz: «Quantidades iguais de trabalho têm necessariamente de ser, em todos os tempos e em todos os locais, dum valor igual para aquele que trabalha. No seu estado habitual de saúde, de força e de actividade, e conforme o grau ordinário de destreza e habilidade que ele possa ter, é sempre preciso que ele entregue a mesma porção do seu repouso, da sua liberdade, da sua felicidade» (Wealth of Nations, livro I, capítulo V). Por um lado, A. Smith confunde aqui (o que não faz em todo o lado) a determinação do valor das mercadorias pelo quantum de trabalho despendido na sua produção com a determinação do seu valor (das mercadorias) pelo valor do trabalho, e procura em consequência dessa confusão por si feita provar que iguais quantidades de trabalho têm sempre o mesmo valor (o que Smith está a dizer de facto é que a mercadoria força de trabalho, a que chama «trabalho», tem sempre, tendencialmente, o mesmo valor «em todos os tempos e em todos os lugares», o que é falso. O trabalho, repetimos uma vez mais, não tem valor, forma valor; o que tem um valor é a mercadoria força de trabalho, e esse valor, como o de qualquer outra mercadoria, varia inversamente às mudanças na produtividade do trabalho. Compreender-se-á isto melhor em próximos capítulos, pois, como já se disse atrás a propósito do salário, estas questões só mais à frente são tratadas). Por outro lado, ele pressente, é certo, que todo o trabalho, na qualidade em que se apresenta no valor da mercadoria, mais não é que dispêndio de força humana de trabalho; mas ele compreende este dispêndio exclusivamente como abnegação, como sacrifício de repouso, de liberdade e de felicidade, e não, ao mesmo tempo, como actividade normal de vida. Também, na verdade, o que ele tem diante de si é o trabalhador assalariado moderno (e não um produtor particular e independente de mercadorias). Um dos predecessores de A. Smith, já por nós citado, diz com muito mais acerto: «Um homem ocupou-se durante uma semana a prover um meio de vida...e aquele que lhe dê um outro em troca não pode estimar melhor qual é o equivalente certo do que calculando aquilo que lhe custa exactamente o mesmo trabalho (as much labour) (I) e tempo: o que, com efeito, mais não é do que a troca do trabalho dum homem numa coisa durante um certo tempo contra o trabalho de um outro homem numa outra coisa durante o mesmo tempo» (Some Thoughts on the Interest of Money in general, etc., pág. 39).

 

(I) Nota de Engels à 4ª edição alemã: «a língua inglesa tem a vantagem de possuir duas palavras diferentes para estes diferentes aspectos do trabalho. O trabalho que cria valores de uso e que é determinado qualitativamente chama-se work, por oposição a labour; o trabalho que cria valor e que apenas é medido quantitativamente chama-se labour, por oposição a work. Ver a nota da tradução inglesa, pág. 14.»

 

III. – FORMA DO VALOR.

 

As mercadorias vêm ao mundo sob a forma de valores de uso ou de matérias-primas mercantis, tais como ferro, tecido, lã, etc. É esta verdadeiramente a sua forma natural. No entanto, elas não são mercadorias senão por serem duas coisas ao mesmo tempo, objectos de utilidade e porta-valor. Elas não podem, por isso, entrar na circulação a não ser que se apresentem sob uma dupla forma: a sua forma natural e a sua forma de valor (16).

 

(16) Os poucos economistas que procuraram, como Bailey, fazer a análise da forma do valor, não puderam chegar a nenhum resultado: primeiramente, porque eles confundem sempre o valor com a sua forma; em segundo lugar, porque, sob a influência grosseira da prática burguesa, eles preocupam-se de imediato exclusivamente com a quantidade. «The command of quantity...constitutes value (o comando da quantidade...constitui o valor)». (S. Bailey: Money and its vicissitudes, Londres, 1837, pág. 11.)

 

A realidade que o valor da mercadoria possui diferencia-se nisso da amiga de Falstaff, a viúva Quickly, porque não sabemos por onde lhe pegar (I). Num gritante contraste com a rusticidade do corpo da mercadoria, nem um átomo de matéria entra no seu valor. Bem podemos, pois, virar e revirar à vontade uma mercadoria tomada isoladamente que ela, como objecto de valor, continua a ser incompreensível. Mas se nos lembrarmos, entretanto, que os valores das mercadorias mais não são do que uma pura realidade social, que elas (as mercadorias) não a adquirem (a sua realidade de valores) senão enquanto expressões da mesma unidade social, do trabalho humano, então torna-se evidente que esta realidade social também não se pode manifestar senão nas transacções sociais, nas relações das mercadorias umas com as outras. De facto, nós partimos do valor de troca ou da relação de troca das mercadorias para descobrir a pista do seu valor que aí se escondia. É-nos necessário regressar agora a esta forma sob a qual o valor inicialmente nos apareceu.

 

(I) parte final da cena 3, III acto, da peça Henrique IV, 1ª parte, de Shakespeare.

 

A. FORMA SIMPLES OU ACIDENTAL DO VALOR.

 

Expressão: x mercadoria A = y mercadoria B, ou x mercadoria A vale y mercadoria B.

 

(20 metros de tecido de linho = 1 casaco, ou 20 metros de tecido têm o valor de 1 casaco.)

 

A. 1. OS DOIS PÓLOS DA EXPRESSÃO DE VALOR: A SUA FORMA RELATIVA E A SUA FORMA EQUIVALENTE.

 

O mistério de toda a forma valor abriga-se nesta forma simples. Por isso é também na sua análise que se encontra a dificuldade.

 

Para nos facilitar a compreensão, vamo-nos socorrer dum “caso prático” que veio a ser conhecido já várias dezenas de anos após a morte de Marx. Escreve o etnógrafo Bronislaw Malinowski, no seu ensaio “O crime e o costume nas sociedades primitivas” (edição Petite Bibliothèque Payot, Paris, 1968, págs. 19-20, 22 e 25-26), sobre as Ilhas Trobriand:

«...sigamos os pescadores até à praia. Vejamos como se opera a distribuição do produto da pesca. Na maioria das vezes, apenas uma pequena parte do produto fica para os habitantes da aldeia (de pescadores). Vemos geralmente um grande número de pessoas, vindas das comunidades do interior, à espera na praia. Elas recebem dos pescadores pacotes de peixes que levam para casa, com frequência a várias milhas de distância, numa corrida apressada para que o peixe ainda esteja fresco quando chegarem ao seu destino...as aldeias do interior fornecem de vegetais os pescadores; as comunidades costeiras pagam-lhes em peixe. Esta é uma convenção sobretudo económica...os pescadores devem remunerar todo o dom que recebem dos parceiros do interior e vice-versa. Nenhum dos parceiros tem o direito de recusar...de retardar a reciprocidade...As aldeias do interior e as da costa dependem umas das outras para o aprovisionamento de certos víveres. As aldeias da costa nunca têm vegetais que cheguem, as do interior têm sempre necessidade de peixe. Além disso, o costume exige que todas as grandes cerimónias que se desenrolam nas aldeias da costa sejam acompanhadas de distribuições de alimentos, as quais representam um aspecto muito importante na vida dos primitivos; a comida assim distribuída é sempre composta de certas variedades de vegetais que crescem apenas nas planícies férteis do interior. Ora, os habitantes da costa não dispõem como excedente que do produto da sua pesca...Tudo concorre para que eles não possam passar um sem o outro. Se no entanto vier a acontecer que um parceiro faça prova de negligência ele já sabe à partida que, mais tarde ou mais cedo, se vai arrepender. Cada comunidade possui, com efeito, uma arma para fazer respeitar os seus direitos: a reciprocidade...Cada homem tem o seu parceiro intitulado com o qual procede a trocas com exclusão de todos os outros...As enfiadas de peixes, as medidas de yams, os pacotes de taro não podem ser repartidos senão aproximativamente, e as quantidades trocadas variam naturalmente com as condições mais ou menos favoráveis de pesca, com a maior ou menor abundância da colheita. Todas estas circunstâncias são levadas em conta, e só a rapacidade, a negligência e a preguiça são consideradas como causas justificativas da ruptura dum contrato.»

Estamos, pois, perante um exemplo empírico, real, verídico, de duas mercadorias, peixe e vegetais, que, trocando-se uma pela outra, ainda que de início entre “compadres”, e em quantidades não muito precisas, por “falta de balança”, não se trocam do mesmo modo regular por mais nada...

 

Duas mercadorias diferentes A e B, no exemplo que escolhemos, o tecido de linho e o casaco, jogam aqui, evidentemente, dois papéis distintos. O tecido exprime o seu valor no casaco e este serve de matéria a essa expressão (do valor do tecido de linho). A primeira mercadoria joga um papel activo, a segunda um papel passivo. O valor da primeira é exposto como valor relativo, a segunda mercadoria funciona como equivalente.

A forma relativa e a forma equivalente são dois aspectos correlativos, inseparáveis, mas ao mesmo tempo extremos opostos, que se excluem um ao outro, quer dizer, pólos da mesma expressão do valor. Eles distribuem-se sempre entre as diversas mercadorias que esta expressão põe em nexo. A seguinte equação: 20 metros de tecido = 20 metros de tecido, exprime apenas que 20 metros de tecido mais não são que isso mesmo, 20 metros de tecido, isto é, uma certa quantidade dum valor de uso. O valor do tecido só pode portanto exprimir-se numa outra mercadoria, ou seja, relativamente. Isto supõe que essoutra mercadoria se acha em frente dele na forma de equivalente. Por outro lado, a mercadoria que figura como equivalente não se pode encontrar ao mesmo tempo sob a forma de valor relativo. Ela não exprime o seu valor, mas fornece tão-só a matéria para a expressão do valor da primeira mercadoria.

A expressão: 20 metros de tecido = um casaco, ou: 20 metros de tecido valem um casaco, contém, é certo, a recíproca: 1 casaco = 20 metros de tecido, ou: 1 casaco vale 20 metros de tecido. Mas é-me preciso então virar a equação ao contrário e, logo que o faço, o tecido torna-se equivalente em vez do casaco. Uma mesma mercadoria não pode, pois, revestir simultaneamente estas duas formas na mesma expressão do valor. Estas duas formas excluem-se polarmente.

 

A. 2. A FORMA RELATIVA DO VALOR.

 

A. 2. a). CONTEÚDO DESTA FORMA.

 

Para achar como a expressão simples do valor de uma mercadoria está contida na relação de valor de duas mercadorias é preciso, antes do mais, examinar este nexo abstraindo do seu lado quantitativo. Em geral o que se faz é o contrário, considerando na relação de valor exclusivamente a proporção na qual determinadas quantidades de duas espécies de mercadorias são ditas igualar-se entre si. Esquece-se que coisas diferentes não podem ser comparadas quantitativamente senão após haver sido reduzidas à mesma unidade. Só então elas têm o mesmo denominador e se tornam comensuráveis.

Que 20 metros de tecido = 1 casaco, ou = 20, ou = x casacos, ou seja, quer uma dada quantidade de tecido valha mais ou menos casacos, uma proporção deste género implica sempre que casaco e tecido de linho são expressões da mesma unidade. Tecido = casaco, eis o fundamento da equação (ou, no “caso prático” das ilhas Trobriand, vegetais = peixe).

Mas as duas mercadorias das quais a igual qualidade, a idêntica essência, é assim afirmada não jogam o mesmo papel. Só o valor do tecido é que se acha expresso. E como? Comparando-o a uma mercadoria de espécie diferente, o casaco, como seu equivalente, ou seja, uma coisa que o pode substituir ou é por ele permutável. É desde logo evidente que o casaco entra nesta relação exclusivamente como forma de existência do valor, visto que não é senão expressando o valor que ele pode figurar como valor frente a outra mercadoria. Por outro lado, o próprio valor do tecido mostra-se aqui ou adquire uma expressão distinta. Com efeito, poderia o valor casaco ser posto em equação com o tecido de linho ou servir-lhe de equivalente se o tecido não fosse ele mesmo valor?

Tomemos emprestada uma analogia à química. O ácido butírico e o formiato de propilo são dois corpos que diferem tanto na aparência como nas qualidades físicas e químicas. No entanto eles contêm os mesmos elementos: carbono, hidrogénio e oxigénio. E, além disso, contêm-nos na mesma proporção de C4H8O2. Agora, se pusermos o formiato de propilo em equação com o ácido butírico ou  fizermos dele o equivalente, o formiato de propilo não figuraria nesta relação senão como forma de existência de C4H8O2, quer dizer, da substância que lhe é comum com o ácido. Uma equação onde o formiato de propilo jogasse o papel de equivalente do ácido butírico seria, pois, uma maneira um pouco sinuosa de exprimir a substância do ácido como alguma coisa que é completamente distinta da sua forma corporal.

Se dissermos: enquanto valores, todas as mercadorias não são mais do que trabalho humano cristalizado, nós reduzimo-las pela nossa análise à abstracção valor, contudo, tanto antes como depois elas não possuem senão uma forma, a sua forma natural de objectos úteis. Já sucede totalmente de outro modo quando uma mercadoria é colocada numa relação de valor com uma outra mercadoria. A partir desse momento o seu carácter de valor realça-se e afirma-se como a sua propriedade inerente que lhe determina a relação com a outra mercadoria.

