O espaço da História

Capítulo I - As fontes da história romana e a sua veracidade

As fontes escritas (as mais importantes na tipologia das fontes) dividem-se em fontes primárias e obras literárias lato sensu, com destaque nestas últimas para as obras da tradição historiográfica (mas tendo sempre em conta que a historiografia clássica relativa à época romana antiga foi em grande parte uma “arte de escrever as lendas da história”).

 

FONTES PRIMÁRIAS

Entre as fontes primárias, as inscrições são quase inexistentes para a época dos reis e em escasso número para o período da República que vai até ao início do século III ae.

As primeiras inscrições latinas que se conhecem datam dos finais do século VI – inícios do V. Entre elas está uma inscrição gravada numa pequena coluna (cippus), descoberta em 1899 por G. Boni no local onde a tradição acreditava que Rómulo teria sido sepultado; inscrição que é designada da “pedra negra” (lapis niger). A língua e os caracteres usados são muito antigos. As linhas dispõem-se alternadamente da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, no tipo de escrita que se chamou bustrofédon (“o modo como o boi anda no campo com o arado”). Esta inscrição está muito deteriorada e o seu sentido é quase ininteligível. Provavelmente referirá um rito religioso.

Há ainda algumas outras inscrições sobre vasos (como a do “vaso de Dueno”) e outros objectos. Na maioria dos casos são de valia menor, compreendendo apenas palavras isoladas.

 

Existe também uma inscrição sobre uma fíbula em ouro, encontrada, ao que se afirmou, numa tumba em Preneste (Praeneste). Está escrita da direita para a esquerda e lê-se: «Manios med fhefaked Numasioi» (Manius me fecit Numerio ou “Mânio fez-me para Numério). Seria ainda mais antiga, dos finais do século VII, contudo há quem lhe ponha em causa a autenticidade.

 

As primeiras inscrições que referem acontecimentos históricos datam da primeira metade do século III ae. São inscrições tumulares, feitas sobre os sarcófagos da ilustre estirpe dos Cipiões (Scipionum elogia). A mais antiga, em verso, é dedicada a Lúcio Cornélio Cipião Barbado, cônsul de 298. A língua usada é ainda muito arcaica. Diz a inscrição: «homem valoroso e sábio, cujo aspecto exterior era acorde com a sua dignidade, foi cônsul, censor e edil. Conquistou Taurásia e Cisauna no Sâmnio, e submeteu toda a Lucânia, trazendo reféns para Roma». Os outros elogia a Cipiões saem já dos limites do que chamámos de “época romana antiga” (até aos inícios do século III ae).

 

Já as inscrições não-latinas são numerosas. Só as etruscas são mais de 10.000, correspondendo a períodos históricos diversos. As letras usadas pertencem ao alfabeto grego e são-nos compreensíveis. No entanto, apesar de alguns progressos alcançados na sua decifração, a língua etrusca continua a permanecer em boa parte um mistério.

Quanto às outras inscrições não-latinas de povos da Itália ( oscas, úmbrias, vénetas, etc.), muitas delas são legíveis e revelam-se valiosas para o estudo dessas populações, mas não nos proporcionam qualquer informação sobre a história romana antiga.

O mesmo se pode dizer a respeito das numerosas inscrições gregas da Itália meridional e da Sicília.

 

Há outras inscrições latinas que referem os tempos da Roma antiga, mas são de época já muito posterior (não são por isso fontes primárias). É o caso dos fastos consulares ( fasti consulares). Menos fiáveis ainda se nos apresentam os fastos triunfais (fasti triumphales ou acta triumphorum), que lhes são coevos, listas com os nomes de todos os que celebraram vitórias sobre o inimigo, com indicação da data e da razão do triunfo. Estas listas começam com «o rei Rómulo, filho de Marte, sobre os ceninenses a 1 de Março». Os fasti triumphales, tal como os fasti consulares, foram elaborados pelos historiadores da época de Augusto, que seguiram a tradição histórico-literária e incorporaram toda a ficção nela contida. Há pois que utilizar ambos com a devida cautela (segundo o historiador S. I. Kovaliov, no que aos fastos triunfais em particular diz respeito, estes só serão razoavelmente credíveis da época dos Graco em diante; os fastos consulares são tidos, em geral, por verazes a partir de 300 ae).

Nesta categoria de fontes muito tardias para o estudo do período romano antigo há também a considerar os chamados fasti anni Juliani, fragmentos do calendário juliano dos finais do século I da era que nos chegaram em diversas variantes, como a dos fastos prenestinos.