Sendo o casaco colocado como equivalente do tecido, o trabalho contido no casaco é afirmado como sendo idêntico ao trabalho incluso no tecido. É verdade que a confecção se distingue da tecelagem. Mas a sua equação com a tecelagem reduze-la de facto ao que ela tem realmente de comum com esta última, ao seu carácter de trabalho humano. É uma maneira arrevesada de exprimir que, na medida em que tece valor, a tecelagem em nada se distingue da confecção de vestuário, quer dizer, de trabalho humano abstracto. Esta equação exprime, assim, o carácter específico do trabalho que constitui o valor do tecido de linho.

Todavia não é suficiente expressar o carácter específico do trabalho que forma o valor do tecido de linho. A força de trabalho do homem no estado fluído, ou o trabalho humano, forma na verdade valor, mas não é valor. Só se converte em valor no estado coagulado, sob a forma dum objecto. Assim, as condições que é preciso preencher para exprimir o valor do tecido de linho parecem elas mesmas contradizer-se. Por um lado, é preciso representá-lo como uma pura condensação do trabalho humano abstracto, pois que enquanto valor a mercadoria não tem outra realidade. Simultaneamente, essa condensação tem que assumir a forma de um objecto visivelmente distinto do próprio tecido de linho e, também ao mesmo tempo, ser uma forma que, continuando a pertencer-lhe, lhe seja comum com uma outra mercadoria. Ora o problema já está resolvido.

Com efeito, nós vimos que o casaco, desde que é colocado como equivalente, não precisa mais de passaporte para atestar o seu carácter de valor. Neste papel, a sua própria forma de existência torna-se uma forma de existência do valor; no entanto o casaco, o corpo da mercadoria casaco, mais não é do que um simples valor de uso; um casaco exprime tão pouco valor quanto o primeiro pedaço de tecido de linho que nos surja. Isto prova muito simplesmente que na relação de valor com o tecido de linho ele representa mais do que fora dessa relação; tal como muita personagem importante num trajo agaloado, que todavia se torna completamente insignificante logo que os galões lhe faltam.

Na produção do casaco foi de facto despendida força humana sob uma forma particular. Está portanto nele acumulado trabalho humano. Deste ponto de vista, o casaco é portador de valor, se bem que ele, por mais puído que esteja, nunca deixe transparecer esta qualidade através da diafaneidade dos seus fios. E na relação de valor com o tecido de linho ele não significa outra coisa. Mal-grado o seu exterior tão bem abotoado, o tecido reconheceu nele a sua plena alma gémea de valor. É o lado platónico do affaire. Na realidade o casaco não pode representar nas suas relações exteriores o valor sem que, ao mesmo tempo, o valor tome a forma de um casaco. Tal como o particular A não pode representar para o indivíduo B uma majestade sem que, aos olhos de B, a majestade revista de imediato a figura e o corpo de A; e é por isso que ela verosimilmente muda, com cada novo pai da pátria, de aspecto, de cabelo e muitas outras coisas.

A relação que faz do casaco o equivalente do tecido transforma, portanto, a forma casaco em forma valor do tecido ou exprime o valor do tecido no valor de uso do casaco. Enquanto que valor de uso, o tecido é um objecto sensivelmente diferente do casaco; enquanto que valor, ele é uma coisa igual ao casaco e tem o aspecto deste, como claramente tal é provado pela sua equivalência com o casaco. A sua propriedade de valor aparece na sua igualdade de valor com o casaco como a natureza acarneirada do cristão na sua semelhança com o cordeiro de Deus.

Como vemos, tudo o que a análise do valor nos tinha revelado primeiramente o próprio tecido de linho o diz logo que entra em sociedade com uma outra mercadoria, o casaco. Só que ele apenas trai os seus pensamentos na linguagem que lhe é familiar, a linguagem das mercadorias. Para exprimir que o seu valor vem do trabalho humano, na sua propriedade abstracta, ele diz que o casaco, enquanto que vale tanto como ele, quer dizer, que é valor, compõe-se do mesmo trabalho que ele próprio, o tecido. Para exprimir que a sua sublime realidade como valor é distinta do seu corpo rígido e filamentoso, ele diz que o valor tem o aspecto dum casaco e que, por consequência, ele próprio, como coisa valor, se parece com o casaco como um ovo com outro ovo. Anotemos de passagem que a língua das mercadorias possui, além do hebreu, muitos outros dialectos e falares mais ou menos correctos. O termo alemão Wertsein, por exemplo, exprime menos nitidamente que o verbo românico valere, valer e, em francês, valoir, que a afirmação da equivalência da mercadoria B com a mercadoria A é a expressão própria de valor desta última. Paris vaut bien une messe (Paris vale bem uma missa).

Em virtude da relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se a forma de valor da mercadoria A, ou então o corpo de B torna-se para A o espelho do seu valor (17). O valor da mercadoria A assim expresso no valor de uso da mercadoria B adquire a forma de valor relativo.

 

(17) Em certa medida, acontece ao homem o mesmo que à mercadoria. Como ele não vem ao mundo com um espelho, nem como filósofo à la Fichte cujo Eu não precisa de nada para se afirmar, ele começa por contemplar-se e reconhecer-se primeiramente num outro homem. E assim também este outro, tal como é, em pele e cabelo, afigura-se-lhe ser a forma fenoménica do género homem.

 

A. 2. b). DETERMINAÇÃO QUANTITATIVA DO VALOR RELATIVO.

 

Toda a mercadoria cujo valor tem de ser expresso é um certo quantum de uma coisa útil, por exemplo, 15 alqueires (I) de trigo, 100 libras de café, etc., que contém um quantum determinado de trabalho. A forma valor tem pois que exprimir não somente o valor em geral mas também um valor duma certa grandeza. Na relação de valor da mercadoria A com a mercadoria B, não apenas a mercadoria B é declarada igual à mercadoria A do ponto de vista da qualidade como também um certo quantum de B equivale a um quantum dado de A.

 

(I) O “nosso” alqueire é igual a 19,3 litros.

 

A equação: 20 metros de tecido = 1 casaco, ou 20 metros de tecido valem um casaco, supõe que as duas mercadorias custam, tanto uma como a outra, a mesma quantidade de trabalho, ou que se produzem no mesmo tempo, mas este tempo varia para cada uma delas com qualquer variação da força produtiva do trabalho que a criou. Examinemos agora a influência destas variações sobre a expressão relativa da grandeza de valor.

 

I. Que o valor do tecido de linho mude enquanto o valor do casaco se mantém constante (18). Se o tempo de trabalho necessário à sua produção duplica em consequência, vamos supor, dum menor rendimento do solo que dá linho, então o seu valor duplica. Em lugar de 20 metros de tecido = 1 casaco, nós teríamos: 20 metros de tecido = 2 casacos, porque 1 casaco contém agora menos metade de trabalho que o tecido de linho. Se o tempo necessário à produção do tecido diminuir, ao invés, para metade em consequência dum aperfeiçoamento introduzido nos teares, o seu valor diminui na mesma proporção. A partir de então, 20 metros de tecido de linho = ½ casaco. O valor relativo da mercadoria A, isto é, o seu valor expresso na mercadoria B sobe e desce, por conseguinte, na razão directa do valor da mercadoria A se o valor da mercadoria B se mantiver constante.

 

(18) A expressão valor é usada aqui, tal como já antes por várias vezes foi empregue numa ou noutra ocasião, no sentido de quantidade de valor.

 

II. Que o valor do tecido permaneça constante enquanto o valor do casaco muda. Se o tempo necessário para a produção do casaco, nestas circunstâncias, duplicou em consequência, vamos supor, duma tosquia mais fraca, em lugar de 20 metros de tecido = 1 casaco temos agora 20 metros de tecido = ½ casaco. Se o valor do casaco cai, pelo contrário, para metade, então 20 metros de tecido = 2 casacos. Permanecendo constante o valor da mercadoria A, vemos que o seu valor relativo expresso na mercadoria B sobe ou desce na razão inversa da mudança de valor de B.

Se compararmos os diversos casos compreendidos em I e II, é manifesto que a mesma mudança de grandeza do valor relativo pode resultar de causas totalmente opostas. Assim a equação: 20 metros de tecido = 1 casaco torna-se: 20 metros de tecido = 2 casacos seja porque o valor do tecido duplicou ou porque o valor do casaco diminuiu para metade, e 20 metros de tecido = ½ casaco seja porque o valor do tecido diminui para metade ou porque o valor do casaco sobe para o dobro.

III. E se as quantidades de trabalho necessárias à produção do tecido e do casaco mudarem simultaneamente no mesmo sentido e na mesma proporção? Neste caso, 20 metros de tecido = 1 casaco tal como dantes, quaisquer que sejam as suas mudanças de valor. Descobrem-se essas mudanças de valor pela comparação com uma terceira mercadoria cujo valor se conserve o mesmo. Se os valores de todas as mercadorias aumentassem ou diminuíssem simultaneamente e na mesma proporção, os seus valores relativos não experimentariam qualquer alteração. A sua mudança real de valor reconhecer-se-ia pelo facto de agora, num mesmo tempo de trabalho, se fornecer em geral uma maior ou menor quantidade de mercadorias do que antes.

IV. Os tempos de trabalho necessários à produção do tecido e do casaco e, por isso, os seus valores, podem simultaneamente mudar no mesmo sentido mas num grau diferente, ou em sentido oposto, etc. A influência de toda e qualquer possível combinação deste género sobre o valor relativo duma mercadoria calcula-se facilmente pelo emprego dos casos I, II e III.

As mudanças reais na grandeza de valor não se reflectem, como o pudemos ver, nem claramente (comparação dos casos I e II) nem completamente (caso III) na sua expressão relativa. O valor relativo duma mercadoria pode mudar apesar do seu valor permanecer constante (caso II); ele pode manter-se constante ao passo que o seu valor muda (caso III); e, por fim, mudanças na quantidade de valor e na sua expressão relativa podem ser simultâneas sem terem de exactamente corresponder (caso IV) (19).

 

(19) (a parte a itálico desta nota é da segunda edição alemã, e não da edição francesa) Esta incongruência entre a grandeza do valor e a sua expressão relativa foi explorada com a habitual perspicácia pela economia vulgar. Um exemplo (relativo aos casos mais simples, II e I: constância do valor de uma mercadoria  e alteração do valor da outra). Num escrito dirigido sobretudo contra a teoria do valor de Ricardo, lê-se: «Se admitirdes que mantendo-se sempre igual o trabalho necessário à sua produção A baixa porque B, pelo qual se troca, sobe, o vosso princípio geral acerca do valor cai por terra...Ao admitir que B baixa relativamente a A, quando o valor de A sobe relativamente a B, Ricardo destrói ele próprio a base do seu magno axioma de que o valor duma mercadoria é sempre determinado pela quantidade de trabalho nele incorporada; pois se uma mudança nos custos de A altera não só o seu valor relativamente a B, pelo qual se troca, mas também o valor de B relativamente a A, embora nenhuma mudança se haja dado na quantidade de trabalho exigida para a produção de B: então cai por terra não somente a doutrina que faz da quantidade de trabalho aplicada num artigo a medida do seu valor, como ainda a doutrina que afirma que o valor é regulado pelos custos de produção.» (J. Broadhurst, Political Economy, Londres, 1842, págs. 11, 14.) Mestre Broadhurst também poderia igualmente dizer: considerem-se as fracções 10/20, 10/50, 10/100, o número 10 mantém-se sempre igual, e no entanto o seu valor proporcional decresce constantemente porque a grandeza dos denominadores aumenta. Cai assim por terra o magno princípio segundo o qual a grandeza dos números inteiros é determinada pela quantidade das unidades que eles contêm.

 

No “caso prático” de Malinowski estas mudanças na determinação quantitativa do valor relativo verificam-se: «...as quantidades trocadas [entre os “compadres” ligados por «contrato»] variam naturalmente com as condições mais ou menos favoráveis de pesca, com a maior ou menor abundância da colheita.» Assim, «as enfiadas de peixes, as medidas de yams, os pacotes de taro» representam, com essas variações das condições naturais da produção, menores ou maiores quantidades de trabalho e alteram-se, por isso, as proporções em que estes produtos são trocados. Aqui, no exemplo das Trobriand, as alterações na força produtiva do trabalho restringem-se praticamente à acção das condições naturais, pois a evolução técnica é “pachorrenta”, progredindo lentamente numa modorra de séculos.

 

A. 3. A FORMA EQUIVALENTE E AS SUAS PARTICULARIDADES.

 

Já tínhamos visto: ao mesmo tempo que uma mercadoria A (o tecido ou os “inhames”) expressa o seu valor no valor de uso duma mercadoria diferente B (o casaco ou o peixe), ela imprime a esta última uma forma particular de valor, a forma de equivalente. O tecido manifesta o seu próprio carácter de valor por uma relação na qual uma outra mercadoria, o casaco, tal como é no seu modo natural, lhe forma a equação de valor. O tecido exprime, pois, que ele próprio vale alguma coisa por este facto de que uma outra mercadoria, o casaco, é imediatamente permutável por ele (tenha-se presente o “caso prático de Malinowski”: quando o peixe chega à praia, ele já é imediatamente trocável pelos vegetais).

Enquanto valores, todas as mercadorias são expressões iguais duma mesma unidade, o trabalho humano, substituíveis umas pelas outras. Uma mercadoria é, por consequência, permutável com uma outra mercadoria logo que possui uma forma que a faz aparecer como valor.

Uma mercadoria é imediatamente permutável com qualquer outra da qual ela é o equivalente, isto é: o lugar que ela ocupa na relação de valor faz da sua forma natural a forma valor da outra mercadoria. Ela não tem de revestir uma forma diferente da sua forma natural para se manifestar como valor à outra mercadoria, para valer como tal e, por consequência, para ser permutável com ela. A forma equivalente é, pois, para uma mercadoria a forma sob a qual ela é imediatamente permutável com uma outra.