 

Ainda mais tardia é a inscrição do “Hino em honra de Marte” ( carmen arvale), do colégio dos arvales, mas o seu latim arcaico testemunha-lhe uma considerável antiguidade. Ela começa com as palavras «enos Lases juvate» (nos Lares juvate ou “Ó Lares, ajudai-nos!”).

 

Através de obras de escritores gregos e romanos conhecemos partes de leis e tratados da época antiga. É o caso da lex XII tabularum. Artigos destas leis chegaram-nos separadamente, em citações e referências de vários autores romanos. Também são conhecidos tratados internacionais em que Roma antiga foi parte, referidos de modo mais ou menos preciso por escritores posteriores. Por exemplo, o texto do tratado entre romanos e cartagineses, que será de 508 ae, transcrito por Políbio ( III, 22).

Muito menos dignas de crédito são as chamadas “leis reais” (leges regiae), uma colecção de leis e de disposições atribuídas aos reis romanos e que assumiriam, provavelmente, a forma de direito sagrado; quem se lhes refere com algum circunstancialismo é Pompónio, um jurista romano já da época imperial.

 

Se as moedas são uma fonte importantíssima para o estudo da época imperial, elas de pouco nos servem para compreender a história do período mais antigo. Em Roma, o asse de bronze é referido em meados do século V, mas apenas como medida de valor, como um determinado peso de metal. O as libralis em lingote fundido só aparece na segunda metade do século IV, havendo-nos chegado, já desta época, alguns raros exemplares.

As moedas gregas da Itália meridional e da Sicília são mais antigas e numerosas, mas de nada nos servem para o estudo de Roma.

 

Todas estas fontes são-nos, pois, de informação muito escassa.

 

OUTRAS FONTES

Quanto ao restante material arqueológico, ele é considerável para o período proto-histórico e a época mais antiga da história de Itália.

Se os restos do Paleolítico são mais esparsos e raros, a partir da idade neolítica e até à idade do ferro os vestígios das antigas civilizações vão aumentando rapidamente em número. Encontraram-se sepulturas neolíticas, os restos de construções palafíticas na Itália setentrional, o antigo ferro da “civilização villanoviana”, as riquíssimas tumbas etruscas, as primitivas sepulturas romanas e os sepulcros posteriores, as ruínas de cidades etruscas, gregas e romanas, e uma enorme quantidade de vasilha e outros objectos e utensílios em diversas zonas de Itália.

Contudo estes vestígios arqueológicos, quando não podem ser cruzados com outras fontes de informação, vêem diminuída a sua utilidade. Em geral, não é possível atribuir-lhes uma data precisa, e são passíveis de interpretações diversas. Por si só, servem sobretudo para caracterizar a produção material e alguns aspectos da ideologia, na arte e na religião.

Quando se procura resolver um problema histórico unicamente com base no material arqueológico surgem polémicas infindáveis. Vejam-se, a título de exemplo, as relativas à época creto-micénica ou ao “problema etrusco”.

 

A língua é uma fonte de informação importantíssima para a história da cultura, mas que pouco pode fornecer à história geral.

Sobre os problemas da etnogénese itálica e o problema da linguística indo-europeia em geral muito se trabalhou, contudo também aqui as discussões são sem fim.

 

O material etnográfico. Os dados deste tipo têm uma importância fundamental para o estudo dos primeiros estádios do desenvolvimento social. Porém há que os usar, em geral, com cuidado e como complemento de outras fontes.

Com essa ressalva (e a dos inevitáveis erros de todo o começo), nunca é de mais recordar o grande pioneiro da Etnologia que foi Lewis H. Morgan, e a sua obra “Ancient Society”, onde também se debruça sobre a época de Roma antiga.

 

O Folclore, a documentação oral do génio criativo dos povos: os poemas épicos, as canções, os contos, os provérbios, etc.

Os romanos nada deixaram de similar às grandes produções épicas dos gregos, como a Odisseia e a Ilíada. É provável que tenha havido uma tradição popular épica, mas, se a houve, ela nunca foi recolhida em forma escrita. Apenas nos chegaram algumas lendas populares isoladas, transmitidas por Lívio, Plutarco e outros escritores. E o mesmo acontece com o material folclórico mais comum.

 

Em suma, constatamos que tanto as fontes escritas primárias como as fontes que lhes são complementares não nos fornecem uma base sólida para a “reconstituição” da história romana antiga.