Quando uma mercadoria, como os casacos, por exemplo, serve de equivalente a uma outra mercadoria, tal como o tecido, e adquire assim a propriedade característica de ser imediatamente permutável por esta, não nos é dada com isso de modo nenhum a proporção em que esta troca se pode efectuar. Como a quantidade de valor do tecido está dada, isso dependerá da quantidade de valor dos casacos. Quer na relação de valor o casaco figure como equivalente e o tecido de linho como valor relativo, quer suceda o inverso, a proporção em que se faz a troca permanece a mesma (a proporção não se altera pelo facto de, ao invés, ser o casaco a dar o seu valor no objecto de uso tecido de linho). A respectiva quantidade de valor das duas mercadorias, medida pela duração comparativa do trabalho necessário à sua produção, é por consequência uma determinação completamente independente da sua forma valor.

A mercadoria cujo valor se encontra na forma relativa é sempre expressa como quantidade de valor, ao passo que, pelo contrário, isso nunca acontece com o equivalente, que figura sempre na equação como simples quantidade duma coisa útil. 40 metros de tecido de linho, por exemplo valem – o quê? 2 casacos. Como a mercadoria casaco joga aqui o papel de equivalente, dando assim um corpo ao valor do tecido, é suficiente um certo quantum de casacos para exprimir o quantum de valor que pertence ao tecido. Portanto, 2 casacos podem exprimir a quantidade de valor de 40 metros de tecido, mas não a sua própria. O exame superficial deste facto de que, na equação de valor, o equivalente nunca figura senão como simples quantum de um objecto útil induziu em erro S. Bailey assim como muitos economistas antes e depois dele. Eles não viram na expressão do valor senão uma relação de quantidade. Ora, sob a forma de equivalente, uma mercadoria figura como simples quantidade de um material qualquer precisamente porque a quantidade do seu valor não é expressa.

As contradições que a forma de equivalente encerra exigem-nos agora um exame mais aprofundado das suas particularidades.

Primeira particularidade da forma equivalente: o valor de uso torna-se a forma de manifestação do seu contrário, o valor.

A forma natural das mercadorias torna-se a sua forma de valor. Mas, de facto, este qui pro quo só tem lugar para uma mercadoria B (casaco, trigo, ferro, etc.) nos limites da relação de valor em que uma outra mercadoria A (tecido de linho, etc.) entrou com ela, e tão-só nesses limites. Considerado isoladamente, o casaco, por exemplo, mais não é do que um objecto útil, um valor de uso, absolutamente tal como o tecido; a sua forma mais não é do que a forma natural de um tipo particular de mercadoria. Mas como nenhuma mercadoria se pode relacionar com ela própria como equivalente, nem fazer da sua forma natural a forma do seu próprio valor, ela tem necessariamente de tomar por equivalente uma outra mercadoria cujo valor de uso lhe serve, assim, de forma valor.

Uma medida aplicada às mercadorias enquanto materiais, quer dizer, enquanto valores de uso, vai-nos servir como ilustração para colocar o que atrás se disse diante dos olhos do leitor. Um pão de açúcar, visto que é um corpo, é um grave e, por conseguinte, tem peso; mas não é possível ver nem achar este peso apenas pela sua aparência. Tomemos agora diversos pedaços de ferro de peso já estabelecido. A forma material do ferro, considerada em si mesma, é tão pouco uma forma de manifestação do peso quanto a forma material do pão de açúcar. Não obstante, para exprimir que este último é um grave, colocamo-lo numa relação de peso com o ferro. Nesta relação, o ferro é considerado como um corpo que nada mais representa do que peso. Quantidades de ferro empregues para medir o peso do açúcar representam, portanto, frente à matéria açúcar uma mera forma, a forma sob a qual o peso se manifesta. O ferro não pode desempenhar este papel a não ser que o açúcar ou qualquer outro corpo de mercadoria seja posto em relação com ele nesse sentido. Se os dois objectos não fossem graves, nenhuma relação desta espécie seria possível entre eles, e um não poderia servir de expressão ao peso do outro. Lancemo-los a ambos na balança e vemos, de facto, que eles são coisa idêntica como peso, e que, por isso, numa certa proporção também apresentam o mesmo peso. Tal como o corpo ferro, enquanto medida de peso, frente ao pão de açúcar nada mais representa do que peso, também o corpo casaco, na nossa expressão de valor, face ao tecido de linho não representa senão valor.

Porém, aqui cessa a analogia. Na expressão de peso do pão de açúcar, o ferro representa uma qualidade natural comum aos dois corpos, ao passo que na expressão de valor do tecido o corpo casaco representa uma qualidade supranatural dos dois objectos: o seu valor, um atributo de cunho puramente social.

Logo que a forma relativa expressa o valor duma mercadoria, do tecido de linho, por exemplo, como alguma coisa de completamente diferente do seu próprio corpo e das suas propriedades, ela dá a entender que sob essa expressão se esconde uma relação social.

É o inverso que tem lugar com a forma equivalente. Esta consiste precisamente em que o corpo duma mercadoria, um casaco, por exemplo, tal qual como é, exprime valor, e, por conseguinte, possui naturalmente forma-valor. É verdade que isto só se passa enquanto uma outra mercadoria, por exemplo, o tecido, a ela se reporta como equivalente (20). Mas, assim como as propriedades materiais duma coisa mais não fazem do que se confirmar nas suas relações exteriores com outras coisas, em vez de delas (dessas relações) provirem, assim também o casaco parece retirar da natureza e não da relação de valor com o tecido de linho a sua forma de equivalente, a sua propriedade de ser imediatamente permutável, ao mesmo título que a sua propriedade de ter peso, ou de conservar calor. Daí o aspecto enigmático do equivalente, aspecto que só fere a vista do economista burguês quando esta forma valor se lhe mostra completamente acabada, no dinheiro. Para dissipar o carácter místico da prata e do ouro, ele procura então substituí-los por mercadorias menos ofuscantes; e faz e refaz, com um prazer sempre renovado, o catálogo de todos os artigos que, no seu tempo, jogaram o papel de equivalente. Ele não suspeita que a mais simples expressão de valor, tal como 20 metros de tecido valem um casaco, contém já o enigma e que é sob esta forma simples que ele deve tentar resolvê-lo. 

 

(20) Numa outra ordem de ideias também é assim. Este homem, por exemplo, não é rei senão porque outros homens se reconhecem como seus súbditos e agem como tal. Ao invés, eles crêem ser súbditos porque ele é rei (nas mercadorias, como iremos ver, o “rei” é a forma equivalente geral).

 

Segunda particularidade da forma equivalente: o trabalho concreto torna-se a forma de manifestação do seu contrário, o trabalho humano abstracto.

Na expressão de valor duma mercadoria, o corpo do equivalente figura sempre como materialização do trabalho humano abstracto, e é sempre o produto de um trabalho particular, concreto e útil. Este trabalho concreto não serve aqui (na expressão de valor), portanto, senão para exprimir trabalho abstracto. Se um casaco, por exemplo, é aqui uma mera realização de trabalho humano abstracto, então a actividade do alfaiate que nele se realiza também não é aqui mais do que uma simples forma de realização de trabalho abstracto. Quando se exprime o valor do tecido de linho no casaco, a utilidade do trabalho do alfaiate não consiste no facto de fazer casacos e, segundo o provérbio (Kleid machen Leute) alemão, também homens, mas sim em produzir um corpo transparente de valor, amostra dum trabalho que em nada se distingue do trabalho realizado no valor do tecido. Para se poder incorporar num tal espelho de valor, é preciso que o trabalho do alfaiate não reflicta, ele próprio, mais nada do que a sua propriedade de trabalho humano geral ou abstracto.

As duas formas de actividade produtiva, tecelagem e confecção de vestuário, exigem um dispêndio de força humana. Ambas as duas possuem, pois, a propriedade comum de ser trabalho humano, e em certos casos, como, por exemplo, quando se trata da produção de quantidades de valor, só se devem considerar deste ponto de vista. Nada há nisto de misterioso; mas na expressão de valor da mercadoria a coisa é posta às avessas. Para exprimir, por exemplo, que a tecelagem, não como tal, mas na sua qualidade de trabalho humano abstracto, forma o valor do tecido, é-lhe oposto um outro trabalho, o que produz o casaco, o equivalente do tecido de linho, como a forma expressa na qual o trabalho humano abstracto se manifesta. O trabalho do alfaiate é assim metamorfoseado em simples expressão da sua própria qualidade abstracta.

Terceira particularidade da forma equivalente: o trabalho concreto que produz o equivalente, no nosso exemplo, o do alfaiate, ao servir simplesmente de expressão ao trabalho humano indistinto, possui a forma da igualdade com um outro trabalho, aquele que está encerrado no tecido, e torna-se assim, apesar de ser trabalho privado, como todo e qualquer outro trabalho produtor de mercadorias, trabalho sob forma social imediata. É por isso que ele resulta num produto que é imediatamente permutável com uma outra mercadoria.

 

Está na altura de fazermos uma revisão deitando uma olhadela às Trobriand. Na forma valor simples vegetais = peixe , os agricultores trobriandeses trocam, de cada vez, uma dada quantidade dos seus inhames pelo produto duma faina (tempo de trabalho) dos pescadores. Malinowski diz que a relação de troca tradicional era 1 cesto de inhames = 1 enfiada de 2 a 3 kg de peixe. De facto, como é que eles relacionam os seus respectivos trabalhos particulares? Pelo tempo de trabalho normal (ou médio) para produzir 1 cesto de inhames com o tempo de trabalho normal para pescar 2 a 3 kg de peixe. É como se o pescador, agora, no respectivo tempo de trabalho médio, “pescasse” um cesto de inhames, e o cultivador, que “não pesca nada” de pesca, “colhesse” lá num canto da sua leira uma enfiada de peixes. De resto, e curiosamente, dada a forma valor do seu excedente, peixe = inhames, os pescadores fazem mesmo abstracção tanto do trabalho concreto da horticultura como da forma concreta do seu trabalho útil, a pesca, chamando às suas águas «a nossa casa dos inhames»: na sua ideia, e pelas suas próprias palavras, quando pescam para a troca eles vão ao mar buscar inhames. Como é óbvio, estes seus trabalhos privados estão numa forma imediatamente social: eles produzem uma parte das colheitas e uma parte da pesca apenas para as trocarem entre si como mercadorias equivalentes uma da outra. Uma questão que vai ficar em aberto (e a que Marx só responde completamente no Capítulo III) é a seguinte: é certo que os trabalhos dos agricultores estão aqui igualados entre si na forma de tempo médio para produzir um cesto de inhames, e os dos pescadores, idem aspas para produzir uma enfiada de peixes, portanto, ambos estão reduzidos a tempo de trabalho médio cuja forma-valor é uma certa quantidade do produto (útil) dos outros, mas será que esses tempos de trabalho médio contidos nas duas quantidades determinadas de mercadorias são da mesma grandeza, isto é, serão x horas de esforço “inhameiro” = (idênticas) x horas de “suor” pesqueiro, ou será que a “história” da proporção entre as quantidades de trabalho médio que estão em relação na troca pode ser outra? Não nos esqueçamos que Marx já nos avisou – nos casos teóricos analisados em A. 2. b), em que há efectiva equivalência de valor (igual tempo de trabalho médio) entre duas mercadorias – que a determinação quantitativa do valor relativo não é lá muito “transparente”. E mais importante ainda, porque é a questão essencial: o valor que “transluz” no equivalente é o da mercadoria activa; assim, o agricultor, se fizesse as contas, diria, quanta área de terra e tempo de trabalho precisarei, por exemplo, em 6 meses, para “colher” 26 enfiadas de peixes? A resposta é: a área de terra e o tempo médio de trabalho necessário para produzir 26 cestos de inhames. Ou seja, o tempo de trabalho que a mercadoria activa tem de tomar em conta para “ser” ou “virar” peixe não é, na realidade, o tempo para pescar o peixe, mas sim o tempo necessário para a sua própria produção: inhames. Por seu lado, os pescadores, assumindo o seu pescado o papel de mercadoria activa, fazem a mesma conta às avessas para os inhames que lhe servem de equivalente (por exemplo, quanto tempo é preciso para “pescar” 1 cesto de inhames? Resposta: parte duma faina). Mas, independentemente dos tempos de trabalho socialmente necessário duns e doutros corresponderem exactamente ou não, o certo é que as variações na produtividade se impõem: imaginemos um dia de pesca nas Trobriand que não tenha rendido tanto como o costume. Nesse caso uma menor quantidade de peixe representará o habitual tempo de trabalho duma faina, e o horticultor terá de levar, em troca de, por exemplo, um cesto de inhames, uma enfiada de peixe só com 2 kg ou até menos de peso para casa.

 

As duas particularidades da forma equivalente examinadas em último lugar tornam-se ainda mais fáceis de compreender se remontarmos até ao grande pensador que primeiro analisou a forma valor, assim como tantas outras formas quer do pensamento, quer da sociedade, quer da natureza: estamos a falar de Aristóteles.

Desde logo, Aristóteles exprime claramente que a forma dinheiro da mercadoria mais não é do que o aspecto desenvolvido da forma valor simples, isto é, da expressão do valor duma mercadoria numa outra qualquer mercadoria, pois ele diz: «5 camas = 1 casa» «não difere de»: «5 camas = tanto de dinheiro».

Ele vê, além disso, que a relação de valor que contém esta expressão de valor supõe, por seu lado, que a casa está afirmada do ponto de vista da qualidade como igual à cama, e que estes objectos, que são sensivelmente diferentes, não poderiam comparar-se entre si como grandezas comensuráveis sem essa igualdade de essência. «A troca – diz ele – não pode ter lugar sem a igualdade, nem a igualdade se pode verificar sem a comensurabilidade». Mas aqui ele hesita e renuncia à análise da forma valor. «É na verdade impossível – acrescenta ele – que coisas tão dissemelhantes sejam comensuráveis entre elas», ou seja, de igual qualidade. A afirmação da sua igualdade não pode ser senão contrária à natureza das coisas; «apenas se lhe faz recurso para a necessidade prática (I)».

 

(I) Na edição francesa, tal como na alemã, Marx dá em grego clássico, entre parênteses, as passagens do texto de Aristóteles que cita.

 

Deste modo, o próprio Aristóteles nos diz onde a sua análise acaba por soçobrar – na insuficiência do seu conceito de valor. Qual é o «não sei quê» de igual, quer dizer, a substância comum que a casa representa para a cama na expressão de valor desta última? «Semelhante coisa – diz Aristóteles – não pode na verdade existir». Porquê? A casa só representa face à cama alguma coisa de igual na medida em que ela represente o que há de realmente igual nas duas. O quê, pois? O trabalho humano.

O que impedia Aristóteles de ler na forma-valor das mercadorias que todos os trabalhos são aí expressos como trabalhos humanos indistintos e, por isso, iguais, era o facto de a sociedade grega assentar sobre o trabalho dos escravos e ter por base natural a desigualdade dos homens e das suas forças de trabalho. O segredo da expressão de valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, porque e na medida em que são trabalho humano em geral, não pode ser decifrado senão quando a ideia da igualdade humana já adquiriu a solidez dum pressuposto popular. Mas isto só acontece numa sociedade onde a forma mercadoria se tornou a forma geral dos produtos do trabalho, onde, por consequência, a relação dos homens uns com os outros como produtores e trocadores de mercadorias é a relação social dominante. O que demonstra o génio de Aristóteles é ele ter descoberto na expressão do valor das mercadorias uma relação de igualdade. E só a particular condição da sociedade em que viveu é que o impediu de descobrir qual era, «na verdade», o conteúdo real desta relação.

 

A. 4. O TODO DA FORMA VALOR SIMPLES.

 

A forma simples do valor duma mercadoria está contida na sua relação de valor ou de troca com um único outro género de mercadoria, qualquer que ele seja. O valor da mercadoria A é expresso qualitativamente pela propriedade da mercadoria B de ser imediatamente permutável com A. Ele é expresso quantitativamente pela troca que é sempre possível de um determinado quantum de B contra o quantum dado de A. Por outras palavras, o valor duma mercadoria A somente é expresso quando ela se apresenta como valor de troca.

Quando, pois, no início deste capítulo, para usarmos a maneira corrente de falar, nós dissemos: a mercadoria é valor de uso e valor de troca, a verdade é que isto levado à letra era falso. A mercadoria é valor de uso ou objecto útil, e valor. Ela expõe-se como aquilo que é, esta coisa dupla, logo que o seu valor possui uma forma fenoménica própria, distinta da sua forma natural – a forma de valor de troca; e nunca possui esta forma se a considerarmos (a essa mercadoria) isoladamente. Mas, logo que o saibamos, o tradicional modo de dizer não tem mal nenhum e serve-nos de abreviação.

Ressalta da nossa análise que é da natureza do valor das mercadorias que provém a sua forma, e que não é, ao invés, da maneira de as exprimir por uma relação de troca que brotam o valor e a sua grandeza. É aí que está, contudo, o erro dos mercantilistas e dos seus modernos zeladores, os Ferrier, os Ganilh, etc. (21), bem como dos seus antípodas, os commis voyageurs (caixeiros-viajantes) do livre-câmbio, tais que Bastiat e consortes. Os mercantilistas acentuam sobretudo o lado qualitativo da expressão de valor, portanto, a forma de equivalente da mercadoria, que reluz aos olhos na forma dinheiro; os modernos campeões do livre-câmbio, que querem desembaraçar-se a todo o custo da sua mercadoria, fazem sobressair exclusivamente o lado quantitativo da forma relativa do valor. Para eles não existe, pois, nem valor nem grandeza de valor excepto na sua expressão pela relação de troca, o que na prática quer dizer que para eles não há valor nem quantidade de valor excepto na cotação quotidiana de preços correntes. O escocês Macleod, que se entregou à tarefa de revestir e ornamentar com um enorme luxo erudito a trapalhada das ideias preconcebidas da Lombard Street – a rua dos grandes banqueiros de Londres –, constitui a síntese conseguida dos mercantilistas supersticiosos e dos espíritos esclarecidos do livre-câmbio.

 

(21) F. L. A. Ferrier (sub-inspector das alfândegas): Du gouvernment considéré dans ses rapports avec le commerce, Paris, 1805; e Charles Ganilh: Des systemes d’économie politique, 2ª edição, Paris, 1821.

 

Um exame mais atento da expressão do valor de A em B mostrou que nesta relação a forma natural da mercadoria A apenas figura como valor de uso, e a forma natural da mercadoria B apenas como forma de valor. A oposição íntima entre o valor de uso e o valor de uma mercadoria é assim exposta externamente pela relação de duas mercadorias, relação na qual A, cujo valor deve ser expresso, não releva imediatamente senão como valor de uso, ao passo que B, ao invés, na qual o valor é expresso, apenas releva imediatamente como valor de troca. A forma valor simples de uma mercadoria é, pois, a mera forma da aparição dos contrastes que ela encerra, isto é, do valor de uso e do valor.

O produto do trabalho é, qualquer que seja o estado do desenvolvimento social, sempre valor de uso ou objecto útil; mas apenas existe uma determinada época no desenvolvimento histórico da sociedade que transforma em geral o produto do trabalho em mercadoria, e essa época é aquela onde o trabalho despendido na produção dos objectos úteis reveste o carácter duma qualidade inerente a estas coisas, ou seja, reveste a figura do seu valor.

O produto do trabalho adquire a sua forma mercadoria logo que o seu valor adquire a forma do valor de troca, oposta à sua forma natural; logo que, portanto, ele é representado como a unidade na qual se fundem esses contrastes. Segue-se daqui que a forma simples que assume o valor da mercadoria é também a forma primitiva na qual o produto de trabalho se apresenta como mercadoria, e que o desenvolvimento da forma mercadoria marcha ao mesmo passo que o da forma valor.

Logo à primeira vista nos apercebemos da insuficiência da forma valor simples, esse germe que tem de passar por uma série de metamorfoses antes de chegar à forma preço.

Com efeito, a forma simples mais não faz que distinguir entre o valor e o valor de uso de uma mercadoria e pô-la em relação de troca com uma única espécie duma qualquer outra mercadoria, em vez de representar a sua igualdade qualitativa e a sua proporcionalidade quantitativa com todas as mercadorias. Logo que o valor duma mercadoria é expresso nesta forma simples, uma outra mercadoria assume por seu lado a forma de equivalente simples. Assim, por exemplo, na expressão do valor relativo do tecido de linho, o casaco não possui a forma de equivalente, forma que indica que ele é imediatamente permutável, a não ser em relação a uma outra mercadoria, o tecido.

No entanto, a forma valor simples passa, por si própria, a uma forma mais completa. Ela não exprime, é certo, o valor duma mercadoria A senão num único outro género de mercadoria. Mas o género desta segunda mercadoria pode ser absolutamente tudo o que se quiser, casaco, ferro, trigo, e assim por diante. As expressões de valor duma mercadoria tornam-se, pois, tão variadas quanto as suas relações de valor com outras mercadorias (21). A expressão isolada do seu valor metamorfoseia-se assim numa série de expressões simples sempre possível de prolongar.

 

(21) Nota da 2ª edição alemã. Por exemplo, em Homero, o valor duma coisa é expresso numa série de coisas diversas.

 

B. FORMA VALOR TOTAL OU EXTENSIVA.

 

z mercadoria A = u mercadoria B, ou = v mercadoria C, ou = x mercadoria E, ou = etc.

 

20 metros de tecido de linho = 1 casaco, ou = 10 libras de chá, ou = 40 libras de café, ou = 2 onças de ouro, ou = ½ tonelada de ferro, ou = etc.

 

B. 1. A FORMA EXTENSIVA DO VALOR RELATIVO.

 

O valor duma mercadoria, do tecido, por exemplo, é agora representado em numerosos outros elementos. Ele reflecte-se em todo e qualquer outro corpo de mercadoria como num espelho (22).

 

(22) Eis porque se fala do valor-casaco do tecido quando se exprime o seu valor em casacos, do seu valor-cereal quando o exprimimos em cereal, etc. Cada expressão semelhante dá a entender que é o seu próprio valor (da mercadoria tecido) que se manifesta nesses diversos valores de uso.

“Denotando o valor duma mercadoria a sua relação de troca [com uma outra qualquer mercadoria], podemos, pois, falar [deste valor como] do seu valor cereal, do seu valor casaco, em relação à mercadoria à qual ele é comparado; e, então, há milhares de espécies de valor, tantas espécies de valor quantos os géneros de mercadorias que existem, e todas são igualmente reais e igualmente nominais.» (A Critical Dissertation on the Nature, Measures and Causes of Value; chiefly in reference to the writings of Mr. Ricardo and his followers. By the author of Essays on the Formation, etc., of Opinions, Londres, 1825, pág. 39). S. Bailey, o autor deste escrito anónimo que no seu tempo fez muito alvoroço em Inglaterra, imagina ter aniquilado todo o conceito positivo do valor com esta enumeração das variadas expressões relativas do valor duma mesma mercadoria. Fosse qual fosse a sua tacanhez de espírito, não deixa de ser verdade que ele por vezes pôs a nu os defeitos da teoria de Ricardo. A prova disso é a irritação com que a escola ricardiana o atacou, por exemplo, na Westminster Review.

 

Todo e qualquer outro trabalho, qualquer que seja a sua forma natural, confecção de roupa, sementeira, extracção de ferro ou ouro, etc., é agora afirmado igual ao trabalho fixado no valor do tecido de linho, que assim manifesta o carácter de trabalho humano geral. A forma total do valor relativo põe uma mercadoria em relação social com todas as outras. Ao mesmo tempo, a série interminável das suas expressões de valor demonstra que o valor das mercadorias reveste indistintamente qualquer forma particular de valor de uso.

Na primeira forma: 20 metros de tecido = 1 casaco, pode parecer que é devido ao acaso que as duas mercadorias são permutáveis nesta determinada proporção.

Na segunda forma, pelo contrário, percebe-se de imediato o que se esconde sob aquela aparência. O valor do tecido mantém-se o mesmo (x tempo de trabalho socialmente necessário) quer se o exprima em roupas, café, ferro, nas inúmeras mercadorias pertencentes aos mais diversos permutadores. Torna-se evidente que não é a troca que regula a quantidade de valor duma mercadoria, mas, ao invés, a quantidade de valor da mercadoria que regula as suas relações de troca.

 

B. 2. A FORMA EQUIVALENTE PARTICULAR.

 

Cada mercadoria, casaco, trigo, chá, ferro, etc., serve de equivalente na expressão de valor do tecido. A forma natural de cada uma destas mercadorias é agora uma forma equivalente particular ao lado de muitas outras. Do mesmo modo, os diversos géneros de trabalhos úteis contidos nos diversos corpos de mercadorias representam outras tantas formas particulares de realização ou de manifestação, pura e simples, de trabalho humano em geral.

 

B. 3. DEFEITOS DA FORMA VALOR TOTAL OU EXTENSIVA.

 

Antes de mais, a expressão relativa de valor é inacabada, porque a série dos seus termos nunca se fecha. A cadeia em que cada comparação de valor forma um elo pode sempre alongar-se cada vez que uma nova espécie de mercadoria vem fornecer o material para uma nova expressão. Se, para além disso, como tem de acontecer, esta forma se generaliza, sendo aplicada a todo o género de mercadorias, obter-se-á, no fim, tantas séries diversas e intermináveis de mercadorias quantas as mercadorias que houver. – Os defeitos da forma extensiva do valor relativo reflectem-se na forma equivalente que lhe corresponde. Como a forma natural (valor de uso) de cada espécie de mercadorias fornece aqui uma forma equivalente particular ao lado dum número infinito de outras, em geral não existem senão formas de equivalente fragmentárias em que cada uma delas exclui a outra (qualquer mercadoria exclui qualquer outra mercadoria como seu equivalente particular, quer dizer, como um valor de uso em que expressa o seu valor). Do mesmo modo, o género de trabalho útil, concreto, contido em cada equivalente particular não releva senão como uma forma particular, ou seja, uma manifestação incompleta de trabalho humano em geral. É verdade que este trabalho possui de facto a sua forma completa ou total de manifestação no conjunto das suas formas particulares (em todas elas se manifesta como tempo de trabalho médio necessário). Mas falta-lhe uma unidade de forma e expressão (que o reflicta apenas como tempo de trabalho médio necessário, portanto, desvinculada de qualquer forma particular de trabalho e do correspondente valor de uso que é o seu produto).

 

Também se nos depara esta forma nas Trobriand, por exemplo, numa relação habitual de troca, 1 cesto de inhames = 1 enfiada de peixe, ou = 1 prato de madeira, ou = 8 cocos, ou etc.