 

Resta-nos agora considerar o material histórico que nos foi legado pelos escritores romanos e gregos.

 

AS FONTES DA TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA

Fontes para os primeiros escritores da tradição histórica romana foram os chamados fasti annales ou historici, sucintas notas elaboradas pelos pontífices em que se mencionavam os nomes dos cônsules e doutros magistrados públicos em exercício, bem como os acontecimentos e actos mais importantes que iam ocorrendo durante o ano. Supõe-se que a sua redacção se haja iniciado na segunda metade do século V.

 

Tito Lívio chama-lhes também commentarii pontificum, mas estes deveriam ser documentos de natureza diversa, prescrições de carácter jurídico-religioso ditadas pelos pontífices. Comentários similares aparecem noutras organizações religiosas, por exemplo, na dos áugures.

É ainda de assinalar que os fasti annales, sendo apontamentos posteriores aos factos neles inscritos, não se confundem com os almanaques do calendário (fasti kalendares), que eram uma antevisão do ano.

 

Além destes e doutros registos historiográficos oficiais, devem ter existido textos de carácter privado. As principais famílias romanas possuiriam, talvez, crónicas familiares, dado que eram frequentes nos funerais os panegíricos em honra do defunto, com referências aos seus feitos militares e políticos.

 

Mas Tito Lívio (VI, 1) diz-nos que, durante a invasão gaulesa de 390, «foram quase inteiramente destruídos, no incêndio da cidade, os registos dos pontífices, tal como os outros documentos públicos e particulares».

 

A redacção dos annales foi prosseguida pelos pontífices (que, provavelmente, trataram de os reconstituir no que respeita à época mais antiga). Estes registos, inscritos nas “tábuas pontifícias” (album), eram expostos ao público, sendo depois guardados nos arquivos.

Na época dos Graco (cerca de 130 - 120) o pontífice máximo Públio Múcio Cévola terá reordenado e completado, numa colecção de oitenta livros (annales maximi), estes antigos anais. Ao que parece, a partir dessa data, a sua compilação oficial foi interrompida.

 

Deles praticamente nada nos chegou. Para além de algumas referências gerais, o único fragmento conhecido a citar o correspondente livro dos annales encontra-se nas “Noites Áticas” (IV, 5), de Aulo Gélio, um autor do século II da era.

 

OS AUTORES

A historiografia tradicional aparece em Roma na época das guerras púnicas.

 

Gneu Névio (270 – 200), natural da Campânia, foi o primeiro autor da tradição histórica romana.

Simples cidadão, inimiza-se com a família dos Cecílio Metelo e é lançado no cárcere. Recuperou a liberdade graças à intervenção dos tribunos da plebe.

Foi um fecundo autor de tragédias e comédias, tendo imitado os géneros gregos já de um modo original.

Tomou parte na I guerra púnica e escreveu sobre ela um poema épico em língua latina, usando os primitivos versos saturninos (versus saturnius), os mais antigos da poesia popular latina. O poema dividia-se em sete livros. Os três primeiros livros continham a história da Roma antiga, começando pela lenda de Eneias. Desta obra conservaram-se alguns fragmentos insignificantes.

 

Quinto Énio (239 – 169), nascido na antiga Calabria (actual Apúlia). Ennius participou na II guerra púnica.

Da sua numerosa produção literária destacam-se os “Anais”, dezoito livros escritos em hexâmetros latinos. O poema abarcava toda a história romana, da lenda de Eneias até aos anos anteriores à morte do poeta. Esta obra exerceu uma grande influência na construção dos modelos tradicionais da historiografia romana. Conservaram-se seiscentos dos seus 30.000 versos.

 

Quinto Fábio Pictor (nascido em 254) é o primeiro a escrever história em prosa.

Foi senador e participou na guerra contra Aníbal. Após Canas é enviado a Delfos, como chefe de embaixada.

Escreveu a história de Roma desde os tempos míticos. Aos factos já do seu tempo tratou-os de um modo detalhado, ordenando-os cronologicamente e referindo-os aos magistrados então em funções. Por isso foi chamado “analista”. A sua crónica estava redigida em grego.

 

Cíncio Alimento (pretor em 210). Também participou na II guerra púnica, tendo sido prisioneiro de Aníbal. Escreveu em grego os seus “Anais”.

 

Marco Pórcio Catão o Velho, chamado ainda o Censor (234 – 149).