 

A forma total ou extensiva do valor relativo não consiste, no entanto, em mais do que uma soma de expressões relativas simples ou equações da primeira forma como:

20 metros de tecido = 1 casaco.

20 metros de tecido = 10 libras de chá, etc.,

em que cada uma contém reciprocamente a equação idêntica:

1 casaco = 20 metros de tecido.

10 libras de chá = 20 metros de tecido, etc.

Com efeito, se o possuidor do tecido de linho o troca contra muitas outras mercadorias e exprime, por isso, o seu valor numa série de outros tantos termos, então os possuidores das outras mercadorias têm de trocá-las contra o tecido e exprimir os valores das suas diversas mercadorias num só e mesmo termo, o tecido. – Se, pois, nós virarmos a série: 20 metros de tecido = 1 casaco, ou 10 libras de chá, ou = etc., quer dizer, se exprimirmos a recíproca que já está ali implicitamente contida, obtemos:

 

C. FORMA VALOR GERAL

 

1 casaco =

10 libras de chá =

40 libras de café =

2 onças de ouro =         {20 metros de tecido

½ tonelada de ferro =

x de mercadoria A  =

etc.  =

 

C. 1. MUDANÇA DE CARÁCTER DA FORMA VALOR.

 

As mercadorias exprimem agora os seus valores: 1º duma maneira simples, porque elas o fazem numa só espécie de mercadorias (como na forma valor simples); 2º em conjunto, porque elas o fazem na mesma espécie de mercadorias. A sua forma valor é simples e comum, por conseguinte, geral.

As formas I (A) e II (B) não conseguiam exprimir o valor duma mercadoria senão como qualquer coisa de distinto do seu próprio valor de uso ou da sua própria matéria. A primeira forma fornece equações tais como esta: 1 casaco = 20 metros de tecido de linho; 10 libras de chá = ½ tonelada de ferro, etc. O valor do casaco é expresso como qualquer coisa de igual ao tecido, o valor do chá como qualquer coisa de igual ao ferro. etc, mas estas expressões de valor do casaco e do chá são tão diferentes uma da outra quanto o são o tecido de linho e o ferro. Esta forma não ocorre na prática, como é evidente, senão em épocas primitivas, quando os produtos do trabalho só se transformavam em mercadorias por trocas acidentais e isoladas (Nas Trobriand, de facto, quando Malinowski lá chegou, a troca de vegetais por peixe era apenas a troca mais habitual entre outras trocas de mercadorias, tendo as mercadorias já evoluído para a forma valor total; aqueles dois produtos eram os principais excedentes das ilhas. Todavia, temos como factores excepcionais que favoreceram aqui a troca: a proximidade de comunidades com diferentes trabalhos e produtos numa pequena área territorial, uma muito grande fertilidade do solo no interior e costas marítimas e lagoas ricas em peixe; devido a isto, as trocas dos excedentes da pesca e da horticultura hão-de rapidamente ter ganho um carácter regular e geral entre os membros dos dois tipos de comunidades).

A segunda forma exprime mais completamente do que a primeira a diferença que existe entre o valor duma mercadoria, por exemplo, de um casaco, e o seu próprio valor de uso. Com efeito, o valor do casaco toma aí todas as figuras possíveis que estão frente à sua forma natural; ele parece-se com o tecido de linho, o chá, o ferro, com tudo excepto um casaco. Por outro lado, esta forma valor torna impossível qualquer expressão comum do valor das mercadorias, visto que na expressão de valor de qualquer mercadoria todas as outras figuram como equivalentes, e são, por conseguinte, incapazes de exprimir o seu próprio valor (isto é, nesta forma-valor duma mercadoria as outras apenas figuram como valores de uso que exprimem o valor dela). Esta forma valor extensiva ocorre na realidade logo que um produto do trabalho, o gado, por exemplo, é trocado contra todas as outras diferentes mercadorias já não excepcionalmente mas de maneira habitual (uma peculiaridade trobriandesa: aqui são duas e não uma mercadoria, inhames e peixe, que começam a ser trocadas habitualmente, primeiro entre si, e depois contra outras diversas mercadorias).

Na expressão geral do valor relativo, pelo contrário, cada mercadoria, seja casaco, café, ferro, etc., possui uma só e mesma forma valor – por exemplo, a forma tecido de linho – diferente da sua forma natural. Em virtude desta parecença com o tecido, o valor de cada mercadoria é agora distinto não só do seu próprio valor de uso mas também de todos os outros valores de uso, e, por isso mesmo, representado como o carácter comum e indistinto de todas as mercadorias. Esta forma é a primeira que põe as mercadorias em relação entre elas como valores, fazendo-as aparecer umas perante as outras como valores de troca (“deslastrando-as” das formas valor naturais).

As duas primeiras formas exprimem o valor duma mercadoria qualquer seja numa outra mercadoria diversa, seja numa série de muitas outras mercadorias. De cada vez é, por assim dizer, assunto particular de cada mercadoria, tomada isoladamente, dar-se uma forma valor, e ela fá-lo sem que as outras mercadorias nisso se envolvam. Estas desempenham defronte dela o papel puramente passivo do equivalente (de mero objecto de uso em que elas expressam o seu valor). A forma geral do valor relativo não se produz, ao invés, senão como obra comum das mercadorias no seu conjunto. Uma mercadoria não adquire a sua expressão de valor geral senão porque, ao mesmo tempo, todas as outras mercadorias exprimem os seus valores no mesmo equivalente, e cada nova espécie de mercadoria que apareça tem de fazer o mesmo. Mais ainda, torna-se evidente que as mercadorias, que do ponto de vista do valor são coisas (ou “seres”) absolutamente sociais, também não podem exprimir esta existência social a não ser por uma série que abarque todas as suas ligações recíprocas; torna-se evidente que a sua forma valor tem, por conseguinte, de ser uma forma socialmente válida (e não um «assunto particular» de cada mercadoria).

A forma natural da mercadoria que vem a ser o equivalente comum, o tecido de linho, é agora a forma oficial dos valores. É assim que as mercadorias mostram umas às outras não só a sua igualdade qualitativa como também as suas diferenças quantitativas de valor. As quantidades de valor projectadas como sobre um mesmo espelho, o tecido, reflectem-se reciprocamente.

Exemplo: 10 libras de chá = 20 metros de tecido, e 40 libras de café = 20 metros de tecido. Portanto 10 libras de chá = 40 libras de café, ou não há em 1 libra de café mais que ¼ do trabalho contido em 1 libra de chá.

A forma geral do valor relativo ao abranger o mundo das mercadorias imprime à mercadoria equivalente que dele (desse mundo) é excluída o carácter de equivalente geral. O tecido de linho é agora imediatamente trocável com todas as outras mercadorias. A sua forma natural é pois ao mesmo tempo a sua forma social. A tecelagem, o trabalho privado que produz o tecido, adquire por isso mesmo o carácter de trabalho social, adquire a forma da igualdade com todos os outros trabalhos. As inumeráveis equações de que se compõe a forma geral do valor identificam o trabalho realizado no tecido com o trabalho contido em cada mercadoria que com ele (o tecido de linho) é sucessivamente comparada e fazem da tecelagem a forma geral na qual se manifesta o trabalho humano (todos os trabalhos contidos nas mercadorias se reduziram a tempos de trabalhos médios que se expressam em dadas quantidades de tecido de linho e, portanto, também se igualam às correspondentes quantidades de trabalho médio ou socialmente necessário presente na tecelagem). Desta maneira, o trabalho realizado no valor das mercadorias não é apenas representado negativamente, quer dizer, como uma abstracção em que desaparecem as formas concretas e as propriedades úteis do trabalho real; a sua natureza positiva afirma-se claramente. Ele é a redução de todos esses trabalhos reais ao seu carácter comum de trabalho humano, de dispêndio da mesma força humana de trabalho.

A forma geral do trabalho mostra, pela sua estrutura mesma, que ela é a expressão social do mundo das mercadorias. Ela revela, por conseguinte, que nesse mundo o carácter humano ou geral do trabalho forma o seu carácter social específico.

 

C. 2. RELAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA FORMA VALOR RELATIVA E DA FORMA EQUIVALENTE.

 

A forma equivalente desenvolve-se simultaneamente e gradualmente com a forma relativa; mas, e é isto que é preciso remarcar bem, o desenvolvimento da primeira não é senão o resultado e a expressão do desenvolvimento da segunda. É desta que parte a iniciativa.

A forma valor relativa simples ou isolada duma mercadoria supõe uma outra mercadoria qualquer como equivalente acidental. A forma extensiva do valor relativo, essa expressão do valor duma mercadoria em todas as outras, imprime-lhes a todas a forma de equivalentes particulares de espécie diferente. Enfim, uma mercadoria específica adquire a forma de equivalente geral  porque todas as outras mercadorias fazem dela o material da sua forma geral de valor relativo.

À medida entretanto que a forma valor em geral se desenvolve, desenvolve-se também a oposição entre os seus dois pólos, valor relativo e equivalente. Mesmo a primeira forma valor, 20 metros de tecido = 1 casaco, já contém esta oposição, mas não a fixa. Nesta equação, um dos termos, o tecido,  encontra-se sob a forma valor relativa, e o termo oposto, o casaco, sob a forma equivalente. Se agora lermos às avessas esta equação, o tecido e o casaco trocam exactamente de papel, mas a forma da equação mantém-se a mesma. Assim é difícil de fixar aqui a oposição entre os dois termos.

Sob a forma II, uma espécie de mercadoria pode desenvolver completamente o seu valor relativo, ela reveste a forma total do valor relativo porque e enquanto todas as outras mercadorias se encontram frente a ela sob a forma equivalente.

Aqui já não se pode mais virar ao contrário os dois termos da equação sem mudar completamente o seu carácter e sem fazê-la passar da forma valor total à forma valor geral.

Enfim, a última forma, a forma III, dá ao conjunto das mercadorias uma expressão de valor relativa geral porque e enquanto que ela exclui da forma equivalente todas as mercadorias à excepção duma só. Uma mercadoria, o tecido de linho, encontra-se por conseguinte sob a forma de trocabilidade imediata com todas as outras mercadorias porque e enquanto estas não se encontram nessa forma (23).

 

(23) A forma de trocabilidade imediata e universal não indica de modo nenhum ao primeiro golpe de vista que é uma forma polarizada, encerrando nela oposições, e tão absolutamente inseparável da forma contrária sob a qual a trocabilidade imediata não é possível quanto a função positiva dum dos pólos de um imã o é da função negativa do outro pólo (estudaremos estas oposições no capítulo III). Pode-se pois imaginar que temos a faculdade de tornar todas as mercadorias imediatamente permutáveis, como se pode figurar que todos os católicos podem ser feitos papas ao mesmo tempo. Mas, na realidade, a forma valor relativa geral e a forma equivalente geral são os dois pólos opostos, que se supõem e repelem reciprocamente, da mesma relação social das mercadorias.

Esta impossibilidade da troca imediata entre as mercadorias é um dos principais inconvenientes vinculados à actual forma da produção, na qual, no entanto, o economista burguês vê o nec plus ultra (a forma superior e final) da liberdade humana e da independência individual. Muitos esforços inúteis, utópicos, se fizeram para tentar vencer este obstáculo. Eu mostrei noutro lugar que Proudhon já havia sido precedido nessa tentativa por Bray, e Gray outros mais.

Nota da 1ª edição alemã: Tal não impede este género de sabedoria de fazer estragos em França, hoje em dia, sob o nome de «ciência». Jamais uma escola abusou tanto da palavra «ciência» como a escola proudhoniana, pois

...lá onde faltam as ideias,

Muito a propósito se apresenta uma palavra (I).

(I) Goethe: Fausto, primeira parte, cena 4 (Gabinete de Trabalho II), 9ª fala a contar do fim de Mefistófeles com o estudante.

 

Sob esta forma III, o mundo das mercadorias não possui, portanto, uma forma valor relativa social e geral senão porque todas as mercadorias que dele fazem parte estão excluídas da forma equivalente ou da forma sob a qual elas são imediatamente permutáveis. Pelo contrário, a mercadoria que funciona como equivalente geral, por exemplo, o tecido de linho, já não pode fazer parte da forma geral do valor relativo; seria preciso, para isso, que ela se pudesse servir de si mesma como equivalente. Obteríamos então: 20 metros de tecido = 20 metros de tecido de linho, uma tautologia que não exprime nem valor nem quantidade de valor. Para exprimir o valor relativo do equivalente geral é-nos preciso ler às avessas a forma III. Ele (o tecido) não possui nenhuma forma relativa comum com as outras mercadorias, mas, diversamente, o seu valor exprime-se relativamente na série interminável de todas as outras mercadorias. A forma total ou extensiva do valor relativo, ou forma II, aparece-nos agora, deste modo, como a forma específica na qual o equivalente geral exprime o seu próprio valor.

 

C. 3. TRANSIÇÃO DA FORMA VALOR GERAL PARA A FORMA DINHEIRO.

 

A forma equivalente geral é uma forma do valor em geral. Ela pode pois pertencer a não importa que mercadoria (I). Por outro lado, uma mercadoria não se pode encontrar sob esta forma (forma III) a não ser que ela própria seja excluída por todas as outras mercadorias como equivalente. É só a partir do momento em que este carácter exclusivo se vem prender a um género especial de mercadoria que a forma valor relativa ganha consistência, se fixa num objecto único e adquire uma autenticidade social.

 

(I) Sendo a forma dominante nas Trobriand a forma valor total ou extensiva de cada mercadoria (II), esta forma valor geral (III) apenas ali começava a despontar em potência, na figura, por exemplo, dos inhames taytu.

 

A mercadoria especial com a forma natural da qual a forma equivalente se identifica pouco a pouco, na sociedade, torna-se mercadoria dinheiro ou funciona como dinheiro. A sua função específica e, consequentemente, o seu monopólio social é jogar o papel de equivalente universal no mundo das mercadorias. Entre as mercadorias que, na forma II, figuram como equivalentes particulares do tecido e que, na forma III, exprimem em conjunto no tecido o seu valor relativo foi o ouro que acabou por conquistar historicamente este privilégio. Coloquemos, pois, na forma III a mercadoria ouro no lugar da mercadoria tecido, e obtemos:

 

D. FORMA DINHEIRO (24).

 

20 metros de tecido de linho =

1 casaco =

10 libras de chá =

40 libras de café =                       { 2 onças de ouro

½ tonelada de ferro =

x de mercadoria A  =

etc.  =

 

(24) Traduzindo literalmente, o título seria «Forma moeda ou prata». Esta nota, para falantes da língua portuguesa, é tão-só uma mera curiosidade. A tradução exacta para francês das palavras alemãs «Geld, Geldform» (dinheiro, forma dinheiro) apresenta uma dificuldade. A expressão: «forme argent» (forma dinheiro, mas também, em sentido literal, forma prata) pode aplicar-se indistintamente a todas as mercadorias salvo aos metais preciosos. Não se pode dizer, por exemplo, sem causar uma certa confusão no espírito dos leitores: «forma prata da prata», ou bem, «o ouro torna-se prata». Por sua vez, a expressão «forme monnaie» (forma moeda) apresenta um outro inconveniente, que provém do facto de no francês a palavra «moeda» ser frequentemente empregue no sentido de peças monetárias. Nós usamos alternativamente os termos «forma moeda» e «forma prata» consoante os casos, mas sempre com o mesmo sentido (o sentido de dinheiro).

 

Têm lugar mudanças essenciais na transição da forma I para a forma II e da forma II para a forma III. A forma IV, pelo contrário, em nada difere da forma III a não ser pelo facto de que agora é o ouro que possui, em vez do tecido, a forma de equivalente geral. O progresso consiste muito simplesmente em que a forma de equivalente geral se incorporou em definitivo na forma natural e específica do ouro.

O ouro não joga o papel de dinheiro frente às outras mercadorias senão porque ele já antes disso desempenhava, frente a elas, o papel de mercadoria. Tal como todas elas, ele funcionava também como equivalente, quer acidentalmente nas trocas isoladas, quer como equivalente particular ao lado de outros equivalentes. Pouco a pouco, ele passou a funcionar em limites mais ou menos amplos como equivalente geral. Logo que conquistou o monopólio dessa posição na expressão de valor do mundo mercantil, ele tornou-se mercadoria dinheiro, e só a partir do momento em que ele (ou, antes dele, outra mercadoria) já é mercadoria dinheiro é que a forma IV se distingue da forma III, ou que a forma geral de valor se metamorfoseia em forma dinheiro.

A expressão de valor relativa simples duma mercadoria, do tecido de linho, por exemplo, na mercadoria que já funciona como dinheiro, por exemplo, o ouro, é a forma preço. A forma preço do tecido é, pois:

20 metros de tecido = 2 onças de ouro,

ou, se 2 libras esterlinas forem o nome monetário de 2 onças de ouro,

20 metros de tecido = 2 libras esterlinas.

A dificuldade no conceito da forma dinheiro é, muito simplesmente, a de perceber bem a forma equivalente geral, quer dizer, a forma valor geral, a forma III. Esta resolve-se na forma valor extensiva, a forma II, e o elemento constituinte desta última é a forma I:

20 metros de tecido de linho = 1 casaco, ou x de mercadoria A = y de mercadoria B.

A forma simples da mercadoria é por conseguinte o germe da forma dinheiro (25).

 

(25) A economia política clássica nunca conseguiu deduzir da sua análise da mercadoria, e em especial do valor desta mesma mercadoria, a forma sob a qual ela devém valor de troca, e é aí que reside um dos seus principais defeitos. São precisamente os seus melhores representantes, a começar por Adam Smith e Ricardo, que tratam a forma valor como algo de indiferente ou que não tem nenhuma relação íntima com a própria natureza da mercadoria. E isto não sucede apenas porque o valor como quantidade lhes absorva a atenção. A razão é mais profunda. A forma valor do produto do trabalho é a forma mais abstracta e a forma mais geral do modo de produção actual, que ganha por isso mesmo um carácter histórico, o de um modo particular de produção social. Se se comete o erro de a tomar pela forma natural, eterna, de toda a produção em todas as sociedades, deixa-se necessariamente de ver o aspecto específico da forma valor, seguidamente da forma mercadoria, e num estádio mais desenvolvido, da forma dinheiro, forma capital, etc. É isto que explica o porquê de encontrarmos, entre economistas completamente de acordo entre si no que respeita à medida da quantidade de valor pela duração do trabalho, as mais diversas e as mais contraditórias ideias sobre o dinheiro, quer dizer, sobre a forma fixa do equivalente geral (que é precisamente a forma social universal do tempo de trabalho médio necessário se manifestar nas mercadorias). Isto nota-se sobretudo quando se trata de questões tais como, por exemplo, as dos bancos; assiste-se então a um nunca mais acabar de definições do dinheiro e de lugares comuns que são constantemente debitados a tal respeito. – Quero sublinhar duma vez por todas que entendo por economia política clássica toda a economia que, a partir de William Petty, procura penetrar no sistema real e íntimo das relações de produção da sociedade burguesa, em oposição à economia vulgar que se contenta com as aparências, que rumina sem cessar, para as suas necessidades próprias e para a vulgarização dos fenómenos mais grosseiros, os materiais já elaborados pelos seus predecessores, e que se cinge a erigir pedantescamente em sistema e a proclamar como verdades eternas as ilusões com que o burguês gosta de povoar o seu mundo particular, em sua opinião, o melhor dos mundos possíveis.

 

IV. – O CARÁCTER FETICHE DA MERCADORIA E O SEU SEGREDO.

 

Uma mercadoria parece ser à primeira vista qualquer coisa de trivial e que se compreende por si mesma. A nossa análise mostrou, pelo contrário, que é uma coisa muito complexa, cheia de subtilezas metafísicas e de argúcias teológicas. Enquanto valor de uso, seja porque ela satisfaz as necessidades dos homens através das suas propriedades, seja porque as suas propriedades são produzidas pelo trabalho humano, nada há nela de misterioso. É evidente que a actividade do homem transforma as matérias fornecidas pela natureza de maneira a torná-las úteis. A forma da madeira, por exemplo, é modificada se dela fizermos uma mesa. Não obstante a mesa continua a ser madeira, uma coisa banal e que cai no domínio dos sentidos. Mas logo que ela se apresenta como mercadoria o assunto muda de figura. Sensível e etérea ao mesmo tempo, não lhe é suficiente pousar os seus pés no chão; ela está assente, por assim dizer, sobre a sua cabeça de pau em face das outras mercadorias e entrega-se a caprichos mais bizarros do que se se pusesse a dançar (26).

 

(26) Hão-de recordar-se que a China e as mesas começaram a dançar (alusões à revolta Taiping e às mesas de pé-de-galo do espiritismo) quando todo o resto do mundo parecia não se mexer – pour encourager les autres (para encorajar os outros).

 

O carácter místico da mercadoria não brota, portanto, do seu valor de uso. Nem tão-pouco provém dos caracteres (do trabalho) que determinam o valor. Desde logo, com efeito, por mais variadas que possam ser os trabalhos úteis ou as actividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são antes de tudo funções do organismo humano, e que toda a função similar, quaisquer que sejam o seu conteúdo e forma, é essencialmente um dispêndio do cérebro, dos nervos, dos músculos, dos órgãos, dos sentidos, etc., do homem. Em segundo lugar, quanto àquilo que serve para determinar a quantidade do valor, quer dizer, a duração deste dispêndio ou a quantidade de trabalho, não é possível negar que esta quantidade de trabalho se distingue até visivelmente da sua qualidade. Em todos os estados sociais o tempo que é preciso para produzir os meios de consumo teve de interessar o homem, embora de modo desigual, conforme os diversos níveis da civilização (27). Enfim, logo que os homens trabalhem dum modo qualquer uns para os outros o seu trabalho adquire, por isso, uma forma social.

Donde provém pois o carácter enigmático do produto do trabalho logo que ele reveste a forma duma mercadoria? Evidentemente desta própria forma.

 

(27) Nota da 2ª edição alemã: Entre os antigos Germanos a grandeza de um arpente de terra (a nossa «jeira» = terreno que uma junta de bois pode lavrar num dia) era calculada pelo trabalho de um dia, e daí o seu nome Tagwerk (trabalho de um dia), Mannwerk (trabalho de um homem), etc.; (jurnale ou jurnalis, terra jurnalis ou diurnalis). Aliás a expressão «jornal» de terra subsiste ainda em certas partes de França.  Ver Georg Ludwig von Maurer: Einleitung zur Geschichte der Mark-, Hof-, Dorf- und Stadt-Verfassung..., Munique, 1854.

 

O carácter de igualdade dos trabalhos humanos adquire a forma de valor dos produtos do trabalho; a medida dos trabalhos individuais pela sua duração em tempo de trabalho socialmente necessário adquire a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho; enfim, as relações dos produtores, nas quais se afirmam os caracteres sociais dos seus trabalhos, adquirem a forma duma relação social dos produtos do trabalho. Eis o porquê destas coisas se converterem em mercadorias, isto é, em coisas que caem e não caem no domínio dos sentidos, ou coisas sociais. É tal como a impressão luminosa de um objecto sobre o nervo óptico, que não se apresenta como uma excitação subjectiva do próprio nervo, mas sim como a forma sensível de qualquer coisa que existe fora do olho (a forma valor, que é a expressão de determinadas relações sociais de trabalho, não parece ser o modo como estas se reflectem no cérebro dos homens, parecendo, ao invés, existir fora da mente deles, nos próprios objectos). Todavia é preciso acrescentar que, no acto de ver, a luz é realmente projectada dum objecto exterior sobre um outro objecto, o olho; é uma relação física entre coisas físicas. Ao passo que a forma valor e a relação de valor dos produtos do trabalho não têm absolutamente nada que ver com a natureza física destes. Para encontrar uma analogia para este fenómeno é preciso ir procurá-la na região obscura do mundo religioso. Lá os produtos do cérebro humano têm o aspecto de seres independentes, dotados de corpos particulares, em comunicação com os homens e entre si próprios. O mesmo sucede aos produtos da mão humana no mundo das mercadorias. É a isto que podemos chamar o fetichismo agarrado aos produtos do trabalho, mal eles se apresentam como mercadorias, fetichismo que é inseparável deste modo de produção.

Em geral, os objectos úteis não se tornam mercadorias senão porque são produtos de trabalhos privados executados independentemente uns dos outros. O conjunto destes trabalhos privados forma o trabalho social. Como os produtores não entram socialmente em contacto senão na troca dos seus produtos, é apenas nos limites desta troca que antes do mais se afirmam os caracteres sociais dos seus trabalhos privados. Ou então os trabalhos privados não se manifestam na realidade como divisões do trabalho social senão pelas relações que a troca estabelece entre os produtos de trabalho e, de seguida, indirectamente, entre os produtores. Daqui resulta que, para estes últimos, as relações dos seus trabalhos privados aparecem como aquilo que são, quer dizer, não são relações sociais imediatas das pessoas nos seus respectivos  trabalhos, mas sim antes relações sociais entre as coisas.

É somente na sua troca que os produtos do trabalho adquirem como valores uma existência social idêntica e uniforme, distinta da sua existência material e multiforme como objectos úteis. Esta cisão do produto do trabalho em objecto útil e objecto de valor amplia-se na prática logo que a troca adquiriu assaz extensão e importância para que os objectos úteis sejam produzidos com vista à permuta, de modo que o carácter de valor destes objectos é já tomado em consideração na sua própria produção. A partir deste momento, os trabalhos privados dos produtores adquirem de facto um duplo carácter social. Por um lado, eles devem de ser trabalho útil, satisfazer necessidades sociais, e afirmar-se assim como partes integrantes do trabalho geral, dum sistema de divisão social do trabalho que se forma espontaneamente; por outro lado, eles não satisfazem as diversas necessidades dos próprios produtores senão porque cada espécie de trabalho privado útil é permutável com todas as outras espécies de trabalho privado útil, quer dizer, é reputado seu igual. A igualdade de trabalhos que diferem toto coelo (completamente) uns dos outros não pode consistir senão numa abstracção da sua real desigualdade, na redução ao seu carácter comum de dispêndio de força humana, de trabalho humano em geral, e é a troca, sozinha, que opera esta redução ao pôr na presença uns dos outros, num pé de igualdade, os produtos dos trabalhos mais diversos.