Natural de Túsculo (Tusculum), foi um rico proprietário e senador. Percorreu todos os graus da magistratura, de questor a censor. Tornou-se famoso pela severidade dos seus costumes, pelas suas ideias e programas conservadores. Como escritor, elaborou a prosa literária latina.

Já em idade avançada, como historiador, escreve as Origines (sete livros em latim). Os primeiros três livros narravam detalhadamente as lendas, gregas ou vernáculas, sobre a Roma primitiva e outras cidades e povos itálicos. Nos livros quarto e quinto tratava da I e II guerras púnicas. Os livros sexto e sétimo eram dedicados aos derradeiros acontecimentos, até 149.

Catão apresentou a sua obra sem atender a uma exacta ordem cronológica dos factos expostos, mas organizando-a segundo temas, procurando assim agrupar o material histórico em partes homogéneas. Infelizmente, de “As Origens” só nos restam uns quantos fragmentos.

 

Outros velhos analistas (ou “analistas antigos”, dos finais do século III até cerca da primeira metade do II), seguindo o exemplo de Catão, também começam a usar a língua latina.

 

Contemporâneo de Catão, Lúcio Cássio Emina escreve os primeiros anais em latim, que iriam até ao ano de 146.

 

Outro seu contemporâneo, Gneu Gélio, é o primeiro dos analistas a abandonar o relato conciso. Terá escrito ao menos noventa e sete livros (aos antigos “livros” romanos correspondem hoje, grosso modo, os nossos “capítulos”).

 

Na época dos Graco viveu Lúcio Calpúrnio Pisão, cônsul em 133, censor em 120. Os escritores que lhe foram posteriores citam com frequência os seus “Anais”.

 

Neste período de agitação social e política aparece o género literário das Memórias, como as de Marco Emílio Escauro, cônsul em 115, que viveu a época de reacção ulterior aos Gracos.

Surgem também as Monografias, como a que Lúcio Célio Antipatro publica sobre a II guerra púnica por volta de 120.

As obras de Scaurus e Antipater não nos interessam aqui pelo seu conteúdo, que extravasa o período que agora nos concerne, o da história romana antiga, mas porque nelas são já notórios os elementos moralizantes e patrióticos (na obra do primeiro) ou os efeitos retóricos (no caso do segundo). A título de exemplo, escreve Antipatro sobre a partida para África do exército romano: «Ao clamor dos guerreiros, os pássaros tombavam por terra, e foi tanta a gente a subir para as naus que parecia que em Itália e na Sicília não havia ficado nem uma única alma».

 

Os analistas posteriores (“analistas menores” ou “jovens analistas”), da primeira metade do século I, reelaboraram os velhos e áridos anais sem se preocuparem com a verdade histórica. Quando encontravam lacunas, preenchiam-nas com invenções, com quadros e figuras de épocas posteriores à época que narravam e com falsificações “chapadas”, transformando derrotas em vitórias ou diminuindo ou ocultando-lhes a importância.

Muito influenciados pela retórica grega, o gosto pelas sensações e efeitos dramáticos levou-os ao discurso hiperbólico. Atribuíram à história o papel da literatura. Daí a narração detalhada dos acontecimentos, ao ponto de “registarem” os discursos e os pensamentos dos heróis. E, se necessário, inventavam personagens, com a morte do herói dando-se sempre a solicitação do efeito dramático, sem em nada ter em conta o curso real dos acontecimentos.

 

Tal como sucedeu com as obras dos velhos analistas, também nada se conservou dos textos originais dos analistas menores, mas a sua actividade teve um efeito extraordinariamente daninho na historiografia romana, pois foram as fontes principais de Tito Lívio, de Dionísio e Plutarco:

 

Quinto Cláudio Quadrigário escreveu uma obra em cerca de vinte livros. Abarcava o período desde a invasão gaulesa até à morte de Sula. Tito Lívio refere-se-lhe com frequência.

Valério Anciate, também contemporâneo de Sula, escreveu setenta e cinco livros. O seu relato iria desde a fundação de Roma até à morte do ditador. Ficou conhecido pelas suas numerosas invenções e pelos exageros nas cifras. Falsificou a história sobretudo para louvar a estirpe dos Valérios.

Caio Licínio Macro (Macer), contemporâneo de Cícero, membro do movimento democrático e também analista. Foi levado a juízo no ano de 66 por má administração de uma província, tendo-se suicidado.

Quinto Élio Tuberão foi o último analista. Partidário de Pompeu, participou na batalha de Farsalo (Pharsalos) Os seus Anais iam desde os tempos mais antigos até à guerra civil entre César e Pompeu.

 

Tito Lívio (59 ae 17 da era) nasceu em Pádua. Havendo gozado duma excelente educação, foi um escritor da tradição histórica extraordinariamente fecundo e multíplice em recursos literários.

Apesar de ter servido os propósitos da política cultural do nascente Império, simpatizava com a desvanecida república aristocrática (Augusto chamava-lhe o seu “pompeiano”).

Dele só nos chegou uma parte da sua monumental obra histórica, composta por cento e quarenta e dois livros. Conhecida pelo título de Ab urba condita libri, ia da “chegada de Eneias a Itália” até ao ano 9 antes da era.

Conservaram-se os dez primeiros livros, que abarcam os sucessos até 293, bem como os livros vigésimo primeiro a quadragésimo quinto, que vão de 218 a 167. Restam-nos ainda alguns fragmentos de outros livros e os sumários de quase todos eles (exceptuam-se os livros centésimo trigésimo sexto e centésimo trigésimo sétimo).

Para os dez primeiros livros (os que nos interessam para o período que vai até aos inícios do século III ae) é-nos impossível, as mais das vezes, determinar em concreto as suas fontes, mas sabemos que se serviu sobretudo dos analistas menores.

Impôs-se como tarefa «perpetuar na memória dos homens a glória do primeiro povo da terra», pondo sempre em evidência os «bons costumes antigos», em contraste com a corrupção do seu tempo, «e seguir depois os imperceptíveis avanços da decadência da ordem social … que acabaram por provocar essas crises em que o remédio se tornou tão intolerável quanto a doença».

Assim, além de um magnífico estilista, não imune à influência da retórica (gostava, por exemplo, de colocar na boca das suas personagens discursos que construía segundo todas as regras da arte oratória), foi um escritor moralista.

Não obstante, com o proverbial espírito prático dos romanos, vai dando ao seu leitor uma lição sobre o que é de facto o poder: quais os seus fundamentos, modo de o alcançar, como se manipula o povo, tácticas e manhas na paz e na guerra, etc, etc, num discurso misto de denúncia e aula política.

Excelente narrador (bem mais que um investigador), ele próprio diz, com frequência, que «prefere a opinião da maioria». Porém vai listando as diversas versões da tradição que encontra para um determinado evento, quase sempre se distanciando das “explicações” metafísicas e subscrevendo as mais prosaicas e racionais. Como por vezes recorre, para uma dada época, a fontes contraditórias entre si, aqui e acolá surgem algumas incongruências (o que, por outro lado, não é de espantar num texto longo de cento e quarenta e dois livros).

O seu talento literário, a sua elaboração artística do material lendário, a grande popularidade da sua obra, fizeram dele o principal representante da tradição sobre o nascimento de Roma e a sua história antiga.

 

Por volta de 30 antes da era chega a Roma o grego Dionísio de Halicarnasso, professor de retórica e crítico literário. Ali escreve em grego a sua obra principal, a “História antiga romana” (“Antiguidades Romanas”, em vinte livros), na qual trabalhou durante vinte e dois anos e que publica em 7 ae.

Chegaram-nos, completos, os dez primeiros livros e a maior parte do décimo primeiro. Há ainda fragmentos dos restantes. A obra ia até ao início da I guerra púnica, em 264, mas a parte que possuímos, até ao XI livro, só alcança o ano de 443.

De mentalidade aristocrática e conservadora (I, 67, 3) é tendencioso quando procura demonstrar um parentesco entre gregos e romanos (por exemplo, I, 5, 2; I, 60, 3 e 61; I, 89) ou quando louva as virtudes do povo romano e a sabedoria dos seus governantes ao mesmo tempo que denigre os gregos (I, 5, 2 e 3). O seu estilo retórico é influenciado pelo classicismo ático. Ele próprio nos indica as suas fontes: historiadores gregos, analistas antigos, Catão e analistas menores. Parece conhecer bem Lívio, pois polemiza com a sua obra, contudo nunca lhe cita o nome.

Para além de algumas inexactidões nas datas, a cronologia de Dionísio anda “adiantada” dois anos em relação à “era de Varrão”. Por exemplo, se o advento da República for situado em 509 antes da era, já atendendo às contas de Dionísio, haverá que referir esse sucesso ao ano de 507.

Alguns relatos da tradição são melhor expostos por ele que por Lívio. Serve-lhe, pois, de fonte correctiva.