O duplo carácter dos trabalhos privados não se reflecte no cérebro dos produtores senão na forma que lhes imprime o intercâmbio prático, a troca dos produtos. Quando os produtores colocam em presença e em relação os produtos do seu trabalho a título de valores, não é porque vejam neles um simples invólucro sob o qual se esconde um idêntico trabalho humano; é totalmente ao contrário: ao reputarem iguais na troca os seus diferentes produtos, eles estabelecem que os seus diferentes trabalhos são de facto iguais. Eles fazem-no sem o saber (28). O valor não traz portanto escrito na cara aquilo que é. Ele faz, isso sim, de cada produto do trabalho um hieróglifo. Não é senão com o tempo que o homem tenta decifrar o sentido do hieróglifo, procura desvendar os segredos da obra social na qual participa, pois a transformação dos objectos úteis em valores é um produto da sociedade, inteiramente como, aliás, a linguagem.

 

(28) Quando, pois, Galiani diz: «o valor é uma relação entre duas pessoas» (la ricchezza è una ragione tra due persone), ele devia ter acrescentado: uma relação escondida sob o invólucro de coisas. Galiani: Della Moneta, pág. 221, tomo III da colectânea de Custodi: Scrittori classici italiani di Economia politicaParte moderna, Milão, 1803.

 

A descoberta científica feita mais tarde de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são pura e simplesmente a expressão do trabalho humano despendido na sua produção marca uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas em nada dissipa a fantasmagoria que faz aparecer o carácter social do trabalho como uma característica das coisas, dos produtos em si mesmos. Aquilo que não é verdade senão nesta forma de produção particular, a produção mercantil, a saber, que o carácter social dos trabalhos mais diversos consiste na sua igualdade como trabalho humano, e que este carácter social específico reveste uma forma objectiva, a forma valor dos produtos do trabalho, assume uma figura para o homem engrenado no mecanismo e nas relações da produção das mercadorias, tanto antes como depois da descoberta da natureza do valor, que lhe parece ser tão inalterável e duma ordem tão natural quanto a forma gasosa do ar, uma forma que se mantém a mesma quer antes quer depois da descoberta dos seus elementos químicos.

O que interessa antes de mais e dum modo prático  aos trocadores é saber quanto obterão em troca dos seus produtos, ou seja, a proporção em que os produtos se trocam entre eles. Logo que esta proporção adquiriu uma relativa fixidez habitual, ela parece-lhes provir da natureza mesma dos produtos do trabalho. Parece que reside nestas coisas uma propriedade de se trocarem em determinadas proporções, do mesmo modo que as substâncias químicas se combinam em proporções fixas.

O carácter de valor dos produtos do trabalho não se evidencia, com efeito, senão quando eles se determinam como quantidades de valor. Estas últimas mudam constantemente, independentemente da vontade e das previsões dos produtores, aos olhos dos quais o seu próprio movimento social toma assim a forma dum movimento das coisas, movimento que os conduz, em vez deles o poderem dirigir. É necessário que a produção mercantil se haja completamente desenvolvido antes que da própria experiência se desprenda esta verdade científica: que os trabalhos privados, executados independentemente uns dos outros, mas que se entrelaçam como ramificações do sistema social e espontâneo da divisão do trabalho, são constantemente reconduzidos à sua medida social proporcional. E como? Porque, nas relações de troca acidentais e sempre variáveis dos seus produtos, o tempo de trabalho social necessário à sua produção acaba por se impor como lei natural reguladora, do mesmo modo que a lei da gravidade se faz sentir a qualquer um quando a sua casa lhe desaba sobre a cabeça (29).

 

(29) «Que se há-de pensar duma lei que não se pode cumprir senão por revoluções periódicas? Que é muito simplesmente uma lei natural baseada na inconsciência daqueles que a suportam.» Friedrich Engels, Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie, pág. 103, em Deutsch-Französische Jahrbücher, editados por Arnold Ruge e Karl Marx, Paris, 1844.

 

A determinação da quantidade de valor pela duração do trabalho é, portanto, um segredo escondido sob o movimento aparente dos valores das mercadorias; mas a sua solução, embora demonstre que a quantidade de valor não se determina ao acaso, como se pensaria, não faz por isso desaparecer a forma que representa esta quantidade como uma relação de grandeza entre as coisas, entre os próprios produtos do trabalho.

A reflexão sobre as formas da vida social, e, por consequência, a sua análise científica, segue uma via completamente oposta ao movimento real. Ela começa, mais tarde, com os fundamentos já todos estabelecidos, com os resultados do processo de desenvolvimento já prontos. As formas que imprimem aos produtos do trabalho o cunho de mercadorias e que, por consequência, já presidem à sua circulação, também já possuem a fixidez de formas naturais da vida social antes que os homens procurem dar-se conta não do carácter histórico dessas formas, que agora mais bem lhes parecem imutáveis, mas do seu significado íntimo. Assim, foi somente a análise do preço das mercadorias que conduziu à determinação do seu valor quantitativo, e foi somente a expressão comum das mercadorias em dinheiro que levou à fixação do seu carácter de valor. Ora, esta forma já adquirida e fixa do mundo das mercadorias, a sua forma dinheiro, em vez de revelar os caracteres sociais dos trabalhos privados e as relações dos produtores, mais não faz do que ocultá-los. Quando eu digo que cereais, um casaco, umas botas (como coisas concretas), se reportam ao tecido de linho como à incarnação geral de trabalho humano abstracto, a falsidade e a extravagância desta expressão salta imediatamente à vista. Mas quando os produtores dessas mercadorias as referem ao tecido de linho, ao ouro ou à prata, o que vem tudo a dar ao mesmo, como ao equivalente geral, as relações entre os seus trabalhos privados e o conjunto do trabalho social aparece-lhes precisamente sob esta forma bizarra.

As categorias da economia burguesa são formas do intelecto que contêm uma verdade objectiva, enquanto que elas reflectem relações sociais reais, mas essas relações não pertencem senão a esta determinada época histórica, aquela em que a produção mercantil é o modo de produção social. Se, portanto, considerarmos outras formas de produção, veremos desaparecer num instante todo este misticismo que envolve os produtos do trabalho na época actual.

Já que a economia política ama as Robinsonadas (30), visitemos primeiro Robinson na sua ilha.

 

(30) Até o próprio Ricardo faz a sua Robinsonada. O caçador e o pescador primitivos são para ele negociantes que trocam o peixe e a caça em razão da duração do trabalho efectivado nos seus valores. Nesta circunstância, ele cai num singular anacronismo, o de o caçador e o pescador consultarem, para o cálculo relativo aos seus instrumentos de trabalho, as tabelas de anuidades em uso na Bolsa de Londres em 1917. Os «paralelogramos do senhor Owen» parecem ser a única forma de sociedade de que ele se dá conta fora da sociedade burguesa.

 

Se bem que modesto de seu natural, nem por isso tem menos diversas necessidades a satisfazer, e precisa de realizar trabalhos úteis de géneros diferentes, fabricar móveis, por exemplo, fazer ferramentas, domesticar animais, pescar, caçar, etc. Das suas preces e outras bagatelas semelhantes nada temos a dizer, visto que o nosso Robinson encontra nisso prazer e considera tal espécie de actividade como uma distracção fortificante. Não obstante a variedade das suas funções produtivas, ele sabe que elas mais não são do que as formas diversas pelas quais o próprio Robinson se afirma, isto é, muito simplesmente modos diversos de trabalho humano. A própria necessidade obriga-o a repartir o seu tempo entre as suas diferentes ocupações. Que uma lhe tome mais, a outra menos espaço no conjunto dos seus trabalhos, isso depende do maior ou menor grau de dificuldade que ele tem de vencer para obter o efeito útil que tem em vista. A experiência ensina-lhe isto, e o nosso homem, que salvou do naufrágio relógio, livro de contas, pluma e tinta, não tarda, como bom inglês que é, a tomar nota de todos os seus actos quotidianos. O seu inventário contém a relação dos objectos úteis que possui, dos diferentes modos de trabalho exigidos para a sua produção e, enfim, do tempo de trabalho que lhe custam em média determinadas quantidades desses diversos produtos. Todas as relações entre Robinson e as coisas que formam a riqueza que ele para si próprio criou são tão simples e transparentes que até o senhor Baudrillart, sem uma muito grande tensão de espírito, as poderia compreender. E no entanto todas as determinações sociais do valor estão aí contidas.

Transportemo-nos agora da luminosa ilha de Robinson para a sombria idade média europeia. Em lugar do homem independente, nós encontramos aqui toda a gente dependente, servos e senhores, vassalos e suseranos, laicos e clérigos. Esta dependência pessoal caracteriza tanto as relações sociais da produção material como todas as outras esferas da vida às quais ela (a produção material) serve de fundamento. E é precisamente porque a sociedade se baseia na dependência pessoal que todas as relações sociais aparecem como relações entre as pessoas. Os trabalhos diversos e os seus produtos não têm, por conseguinte, necessidade de assumir uma figura fantástica distinta da sua realidade. Eles apresentam-se como serviços, prestações e entregas em natura. A forma natural do trabalho, a sua particularidade – e não a sua generalidade, o seu carácter abstracto, como na produção mercantil – é também a sua forma social. A corveia é igualmente medida pelo tempo, tal e qual como o trabalho que produz mercadorias; mas cada camponês sujeito à corveia sabe muito bem, sem ter de recorrer a Adam Smith, que é uma determinada quantidade da sua força de trabalho pessoal que ele despende ao serviço do seu senhor. O dízimo a entregar à Igreja é mais claro do que a bênção do padre. De qualquer modo, pois, que se ajuíze as máscaras que os homens usam nesta sociedade, as relações sociais das personagens nos seus respectivos modos de vida afirmam-se claramente como as suas próprias relações pessoais, em vez de se disfarçarem em relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho.

Para encontrar o trabalho comum, isto é, a associação imediata, não temos necessidade de recuar até à sua forma natural primitiva, tal como nos aparece à soleira da história de todos os povos civilizados (31). Temos um exemplo dela bem perto de nós na indústria rústica e patriarcal duma família de camponeses que produz para as suas próprias necessidades gado, trigo, linho, tecido, roupas, etc. Estes diversos objectos apresentam-se à família como os diversos produtos do seu trabalho e não como mercadorias que se trocam reciprocamente. Os diferentes trabalhos donde provêm estes produtos, agricultura, criação de gado, tecelagem, confecção de vestuário, etc., possuem logo à partida a forma de funções sociais, porque eles são funções da família, que também tem a sua divisão de trabalho, tal como a produção mercantil. As condições naturais que variam com a mudança das estações, assim como as diferenças de idade e sexo, regulam a distribuição do trabalho na família e a sua duração para cada um. A medida do dispêndio das forças individuais pelo tempo de trabalho aparece aqui directamente como carácter social dos próprios trabalhos, porque as forças do trabalho individuais não funcionam senão como órgãos da força comum da família.

 

(31) «É um preconceito ridículo, propagado nestes últimos tempos, acreditar que a produção colectiva primitiva é uma forma de propriedade especificamente eslava, até mesmo exclusivamente russa. Ela é a forma primitiva cuja presença se pode detectar entre os Romanos, os Germanos, os Celtas, mas da qual ainda encontramos nas Índias todo um mostruário de espécimes variados, se bem que em parte sob a forma de vestígios. Um estudo rigoroso das formas da propriedade colectiva na Ásia, e especialmente nas Índias, mostraria que, ao dissolverem-se, as diferentes formas da propriedade colectiva primitiva deram nascença a diferentes formas de propriedade. É assim que se pode, por exemplo, deduzir os diferentes tipos originários da propriedade privada em Roma e entre os Germanos de diferentes formas de propriedade colectiva nas Índias.» Karl Marx: Zur Kritik, etc., pág. 10, nota 3.

 

Representemo-nos, por fim, uma reunião de homens livres trabalhando com meios de produção comuns, e despendendo, conforme um plano por eles concertado, as suas numerosas forças individuais como uma só e mesma força de trabalho social. Tudo o que dissemos do trabalho de Robinson se reproduz aqui, mas socialmente e não individualmente. Todos os produtos de Robinson eram seu produto pessoal e exclusivo, e, consequentemente, objectos de utilidade imediata para si. O produto total dos trabalhadores unidos é um produto social. Uma parte serve de novo como meio de produção e permanece social; mas a outra parte é consumida e, portanto, tem de se repartir entre todos. O modo de repartição variará consoante o organismo produtor da sociedade e o grau de desenvolvimento histórico dos trabalhadores. Suponhamos, para fazer um paralelo entre um tal estado de coisas e a produção mercantil, que a porção atribuída a cada trabalhador o seja em razão do seu tempo de trabalho. O tempo de trabalho jogaria assim um duplo papel. Por um lado, a sua distribuição na sociedade regula a relação exacta das diversas funções às diversas necessidades; por outro, ele mede a parte individual de cada produtor (mas, claro, sem “cronómetro de Taylor”, que aliás é uma vigarice, a “puxar para cima”, ao tempo de trabalho médio) no trabalho comum, e ao mesmo tempo a porção que lhe pertence na parte do produto comum que é reservada ao consumo. As relações sociais dos homens nos seus trabalhos e com os objectos úteis que eles moldam é aqui simples e transparente tanto na produção quanto na distribuição.