 

Plutarco (ap.46 – ap. 125) é o terceiro representante em importância da tradição histórica para a época mais antiga.

Grego de Queroneia (Chaeronea), na Beócia, foi alto funcionário da administração imperial sob Trajano e Adriano, e um escritor extraordinariamente culto e prolixo. Para o historiador são importantes as suas “Vidas Paralelas”, uma colecção de pares de biografias das mais eminentes personagens gregas e romanas. Chegaram-nos cinquenta: quarenta e seis biografias emparelhadas e quatro isoladas.

Para a história antiga de Roma têm importância as referentes a Rómulo, Numa, Publícola, Coriolano, Camilo e Pirro. Encontramos ainda outras informações históricas nas suas obras menores, como as “Questões Romanas”.

Plutarco não foi um historiador, mas sim um reputado filósofo moralista. Muito versado nos problemas de ética e de religião, então na moda, escreveu sobretudo sobre moral, no meio de uma panóplia de temas.

Nas “Vidas Paralelas” – «não escrevemos história, mas biografias», diz ele próprio –, queria mostrar como “o vício” e a “virtude” influenciaram as acções e os destinos das personagens que refere, de maneira a que os seus leitores pudessem conhecer quais os exemplos a seguir, quais aqueles a rejeitar. Introdução à biografia de Alexandre o Grande: «A virtude e o vício não se revelam apenas nas grandes empresas. Frequentemente, uma acção insignificante, uma palavra, põem melhor a nu o carácter de um homem do que batalhas conduzidas com dezenas de milhares de soldados».

É evidente a sua unilateralidade no “retrato” dos “biografados”, o seu culto pelo detalhe, a tendência para o particularismo psicológico e o gosto pela anedota. Porém apoiou-se em abundante documentação histórica, dando-nos a conhecer muita informação contida em obras que se perderam, e indica com frequência as respectivas fontes.

 

É também fonte para a história antiga de Roma a obra do grego Diodoro Sículo, historiador do século I ae.

A sua “ Biblioteca Histórica”, em quarenta livros, ia desde os tempos míticos até 54 ae (expedição de César à Britannia). Esta obra terá sido publicada por volta do ano 30 ae. Dela restam os cinco primeiros livros, bem como os livros décimo primeiro a vigésimo. Dispomos ainda de numerosos fragmentos dos restantes volumes.

Os livros I a IV extravasam o tema da antiga Roma, pois dizem respeito a regiões como o Egipto, a Mesopotâmia ou a Índia. No livro V, sobre a Europa, algo se consegue colher sobre a proto-história de Itália.

Em alguns breves fragmentos, entre os livros VI a X, encontramos pequenas notas sobre as origens de Roma e os reis romanos. Nos livros XI a XX, que abarcam o período que vai de 480 a 301, a matéria é exposta cronologicamente, com referência às olimpíadas, aos arcontes atenienses e aos cônsules romanos. A atenção de Diodoro é dedicada sobretudo à história grega, limitando-se a uma breve exposição da história romana. Ao longo de muitos anos apenas regista os nomes dos cônsules (mas a sua cronologia não é coincidente nem com a de Varrão nem com a de Dionísio).

Diodoro, na elaboração da sua súmula, copiava quase integralmente das suas fontes. Muito provavelmente, nos livros décimo primeiro a vigésimo, a propósito de Roma, terá seguido a crónica de Fábio Pictor.

A obra de Diodoro é uma “ferramenta” para o estudo crítico das fontes de Tito e de Dionísio, os analistas menores, que são posteriores a Fábio Pictor.

 

Marco Terêncio Varrão (116 – 27) era partidário de Pompeu, aderindo mais tarde à facção de César.

De uma cultura enciclopédica, escreveu mais de setenta obras. Entre outras ciências que cultivou, foi filósofo, historiador, poeta, agrónomo, matemático. Procurou dominar, reelaborando-os “à maneira romana”, todos os campos da cultura grega.

Para a história da Roma antiga é importante a sua investigação “Da língua latina”, em vinte e cinco livros. Conservaram-se os livros quinto a décimo, em más condições. Duma outra sua importante obra, denominada “Antiguidades”, em quarenta e um livros, apenas restam esparsos fragmentos recolhidos noutros autores.

 

Os chamados “antiquários” (filólogos e arqueólogos), já na época pós-república, não foram propriamente historiadores, limitando-se a recolher e a ordenar as “notícias” sobre os tempos antigos (ou seja, a recolher a tradição).