O mundo religioso mais não é que o reflexo do mundo real. Uma sociedade onde o produto do trabalho toma geralmente a forma de mercadoria e onde, por consequência, a relação mais geral entre os produtores consiste em comparar os valores dos seus produtos e, sob este invólucro das coisas, a comparar uns com os outros os seus trabalhos privados a título de trabalho humano igual, uma tal sociedade encontra no cristianismo com o seu culto do homem abstracto, e sobretudo nos seus tipos burgueses, protestantismo, deísmo, etc., o complemento religioso que melhor se lhe adequa. Nos modos de produção da velha Ásia, da antiguidade em geral, a transformação do produto em mercadoria não joga senão um papel subalterno, que no entanto adquire maior importância à medida que as comunidades se acercam da sua dissolução. Povos mercantis propriamente ditos não existem senão nos intervalos do mundo antigo, à maneira dos deuses de Epicuro, ou como os Judeus nos poros da sociedade polaca. Estes velhos organismos são, no que concerne à produção, incomparavelmente mais simples e mais transparentes que a sociedade burguesa; todavia eles têm por base a imaturidade do homem individual – ao qual a história ainda não cortou, por assim dizer, o cordão umbilical que o une à comunidade natural duma tribo primitiva («conexão natural genérica com outros», na tradução portuguesa dirigida por Barata Moura da 4ª edição alemã; como se pode ver, em relação à nota 17), este homem individual nem é «eu sou eu», nem alguém a quem não faça falta um espelho) – ou baseiam-se em condições de despotismo e de escravatura. O grau inferior de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho que os caracteriza e que, por consequência, impregna todo o campo da vida material, e a estreiteza das relações dos homens, quer entre eles, quer com a natureza, reflecte-se idealmente nas velhas religiões populares. Em geral, o reflexo religioso do mundo real não poderá desaparecer senão quando as condições do trabalho e da vida quotidiana apresentarem ao homem relações transparentes e racionais com os seus semelhantes e com a natureza. A vida social, de que a produção material e as relações que esta implica formam a base, não será desembaraçada da nuvem mística que lhe vela a figura senão no dia em que ela se manifestar como obra de homens livremente associados, agindo conscientemente e senhores do seu próprio processo social. Mas isto exige a presença na sociedade dum conjunto de condições da existência material que só podem ser, também elas, o produto dum longo e penoso desenvolvimento.

A economia política conseguiu, é verdade, analisar o valor e a grandeza de valor, se bem que duma maneira muito imperfeita (32). Mas ela jamais se interrogou porque é que o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho pela sua duração na grandeza de valor dos produtos. Formas que manifestam logo à primeira vista que pertencem a um período social em que a produção e as suas relações regem o homem, em vez de serem regidas por ele, parecem à sua consciência burguesa ser uma necessidade tão natural como o próprio trabalho produtivo. Não é pois de estranhar que ela trate as formas de produção social que precederam a produção burguesa como os Padres de Igreja trataram as religiões que tinham precedido o cristianismo (33).

 

(32) Um dos primeiros economistas que após William Petty reconduziu o valor ao seu verdadeiro conteúdo, o célebre Benjamin Franklin, pode-nos fornecer um exemplo do modo como a economia burguesa procede na sua análise. Diz ele: «Como o comércio em geral não é outra coisa senão uma troca de trabalho contra trabalho, é pelo trabalho que se estima mais exactamente o valor de todas as coisas (The Works of Benjamin Franklin, etc., edited by Sparks. Boston, 1836, t. II, p. 267). Franklin acha tão natural que as coisas tenham valor como os corpos terem peso. Do seu ponto de vista, trata-se muito simplesmente de descobrir como este valor deve de ser estimado o mais exactamente possível. Ele nem sequer repara que ao dizer que «é pelo trabalho que se estima mais exactamente o valor de qualquer coisa», faz abstracção da diferença entre os trabalhos trocados e os reduz a um trabalho humano igual. Doutro modo ele estaria a dizer: visto que a troca de botas ou de sapatos contra mesas não é outra coisa senão uma troca da arte de sapateiro contra marcenaria, é pelo trabalho do marceneiro que se estimará com mais exactidão o valor das botas! Ao servir-se da palavra trabalho em geral, ele faz abstracção do carácter útil e da forma concreta dos diversos trabalhos.

A insuficiência da análise que Ricardo fez da grandeza do valor – e é a melhor – será demonstrada nos livros III e IV desta obra. No que respeita ao valor em geral, a economia política clássica nunca distingue nem claramente nem expressamente o trabalho representado no valor e o mesmo trabalho enquanto se apresenta no valor de uso do produto. Ela é capaz de fazer esta distinção de facto, pois considera o trabalho ora do ponto de vista da qualidade, ora do ponto de vista da quantidade. Mas não lhe vem à cabeça que uma diferença meramente quantitativa dos trabalhos supõe a sua unidade ou igualdade qualitativa, ou seja, a sua redução ao trabalho humano abstracto. Ricardo, por exemplo, declara-se de acordo com Destutt de Tracy quando este diz: «Posto que é certo que as nossas faculdades físicas e morais são a nossa única riqueza originária, que o emprego destas faculdades, o trabalho, qualquer que ele seja, é o nosso único tesouro primitivo, e que é sempre deste emprego que nascem todas as coisas a que nós chamamos bens...é igualmente certo que todos estes bens só podem representar o trabalho que lhes deu nascença, e que, se eles têm um valor, ou mesmo dois distintos, não podem obter esses valores senão do valor do trabalho de que eles emanam.» (Destutt de Tracy: Eléments d’idéologie, IV e V partes. Paris, 1826, p. 35, 36.) (Comparar Ricardo: The Principles of Political Economy, 3ª ed., Londres, 1821, p. 334.) Há a dizer, apenas, que Ricardo atribui às palavras de Destutt um sentido demasiado profundo. Destutt diz de facto, por um lado, que as coisas que formam a riqueza representam o trabalho que as criou; mas, por outro, ele afirma que elas tiram os seus dois diferentes valores (valor de uso e valor de troca) do valor do trabalho (como já se disse, e veremos mais tarde, o trabalho não tem valor, ele forma valor; o que tem valor é a “coisa” força de trabalho). Ele cai assim no erro comum da economia vulgar de assumir à partida o valor duma mercadoria (do “trabalho”, por exemplo) para depois tentar determinar o valor das outras mercadorias.

Ricardo entende-o como se ele dissesse que o trabalho (e não o seu “valor”, que é aquilo a que de facto Destutt se está a referir) se representa tanto no valor de uso como no valor de troca. Mas ele próprio distingue tão pouco o carácter de dupla face do trabalho que em todo o seu capítulo «Valor e Riqueza» é obrigado a discutir, umas após as outras, todas as trivialidades de um J. B. Say. De maneira que, no fim, ele fica totalmente surpreendido por se achar de acordo com Destutt sobre o trabalho como fonte de valor, quando este, por outro lado, tem do valor a mesma ideia que Say.

 

(33) «Os economistas têm uma singular maneira de proceder. Para eles não há senão duas espécies de instituições, as do artifício e as da natureza. As instituições da feudalidade são instituições artificiais, as da burguesia são instituições naturais. Eles assemelham-se nisso aos teólogos, que, também eles, estabelecem dois tipos de religiões. Toda a religião que não seja a sua é uma invenção dos homens, ao passo que a sua própria religião é uma emanação de Deus...E assim houve história, mas não há mais.» (Karl Marx: Miséria da filosofia. Resposta à Filosofia da miséria do sr. Proudhon, 1847, p. 113) O mais cómico é Bastiat, que imagina que os Gregos e os Romanos não viviam senão da rapina. Mas quando se vive da rapina durante muitos séculos, então é preciso que haja sempre qualquer coisa para pilhar ou que o objecto das contínuas rapinas se renove constantemente. Tem-se, pois, de acreditar que os Gregos e os Romanos tinham o seu próprio tipo de produção, por conseguinte uma economia, que formava a base material da sua sociedade, tal como a economia burguesa forma a base da nossa. Ou será que Bastiat está a pensar que um modo de produção fundado sobre o trabalho dos escravos é um sistema do roubo? Nesse caso ele coloca-se em terreno perigoso. Quando um gigante do pensamento, como Aristóteles, se pôde enganar na sua apreciação do trabalho escravo, porque é que um anão como Bastiat haveria de ser infalível na sua apreciação do trabalho assalariado? – Aproveito este ensejo para dizer algumas palavras sobre uma objecção que me foi feita por um jornal alemão-americano a respeito da minha obra: Crítica da Economia Política, aparecida em 1859. Segundo ele, a minha opinião de que o modo determinado de produção e as relações sociais que dele resultam, numa palavra, que a estrutura económica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue em seguida o edifício jurídico e político, de tal maneira que o modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual (Zur Kritik...,Prefácio) – segundo esse jornal, dizíamos, esta opinião é justa para o mundo moderno, dominado pelos interesses materiais, mas não para a idade média, onde reinava o catolicismo, nem para Atenas e Roma, onde reinava a política. Em primeiro lugar, é estranho que certa gente se deleite em supor que haja alguém que desconheça estes velhos e gastos modos de falar sobre a idade média e a antiguidade. Mas o que será claro é que nem a primeira podia viver do catolicismo nem a segunda da política. As condições económicas à época explicam, ao invés, porque é que o catolicismo, num caso, e a política, no outro, desempenhavam o papel principal. Basta conhecer um pouco da história da República romana, por exemplo, para ver que o seu segredo reside na história da propriedade fundiária. Por outro lado, ninguém ignora que já D. Quixote teve de se arrepender por haver acreditado que a cavalaria andante era compatível com todas as formas económicas da sociedade.

 

O que evidencia, entre outras coisas, a ilusão produzida na maior parte dos economistas pelo fetichismo inerente ao mundo mercantil é a sua longa e insípida disputa acerca do papel da natureza na criação do valor de troca. Outra coisa não sendo este valor que uma maneira social particular de contar o trabalho empregue na produção dum objecto, não pode conter mais elementos materiais do que, por exemplo, a taxa de câmbio.

Na nossa sociedade, a forma económica mais geral e mais simples que se fixa aos produtos do trabalho, a forma mercadoria, é tão familiar a toda a gente que ninguém vê nela qualquer mistério. Mas consideremos outras formas económicas mais complexas. Donde provêm, por exemplo, as ilusões do sistema mercantil? Evidentemente do carácter fetiche que a forma dinheiro imprime aos metais preciosos. E a economia moderna, que se gaba de ser esclarecida e não se cansa de repetir as suas insossas pilhérias contra o fetichismo dos mercantilistas, é ela menos iludida pelas aparências? O seu primeiro dogma não é que dadas coisas, os instrumentos de trabalho, por exemplo, são, por natureza, capital, e que ao querer-se despojá-las desse carácter puramente social se comete um crime de lesa-natura? Enfim, os fisiocratas, tão superiores em tantos aspectos, não imaginaram eles que a renda fundiária não era um tributo arrancado aos homens mas um presente oferecido pela natureza aos proprietários? No entanto não nos antecipemos e baste-nos, por agora, mais um exemplo a propósito da própria forma mercadoria.

As mercadorias diriam, se porventura pudessem falar: O nosso valor de uso pode muito bem interessar ao homem; para nós, enquanto objectos, isso é-nos completamente indiferente. O que a nós nos diz respeito é o nosso valor. A nossa relação entre nós como coisas que se vendem e se compram prova-o. Nós só nos encaramos umas às outras como valores de troca. Assim, até poderíamos acreditar que o economista tira as suas palavras da própria alma das mercadorias quando ele diz: «O valor (valor de troca) é uma propriedade das coisas, a riqueza (valor de uso) é uma propriedade do homem. O valor, neste sentido, supõe necessariamente troca, a riqueza, não (34).» «A riqueza (valor útil) é um atributo do homem; o valor, um atributo das mercadorias. Um homem ou uma comunidade são ricos, uma pérola ou um diamante possuem valor e possuem-no tal como são (35).» Até aqui nenhum químico conseguiu descobrir valor de troca numa pérola ou num diamante. Mas aos economistas que descobriram ou inventaram tal género de substâncias químicas, e que alardeiam uma certa pretensão de profundidade, afigura-se-lhes, no entanto, que o valor útil das coisas lhes pertence independentemente das suas propriedades materiais e que, ao invés, o valor lhes pertence enquanto coisas. Aquilo que os confirma nesta opinião é a singular circunstância de que o valor de uso se realiza para o homem sem troca, isto é, numa relação imediata entre a coisa e o homem, ao passo que o valor, pelo contrário, não se realiza senão na troca, quer dizer, numa relação social. Quem não se lembra aqui do bom Dogberry e da lição que ele dá ao guarda-nocturno Seacoal:

«Ser um homem bem parecido é uma dádiva da fortuna, mas saber ler e escrever vem por Natureza (36) (To be a well-favoured man is the gift of fortune, but to write and read comes by nature (I)).

 

(34) «Value is a property of things, riches of man. Value, in this sense, necessarily implies exchanges, riches do not.» (Observations on certain verbal disputes in Political Economy, particularly relating to value and to demand and supply, Londres, 1821, p. 16.)

 

(35) Riches are the attribute of men, value is the attribute of commodities. A man or a community is rich, a pearl or a diamond is valuable as a pearl or a diamond.» (S. Bailey: l. c., p. 165.)

 

(36) O autor das Observações e S. Bailey acusam Ricardo de ter feito do valor de troca algo de puramente relativo, qualquer coisa de absoluto. Mas bem pelo contrário, ele resumiu a relatividade aparente que estes objectos, tais como pérola e diamante, por exemplo, possuem como valor de troca à verdadeira relação escondida sob essa aparência, à sua relatividade como simples expressões de trabalho humano. Se os partidários de Ricardo não souberam responder a Bailey senão dum modo grosseiro e nada concludente, é muito simplesmente porque eles não encontraram no próprio Ricardo nada que os esclarecesse sobre a relação íntima que existe entre o valor e a sua forma, isto é, o valor de troca.

 

(I) Much ado about nothing (Muito barulho para nada), de William Shakespeare , acto III, cena 3.