 

Vérrio Flaco pertence ao grupo dos “antiquários”. Um liberto, Verrius foi um douto gramático e professor dos netos de Augusto. É muito provável que tenha participado na elaboração dos “Fastos prenestinos”, bem como na dos “Fastos triunfais e consulares”.

O seu grande dicionário enciclopédico, “Do significado das palavras”, perdeu-se. Copiado no século II por Festus Grammaticus, um mau e incompleto resumo da obra deste último foi-nos deixado por Paulo Diácono, um escritor já do tempo de Carlos Magno. Chegaram-nos ainda, por outra via, mais alguns fragmentos da obra de Festo.

 

Marco Túlio Cícero (106 – 43). Escritor, advogado e homem público.

Não tendo sido um historiador, são frequentes, nas suas numerosas obras, os temas da história romana antiga. É particularmente importante, neste sentido, a sua obra De re publica, em seis livros. Os livros primeiro e segundo chegaram-nos completos e existem extensos fragmentos dos restantes.

 

Os escritores da época imperial, Plínio o Velho, Apiano, Tácito, Dião Cássio, fornecem um abundante material sobre a época antiga. Contudo esses dados necessitam de ser tratados com muito cuidado.

 

Das numerosas obras dos juristas romanos muito pouco se conservou. E nesse pouco que resta raras são as referências à história dos primeiros tempos de Roma.

No Digesto (parte da colecção de leis de Justiniano, o Corpus Juris Civilis, do século VI da era) encontra-se um grande fragmento do manual de Pompónio, um jurista do século II da era. Neste fragmento são referidas as chamadas “leis reais”.

Nos 4 livros das Instituições, Gaio, o célebre jurista do século II da era, deixou-nos dados valiosos sobre o direito romano e uma série de importantes apontamentos sobre a história social de Roma.

 

Os compêndios dos epitomistas da época imperial constituem também fontes de alguma importância. São de referir: as “Noites Áticas”, de Aulo Gélio, do século II; o compêndio em dois livros de Floro, do mesmo século, que é um magro sumário sobre as guerras romanas retirado da obra de Tito Lívio; o “Breviário de história romana”, de Eutrópio, da segunda metade do século IV; as “Saturnais”, de Macróbio (finais desse século); os “Comentários a Virgílio”, de Sérvio, da mesma época do anterior. Já posteriores à queda do Império do Ocidente, “Os magistrados romanos” e “Os meses”, do grego Lydus (século VI).

 

GRAU DE VERACIDADE DA HISTÓRIA ROMANA ANTIGA

A escrita terá feito a sua aparição em Roma no século VI. Registos, como os dos anais dos pontífices, não os houve antes de meados do século V. Assim, até esta época, apenas existiu a tradição oral. Ora a tradição oral é em geral, no relato dos eventos, pouco digna de crédito.

A tradição escrita corrente, a de Lívio, Dionísio, Plutarco, chegou até nós, na melhor das hipóteses, em “terceira mão”, passando primeiro pelos “velhos analistas” e, depois, pelos “analistas menores”.

 

A tradição contém uma massa de material claramente mítico e lendário. A título de exemplo, Rómulo é fundador de Roma, seu primeiro rei e filho de Marte, e ascende em vida aos céus durante uma tempestade; Numa Pompílio, o segundo rei e organizador do culto romano, é esposo da ninfa Egeria.

A tradição escrita herdou boa parte dos mitos e lendas vigentes entre a classe dominante, acrescentando-lhe muita invenção da própria lavra.

 

O chamado “mito etiológico” (etiologia = “busca das causas”): no pensamento “ingénuo” dos antigos, quando se tratava de explicar a origem dos seus usos e costumes, ritos, etc., recorria-se à legenda etiológica, atribuindo essa desconhecida origem a uma determinada pessoa (as mais das vezes imaginária) ou a um acontecimento lendário.

Assim foi atribuída a Rómulo a fundação de Roma. Do mesmo modo, Tito Lívio “explicava” (I, 9, 12) certos usos nupciais dos romanos, em que sobreviviam vestígios do antigo rapto da noiva, pela lenda do rapto das Sabinas.

 

Na alteração da verdade histórica também intervieram as tendências retóricas; razões de ordem política como, por exemplo, a tendência para a glorificação da estirpe Júlia; influências gregas, etc.

 

No que à particular questão da cronologia concerne, há que ter em conta a imperfeição do calendário romano. Nos começos, em Roma, o ano era lunar e compunha-se de dez meses (a maior parte dos dias de Inverno não eram considerados). Depois, diz a tradição que por obra de Numa Pompílio, o ano lunar passou a contar doze meses, sendo incluído de tempos a tempos um mês intercalar. Os pontífices tentavam assim conjugar o ano lunar com o solar, mas nunca conseguiram alcançar uma solução satisfatória. O caos só findou no ano de 45 com a reforma do calendário promovida por Júlio César.

Deste modo, nas épocas anteriores à reforma juliana, nunca foi possível uma conta precisa do tempo.

 

Acresce à confusão do calendário a complicação da Era, dado que a conta dos anos se fazia a partir da fundação de Roma. Mas quando fora fundada Roma?

 

(Para a contagem dos anos convenciona-se que a primeira olimpíada se efectuou no Verão de 776; cada olimpíada comporta quatro anos. Além disso, com uma única excepção, a da data calculada por Dionísio, parte-se do pressuposto de que a cidade haveria sido fundada em Abril.)

 

Segundo Dionísio (Livro I, 74), o historiador grego do século IV Timeu de Tauroménio (Tauromenium; actual Taormina) assinalava a fundação de Roma, assim como a de Cartago, por volta do trigésimo oitavo ano anterior à primeira olimpíada, em 814/813; Fábio Pictor, que Roma fora erguida no primeiro ano da oitava olimpíada, ou seja, se contarmos à maneira macedónia, em 748 (já referindo as olimpíadas ao calendário ático, o ano indicado por Pictor seria o de 747); Cíncio Alimento, no quarto ano da décima segunda olimpíada, em 729 (contando à ateniense, 728).

Catão dizia que Roma surgira quatrocentos e trinta e dois anos após a guerra de Tróia, o que corresponderia, de acordo com as contas de Dionísio, ao primeiro ano da sétima olimpíada, 751. É esse mesmo ano, se contarmos à macedónia, que encontramos em Políbio, Cícero e Diodoro (eles referem o ano segundo da sétima olimpíada, mas haverá então que iniciar a conta no Outono de 777, e não pelo Verão de 776, como faziam os atenienses). Quanto ao próprio Dionísio, era sua opinião que a cidade teria sido fundada «no início do primeiro ano da sétima olimpíada», ou seja, por volta de Julho de 752 (I, 71, 5).

 

Por fim Marco Terêncio Varrão fixa a fundação da cidade no terceiro ano da sexta olimpíada, em 753, e esta foi a data oficialmente adoptada em Roma.

O “ano da fundação” de Varrão foi perfilhado pela historiografia moderna como o ponto de partida convencional para a contagem dos anos na história de Roma.

 

A CRÍTICA DA TRADIÇÃO ROMANA A PARTIR DA IDADE MODERNA

Um dos primeiros representantes da crítica à tradição romana foi o cientista holandês Jacob Perizonius, na segunda metade do século XVII.

 

No século XVIII o historiador francês Beaufort escreve a sua “Dissertação sobre a incerteza dos cinco primeiros séculos de Roma” (1738), onde sustentava que, na história romana antiga, os episódios narrados pela tradição mais não eram do que uma invenção da nobreza romana e dos seus “retóricos”.

Numa obra posterior, “A República Romana” (1766), defendeu que, dada a infidelidade da tradição à verdade histórica, apenas seria possível reconstituir, para aqueles primeiros séculos de Roma, a história geral das instituições (políticas, judiciais, religiosas).

 

Mais tarde, houve quem submetesse toda a tradição arcaica a uma hipercrítica ainda mais devastadora, afirmando ser impossível uma qualquer história autêntica da Roma anterior ao século III ae.

A título de exemplo, o italiano Pais, nos finais do século XIX, levava a hipercrítica ao ponto de negar a autenticidade das Leis das Doze Tábuas (nos seus últimos trabalhos, já do século XX, Pais faz “acto de contrição”, abandonando tal tese).

 

Uma das posições da historiografia contemporânea é a de que a crítica da tradição literária, unida ao estudo das restantes fontes, nos dá ao menos a possibilidade de estabelecer as linhas gerais deste período da história romana.

 

As constantes descobertas nos domínios da arqueologia, da linguística, etnologia, história comparada, etc., vão-nos fornecendo alguns meios de controlo para as afirmações da antiga tradição.

 

Contudo também existe uma corrente de crença exagerada na tradição clássica. Era essa, por exemplo, a “profissão de fé” dos capítulos sobre a Roma antiga do VII volume, 1ª edição, da “Cambridge Ancient History”.